Projeto Vidas Vozes e Saberes em um mundo em chamas
Entrevista de Alvir Longhi
Entrevistado por Luiza Gallo
Ipê, Rio Grande do Sul, 2 de julho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1480
Revisado por Nataniel Torres
P - Queria que você começasse apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Então, Alvir Longhi. O local de nascimento é o município de Ipê, eu sou natural de Ipê, e nasci em 5 de março de 1976. Nasci e me criei nesses ambientes aqui.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Se me contaram? Não. O que eu sei, assim, é que foi no final de tarde, mas, assim, como estava o dia chovendo, sol, esses detalhes, não. Também nunca pedi, né? Nunca me preocupei em pedir, assim. E também era menos, antigamente lá, isso tem seus 49 anos atrás, o pessoal se preocupava menos com essas coisas. Hoje você registra muito mais, você tira foto, você não sei o quê. Então é uma coisa que, de fato, eu nunca vou perguntar para a mãe como é que estava o dia.
P - E seu nome, tem alguma história por trás?
R - Que eu saiba não, mas ele é um nome que até hoje eu nunca encontrei ninguém com o nome igual, Alvir. Tem Alcir, Almir, Alzir e por aí vai, mas Alvir, não. Então, o que o pai, especialmente a mãe, sempre falou, porque quando a gente pergunta de onde tiraram esse nome, a mãe sempre diz assim: “Foi o pai que veio com esse nome. E o pai nunca quis contar de onde ele tirou”.
P - Você já perguntou e ele não quis responder?
R - Já!
P - Uau!
R - Então, é um pouco assim, não sei se ele associou letras ou em algum momento ele ouviu esse nome em algum lugar, mas talvez difícil, mas ele nunca falou de como ele chegou a esse nome.
P - Curioso!
R - É.
P - E como que é o seu pai? Como que você descreveria o jeito dele, o nome dele?
R - Como descrever o pai agora ou ao longo do tempo? Porque também são diferentes momentos. O pai está com seus 77 anos, então tem uma diferença...
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Entrevista de Alvir Longhi
Entrevistado por Luiza Gallo
Ipê, Rio Grande do Sul, 2 de julho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1480
Revisado por Nataniel Torres
P - Queria que você começasse apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Então, Alvir Longhi. O local de nascimento é o município de Ipê, eu sou natural de Ipê, e nasci em 5 de março de 1976. Nasci e me criei nesses ambientes aqui.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Se me contaram? Não. O que eu sei, assim, é que foi no final de tarde, mas, assim, como estava o dia chovendo, sol, esses detalhes, não. Também nunca pedi, né? Nunca me preocupei em pedir, assim. E também era menos, antigamente lá, isso tem seus 49 anos atrás, o pessoal se preocupava menos com essas coisas. Hoje você registra muito mais, você tira foto, você não sei o quê. Então é uma coisa que, de fato, eu nunca vou perguntar para a mãe como é que estava o dia.
P - E seu nome, tem alguma história por trás?
R - Que eu saiba não, mas ele é um nome que até hoje eu nunca encontrei ninguém com o nome igual, Alvir. Tem Alcir, Almir, Alzir e por aí vai, mas Alvir, não. Então, o que o pai, especialmente a mãe, sempre falou, porque quando a gente pergunta de onde tiraram esse nome, a mãe sempre diz assim: “Foi o pai que veio com esse nome. E o pai nunca quis contar de onde ele tirou”.
P - Você já perguntou e ele não quis responder?
R - Já!
P - Uau!
R - Então, é um pouco assim, não sei se ele associou letras ou em algum momento ele ouviu esse nome em algum lugar, mas talvez difícil, mas ele nunca falou de como ele chegou a esse nome.
P - Curioso!
R - É.
P - E como que é o seu pai? Como que você descreveria o jeito dele, o nome dele?
R - Como descrever o pai agora ou ao longo do tempo? Porque também são diferentes momentos. O pai está com seus 77 anos, então tem uma diferença bastante grande do que como era, como é que foi há um tempo atrás e como é que é hoje. Mas eu diria assim, se tivesse alguns elementos de associar a pessoa do meu pai ao longo do tempo... É uma pessoa, não queria usar palavras do cotidiano, mas é uma pessoa muito justa. O pai, e isso talvez a gente carregue um pouco dele também, da mãe também, o tal do que a gente diz, do que eu brinco com o meu filho: “Combinou, está combinado.” Não tem, você combinou algo. Muito hospitaleiro, acho que o pai tem disso também, o pai gosta de estar no meio das pessoas, embora ele seja um pouco mais introspectivo do que minha mãe, mas o fato de ele talvez não interagir tanto não significa que ele não gosta, ele gosta de uma confusão. Ele tem toda uma história da família do meu pai que, por muito tempo, eles foram mateiros, quando jovens. Então, o pai, para mim, ele e meu avô - meu avô materno, com quem eu me criei mais - essa terra era do meu avô materno, por isso que eu estou aqui, senão eu não estaria. Por que ter um sítio e por que ser aqui? Foram as duas pessoas que, para mim, me ensinaram quase tudo que eu sei hoje, de identificar planta, de andar no mato. Porque meu pai, na época que era mateiro... Aqui uma das primeiras economias, para quem não tinha... Meu pai e minha mãe eram sem-terra. Quando casaram, trabalharam de empregados em um dos primeiros pomares de maçã, que estava localizado na entrada lá, quando a gente chegou de Ipê e entrou ali pra casa do meu pai, do outro lado ali. E hoje, essa região aqui é uma das principais produtoras de maçã do mundo. Vacaria, essa região toda aqui, porque Ipê era distrito de Vacaria. Aqui a gente está numa região de distribuição de terra de Portugal, ainda chamada As Sesmarias, então as grandes propriedades, os grandes latifúndios que depois foram sendo quebrados. Então isso aqui tudo era município de Vacaria, e Vacaria é o principal produtor de maçã. Então meu pai e minha mãe trabalhavam ali como empregados. Eu nasci no meio de um pomar de maçã. Que depois dá pra voltar essa história, que eu acho que é onde começa um pouco a minha história e tal. Mas a história do meu pai, então... E eles eram sem-terra, colonos. É dos italianos que não se deu bem, entende? Porque a gente sempre fala que a migração italiana ficou rica. Não, tem muito italiano pobre que não se deu bem. Por vários motivos. E a família do meu pai e tal é uma dessas que não se deu bem. E aí, como era uma região da mata da araucária aqui... A araucária, tem a exploração de madeira - foi muito forte - e, em seguida, a exploração do nó de pinho, que é o nó do pinheiro, pra fazer carvão, e vendiam carvão. Então acampavam nos matos - isso há 50 anos atrás - onde você não tinha lona plástica, não tinha nada disso, fazendo cabanas com folha de xaxim, com taquara e essa coisa toda, e ficavam acampados nos matos 15 dias, 20 dias, um mês, fazendo carvão. Então meu pai tem uma conexão e um entendimento dessas coisas, do estar nos ambientes e gostar. Hoje ele já tem uma certa dificuldade porque ele teve um problema no pé e tal. Agora, segunda-feira que vem, ele vai estar de cirurgia de novo, marcada e tal, então ele já tem uma certa dificuldade por nos acompanhar, digamos assim, em caminhar e andar e tal, mas senão ele gosta muito. Então eu defino o pai também como uma pessoa assim que gosta de estar no... Como ele diz: “Eu gosto de estar no mato, de estar pra fora, fazendo coisa, mexendo”, né?
P - E você consegue descrever como ele foi passando esses conhecimentos pra você, assim? Se era simples, ou teve um dia que ele ensinou mesmo, falou, vem filho, se acompanhava, como que...
R - Não, isso é a convivência. Eu acho que no jeito tradicional das coisas, o conhecimento não tem um momento que nem é uma sala de aula formal que tu agora, eu vou te ensinar. Não. Tu tá andando, tu tá fazendo junto, tu tá aprendendo, tu tá... Pra mim, o conhecimento tradicional é passado pela convivência. Seja oral, gestos, atitudes, exemplos. E eu acho que foi isso, em todos os aspectos, tanto do meu pai quanto do meu avô e de outras pessoas que eu fui convivendo, é muito disso, de estar convivendo junto. Porque não necessariamente tu aprende, tu aprende igual. Você observa, viu tal coisa, enfim, o aprendizado te dá muito da forma de como a tua capacidade de assimilar aquilo e desenvolver aquilo. Então acho que foi isso. Aprender a pescar, eu lembro de aprender a pescar nesse rio. Eu aprendi a nadar nesse rio, por isso que eu digo, não é à toa que o sítio está aqui. Eu não podia deixar isso aqui virar uma lavoura de soja quando meu avô morreu. Para mim, isso estava fora de cogitação. E como que a gente aprendia a pescar? Era indo junto. Caindo, se machucando, espetando o dedo no anzol, mas era estar junto das pessoas. É assim que a gente foi aprendendo as coisas. E até hoje, eu aprendo muito com o meu pai ainda. Aqui no sítio mesmo, nossa, tem sido assim, muitos aprendizados. Meu pai tem algumas plantas que ele tem elas como quase sagradas, assim. E aí, bom, eu tento trabalhar com elas aqui também, então... Ah, o pai gosta muito do creme, né? O araucário, o pinheiro pra ele, vocês chegaram lá em casa agora, o café da manhã dele foi pinhão sapegado. Na época do pinhão, o café do pai é pinhão, entende? Então, ele gosta muito disso. Então, a gente foi... Não sei se a gente foi aprender, porque, ao mesmo tempo, a gente ensina e aprende, pelas trajetórias que a gente tem também. Mas o fato de voltar... Eu saí de casa com 13 anos de idade. E eu retorno numa convivência mais próxima com a minha família, pai, mãe e irmã, com 33, 34, ou seja, 20, 21 anos depois. Então, a gente também acaba estabelecendo uma outra relação onde tu passa um monte de coisas também.
P - E sua mãe, como você descreveria essa trajetória dela, da sua relação com ela?
R - Bom, antes de entrar na mãe, me faz lembrar uma coisa do pai, muito lutador, sabe? E aí os dois também, volto a dizer isso da mãe. Então, definindo a mãe também como, para mim, uma das mulheres assim... A mãe já trabalhou de empregada em roça, a mãe já lavou roupa para fora, a mãe já trabalhou de cuidadora de criança. E, claro, depois de um tempo, conseguiram uma certa estabilidade. Mas isso tudo na fase jovem, para criar os filhos, fizeram isso tudo. Meu pai trabalhava de pedreiro para fora, depois que saiu desse pomar de maçã. Tem toda uma história ali que eu te comentei. Então, a mãe, eu acho que é uma pessoa bem diferente do que o pai. Ela é totalmente extrovertida. Tanto é que ela começou a conversar com vocês e fazer perguntas. Ela ia entrevistar vocês lá. Se nós ficássemos lá a fazer isso, ela já estava no meio da história aqui, contando juntos. Ela é muito disso. Acho que esse aspecto eu puxei dela, de falar pra cacete. Mas eu vejo, é uma das coisas que às vezes a gente chama a atenção dela: “Mãe, tu é muito boa.” A mãe adora fazer coisa pras outras pessoas, independente de quem seja. Então, eu acho que ela tem essa coisa de uma mulher incrível, do ponto de vista de trabalho, dessa coisa toda, para conseguir o sustento, nos criar. A gente não tinha dinheiro para pagar a passagem do ônibus para ir para a escola, para poder estudar. Eu via minha mãe sair nos vizinhos e pedir dinheiro emprestado. Porque, na época, não tinha transporte escolar, que nem tem hoje, público. E para a gente sair daqui até Ipê, que é aquele trajetinho de sete quilômetros, facinho hoje... Há 40 anos atrás, era tudo estrada de chão e tinha ônibus uma vez por dia só, e quase ninguém tinha carro. Então a gente tinha a escola do interior aqui, que era até a 5ª série. Na época, se falava 5ª série. O 1º grau era até a 8ª série, depois era o 2º grau, como se chamava. Então estudar até a 5ª série já era algo que os pais não tinham estudado. Na minha geração, os pais não estudaram até a 5ª série. Poucos pais estudaram até a 5ª série. Então, na minha geração, o normal era estudar até a 5ª série. Ir pra Ipê, ir pra cidade, fazer a 6ª, a 7ª, a 8ª série era pra muita poucas pessoas que tinham condições dos filhos irem. E essas condições eram o quê? Ou morar perto, que dava pra ir caminhando - então quem morava 2, 3 quilômetros da cidade conseguia fazer isso indo caminhando - ou pagar a passagem de ônibus, que era privado, era uma linha de ônibus que você tinha que pagar. E não precisar dessa mão de obra em casa, porque também tinha muito disso, dos pais precisarem da mão de obra dos filhos de 10, 11, 12, 13 anos, trabalhavam, que nem muito adulto não trabalha hoje. Eu vejo aí hoje galera de 20, 20 e poucos anos, jovens, que eles não fazem a metade do que a gente fazia com 11 anos. Então, essa coisa de muito esforço da mãe e tal, eu tenho essas lembranças, e pedir dinheiro emprestado para o vizinho: “Faltaram duas passagens, três passagens para a gente poder ir estudar e tal.” Então, um esforço grande para criar os filhos. Olha que a gente era só três. Só. Só três. O meu pai são nove irmãos e a mãe são dez. E muito participativa na comunidade. A mãe tem muito disso. Aqui, a presença da comunidade rural, que ela se organiza a partir da igreja. Então, as comunidades aqui sempre vão ter uma igreja. Sempre vai ter um santo. Aqui, por exemplo, é a Nossa Senhora das Graças, que é como a cultura italiana, os alemães também foram assim, como os imigrantes foram formando seus centros comunitários - a igreja como espaço da religião, de cultivar a religião, a fé, as suas espiritualidades - e também o centro de convivência. Então era onde você se reunia nos sábados, nos domingos, para jogar baralho, jogar bocha, jogar futebol, mas aí também tinha missa, as festas de tempo em tempo e tal. E a mãe sempre participou, sempre. Independente do momento da vida, sempre participou, tanto é que ela é Ministra da Eucaristia - como chama, sei lá - 40, 50 anos. Todo sábado ela vai na igreja ainda, limpar, tem o culto, tem não sei o quê e tal. Então, assim, uma pessoa muito presente também. O pai já não é tanto. O pai gosta de ir lá, vai, mas também você não vai. Você não precisa ajudar, não ajuda. Mas a mãe, não. A mãe tem muito disso, dessa convivência comunitária muito forte, muito forte.
P - E você quer contar essa história do Pomar, assim, em que momento de vida, quando você nasce, a sua família está em que momento de vida? Como que você chega?
R - É, eu sou irmão, dos três eu sou o mais velho, né? Depois tem as minhas outras duas irmãs, a mais nova é que estava lá, a Ali, com a filhinha dela. Então, é isso. Meu pai e minha mãe casam e vão viver juntos, mas eles não têm terra, não tem essa coisa toda. Meu avô tinha, mas tinha outros nove filhos. Minha mãe é a mais velha de dez. O meu pai também, a família dele com uma outra história e tal. E eles vão trabalhar, então, o pai vai trabalhar num primeiro momento de fazer cerca nas fazendas de gado aqui. E construir pequenos galpões, essa coisa, trabalhar como... Mas depois ele vem e vai trabalhar nesse pomar de maçã, que é onde eu nasci. Eu nasci ali e vivi até 11 anos de idade. Que era uma casa quase em frente, do outro lado do asfalto, ali de onde é a casa dos meus pais hoje. Mas é ali, do outro lado. Bom, e aí, tipo assim, o meu pai empregado ali, com salário mínimo, o único que trabalhava, essa coisa toda, mas foi onde a gente se envolveu no universo dos agrotóxicos. Para você ter uma ideia, eu até os 11 anos tive três intoxicações agudas de agrotóxico. Isso nós estamos falando de 85, 86, 87, metade dos anos 80. Por quê? Porque o veneno estava entrando no Brasil, os agrotóxicos estavam entrando no Brasil nesse período. Então, agrotóxico não era agrotóxico, como muitos ainda chamam assim, mas era remédio. Literalmente, nós chamávamos de remédio. Nós dizíamos: “Hoje vamos passar remédio nas maçãs”. Brincar com Captan, Furadan, Dithane, nós brincávamos com veneno. Literalmente, porque tinha uma casinha que tinha o depósito. Tinha quatro, cinco hectares de maçã, três, quatro hectares de maçã. Então tinha uma casinha com veneno ali, estoque, onde a gente mexia com aquilo ali, assim, como se não fosse nada. E o pessoal dizia isso, quem acompanhava e tal, “isso não é veneno, isso não…” E era chique, como para muitos ainda é, porque essa tecnologia da agricultura moderna, extremamente destrutiva, ela traz consigo esse encanto, digamos assim, desse imaginário do moderno. Eu acho que, na minha avaliação hoje, é um pouco isso, porque as pessoas entram nisso: o moderno e tal. Poderíamos viajar nessa história. E aí chegou um momento que meu pai também não suportou mais as intoxicações.
P - Como que era? O que é isso?
R - Cada pessoa tem seus sintomas. Mas meu pai desmaiava, meu pai, assim, do nada. Era isso, podia estar jantando e simplesmente apagava em cima da mesa, sentado numa cadeira. E perdendo a sensibilidade e força nos membros superiores e inferiores, perna e braço, que é denominado isso a tal da neuropatia periférica sensitiva. Porque essas substâncias vão entrando no sistema nervoso mesmo, no sistema nervoso central, e vai atingindo as emoções, essas coisas todas, mas também sensibilidade de alguns órgãos, de alguns membros, não órgãos e tal. Fígado, ataca fígado. Então, meu pai teve vários sintomas disso, que chegou num momento que o médico mesmo disse assim: “É parar ou morrer.” E quando chegou nesse momento, o que o dono, digamos assim, do pomar fez? “Não serve mais, se não está aqui para lidar e passar veneno e tal, não serve mais.” O que a gente ia fazer? E aí meu pai tinha um dinheirinho guardado das economias que ele foi fazendo, ele e minha mãe conseguiram fazer aquela casa que eles moram até hoje. Aquela casa tem 38 anos, a mesma casa, que foi ele que construiu. E ele começou a trabalhar por um tempo para ter renda, porque ele conhecia desse ofício da construção. E começou a trabalhar com isso, fazer outras casas, começar a pegar serviços e tal. E minha mãe fazendo isso. Minha mãe lavando roupa para fora, pegando faxina, fazendo o que dava, cuidando da casa, dos filhos e tal, e meu pai muito fora daí, porque às vezes ficava 15, 20 dias fora trabalhando. Antônio Prado, Porto Alegre, meu pai foi construir prédios em Porto Alegre depois também, e essa coisa toda. E a gente tinha que trabalhar. Eu, com 11 anos, 12 anos, tinha que trabalhar, tinha que ter renda. Então sempre tinha que arrumar um servicinho. Ou era capinar a lavoura de milho de um vizinho, roçar um potreiro de alguém, ia ajudar os tios meus a fazer lenha, ou alguma coisa assim. E aí apareceu essa oportunidade de trabalhar no Centro Ecológico. É aí que começa a minha história, digamos assim, no envolvimento desse mundo da ecologia, digamos assim. Então eu fui...
P - Ainda menino.
R - Treze anos. Por isso que eu digo que eu saí de casa, não uma desconexão total, né? Saiu de casa, nunca mais voltou, 20 anos depois que viu os pais. Não, não é isso. Viam meus pais toda semana. Mas o sair de estar em outro ambiente, convivendo com outras pessoas, dormindo fora de casa, dois dias, três dias, cinco dias por semana, foi com 13 anos de idade. Porque aqui do ladinho se forma uma das primeiras organizações de trabalhar com a agroecologia do Brasil, chamado Centro Ecológico, em 1985. A fundadora é a Maria José Guazelli, que é vizinha. Hoje a gente é vizinho de sítio, o sítio dela é do ladinho aqui. A Maria José, então, é uma de família oriunda, digamos assim, de uma família da região aqui, mas uma família com uma capacidade financeira, tem toda uma história, que ela sai para estudar, sai do Brasil e conhece esse universo da agricultura orgânica, ou biodinâmica, enfim, da agricultura alternativa e dos problemas também associados, os problemas ambientais, sociais e de saúde, associado a uma agricultura baseada em insumos químicos, em mecanização e essa coisa toda. Então, o pai dela, com uma área significativa de terra, ela volta e diz para o pai dela que ela queria ter uma fazenda orgânica, uma propriedade orgânica. E aí ela tem essa terra, o pai dela cede um espaço de terra para ela fazer isso, e ela começa a fazer isso. Só que ela não se contenta em fazer isso, ela começa a andar pelas comunidades falando dos impactos dos agrotóxicos. E a necessidade de fazer uma agricultura diferente, porque o Rio Grande do Sul naquele momento também converge em várias coisas. Final dos anos 80, então, metade dos anos 80 para o final dos anos 80, nós temos duas, três situações muito especiais do ponto de vista histórico, não do ponto de vista que são legais. Mas uma delas, não numa ordem de prioridade nem de cronologia de tempo, mas uma delas é a contaminação do Rio Guaíba por organoclorados. O organoclorado é um tipo de princípio ativo de determinados agrotóxicos, e se descobriu que a água do Guaíba tinha organoclorado. E aí uma figura nossa aqui, José Lutzenberger, associado com o outro, já puxava um pouco essa questão do movimento ambientalista. E quando se descobre a água do Guaíba contaminada, isso deu um boom no movimento ambientalista do Rio Grande do Sul. “Pô, como é que Porto-alegrense tá tomando água com veneno se Porto Alegre não usa veneno? Da onde vem isso?” Vem justamente por aquelas questões que a gente falava antes das duas grandes bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul, né? Ou seja, toda água que chove no Rio Grande do Sul, ela para no Guaíba ou ela para em Montevidéu. Ou vai lá para a bacia do Prata, que é a bacia do Rio Uruguai. Então isso dá uma, digamos, uma base legal para... Não é o termo legal, mas legitima o movimento ambientalista. A sociedade se desperta um pouco para isso. Esse é um fato. O outro fato, que ocorre mais na região norte do Rio Grande do Sul, que é onde está o CETAP, e isso ocasiona a origem, é um elemento de origem do CETAP muito forte, que o Hospital São Vicente de Paula, da cidade de Passo Fundo, uma enfermeira - na época enfermeira, hoje já tem outras formações, professora de universidade - Mara Talhari, trabalha no hospital e começa a perceber o alto índice de crianças que nasciam com má formação congênita. Má formação congênita é aquela espinha bífida, da cabeça d'água, lábio leporino, enfim, um conjunto de coisas assim. Num índice, segundo ela, num primeiro momento, fora do que seria um padrão normal. Entre tantos mil nascimentos, é normal ter um, mas isso... E ela conseguiu apoio de fazer um estudo sobre isso. E esse estudo constatou que esses casos, esse índice alarmante, digamos assim, estava associado às substâncias tóxicas usadas na agricultura. Bom, isso foi um outro elemento que se juntou com a contaminação do Guaíba. E o terceiro está muito mais ligado às causas sociais, que são os movimentos sociais no Rio Grande do Sul. Porque você está saindo de uma ditadura militar, então os movimentos sociais começam a se reorganizar: luta por direito, as mulheres, o Movimento Sem Terra, movimento atingido por barragem, por causa das barragens, especialmente no Rio Uruguai, o próprio movimento indígena, as pastorais da juventude desligadas da igreja começam a voltar um pouco, a trabalhar essa questão da teologia da libertação dentro das suas dinâmicas, trazendo as causas sociais. Então, esses três elementos - isso é minha interpretação, tá, gente? Outros vão contar de outro jeito, bem provável que bem mais certo do que eu - fazem com que comece a surgir, no Rio Grande do Sul, essa questão da agricultura ecológica muito forte. Que proposta a gente tem para isso? Que nos ajude a minimizar os problemas sociais, participação, geração de renda, êxodo rural e tal, mas também associado à saúde, ao cuidado com a saúde, tanto de quem trabalha diretamente na produção como quem consome, mas também ambientalmente. E isso deu um outro significado, digamos assim, para o que a Maria José estava fazendo aqui com o Centro Ecológico. O Centro Ecológico está fazendo 40 anos esse ano. Em outubro, agora, nós vamos ter a festa dos 40 anos aqui em Ipê. Surge lá em 1985. E aí, bom, na época se chamava Projeto Vacaria, porque era município de Vacaria ainda aqui. O trabalho dela ali era Projeto Vacaria. Depois passou para KIP, Centro de Agricultura Ecológica de Ipê. Depois mudou de nome, que é o Centro Ecológico. Mas essa mudança de nome é meramente porque a instituição precisou se reorganizar e tal. E aí era possível... Um colega meu de escola era... A família dele morava lá. O pai, a mãe trabalhavam no centro, eram tipo caseiros ali e tal, né? E aí eu comecei a ir pra lá, tipo final de semana, não sei o quê e tal, até que apareceu o serviço, tipo: “Ah, quer estudar?” Estudava de manhã e trabalhar à tarde nas hortas e tal? Então eu, com 13 anos, comecei a trabalhar no Centro Ecológico. Então eu estou no mundo. Eu estou no universo das ONGs.
P - E logo no começo, que aqui também começou a ter isso.
R - Não tinha nada. Aí a gente forma... Eu costumo dizer que é a primeira. Até hoje ninguém me disse que não e eu já disse isso em muitos lugares. A gente participou da formação da primeira Associação de Agricultores Ecologistas do Rio Grande do Sul, que é a AECIA. A AECIA é a Associação dos Agricultores Ecologistas de Ipê e Antônio Prado. Se você buscar aí, tem méritos na história? Tem. Tem grandes coisas hoje? Não. Mas hoje é uma cooperativa, a Cooperativa AECIA, e que, a partir dela, surgiram um monte de outras e tal. E como família, o pai e a mãe são associados até hoje à cooperativa, criada lá em 91, 92. Então, em 88, nós saímos daqui com uma Kombi, quatro, cinco pessoas dentro de uma Kombi, do Centro Ecológico. Pessoas e caixas de produto para ir fazer feira em Porto Alegre. Essa sim é a primeira feira ecológica, dita ecológica com esse nome, do Brasil.
P - E você foi?
R - Ixi, fui. A história do primeiro dia de ir na feira foi muito engraçada.
P- Como?
R - Imagina, então eu estava lá com meus 14 anos de idade. A gente não saía desse universo, a gente não conhecia esse universo. O nosso universo era o Ipê. O Ipê, há 30 e poucos anos atrás, vocês viram, vocês passaram em toda a cidade hoje, tá? Ou chegar e ir até na EcoNative e sair para cá, vocês andaram em toda a cidade. Imagina isso há 30 e poucos anos atrás, sem acesso asfáltico. Não tinha acesso asfáltico para Caxias nem para a Vacaria. Era uma vilazinha. Então a cidade para nós era Ipê. Porto Alegre a gente nem fazia ideia que existia. Luz elétrica nós não tínhamos em casa, então nós não tínhamos televisão. Guardar um leite, se precisava, a gente cavava um buraco no chão de terra do porão da casa. Esse era o nosso conhecimento e entendimento de mundo. E claro, estar ali no Centro Ecológico, circulava muita gente já. Gente da Europa, Suécia, Alemanha, enfim. Mas a gente era muito criança ainda pra entender esse mundo. Aí, Feira Ecológica. Começou a Feira Ecológica. Teve um sábado, depois teve o outro e tal, e teve um dia que a Zé mesmo, diz ela: “Vamos?” “Vamos”. E eu lembro que ela comentou com a mãe e tal que eu ia pra Porto Alegre junto. Chegamos lá na feira, cinco da manhã, montando o banca, aquela coisa, tudo bem. Mas quando começou oito da manhã, nove da manhã, a cidade começou a se movimentar. E é, até hoje é, no Parque da Redenção, o centro de Porto Alegre, fantástico ali. Eu me encantei e saí pela cidade, literalmente. Porque tinha roda gigante, nunca tinha visto aquilo, nunca tinha visto prédio. E eu sei que a Zé ficou apavorada. Porque o guri sumiu, sumiu da feira. Então, foi muito interessante. “Só que me faltava perder uma criança morta aí”. Ué, pra mim era normal. Tô vivo com a viagem, teve?
P - Mas você lembra desse encantamento?
R - Lembro, total. Total. Total.
P - O que te chamava a atenção?
R - Ah, Luiza, eu acho que nós somos movidos por subjetividades. Nós somos seres, aqueles que ainda, assim, não dá para se dizer todos, porque tem situações e situações das pessoas. Tem pessoas que vivem situações que você tem que ser irracional o tempo todo para poder sobreviver, você manter vivo. Mas eu defino, digamos assim, em alguns aspectos, o ser humano, o indivíduo, como um ser de subjetividade. Nós somos movidos por emoções, não somos movidos pela razão. A razão é meramente ferramenta para a gente colocar em prática nossos desejos, nossas emoções, nossos sentimentos. E eu acho que isso até hoje é assim. Então, essa subjetividade nossa é alimentada de várias formas. E, para mim, uma das coisas, na época, porque não tinha esse entendimento das necessidades de trabalhar. A gente era muito novo para entender isso. Estava ali no meio, ouvia, achava legal. Ouvia Lutzenberger, essas figuras conversando. Eu lembro de estar sentado numa cadeirinha atrás de um fogão, escutando Lutzenberger, Maria José, Sebastião Pinheiro, Ana Primavesi. Eu via essa galera conversando entre eles com 13, 14 anos de idade, 15 anos de idade. E eu ficava dizendo assim: “Um dia eu quero sacar das coisas que nem esses caras sacam, que coisa legal.” Mas era o máximo que eu entendia. Agora, a valorização que a gente tinha por estar nesse mundo era muito grande. Porque os professores que nos davam aula não conheciam Porto Alegre, a gente conhecia. A galera da comunidade, os outros amigos, pô, não iam para Porto Alegre, não iam para Caxias, nós íamos todo final de semana. Então isso era uma... Por isso que eu falo da subjetividade, era uma valorização, porque a gente, pobre, e as outras pessoas... A palavra não é inveja, mas valorizando pelo menos no sentido: “Como é que é? O que vocês fazem lá?”, tirando sarro às vezes também, porque tinha essa coisa do trabalhar com ecologia, já tirava o sarro, tinha. Mas, no fundo, a gente sabia que a gente estava num universo, aquele universo que a gente estava nos proporcionava conhecer e viver coisas que a gente não ia viver e conhecer no universo que era do cotidiano do local. Então, para mim, eu tenho certeza que era isso que motivava. Não sei se o termo é valorização, mas um pouco isso sim, de valorização, de estar nesses espaços, nesses meios e tal. Porque, se não fosse isso, acho que a gente não se mantinha, não. Era muito mais cômodo ficar em casa. Comendo a comida da mãe, enfim, fazendo outras coisas. É sempre muito mais cômodo você mesmo se aceitar dentro do senso comum do local onde você está do que ir para outras coisas. Mas eu acho que era essa coisa da valorização, sim. Poder conhecer outras coisas, sabe? Esse movimento te permitir conhecer essas outras coisas.
P - E aí você vai pra essa feira e você volta contando desse mundo assim, do que você viu ou não?
R - Sim.
P - Você ficou intrigado?
R - Não. Não ficava intrigado. Intrigado eu acho que eu nunca fiquei, eu ficava achando coisas estranhas do povo da cidade. Sim, né? Jesus! Até hoje eu acho. Eu acho que tem uns comportamentos urbanos difíceis, assim. Aceitáveis, obviamente, a gente tem que respeitar, aceitar, e essa coisa toda, não tem problema nenhum. Mas pra gente que transitou nesses mundos todos, quase todos eles. Sair do rural sem luz, roçando o potreiro com 10, 12 anos de idade e morando em grandes cidades e não sei o quê, não sei o quê. E fazendo um paralelo entre tudo isso, a gente está num momento onde as pessoas estão se perdendo muito, eu acho, da sua conexão com as coisas. De maneira geral, assim como na sociedade, me parece que a gente não tem evoluído tanto, não. A gente tem se desconectado muito com a nossa essência. Nossa essência como seres vivos dentro do contexto de um conjunto de outros seres vivos. A gente vai artificializando relações entre os indivíduos humanos, e artificializando e ignorando muito mais as relações com os outros seres. As pessoas hoje, muitos, em vez de se encontrar, preferem fazer reuniões online. Aí tu vai dizer assim: “Ah, me facilita a vida uma reunião profissional.” Não, concordo. Mas, daqui a pouco, fazer uma videochamada para os irmãos, para a mãe, porque você não se dispôs, daqui a pouco, a pegar um carro e andar três quilômetros, quatro quilômetros, e achar que a videochamada que você fez subjetivamente pode ter resolvido o teu problema, teu peso de consciência. “Bah, não fui na casa dos meus pais, ou meus pais não vieram aqui, ou meus amigos.” Eu dei uma justificativa. Mas isso muda totalmente o teu comportamento, teus sentimentos, tuas emoções e essa coisa toda. Então acho que a gente vem artificializando muito as relações entre as pessoas e das pessoas com o espaço, né? Eu tenho pessoas que dizem assim: “Bah, não, eu cuido do meu ambiente porque eu cuido bem do meu cachorrinho.” “Tá bom. Tem que cuidar bem do cachorrinho, mas cuidar do meio ambiente não é…” “Ah, eu sou da causa dos tratos dos animais.” “Sim. Os gatinhos estão ótimos, mas não estou nem preocupado que estão devastando biomas inteiros.” Sabe, eu acho que tem quase uma ressignificação no mau sentido dessas coisas, que eu digo que a gente vai artificializando as relações nossas com o espaço, com essa coisa toda. Então, sim, eu já achava coisa estranha na cidade naquele tempo. Já. Achava. Mas também por isso, porque quando a gente vive em diferentes mundos, é natural você ter percepções e visões que, não é de conflito do ponto de vista, mas de confrontar. Pô, mas aqui é assim, lá, sabe? Por isso que eu digo, é muito mais fácil pra gente viver num único mundo. É muito mais fácil. Porque, quando você vai vivendo, conhecendo e vivendo, interagindo com mundos diferentes, você entra em contradição. E, ao mesmo tempo que você entra em contradição, você bota os outros em contradições. Especialmente se é alguém que se expressa, que fala e tal. Porque é isso. Tem contradições entre esses mundos. Muito grandes. Muito grandes. Mas, de maneira geral, assim, eu diria que... Claro, o rural nosso está muito mudado. O Brasil é cheio de rurais. O rural do Rio Grande do Sul, da Serra Gaúcha, é diferente do que o rural das Missões, do Pampa, do litoral. Então, tu imagina, o rural do Rio Grande do Sul é muito diferente do rural da Caatinga, do Cerrado, da Amazônia, que só por si, só dentro do próprio bioma, tem suas diferenças. Mas eu acho que ainda o rural é que guarda algumas essências do ponto de vista de modo de vida, que possa apontar para questões de sustentabilidade, não só ambiental, mas sustentabilidade quanto planeta e quanto espécie, porque, senão, a gente está ruim quanto espécie também. Então, eu já via coisas que eu estava achando estranhas.
P - E pensando, acho que talvez, não sei se naquela época você me diz, mas talvez hoje, um pouco mais velho...
R - Um pouco mais, bem mais.
P - Um pouco, como foi esse movimento de estar junto dos venenos e ir para esse Centro Ecológico, essa virada, esse outro jeito de ver o mundo e ter esse contato.
R - Eu acho que o mundo, esse período que a gente teve vinculado aos agrotóxicos, eu era criança. Então eu entendia pouco. Então não teve, eu acho, essa coisa do, bah, tipo assim, um trauma sair daqui, como tem hoje, largar dos venenos para fazer agricultura ecológica. Acho que a gente não teve isso, até porque... Mas, a gente... Quando a gente ouvia as pessoas, na época, que faziam formações, que faziam as palestras, como a gente dizia, falando dos impactos do veneno, a gente conhecia os impactos. A gente conhecia porque a gente viveu em casa. Então, acho que isso... Para nós, digamos assim. Digo para nós, por quê? Porque a mãe e o pai sempre apoiaram. E foi uma das coisas, assim, foi um... A gente meio que se revoltou com os agrotóxicos. Porque a gente sofreu na pele. A gente sentiu, viu. Não é alguém que contou. “Isso causa isso”. Não. A gente teve dentro de casa. Então, assim, não foi algo que foi traumático, fazer essa virada de chave. Por esse contexto mesmo. A gente sabia que não queria mexer com isso, mas não ia mexer, talvez, não sei, porque a gente tinha saído, o pai era funcionário do pomar ali. Então, mas acho que sim, acho que foi um dos motivadores, assim, ao longo do tempo, querer permanecer nessa causa, digamos assim.
P - E pensando, você está contando sobre uma história que a gente não conhece muito, essa paisagem. Como você descreveria a paisagem da sua infância, pensando nos sons, nos cheiros, nas cores, na sensação do corpo...
R - Da infância? Bah, tenho que puxar na memória, assim, coisas. Mas eu tenho, assim, da minha infância, da paisagem. Eu sempre gostei muito da primavera. Eu lembro que eu gostava, de uma das coisas, ficava aguardando que começasse a esquentar pra poder ir na escola de chinelo. Era tão bom poder ir para a escola de chinelo, porque daí tu não passava frio nos pés no inverno. Imagine isso há trinta e poucos anos atrás, quase quarenta, se pegar quando eu comecei a ir para a escola, quarenta anos atrás. A gente não tinha roupa adequada, nem calçada adequada para esse frio. E era muito mais frio do que hoje faz. Hoje dá alguns dias de intenso frio. Naquele tempo, podia dar 10, 15, 20 jardas em sequência, no mesmo mês. Ou seja, você ter 10, 15 dias com temperatura negativa todos os dias. Então, eu lembro que quando começava a esquentar, chegava a primavera, eu achava legal poder botar menos roupa, poder botar um chinelo pra ir pra escola, não passar frio. Essa coisa do estudar na escola rural. O teu recreio era 30 minutos, nós jogávamos bola no ambiente aberto. A escola tinha horta, nós não gostávamos de trabalhar, nós íamos se esconder, mas tinha... Ou seja, quando tu olha o que a galera diz hoje que tem que fazer, era o modo de vida que a gente tinha. Claro que sem condições e passando necessidade que a gente não precisava. Mas hoje, pô, a galera... Projeto pra horta escolar. As hortas rurais tinham escola. E a gurizada tinha que trabalhar. A metodologia poderia ser diferente. Essa coisa da escola, eu sempre gostei muito, talvez porque não tinha outra coisa para fazer também. Talvez se tivesse outras oportunidades, talvez não teria gostado tanto. Mas eu adorava ir pescar, andar nos matos, essa coisa toda. Nossa! Falava em sair e pescar, meus tios, chovia e iam pescar, porque daí suja a água do rio, aí tem determinados peixes que tu pega com água suja. Eu estava sempre enfiado junto. Eu lembro de sair pescar com eles, que eu era pequeno, que eu não conseguia atravessar rios de dois, três metros, eles ficavam um a cada lado do rio, me jogando de um lado para o outro para eu não cair dentro. Então eu gostava disso, sempre gostei, muito, muito. E com o meu avô, porque daí o meu avô plantava, tinha roça, e eu por ser o neto mais velho, porque a mãe é a filha mais velha de dez irmãos, então eu sou o neto mais velho. Eu saía muito com o meu avô. Na minha cabeça, para ajudar, já não sei se eu ajudava ou atrapalhava, mas acho que não, ajudava. A cavalo, ele tinha um gado que ele cuidava, as vaquinhas para ter o leite, para ter a carne, nada de grande rebanho de gado, não. Mas tinha que cuidar, então saía a cavalo com ele, adorava. O dia que ele deixou andar no cavalo dele foi uma loucura, assim, porque a gente andava nos cavalos velhos, ______. Era um cavalo velho, pra tronco cair e tal, essa coisa toda. E também ele, bem aqui do lado, aqui embaixo, depois a gente pode até ver, era onde ele tinha as roças de feijão, de milho, dessa coisa toda, dele, a casa lá em cima, mas as roças eram aqui embaixo. Era eu que montava no cavalo para lavrar no meio do milho, limpar o milho, limpar o feijão com um aradinho de tração animal. Então era eu, porque quem tem que estar em cima do cavalo? Alguém leve, mas que sabe manejar. Mas leve pra não cansar o bicho. Não vai botar uma pessoa adulta em cima de um cavalo o dia inteiro e o bicho ainda tem que puxar um aradinho. Então, isso eu não gostava, não. Eu lembro que tinha vezes que eu não queria fazer, não. Mas olhando pra trás hoje, é claro que tudo que a gente olha na história às vezes fica o saudosismo também. Mas eu vejo assim muito interessante para a minha formação. Essa coisa do ter horário, do ter que ir, o compromisso, ter não sei o que. Chegava o final de semana, o nono me dava um dinheirinho ou comprava alguns doces, alguma coisa, sabe? Eu acho que isso, do ponto de vista de formação, foi muito importante. Foi muito importante. Embora, às vezes, era o sol quente, os mosquitos mordendo as pernas, não queria ficar. Criança. Oito anos, nove anos de idade. Mas essa coisa de descer cedo no verão, no verão aqui cinco, cinco e meia já está claro, diferente do inverno. Então a gente vinha bem cedo para trabalhar, porque quando esquentava, dez e meia, onze horas, ia embora. Então vinha bem cedo e quando era lá pelas oito, oito e meia, minha tia mais nova, ou uma das minhas tias mais novas, vinha com uma cesta, trazia o café da manhã para nós na roça. Então, eu vivi isso. Hoje o que a galera diz assim, “ah, tomar o café na roça”, os turistas fazem hoje. E eu lembro disso. Então, o cantar da saracura de manhã cedo. “Ah, agora tem uma siriema, vai chover”, essas coisas todas. A gente via eles falar: “Ah, amanhã chove” “Mas por que vai chover?” “Não, a Siriema está cantando”. Ele não está te ensinando, aquilo que a gente falava no início, mas tu está aprendendo. “Não, vamos embora que já é quase onze horas”. “Como assim se tu não tem relógio, quase onze horas?” “Não, porque olha o sol”. E tu chegava em casa era onze horas. Ou dez pras onze, ou onze e cinco. Não errava um de uma hora. E não tinha o relógio. Ah, “acho que aqui de dois... Vamos ter que limpar esses feijões, vamos ter que fazer tal coisa porque aqui de dois, três dias vai chover”. “Como vai chover aqui de dois, três dias? Não, porque olha como é que está o céu, o céu já está riscado”.
P - O que é isso?
R - É. Tem esses sinais que tu vai vendo.
P - Mas como é o céu riscado?
R - O céu riscado, aqui a gente... O riscado é um modo sofisticado de dizer, tá? Aqui se diz assim: “Está com rabo de galo.” É umas nuvens compridas, assim. Podem contar, parece ser o rabo de galo: é dois, três dias e chove. O sol, a coloração do sol, do pôr do sol da tarde, a coloração do sol de manhã cedo. A galera sabia esses sinais todos. E quem conviveu com essa galera, de alguma forma, se foi alimentando isso ao longo do tempo, ainda sabe. Se tu não foi alimentando, tu esquece. Mas identificar os tipos de pinhão, identificar pegadas de animais. Por quê? Porque a gente caçava. O caçar e pescar era uma prática de autossustento, como é para muitas comunidades hoje ainda. Aqui não mais, e não precisa, mas era isso. Então, se eu vou caçar tatu, eu tenho que entender da floresta à noite, eu tenho que entender dos cheiros da noite, eu tenho que entender dos barulhos da noite, que são diferentes que os cheiros e os barulhos do dia. Porque eu tô indo pra caçar um outro bicho, não tô indo pra caçar mambu, paca, cutia, veado que se caça, ou pomba que se caça de dia. Tô indo caçar um bicho à noite, eu tenho que entender a floresta à noite. Entender a floresta à noite, o ambiente à noite, é outro mundo. O ir pescar, isso, com água mais clara ou mais escura, que tipo de peixe eu pego, o tipo de rio, sabe? Isso tudo eu tenho essas lembranças da minha infância, sabe? Todas elas, assim. Guardo conhecimento disso, talvez alguns, mas eu acho que muitos eu perdi por não exercitar mais também. Claro que o fato agora, nos últimos... e esse foi um dos elementos de querer ter um sítio, eu sentia falta disso. Eu sentia falta de que, e não só sentia a falta como eu estava achando que eu... sei lá, mas é só falar das coisas e não fazer. Eu não queria mais isso. Eu queria ter um espaço para mim continuar exercitando isso. Porque senão a gente fica nesse trabalho, que tem sido minha vida nos últimos 27, 28 anos, de estar assessorando, capacitando, falando com as pessoas, entre aspas, ensinando. Eu não ensino nada para ninguém, mas tudo bem. Chegou um momento que eu disse assim: “Não, isso aqui está muito vazio. Preciso…” E o estar aqui, para mim, é um pouco isso, sabe? Tem umas questões, assim, do espaço, de uma simbologia, dessa coisa toda, mas do poder exercitar. E eu brinco, nesse mundo que a gente tá, assim, das agroflorestas, dessa coisa toda. Digo: “Nossa, quanta bobagem que eu falei que eu não falaria mais. Depois de estar aqui.” Porque... Para a galera da assessoria técnica, não sei o quê, por mais responsabilidade que tu tenha, por mais que tu ganha, mas tem coisas que tu só entende vivendo. “Ah, mas eu disse para a Luiza fazer isso, por que ela não fez?” “Ela não fez porque caiu uma árvore em cima da cerca. E ela precisava arrumar a cerca em vez de fazer tal coisa, porque senão o gado do vizinho ia entrar.” Pronto, você foi ao planejamento da semana. O rural é muito interessante. Esse rural mais raiz, digamos assim, ele é muito interessante. E talvez aí esteja um dos elementos de por que o agronegócio, digamos assim, avança tão rápido. Porque ele simplifica e artificializa. E o ser humano gosta de simplificação e artificialização. Se ele gosta na sua essência, aí é outra história. Mas é muito mais prático. Prático no sentido de você não ter que lidar com a diversidade das coisas. E o rural mais raiz, um modo mais natural de vida, é isso. É um conjunto de coisas que determinam o que tu faz. Não é você que determina. E isso é uma dificuldade, vejo, nos dias de hoje.
P - Você brincava? Tinha esse tempo?
R - Ah, brincava.
P - Do que você brincava?
R - Ixi, adorava fazer fogo.
P - Desde menino?
R - A galera mexe comigo até hoje, que as pessoas mais velhas ou da mesma idade. Mas especialmente os mais velhos, esse aí sempre foi de gostar um fogo. Sério. Eu brincava sozinho, passava uma manhã, uma tarde inteira brincando sozinho com fogo. E assim, essas memórias eu tenho bem, assim.
P - Como? Conta pra gente.
R - Ah, sei lá, ir lá no matinho que tinha perto de casa, do lado de casa dos meus pais, fazer um fogo e eu mesmo ia inventando uma história que eu tava ali acampado, que eu tava viajando de um lugar pra outro, tinha parado, porque a gente ficava ouvindo essas histórias dos tropeiros aqui, dessas coisas. Ficava nesse mundo imaginário, assim, sempre... Meu avô tinha olaria. Então, a Olaria fazia tijolo. Esses tijolos assim. Então, às vezes, eu fazia isso. Fazia um fogo, montava um negocinho com barro e tal, fazia objetos de barro e botava pra assar, pra imitar o que eles faziam na... O assar de tijolo, a cerâmica na Olaria. Então, eu sempre gostei, assim. Sempre era... Se dissessem qual que era a tua principal diversão de criança, especialmente sozinho? Ah, era fazer um fogo e brincar de estar acampado, dessa coisa toda. Adorava. Adorava, sim. Gostava. E até hoje. Fogo, pra mim, me encanta. Literalmente, me encanta. É acender um fogo. Eu tenho lareira em casa. Na sala, às vezes, tem a TV ali, tá passando até algo legal e tal. Acendo o fogo, quando eu vejo tomar, eu fico minutos olhando pro fogo e não prestando atenção em nada. Fogo, pra mim, é um elemento que me encanta. A gente brincava, assim, também. Em turmas. Mas a gente não tinha muito espaço pra brincar. Espaço que eu digo... Quase de tempo, Luiza. De manhã tu ia pra escola, a partir dos sete anos. A tarde tu vinha pra casa, tu ajudava a fazer uma coisinha aqui, outra ali, mas ficava muito mais por casa. Aí sim, os finais de semana, na comunidade, que os pais iam, as crianças iam também, então brincava. E é basicamente jogar futebol, o brincar de se esconder, só que o nosso brincar de se esconder era no mato, às vezes se perdia. Eu lembro que nós fugíamos da escola e vinhamos para os matos aqui embaixo e eles iam pegar nós só de meio dia na hora de ir embora. Porque esse trecho, que a gente não vai poder andar e tal, mas 11, 12 anos eu andava sozinho à noite nesses matos. Quando eu digo assim... Tudo. Quando eu olho para o meu menino hoje, que tem 15 anos. E olha que ele convive aqui. Você sai pra ele, ele vai lá no final do sítio buscar não sei o que, ele pega e sai. Mas com 15 anos não faz metade do que a gente fazia com 8, 9. Por que? Porque a gente, por necessidade eu acho, talvez, a gente era exposto a esse mundo muito antes e aprendia a lidar. Então tinha muito disso. Jogar futebol com os amigos, enfim. Mas, assim... Era isso de brincadeiras. Carrinho de lomba. Rolimã. Só que Rolimã é no asfalto. É na calçada da cidade. Rolimã não anda. Então aqui era um carrinho de madeira, com roda de madeira, que os pais, os tios, avós, alguém que soubesse lidar com madeira fazia. Pra gente, descer nos morros de grama. Isso a gente brincava bastante. Fazia sacanagem, fazia muita. Ia roubar fruta. Ah, lá no vizinho tem um pé de bergamoteira, vamos lá. Essas coisas todas. Mais ou menos, mas a gente se divertia desse jeito.
P - E teve algum professor ou professora marcante?
R - Marcante? Só da sacanagem, eu acho.
P - Tudo bem.
R - Não, eu não consigo dizer assim, a eleger algum que foi marcante, sabe? Eu tive professores com boas relações, assim. Mas eu não diria que tem um marcante, não. Ah, esse por isso, era não sei o que, me despertou tal coisa. Não.
P - E aí, como que segue? Você estuda aqui até o quinto ano?
R - É, isso, no rural aqui, na escola do interior aqui, que é pertinho ali da casa dos meus pais, até o quinto ano. Aí eu vou para o sexto ano em Ipê. E aí nesse período entre o sexto e oitavo ano, eu já começo a participar, me envolver no Centro Ecológico. Aí eu começo a fazer o segundo grau, aqui também.
P - Você volta?
R - Não, não. O Centro Ecológico é aqui do lado.
P - Ah, tá.
R - O Centro Ecológico está a dois, três quilômetros da casa dos meus pais aqui. A sede da instituição era uma propriedade rural onde desenvolvia práticas, experiências de produção orgânica, agroecológica e essa coisa toda, além de dar assessoria para os grupos, as famílias de agricultores. Então, eu estudava de manhã e, à tarde, eu trabalhava no Centro Ecológico. Termino a 8ª série, digamos assim, o 1º grau. Bom, o 2º grau só tinha à noite na nossa época, não tinha 2º grau de manhã. Por quê? Porque era comum as pessoas dessa idade, de 2º grau, ter que trabalhar. Então, era à noite. Hoje, por exemplo, não tem mais 2º grau à noite, é tudo de dia. Por quê? Porque não precisa mais trabalhar. E aí eu começo, por uma questão bem de logística, de transporte e tal, nada por outras coisas, mas eu começo a fazer meu segundo grau em Antônio Prado, porque tinha lá o segundo grau com técnico em contabilidade. Mas não era pela contabilidade também, mas aproveitei e tal. Mas era por uma questão de transporte, de logística mesmo, essa coisa toda. E aí eu comecei a fazer o segundo grau aí e tal. Então, durante o dia eu trabalhava no Centro Ecológico e, à noite, ia para a escola. Mas aí, um belo dia, o Centro Ecológico, nessa época - então, nós estamos falando de 93, 94. É isso, 93, 94, 95, por aí - o Centro Ecológico recebia muita gente, muita gente. Toda semana tinha um, dois ou três ônibus de pessoas que vinham aí para conhecer produção orgânica, produção agroecológica, de diferentes lugares do Brasil. Muita gente do ponto de vista de estagiários, de voluntários de diferentes lugares do mundo. Muito movimentado mesmo. O seu auge. E uma dessas excursões que vem é um grupo de agricultores e professores de uma escola agrícola de Nova Petrópolis. Escola agrícola chamada Bom Pastor. É uma escola particular. E eu não sei por que cargas d'água, motivos lá naquele dia, quem foi acompanhar essa excursão fui eu. Ou seja, receber eles lá no Centro Ecológico, mostrar as hortas, levar na casa dos agricultores, porque a gente era lá seus 17, 18 anos, mas sabia de tudo, estava desde os 13 ali e tal. E talvez porque outros não pudessem, não sei. Mas, enfim, a gente se dividia nas nossas atividades também, de receber as pessoas e tal. E aí eu lembro que, saindo de Ipê, voltando para o Centro Ecológico com o ônibus, sentado com o motorista, porque tinha que ir mostrando o caminho, tinha um cara, que depois eu fiquei sabendo que era professor da escola, professor Renato, foi meu professor depois, ele me perguntou assim: “Mas tu tem...?”, e a gente falando, ele disse: “Mas qual que é a tua formação?” Eu disse: “Nenhuma”. Ele: “Como assim, nenhuma?” Eu disse: “Não. Não tenho formação nenhuma.” “Está contando, está acompanhando, falando das técnicas...” “Não, não tenho formação nenhuma.” Diz ele: “Tu não se interessa em fazer um curso técnico?” Eu digo: “Olha, já conversamos, já pensamos, mas é uma...” Diz ele: “Olha, se tu tivesse interesse, tu poderia ser aluno lá da escola.” Disse: “Opa, interessante.” Sei que, no mesmo dia, conversamos lá no Centro Ecológico com o pessoal do Centro Ecológico, e a escola fez a seguinte proposta, e aí eu já tinha... me faltava um ano para concluir o segundo grau. Então, eu tinha as disciplinas normais do segundo grau, me faltavam as técnicas. E a escola me fez a proposta de eu ser um aluno funcionário. Por quê? Porque eles queriam desenvolver na escola agricultura orgânica. E aí, conversando, conversei com o pessoal do Centro Ecológico; o Laércio, com a Ana, com a Maria José, que eram as pessoas ali que tocavam a instituição, aquela coisa toda, disseram: “Alvir, acho que é legal.” Digo: “Mas eu não vou ter condições.” Minha família não tinha condições de bancar a escola. E tu não podia ficar o final de semana na escola. Tu passava a semana. Mas tu tinha que vir pra casa todo final de semana ou ir pra algum lugar. E isso era um custo alto também. Ou seja, sair lá de Nova Petrópolis, vir para Ipê toda sexta-feira e, toda segunda, eu ia voltar. Ônibus, essa coisa toda. A questão do aluno funcionário ajudava, porque daí eu recebia um pouco. E o Centro Ecológico me ajudou financeiramente em todo o curso para eu fazer o curso. Então, eu quase permaneci durante dois anos, porque daí eu fiz só dois anos de agrícola, porque só precisava fazer as matérias técnicas. Então, num ano, eu fiz matérias técnicas do primeiro e do segundo ano, e no segundo ano eu fiz as completas do terceiro ano. E era isso, eu trabalhava na escola.
P - Como foi a experiência?
R - Ah, foi legal. Eu trabalhava, não vou poder dizer que eu não trabalhava, porque se alguém ver depois, vocês editam isso.
P - Aluno funcionário.
R - Aluno funcionário. Então, ali na escola tinha os trabalhos na horta, que eu fazia numa horta, então eles tinham, porque a escola, como é uma escola técnica, os alunos têm as aulas técnicas, teóricas e práticas. Então tinha os diferentes sistemas de produção e tal. E tinha essa horta orgânica que estava se começando. Eu trabalhava basicamente nesse espaço, no espaço de um viveiro de produção de mudas que tinha, mas a escola tinha, como era uma escola particular, numa região nobre, turística ali, entre Nova Petrópolis e Gramado, então uma região bastante turística, e a escola um certo reconhecimento muito grande no mundo escolar, do universo particular, digamos assim, das escolas privadas, eles tinham um programa chamado Ecovive. Esse programa era um programa de educação ambiental voltado basicamente pra criança de outras escolas particulares. Então, muito da região de Porto Alegre e região metropolitana. Assim, eram um ônibus, dois ônibus, pelo menos, por semana. E isso era interessante pra escola, porque a galera pagava pra ir. “Então, tipo, uma escola de Porto Alegre quer levar as suas crianças pra passar um dia fazendo trilha, fazendo não sei o que”. E eu acabei me envolvendo muito nesse trabalho. Por isso que eu digo que quase não era um trabalho, era muito legal. E para mim, talvez tenha sido um dos melhores aprendizados da escola agrícola. Porque era receber a galera, fazer as trilhas, andar, mas também se envolver com o universo da educação ambiental como um todo. Então participava bastante disso, me envolvia bastante nesse tipo de ação, além da horta, além do viveiro. Para mim foi bem interessante a convivência nesse período da escola agrícola. Tecnicamente, sim, você sempre aprende. Mas é o que eu digo até das universidades, acho que a maior riqueza para quem faz uma graduação, faz uma universidade, não é as disciplinas, é a convivência, é estar numa casa de estudante. Sei lá, é estar nesse universo, se expondo ao mundo e às contradições. Então eu vejo que o período da escola ali, do colégio agrícola, sai sim, um curso técnico em agropecuária, mas eu acho que essa coisa da convivência e tal foi muito legal.
P - Você lembra de algum dia marcante com algum aluno, alguma pergunta que eles fizeram, alguma história assim?
R - Marcante? Não lembro.
P - E quanto tempo você ficou?
R - Eu fiquei dois anos, porque são três anos, tempo integral, o curso técnico de agropecuária. Na época era, hoje já não é mais tanto assim. Hoje já mudaram os cursos técnicos e tal, mas na época era três anos, tempo integral. Mas como eu já tinha dois anos do segundo grau, eu fiz em dois, porque eu já tinha quase todas as matérias do segundo grau.
P - E como que desenrola a sua vida?
R - A partir daí? Bom, eu termino o colégio agrícola, eu sempre mantive o vínculo com o Centro Ecológico, tanto é que eles me apoiavam financeiramente para estar lá. Então, nas minhas férias ou coisas assim, eu estava sempre no Centro Ecológico, não me desvinculei do universo da agricultura ecológica, essa coisa toda. Minha família produzindo orgânico pra levar nas feiras em Porto Alegre. Então, final de semana eu vinha pra casa, quando era o final de semana de ir pra feira, eu ia, porque tinha uma escala de ir pra feira, né, uma associação com 15, 20 famílias, não ia todas as famílias pra feira no sábado. Cada sábado ia três ou quatro famílias e levava o produto de todo mundo. Então, eu nunca me desvinculei totalmente. Se afasta, claro, mas aí, quando termina o colégio agrícola, uma das coisas que você precisa fazer é o estágio. O teu curso conclui com o estágio. Você escolhe um tema, uma área do conhecimento que você estudou para fazer o teu estágio. E aí eu cheguei pra galera do Centro Ecológico, pra Maria José, Laércio, eu disse assim: “Galera, preciso fazer o estágio.” E eles me disseram assim: “Alvir, e o que que tu quer fazer?” Eu disse: “Eu acho que eu não quero fazer aqui, não.” Porque era muito simples fazer estágio no Centro Ecológico. Ficava em casa, estava aqui. E como instituição, como ENG desse mundo, pode acolher, fazer essa coisa toda. Tem equipe técnica, agrônomos, tudo para validar, digamos assim. Então, estava... “Acho que eu não quero fazer aqui, não. Eu queria fazer outra coisa, em outro lugar.” Eles disseram: “Se tu dissesse que tu queria fazer aqui, nós íamos te animar para tu não fazer. Porque a gente acha que é importante tu fazer, independente do que vai acontecer depois, fazer em outro lugar, para ir conhecer outros lugares, outro mundo, essa coisa toda.” Mas seria um estágio a três meses, uma carga horária mais ou menos que dá três meses. Aí tinha alguns lugares para fazer, que a gente mapeou dentro dessa questão da agricultura ecológica, obviamente que ia fazer nessa área. Um era Minas, acho que tinha um no Espírito Santo, que a gente tinha pensado também, e o CETAP. Aí, olhando e tal, o CETAP é Passo Fundo, dá 230 quilômetros daqui, é Rio Grande do Sul, mas 230 quilômetros de Ipê, lá em Passo Fundo. Na época, o CETAP não tinha essa distribuição geográfica que tem hoje. Hoje, por exemplo, nós temos escritório em Vacaria, por isso que eu tô em Vacaria, entende? Mas, na época, o único escritório, a sede e tal da instituição, o Passo Fundo. E o CETAP, o Centro Ecológico, uma relação muito forte quanto instituições também, por várias coisas, trabalhando junto nessa questão da agroecologia no estado. Aquela história que eu te contei no início lá, de como surgem as ONGs da agroecologia, o movimento agroecológico aqui e tal. E uma das coisas que me encantou, digamos assim, de ir trabalhar no CETAP - uma das, que passou depois do encantamento, mas na época foi um dos elementos - é que o CETAP tinha um trabalho muito interessante sobre manejo ecológico de animais, e nós não tínhamos tanto aqui. E, ao mesmo tempo, que o CETAP tinha uma ação e também a dimensão política do CETAP muito mais forte no seu dia a dia do que o Centro Ecológico. A fortaleza do Centro Ecológico era uma alta capacidade técnica de conhecimento de manejo da agricultura ecológica, de ecologia profunda, digamos assim, o que faltava no CETAP. Mas, enfim, o que me atraiu um pouco para ir para lá era conhecer um pouco mais desse mundo, tanto do mundo, um pouco mais da política, digamos assim, da política da agroecologia, das causas sociais, porque o CETAP está muito alicerçado dos movimentos sociais, MST, MAB, MMC, os movimentos das mulheres, e da questão animal. E aí a galera disse: “Não, achamos que é um bom lugar. Isso aí também fica fácil, não é tão longe.” Aquela coisa toda. Também ainda um certo medo, talvez, de cair no mundo assim, de vez. Então, vá, vamos. Saí daqui e fui para Nova Petrópolis, 150. Bom, agora vou a 230. Mas ainda dentro do Rio Grande do Sul, talvez isso tenha pesado. Não lembro disso ter pesado, mas é bem provável que sim. Queria ir para Minas Gerais. Não estou nem a fazer ideia. Até três, quatro anos atrás não sabia onde era Porto Alegre, agora tenho que ir para Minas. E quando a gente fez a proposta para o CETAP, o CETAP achou legal também. Quer dizer, para nós vai ser legal porque pode nos ajudar a trazer elementos de conhecimento sobre a agricultura ecológica das hortaliças, das frutas, que era a coisa que... Tanto é que eu nunca me senti estagiário no CETAP. Porque eu estava lá 15, 20 dias e eu estava indo acompanhar grupos de agricultores. E foi muito legal, muito interessante e uma galera muito boa. Bom, aí dali eu nunca mais saí. Eu fiz meu estágio e o meu estágio estava concluindo, o pessoal disse assim: “Alvir, tu não quer ficar mais alguns meses? A gente precisa de gente aqui.” Porque estava começando a feira ecológica ali e tal. Eu disse: “Ah, beleza. Eu preciso ganhar uns trocos.” Estava bom, não estava achando ruim, Passo Fundo, não. Embora que já na época era uma cidade com 150 mil habitantes, bem diferente de Ipê, 150 mil. Bom, e aí eu estou nesse momento, assim, ainda, de ir se achando, dessa coisa toda. Ficando ali, já ganhando uns troquinhos, algumas coisas assim. E aí, não sei por quê, eu não lembro o que aconteceu, o que era, eu sei que eu vim para Ipê, vim para casa e ia passar uns dias aqui, tipo uma semana, duas semanas e tal. Aí eu estou em Ipê, um dia à tarde, e eu não sei como é que chega a notícia pra mim que eu tinha que ligar para o CETAP. Não lembro como chegou, não lembro. Porque a gente não tinha celular, não tinha telefone. Eu sei que eu liguei do orelhão da rodoviária para o escritório do CETAP em Passo Fundo e falei com o Lauro. Falei: “O que foi, o que deu?” Ele disse: “Não, olha só, chegou aqui uma proposta do CETAP e do Centro Ecológico...” - porque as entidades já tinham relações de trabalho juntos, desde o seu início. O Centro Ecológico surge em 1985, o CETAP em 1986. Então, desde 1986, trabalhando juntos, discutindo as coisas, fazendo coisas juntos e tal, até hoje - “o pessoal nos procurou para a gente indicar uma pessoa para ir trabalhar no Acre.” Disse: “Ah, Lauro, legal, e aí?” Diz ele: “Nós estamos te indicando. Topa?” Eu disse: “Topo”.
P - Assim?
R - Assim. Diz ele: “Não, beleza e tal, então tranquilo, o pessoal vai mandar a passagem e é tal dia para ir”. Digo: “Tá bom”. Aí o pessoal do Centro Ecológico sabia que eu tava em casa aqueles dias, aquela semana e tal. Eu chego em casa do Ipê, aí o Lauro me disse assim: “Eles vão mandar a passagem e tal, mas tem um número aqui que é pra tu ligar pra essa mulher”. “Beleza”. Aí eu voltei de Ipê, vim pra casa, eu tinha uma motinho na época. Cheguei na casa dos meus pais, peguei a motinho e fui na oficina, que tinha um posto telefônico numa oficina aqui perto. Na época era o telefone, alguém ligava, deixava mensagem, tu ia lá um dia atender, eu tu ligava. Fui lá e liguei pra Denise, essa mulher lá do Acre. Ela me explicou o que era o trabalho, não sei o que, nem lembro o que ela falou também. Só me disse que, então tá, então a gente vai te mandar a passagem, daqui a uns dias, tal dia, a passagem pra tu tá vindo, beleza.
P - Mas você não sabia a quão tempo você ia ficar?
R - É, eu fui pra ficar 4 meses, eram 4 meses. Acabei ficando mais. E depois eu voltei, fui pro Bico do Papagaio, no Tocantins. Eu fui voltar pro Rio Grande do Sul no final de 2000. Aí eu chego em casa, volto do posto telefônico ali, chego em casa e ali há pouquinho chegou o Laércio e a Ana, que eram os coordenadores do Centro Ecológico: “Alvir, nós viemos aqui conversar contigo e tal”, chegaram todos delicados. “Ah, legal e tal”. Dizem eles: “Pois é, veio o pessoal ligou de uma possibilidade de você ir trabalhar no Acre. A gente veio aqui ver o que tu tá achando”. Eu disse: “Não, já confirmei”. Eles: “É, nós viemos aqui pra ter convencer pra tu ir”. “Não precisa”. Mas assim, foi... É aquela coisa que tu não pensa muito, sabe? Ah, tem uma proposta, “legal. Onde é que é o Acre? Não sei, vou olhar agora. Ver como é que faz”. E as organizações aonde tu tem uma relação, estão te indicando. Pô, não vai, por quê? Vai. O máximo é chegar lá e querer escapar e voltar.
P - E foi sua primeira viagem?
R - De avião, sim. Não fazia nem ideia. Fazia nem ideia como entrava no aeroporto, muito menos como entrava num avião. Nunca tinha ido pra um aeroporto. Ainda existia a Varig, a gente recebia o talãozinho de passagem. Era legal. Hoje não tem mais graça. Então... E aí fui pra lá. Por quê que eu fui pra lá? Porque o Acre, na época, tinha um contexto, enfim, todo lá e tal, de várias... Eles estavam querendo trabalhar agricultura orgânica no Acre. Começar a fazer isso através de algumas organizações locais, mas puxado muito pelo Ministério da Agricultura, pela Delegacia Federal do Ministério da Agricultura no Estado do Acre, tinha uma galera com uma cabeça diferente. Então, eles chamaram de Programa de Implantação da Agricultura Orgânica no Estado do Acre. De voltar lá na história e pegar as capacitações, quem fez todas as capacitações durante quatro meses foi tudo eu. Era um dia sim e outro dia também, andando pra cima e pra baixo de barco, nos ramais de Toyota, atolando Toyota, fazendo conversa com agricultores, discutindo coisas e tal. E claro que aí, quando eu caí naquele universo, eu caí num universo que eu acho que eu nunca gostei da agricultura normal. Hoje eu me defino assim. Se dissesse assim: “Tem que limpar alface, plantar cenoura ou tem que catar coisa no mato”, eu ia no mato sempre. “Tem que fazer os canteiros retinhos.” “Mas por que tem que ser retinho?” Eu sempre fui errado. E aí, chegando no Acre, estando lá no meio dos seringais, conhecendo as reservas extrativistas, sabe? Xapuri, o Seringal Cachoeiro do Chico Mendes, era onde a gente andava. Fui me envolvendo, tinha que fazer aquilo que tinha que fazer, os cursos lá, fazer as capacitações, mas para tu ter uma ideia, em quatro meses ali, que eram os cursos, eu folguei três finais de semana. Porque aí ia aparecendo outras coisas. Por exemplo, pô, eu conheci a galera ali, uma das coisas que pra mim foi muito interessante, embora na época me pareceu de passar despercebido, mas foi conhecer a galera que saiu dos seringais, que saiu dos lugares assim, e foram procurar um certo refúgio, digamos assim, em locais, em casas de abrigo, do pessoal que teve hanseníase, o que se chamava da lepra. Teve muito disso na Amazônia. E teve alguns lugares que a galera chegou e disse assim: “Pô, a galera está lá, seria legal ter uma horta, tu não iria lá ensinar?” Eu ia. Estava fora do trabalho, sabe? Então eu fui me envolvendo com essas outras coisas. A galera que estava discutindo o uso múltiplo da floresta, fui me envolvendo com isso também. Então foi muito legal, foi muito legal descobrir o Brasil florestal. Porque aqui, se a gente falava de agrofloresta. Mas a nossa história aqui, aí veio aquela coisa que se a gente falasse dos imigrantes, não sei o quê, a gente negou a floresta. Embora a gente tenha um convívio muito próximo dela, mas a gente vai negando ela conforme a gente vai melhorando as condições de vida. Enquanto ela é necessária, a gente se relaciona, mas sempre numa perspectiva de não depender dela. Para mim, esse é o resumo do sul brasileiro em relação à floresta, ou ambientes naturais, ou essa coisa toda. Ali não, ali tu vê as pessoas vivendo e convivendo com aquilo e ainda sentindo aquela necessidade pulsante. Acho que eles são diferentes. Não acho que são tão diferentes assim do que aqui, não. Acho que conforme vão criando condições, vão se afastando também. Mas enfim, estou falando daquele momento. Então foi muito legal, muito legal. Dizer assim: “Putz, estou aqui.” Sabe? Ver a galera contando as histórias. Eu sempre gostei muito de ouvir história. Essa talvez é uma característica minha da infância, que passei batido. Mas, tipo assim, se tinha um grupo de piazada brincando e dois velhos contando história, eu estava sentado lá dos velhos. Incrível. Sempre gostei muito de história dos causos, das lendas, das assombrações, sabe? Depois chegava em casa à noite e não conseguia dormir, mas enfim. Então, para mim ali foi muito legal conhecer esse... Imagina, um ipeense, que não conhecia nada do mundo, criado no meio de famílias que falam italiano, cair na Amazônia. Comida diferente. E, assim, nunca me bateu o desespero. Incrível. Eu achei que ia ter momentos. Eu tava preparado pra bater o desespero em algum momento. Ah, porque é natural. Tu tá longe de tudo, de onde tu se criou, das coisas que tu conhece, das tuas afetividades. Dessa coisa toda e tá num lugar sozinho. Tu não tem um parente. De tu chegar e ter dias: “Pô, se acontecer alguma coisa com o meu pai, com a minha mãe, como é que eu vou embora?” Como eu vou com a minha... Sabe? Essas coisas passam. Normal na cabeça da gente. Não sei se é normal na minha, mas passavam pelo menos. Mas nunca me bateu o desespero, tipo assim: “Não quero estar aqui, que merda.” Desculpa a palavra, corte. “O que eu vim fazer?” Nunca. Nesse aspecto. Sentir saudades. Até final, sabe? Chegar um sábado à tardinha e você tá lá numa casa sozinho. Ah, como eu gostaria. Talvez meus amigos estão indo para um baile. Normal assim, mas de desespero não, porque eu acho que consegui encarar logo assim: como eu estou aqui, eu tenho que aproveitar isso aqui. Eu não senti que eu estava trabalhando em momento algum. Peso de trabalho, sabe? Tanto é que aí, início de 99, volto. E a galera: “Alvir, fica aí.” A galera queria que eu ficasse. Uma galera que estava onde eu trabalhava ali e tal. Eu disse: “Não, eu acho que eu tenho que voltar. Não quero ficar.” E voltei.
P - Talvez. [Inaudível?] ___________
R - Talvez era isso e talvez uma questão de dizer assim, se é para ficar, é para ficar. Se é pra ficar, é pra fazer história num lugar. Porque senão tu gasta o tempo da tua vida pra depois ir embora. Eu não sei. Sei lá. Eu não sei, Luiza. Eu não sei, hoje, vinte e poucos anos depois, te dizer todos os motivos. Talvez, eu acho que foi um pouco de tudo e coisas que tu não... Tem coisas que a gente não explica. Tem coisas que tu sente, e eu sou muito disso, eu sinto e faço. Não penso muito assim, tanto. Sempre você pensa, obviamente. Mas, ah, planos e planos. Não, tá sentindo aquilo? Avalia, não faça besteira, não seja impulsivo. Mas, sei que voltei, só que voltei e volto. Aí o CETAP. Tá aqui, vamos lá, pode ficar aqui. Nós precisamos de gente para trabalhar aqui, beleza. Aí eu tô aí uns dois meses, três meses, sabe bater aquela coisa e dizer assim, não é o sul que eu quero não. Senti a necessidade de dar continuidade àquilo que eu vivi no Acre. Aí eu tava quase tipo assim, “puta, voltei cedo, sabe? Bateu essa coisa, tinha que ter ficado mais, acho que faltou coisas”. E aí um dia à noite, nós conversando lá e essa coisa toda, e tinha uma pessoa de uma instituição de cooperação internacional da França, que tinha projetos com o CETAP, mas também tem projetos com outras organizações a nível do Brasil e tal. E nós falando, um monte de coisa, tomando um vinho, jantando, na sede do CETAP. E eu falei disso. Estava sentindo que eu precisava voltar para o norte, para o nordeste do Brasil. Não era necessariamente Amazônia, Acre, sabe? Não era isso, mas de vivenciar ainda esse mundo fora do sul. Aí esse cara, esse francês disse: “Isso é sério?” “Tipo, é, eu tenho essa vontade”. Numa semana depois eu estava acordado para ir para Tocantins. Quer dizer, nós temos uma instituição que a gente financia no Tocantins, no extremo norte do Tocantins, no Bico do Papagaio, talvez vocês até já ouviram falar, chamada APA-TO, Associação de Promoção da Pequena Agricultura do Tocantins. Acho que seria legal alguém daqui passar um tempo lá, porque tem muita coisa para intercambiar. E, ao mesmo tempo, depois se voltar de trazer muitas coisas do que é essa dimensão. Enfim, caí no bico do papagaio no extremo norte do Tocantins. Cinco dias de ônibus de Passo Fundo à Imperatriz do Maranhão. E depois mais quase um dia de ônibus de Imperatriz do Maranhão, entrando no Tocantins, indo lá, bem no encontro do rio Araguaia e do Tocantins. Sul do Pará, extremo norte do Tocantins. Bem no Bico do Papagaio mesmo, no biquinho do estado do Tocantins, lá em cima. E também para trabalhar com a galera. Uma das galeras que eu trabalhava lá era as quebradeiras de coco-babaçu.
P - Como foi? Os desafios, os aprendizados?
R - Foi muito legal. Comparando os dois, sabe, o Acre e o Tocantins. Por quê? O Acre, desafiador pra cacete, em todos os aspectos. Pra gente, super desafiador, né, Luiza? Entender a cultura, entender o lugar, entender o bioma, entender as relações. Cheio de comunidades indígenas que falam trocentas línguas diferentes. Seringueiro, ex-soldado da borracha. As questões do ecossistema, chuva, barro, inverno, tu não vai para lugar nenhum. Nós chegava a atolar duas, três Toyotas em sequência, atolava uma tentando tirar a outra que já estava atolada. Mas o Acre tinha toda uma estrutura. Por quê? Porque era um projeto financiado, tinha vários financiadores e pelo Ministério da Agricultura. Então tinha uma estrutura, eu tinha motorista no Acre. Então tinha um aparato para trabalho, eu morava em Rio Branco, então tinha que sair para ir para Tarauacá, Feijó, que é lá no fundão. Bom, era período de inverno que não ia carro, tu pegava um aviãozinho, porque na Amazônia tem muito disso. Claro que o avião pousava dentro de uma rua da cidade, de Feijó e de Tarauacá. A pista de pouso era uma rua da cidade, mas tu tinha essas estruturas. E os aviões eram aquilo, que daí o poeta acreano diz: “O avião está caindo, mas a paisagem continua linda”, era mais ou menos assim a viagem. No Tocantins, não, no Tocantins tu tem uma estrutura de ONG, do extremo norte do Tocantins, início dos anos 2000. Ou seja, eu tinha uma moto velha para ir trabalhar quando tinha, quando não faltava gasolina na cidade. Eu morava em Buriti do Tocantins. Buriti do Tocantins, na época, 30, 40% das casas eram da taipa. Tinha um posto telefônico na cidade para tu ir telefonar. Então era assim. Então, nesse aspecto foi muito legal, sabe? Tu trabalhar nesses ambientes desafiadores, mas com estruturas totalmente diferentes. Onde numa tu tem quase tudo, e numa outra praticamente nada. De sair seis da manhã para ir para dentro dos assentamentos, para dentro das comunidades e voltar duas da tarde, três da tarde sem almoço. Porque sabia que talvez se eu almoçasse na casa de uma pessoa não dava. Às vezes comer um ovo a mais era... Não estou dizendo que era tudo assim, mas em algumas situações, de passar o dia comendo manga e caju na beira das estradas. Carro, tinha um golzinho velho e uma moto pra quatro pessoas trabalhar. Mas foi muito legal, assim, muito legal. Também nunca me desesperei não, nunca achei ruim não, era tão bom. Andar com aquelas motos pra dentro daqueles igarapés, tudo era legal. Mas é isso, encarando sempre como aprendizado. Para mim, é um dos movimentos, a nível de Brasil, dos que eu conheço, das mulheres quebradeiras do coco-babaçu mais incríveis. É incrível, assim. Tanto é que a luta dela conseguiram o tal da lei do babaçu livre. Pô, tu dizer que isso não pertence a uma propriedade determinada pela cerca é incrível. Então, foi muito legal. E aí, sim, eu fiquei lá até... volto em 2000, final de 2000, início de 2001.
P - Você falou que tinha esse intercâmbio de conhecimentos. Você absorvia muita coisa e também ensinava muitas coisas, é isso?
R - Era a intenção, mas acho que eu ensinei muito pouco. Porque assim, eu mesmo aí, claro, aqui a gente já discutia agrofloresta na época. Quando eu vou para o Acre, essa questão do universo da floresta, internalizo muito mais, ou seja, do potencial da floresta, potencial não só como paisagem, coisa lúdica, não, potencial econômico, de ser um meio de vida mesmo e tal. Aí, quando eu chego no Tocantins, eu acho que eu chego muito mais forte com isso. Então a galera, por exemplo: “Alvir, nós lá na casa daquele agricultor temos que fazer uma plantação de melancia. Vamos lá, tu tem que dar uma olhada.” E aí eu desanimava o agricultor fazer melancia. “Não é para tu plantar melancia aqui. Vamos pensar numa outra coisa. Tu não vai ter água para irrigação, tu vai ter que comprar não sei o quê, tu não tem para onde transportar.” Eu acho que tinha um monte de técnico que ficava puto comigo. Porque, sabe, “vamos ter que fazer uma horta.” “Legal.” Aí encheram o saco lá um dia que tinha que ser uma horta, num assentamento e tal. “Vamos fazer a tal da horta. Onde é que vamos fazer?” “Embaixo dos babaçus, então.” “Não vamos tirar babaçu para fazer uma horta num ambiente de extrema insolação, para depois ter que botar sombrita de plástico.” Eu tenho umas fotos guardadas disso, talvez seja uma das fotos mais bonitas que eu tenho, de uma horta, de cultivo de hortaliças embaixo de um babaçual. A horta estava bonita. Não foi para frente muito tempo, não, mas ela ficou bonita enquanto durou. Porque não é da cultura daquela galera fazer horta. A cultura de fazer horta é do paulista, é do gaúcho, entende? Não é a hortinha, irrigação, com alface, não sei o quê. Eu sei que uns dias, um tempo depois, produziu rabanete, produziu não sei o quê, e tem, é um dos poucos agricultores que eu lembro o nome porque ele era muito engraçado, Edilson, uma figurinha, uma figura, Edilson o nome dele. Edilson? Lá em Buriti? E se aí comeram as coisas e tal, ele disse: “Ah, sim, estamos comendo e tal”, e não sei por que cargas d’água, a gente falou do rabanete, e o rabanete, “ah! Frito até que ficou bom.” Eles fritaram o rabanete, para ver o quanto não... Então, eu não entrei muito nessa questão do trabalho das hortas, das melancias e tal, mas olhando um pouco para essas questões, o que tem aqui que pode ser valorizado e potencializado. E eu acho que falta ainda para essa galera. Por que eu digo que eu acho que falta? Falta para todos nós, mas também a galera que está nessas regiões ainda. Porque aí sim, eu acabo voltando, vindo para cá, aí o CETAP de novo diz assim: “Alvir, e aí, vai ficar aqui?” Sempre me motivou a estar indo tanto para o Acre quanto para o Tocantins. Eu volto, quase que eu não fico. Aí sim, eu acho que era definitivamente, eu não teria voltado mais para o Rio Grande do Sul. Porque eu volto, início de 2000 e tal, e lá por abril, por aí, eu acho que não, março, por aí, o pessoal de uma organização que trabalhava no Xingu me contatou, que era o Projeto Novas Fronteiras da Cooperação. Eles apoiaram parte do trabalho no Acre e eles estavam começando um trabalho no Xingu com as comunidades indígenas. E esse Henrique, que era um dos coordenadores desse projeto, Programa Novas Fronteiras da Cooperação, PNF, aqui no Brasil, ele, na época, como eles financiavam lá o trabalho do Acre também, no período que eu estava lá, eles foram para lá algumas vezes, assim, a gente conversava, conviveu um pouco e tal. E ele me liga, um sábado à noite, eu estou em Passo Fundo, no CETAP, ele me liga, diz assim: “Alvir, nós estamos começando um trabalho no Xingu, com as comunidades, não sei o quê, o trabalho é isso, isso, isso, isso, isso, e estamos montando uma equipe, com diferentes áreas do conhecimento e perfis e tal, e tu é uma delas. Então, estou fazendo contato para ver se tu topa para vir.” Puta merda. E agora, o que eu digo aqui? Eu disse que eu voltava e ficava aqui no CETAP para trabalhar e essa coisa toda e tal. E eu sei que isso era um sábado à noite e no domingo eu liguei para a Maria José, que é a fundadora do Centro Ecológico aqui, que eu tenho ela quase como minha segunda mãe. Liguei para ela e disse: “Zé, recebi um convite aqui que é… Eu tô a fim de ir, entende? Mas também tô super dividido, porque eu dei minha palavra aqui no CETAP, essa coisa toda.” Aí a Zé disse assim: “Alvir, tu tem que ir. Com o CETAP a gente se explica.” Na segunda-feira tinha reunião da equipe, eu recebi o convite, uma proposta, não dava nada certo. Eles estavam montando a equipe, mas dependia vir um recurso, dependia vir algumas coisas. Mas na segunda-feira eu já comentei com a galera, na reunião da equipe, a galera disse assim: “Tem que ir, bicho. Tu gosta disso? É uma área que tu tem. Vai.” Beleza, estava tudo certo. Só que o ano 2000 foi o ano da comemoração do tal dos 500 anos do Brasil. E deu toda aquela bagunça com o FUNAI, com não sei o quê, das brigas e tal. Esse projeto foi cancelado. Aí eu acabei não indo. E aí quando veio a notícia que tinha sido cancelado e tal, aí sim, o CETAP e a galera disse assim: “E aí? E agora? O que que tu imagina? Aparece uma outra proposta, tu vai ou tu vai ficar aqui?” Aí eu lembro de dizer isso, uma coisa meio maluca, porque podia ter ficado sem emprego: “Se for para trabalhar com sistemas agroflorestais e valorização da sociodiversidade, eu fico. Se for para trabalhar com a agricultura orgânica das hortas, dos pomar, eu vou embora.” Aí a galera disse assim: “Se tu toca, pode ficar. A gente dá todo o suporte.” Estou até hoje.
P - Mas aí nessa época você cria meio essa área?
R - Sim. Não tinha esse trabalho. No contexto da agroecologia no sul do Brasil, até se fala de agrofloresta, mas não se fala de floresta. Se fala de como botar árvores, digamos assim, para dentro de determinados sistemas produtivos. Então, é isso. Hoje, tanto é que a gente cria lá no CETAP, o CETAP ajudou a encubar, e eu sou um dos coordenadores hoje. A gente criou o primeiro empreendimento, a nível do sul do Brasil, a trabalhar única e exclusivamente com processamento de produtos das frutas nativas. Não tinha. A gente cria o Encontro de Sabores. Se pegar o pacotinho das bolachas, você vai ver ali: esse é o empreendimento criado por nós, lá em 2007. Porque foi bem isso, você tinha um trabalho muito forte com resgate, multiplicação de sementes crioulas, feijão, milho, moranga, pipoca. O meu questionamento, e meu, mas de outras pessoas também que acabaram aderindo isso, a gente não faz as coisas sozinho nunca, o máximo que a gente faz é dar algumas ideias, às vezes que elas são solitárias, mas para elas prosperarem logo outros têm que comprar e fazer parte da ideia, senão não vai para frente. “Gente, nós falamos que é importante valorizar conhecimento tradicional, valorizar sistemas tradicionais de alimentação, de conservar a biodiversidade tradicional, mas no sul do Brasil nós estamos falando tudo do imperialismo gastronômico ocidental, europeu. Por quê? Porque nós estamos mantendo o quê? Semente de não sei o quê, semente de não sei o quê. Falar de biodiversidade aqui, de cultura alimentar tradicional, é falar do pinhão, é falar da guabiroba, é falar, sabe?” E isso acho que aí vem essa bagagem que é o Acre, que é o Tocantins que me traz. E eu, quando eu andava naquelas regiões de Amazônia e de Amazônia com transição de Cerrado, que é o Tocantins, no Bico do Papagaio, dizia assim: “Puta merda. Olha, os caras estão montando casa de castanha dentro dos seringais. Por que nós não podemos ter as casas de pinhão?” A castanheira lá do Acre é a nossa araucária do Rio Grande do Sul. Tanto é que nós estamos com 12 unidades comunitárias agora de classificação, de organização do extrativismo do pinhão. Não se falava extrativismo de pinhão no Rio Grande do Sul. O universo da agricultura ecológica, Luiza, não falava e não fala. A gente ignora a floresta. Literalmente. Por essas questões que fui pincelando muito superficialmente ao longo da prosa, de que a gente vai querendo se afastar da floresta, conforme a gente vai tendo mais condições. E aí eu disse: “Nós não vamos fazer sistema agroflorestal aqui para trabalhar com planta exótica. Nosso sistema agroflorestal tem que ter alface, tem que ter a cenoura, tem que ter a mandioca, tem que ter a laranja, tá? Não tem problema. Mas o elemento arbóreo aqui tem que ser guabiroba, araucária, araçá, tem que ser pitanga, tem que ser cereja, tem que ser uvaia, tem que ser guamirim, tubérculo, tem que ser crem.” E a galera tá tipo assim: “Ah, legal.” Em 2002, a gente compra uma despolpadeira, a gente tem ela guardada até hoje, uma despolpadeirinha pequena, que a gente andava com ela para cima e para baixo, fazendo polpa. Aonde sabia que tinha um pé de alguma coisa, porque a gente não sabia lidar com isso, não fazia ideia. O que é agora fazer suco de guabiroba? Falar de guabiroba para vocês, vocês não vão fazer nem ideia do que é. Mas ela é uma fruta típica nossa, que aqui no sítio tem em torno dos 400 pés de guabiroba, que era fruta da infância, sabe, de comer assim ali, e comida de bicho. Por quê? Bom, tem toda uma história aí que dá para contar aí, mas a gente foi se alimentando da floresta, a gente que eu digo, essa região mais sul do Brasil, enquanto nós tínhamos necessidade. Quando a gente comia as frutas da floresta, os indígenas comiam muito mais do que os europeus depois que chegaram. Então a gente não desenvolveu conhecimento, nem hábitos alimentares, a não ser comer a fruta meio como no interior. É diferente o cupuaçu, diferente o que foi um açaí, diferente o que foi um conjunto de outras frutas, o pequi no Cerrado, não é à toa que pequi, o rei do Cerrado. E assim vai. Aqui não. Aqui a gente tem um distanciamento do ponto de vista de uso no cotidiano. “Isso aí é coisa de pobre. Isso aí é coisa de quem não tem dinheiro para comprar, pega no mato.” Em resumo, assim, bem simplório o resumo. E a gente começa a fazer isso. Só que começa a fazer e logo se dá conta de ser assim. Se não tem uma cadeia produtiva estruturada, que gere também renda, nós não vamos gerar conservação ambiental. Então, lá por 2004, 2005, a gente já, tipo assim: “Não, temos que pensar agora como é que a gente estrutura um sistema que motive os agricultores a cuidar o que tem e plantar mais, mas também gere renda para os agricultores.” Em 2007, oficialmente, a gente cria o Encontro de Sabores. Esse nome tem toda uma simbologia.
P - Qual?
R - Encontro de Sabores é o lugar de encontro. Então, ele opera para isso mesmo. A galera diz, “ah, mas então é uma agroindústria”. Eu disse, “é, é uma agroindústria”. Vai se tu olhar, tem, tal, tal. Mas ele faz muito mais do que isso, na sua dinâmica, assim, de como pensa a estrutura socioeconômica. Porque a gente sempre disse assim, “não é só pensar formas e formatos de gerar renda a partir da floresta, é em que estrutura socioeconômica a gente quer isso”. E isso é importante. Tão importante quanto valorizar os produtos da floresta e conservar a floresta, é baseado em que estrutura socioeconômica. Ou seja, que processo organizativo e que princípios de gestão econômica se dá a isso. E, olhando para esse campo, é que a gente constrói essa ideia do Encontro de Sabores, que, a partir disso, vem se tornando a experiência que é no estado do Rio Grande do Sul hoje, que é a Cadeia Produtiva Solidária das Frutas Nativas. Por que ela leva esse nome, Cadeia Produtiva Solidária das Frutas Nativas? É porque ela se alicerça em cima de dois princípios básicos: o da ecologia e o da economia solidária. Ou seja, tem que gerar renda, tem que ter economia, tem que ter grana, tem que ter recurso, mas em cima de outros princípios e valores. Então, o Encontro de Sabores, ele traz essa ideia, lá em 2007, que um lugar onde se encontra os produtos de diferentes grupos, associações e tal, vem por um único lugar. Então, ele já é um encontro dessas coisas e é o que pega, assim, os sabores. Ah, então, isso a gente entende até mais fácil. Mas a outra é de fazer com que os coletivos cooperem. Por quê? Se nós tivemos lá no final... Entra a cadeia. Só que a cadeia solidária, ela passa a ter esse nome quando ela foi a nível de Estado. Nós já tinha ela a nível regional. A gente só ampliou esse princípio de atuação dela, não, a base de atuação dela do que a gente fazia dentro do território do CETAP para o nível de estado. Que era o que a gente só denominava dinâmica do Encontro de Sabores. Depois ela passou a ser a cadeia solidária.
P - E aí como é? Explica melhor a cadeia solidária.
R - A gente não vai almoçar, não? Vou te explicar. Para começar, final dos anos 1980, nos anos 1990, na agricultura ecológica, como em tudo, mas vamos pegar o campo da agricultura ecológica, o nosso desafio era gerar processos de cooperação. E que é, ainda, em muitos casos. É um desafio enorme o tempo todo. Ou seja, fazer com que eu, você, a dona Maria, a dona Elisabeth, o seu Pedro, o seu José, se juntem, conversem, discutam quais são os problemas comuns e as potencialidades comuns que temos, e vamos fazer algo junto. Tu faz a tua artinha, eu faço a minha, mas vamos ter o caminhãozinho junto. Ou gerar processos de cooperação. E eu costumo dizer assim: “O nosso desafio era gerar processos de cooperação de CPFs.” Ou seja, os indivíduos, indivíduo e indivíduo, cooperarem. Eu digo que hoje nós estamos no nosso contexto de trabalho, de região, essa coisa toda, o grande desafio é gerar processo de intercooperação. E aí que vem a questão das redes. Mas as redes, para mim, elas se desvirtuaram bastante de muitas coisas a nível do Brasil. E olha que participo de várias delas. Fui da coordenação executiva da ANA, que é a Articulação Nacional da Agroecologia, até pouco tempo atrás também. Então, não tenho nada contra as redes, mas eu acho que elas, em alguns aspectos, teriam coisas a ser melhoradas. E aí, o que a gente busca com a cadeia solidária, basicamente, é esse processo de intercooperação baseado nos princípios da complementariedade. Ou seja, como é que diferentes grupos, diferentes segmentos, porque tu tem desde grupos de agricultores, associações de agricultores, até grupos urbanos, empreendimentos da economia solidária, o Encontro de Sabores é urbano, e na época a gente fez questão de ser urbano porque era isso, isso tudo nasceu lá, antes de ser cadeia solidária, antes de ter esse nome, pelo envolvimento histórico que a gente sempre teve nesses dois universos da agricultura ecológica e da economia solidária. Cooperar entre si, ter uma estratégia comum. Se o grupo da Luiza cata guabiroba e faz polpa de guabiroba, que é uma fruta nativa nossa, ou do Alvir, talvez não tenha que ser de guabiroba, tenha que ser de pinhão. A dona Maria talvez tenha que trabalhar mais com a uvaia e o araçá. Trabalhar com coisas diferentes para que no coletivo a gente tenha uma diversidade e não uma disputa. Porque senão, dentro das nossas próprias causas sociais, de ecologia e ambiental, a gente ajuda a criar uma cooperativa, a cooperativa da Luiza que trabalha com castanha do Pará, a do Alvir que também trabalha com castanha do Pará ou com pinhão. Pô, daqui a pouco nós estamos disputando entre nós. Não, como é que a gente tem... Cada um tem que tocar a sua vida, tem as coisas, mas como que os CNPJs, ou seja, os coletivos, gerem um processo de intercooperação com outros coletivos? Esse é o grande desafio que a gente tem. E a cadeia solidária se alicerça nisso. Então, isso é a cadeia solidária. É um grande coletivo de coletivos trabalhando numa perspectiva de sinergia e complementariedade. Onde tu tem todo um outro formato de organização. Então, o pessoal lá das missões trabalha mais com tais frutas, o pessoal do outro lugar trabalha com outras, e tem isso. Onde a questão dos preços, das coisas todas, são discutidas abertamente, digamos assim, tem essa… É isso. É uma cadeia produtiva estruturada em outros princípios e valores, do ponto de vista da ecologia e da economia solidária. E exclusivamente com produtos da biodiversidade nativa nossa. Dentro da cadeia solidária, tu não vai encontrar suco de laranja. Isso já tem quem faça. Embora lá. Ou amora, ou não sei o quê. Não. É os produtos da floresta que nós...
P - E vocês convidam as pessoas a participar?
R - Ah, bom, assim, hoje a gente tem quatro segmentos que compõem a cadeia solidária das frutas nativas. O segmento grupos, associações, famílias de agricultores, empreendimentos urbanos de comercialização, os empreendimentos de processamento e comercialização, que é o caso do Encontro de Sabores, e a outra categoria, a quarta categoria, é as entidades de assessoria. Cada ator desses, cada segmento desses, tem um papel. Então, o chamar pessoas, o sensibilizar mais pessoas, o fazer formação e tal, é papel das organizações de assessoria. Hoje são três organizações de assessoria, três ONGs, que é o CETAP, o Centro Ecológico e a Rede, que atua lá na região das Missões, que fazem esse papel. E aí, sim, o tempo todo tem ações de mostrar seminários, encontros, materiais de divulgação, que as pessoas vão conhecendo, se sensibilizando, umas procuram, outras são convidadas. Tem vários. A galera, tipo assim, para muitos a gente diz que não. Acontece, sim. Parece estranho eu te dizer isso, mas se “eu quero trabalhar com o butiá também”. Primeiro, a Luiza chega e diz: “Eu tenho uma agroindústria lá, agora eu quero processar butiá e vender para a cadeia solidária.” Eu vou dizer: “Bom, nós temos que ver.” Por quê? Um dos princípios é não gerar competição. Então o que a gente vai analisar? “Bom, galera, quem que está processando o butiá hoje, que já é membro da cadeia solidária?” “Ah, fulano... coletivos”, quando estou dizendo isso, nunca estou falando de um indivíduo, de uma pessoa, “Ah, associação, agroindústria tal, agroindústria tal.” “Como é que está? Eles estão dando conta da demanda de mercado? Está sobrando produto ou está faltando?” “Está faltando.” “Opa, tem gente querendo entrar, então é bom trazer.” Às vezes assim: “Não, tá dando conta, não tá faltando. Mas logo, logo acho que vai faltar.” “Então traz. Chama.” Porque tu não chama alguém pra disputar. Eu já tenho duas produzindo e sobrando produto, não conseguindo comercializar, por que eu vou trazer a terceira pra aumentar o problema? Então é dizer um não, que não se quer? Não. É essa coisa de... Aí talvez dizer assim: “Luiza, mas talvez não seja butiá, nós estamos precisando começar a trabalhar com o araçá. Tu não se desafia a trabalhar com o araçá também? Pode ser um pouquinho de butiá, mas o araçá é que está faltando.” “Não, eu topo.” “Opa!” Até hoje a gente acolheu quase todo mundo, mas tendo que fazer esses ajustes.
P - E aí dá para aprender com vocês como começa?
R -Sim. É necessário, sim. Então, hoje, assim, no nosso local aqui, nós temos o que a gente chama de unidades comunitárias de recolhimento e valorização da sociodiversidade. São grupos, famílias, grupos de famílias agricultoras, na sua grande maioria mulheres, que participam disso. É bem interessante isso. Dá para filosofar muito em cima de por que são as mulheres. Não sabemos até quando elas permanecem com esse protagonismo. É um risco, sempre é um risco. Mas hoje tem muito bem presente isso. As unidades comunitárias é o seguinte: estamos lá na comunidade quatro, cinco pessoas que têm interesse em trabalhar. Então, lá vai ter um freezer, uma seladora, embalagens, tudo certinho. E essas três, quatro famílias recebem acompanhamento técnico do CETAP. Vamos pegar o nosso caso aqui, porque a cadeia solidária se organiza por região, então vamos pegar a nossa região. “Vamos colher araçá.” O CETAP dá todo o acompanhamento técnico, de como colher, como lavar, como desinfectar, tudo certinho. Tudo certinho. Os procedimentos, dependendo da área que vai coletar, se precisa ou não precisa da autorização ambiental, dá todo esse suporte. O Encontro de Sabores compra a fruta. Só que, antes de você começar a colher, você já sabe o preço da fruta. E você já sabe, tipo assim, posso colher mil quilos, posso colher cem quilos, trezentos; isso se acorda junto. Então ninguém vai, e já se combina como é que vão ser feitos os pagamentos. E aí um dos princípios que a gente tem é que acordo é acordo. Não tem nada escrito. Nada. E a gente faz questão que não tenha. Porque as relações não têm que ser estabelecidas pelo que está escrito no papel. O que está escrito no papel é a imposição: você tem que fazer por obrigação e compromisso e não por imposição. A gente não bota nada no papel. Tipo assim: “Luiza se comprometeu em 200 quilos, tem que entregar 200 quilos.” “Não.” Ela tem que saber que é um compromisso, que é uma responsabilidade, ela é parte do processo. Senão você entra nas relações convencionais do mercado. Coisas simples assim, mas no dia a dia, do ponto de vista de fundamentar e criar um pensamento diferente, para ter uma prática diferente, elas são fundamentais. Então, tudo isso é acordado com cada grupo. O grupo lá, então, colher os araçá. A gente recolhe, vai para o Encontro de Sabores, faz o processamento, aí vê se faz tudo no Encontro de Sabores ou tem que mandar para uma outra agroindústria pertencente à cadeia solidária e aí comercializa. Esse é o fluxo básico desse processo todo. E é bem interessante. Hoje a gente tem mais famílias querendo entrar do que sair. É incrível. Eu nunca imaginei que nós íamos chegar, se tu dissesse assim, ao vir, 20 anos... 20 não, 25 anos atrás, quando eu disse pro CETAP que só ficava aqui se era pra trabalhar com isso, imaginava chegar nisso? Não. Eu imaginei que um dia nós íamos trabalhar, nós ter assim, esse ano agora, safra 24, 25, 140 toneladas de produto da nossa floresta, toda colhida por pequenas unidades comunitárias de famílias agricultoras e comercializada em 125 parceiros comerciais. De tu chegar lá no empreendimento da Economia Solidária, da Cooperbom, dentro da escola de Porto Alegre, que eles têm uma cantina, tem picolé das frutas nativas. Ao mesmo tempo, tu ir para o restaurante mais chique de Gramado e ter produto da Cadeia Solidária. A gente transita nesse, sabe? E precisa, porque precisa vender, precisa não sei o quê e tal. Não, não imaginava. Não imaginava.
P - Então o Encontro de Sabores compra essas frutas ou esses produtos produzidos pelas famílias e aí eles produzem os novos... Fazem o sorvete? Ou são as próprias famílias que também fazem esses produtos.
R - Não. Essa bolachinha é feita na Agroindústria Encontro de Sabores. Os produtos, a bolacha de pinhão, o pão de pinhão, que tem aí para provar depois, a polpa de araçá, que vai ser o nosso suco do meio-dia, é feita dentro da unidade de processamento do Encontro de Sabores. Lá dos agricultores vem o pinhão, vem a fruta, vem essa coisa toda. Ali, no Encontro de Sabores, processa e faz a comercialização. Nós temos cinco agroindústrias, que nem o Encontro de Sabores, dentro da cadeia solidária de processamento. Então, nós estamos falando do Encontro de Sabores porque é aqui. Se nós fôssemos falar lá das missões do butiá e Yatai, das missões da agroindústria Yatai, os butiás da região vão para aquele local que ele faz o processamento. O Encontro de Sabores tem um duplo papel dentro da cadeia solidária, pela sua história. Então, ele tem uma agroindústria que faz o processamento, que surgiu muito mais por uma necessidade. Porque lá em 2002, 2003, 2004, depois quando a gente cria, em 2007, no Encontro de Sabores, a gente não tinha onde testar. Como é que eu faço um bolo de ariticum? Como é que eu faço um mousse de uvaia? Ninguém sabia. Então, a gente meio foi comprando coisas, comprou uma panela, comprou uma batedeira, comprou uma despolpadeira, porque nós tínhamos a necessidade de nos capacitar tecnicamente para poder falar que aquilo era possível. Era essa a necessidade. E fomos quase que montando essa cozinha industrial, que era quase o nosso laboratório. Então, a gente queimou muita panela, nós fizemos muita porcaria, nós botamos muita coisa fora, nós fizemos um produto que colocamos nos vidros que eu não conseguia tirar. Tivemos um momento que não dava mais, sim. Tivemos dias, noites, viajando sem dormir, sem... Tudo que tu imagina de loucura a gente fez. Que é o normal. Então, foi meio natural o Encontro de Sabores chegar e ter uma agroindústria, por isso. Mas, só como ele é pioneiro nessa história também, com a constituição da cadeia solidária da fruta nativa, ele passou também a ser a central de comercialização da cadeia solidária. Então, enquanto sabores, tem esse papel aqui na região, digamos assim, de processamento, de articular essas coisas todas. Mas, a nível de cadeia solidária, ele é a nossa central, digamos assim. Todos os produtos passam por aí? Não. Mas ele é o nosso interlocutor de acordos, de negócios, de comercialização e essa coisa toda. E é isso, não é à toa que eu faço 3, 4 mil quilômetros por mês. Porque tem dias que eu estou lá no CETAP, ontem eu estava escrevendo o projeto, hoje eu estou aqui, amanhã eu sou entregador do Encontro de Sabores, amanhã eu estou num outro carro carregando caixa, descarregando caixa, entregando produto. A gente meio que se divide nessas histórias todas.
P - Vocês são distribuídos no Brasil ou mais aqui no sul?
R - Está no Sul. Agora está no Sul. [intervenção] Começou a ter, agora estabelecendo uma parceria com algo bem interessante em São Paulo, que talvez vocês conheçam, o Instituto Chão. Acho que vocês, se vocês voltarem para lá essa semana, ou semana que vem, não vão encontrar mais, porque já devem ter vendido tudo. Mas foi a primeira remessa de bolacha de pinhão para o Instituto Chão em São Paulo, porque a gente está com uma rede de abastecimento do Instituto Chão com produtos orgânicos aqui do Rio Grande do Sul. Então, não é só da cadeia solidária, não. Eles já pegam batata-doce, laranja, eles estão nesse movimento do que a gente chama de Circuito Sul de Comercialização de Produtos Orgânicos. O Instituto Chão é o grande representante, digamos assim, do ponto focal em São Paulo. Então, toda semana tem caminhão saindo lá de uma cidadezinha perto de Passo Fundo, de uma associação de agricultores acompanhada pelo CETAP, levando o produto para o Instituto Chão e trazendo produtos também, porque o Instituto Chão acaba se encontrando produtos. Vêm produtos de São Paulo, mas de Minas, até da Bahia baixa ali. Então, nós temos condições de comprar, acessar, lá em Passo Fundo ou em Vacaria, café do Espírito Santo, que chegou no Instituto Chão, que a galera que subiu levou mandioca, pegou o café e trouxe pra cá. Porque a gente está muito envolvido nessa questão de constituir redes de comercialização, essa coisa toda. E aí está começando a ir dentro, então, não é uma ação única e exclusiva da Cadeia Solidária, mas nessa rede está começando a ir produtos da Cadeia Solidária do Encontro de Sabores para o Instituto Chão. Oxalá que dê certo, vamos ver, porque tem que ter adesão dos produtos, tem que tirar, porque se o pessoal... Foi feito agora ali, foi 10 ou 20 anos do Instituto Chão agora esses dias que teve a festa. Então, a gente montou uma banquinha lá no Instituto Chão com venda de pinhão, sanduíche de pinhão, suco de butiá. Era a galera nossa aqui. Era famílias de agricultores nossos que foram para lá. Mas, em resumo, sim, hoje o mercado se concentra a nível do Rio Grande do Sul, e um pouquinho de Santa Catarina. Santa Catarina, especialmente em torno de Florianópolis, aquela região ali que tem comercialização. Mas, basicamente, é Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
P - A gente está falando de terra, e isso significa que a gente não tem muito controle, pensando nas mudanças climáticas e no clima. Quando perde produto, como vocês lidam com isso? Quais são os possíveis modos de se perder hoje em dia cada vez mais? E isso está acontecendo cada vez mais ou não?
R - Perde. Mas dentro do trabalho como um todo, na nossa experiência vivida até o dia de hoje, amanhã, pode ser que essa variação se altere. A gente tem perdido muito mais produtos nas fases de processamento e comercialização do que nos agricultores.
P - Por quê?
R - Porque uma câmara fria com 30 toneladas de produto que faltou luz e o pessoal não ligar a luz em dois dias, se não tiver gerador, tu perde tudo. E tu perde o produto de 40, 50 famílias. Não é de uma. Então, assim, um produto que ficou, que nós pegamos uma enchente no Santa Catarina, que caiu metade da serra de Santa Catarina indo a Florianópolis há três anos atrás, eu acho, antes da enchente do Rio Grande do Sul, teve aquele dilúvio em Santa Catarina. Nós estávamos indo fazer entrega, nós ficamos quatro dias trancados, sem passar, porque a serra tinha abaixado. E aí você está com o teu veículo cheio de produto, e tu faz o quê? Vai para onde? Então, acho que esse é um desafio para quando a gente fala de pensar numa bioeconomia, uma sociobioeconomia, onde valorize os ecossistemas, onde preserve os ecossistemas, as pessoas que estão ali, as ações para que isso aconteça, não se dá única e exclusivamente lá. Isso eu aprendi, porque eu também tinha essa visão normal. Tudo tem que ser investimento lá no rural, lá nas comunidades. Tem, e muita coisa. Talvez o principal tem que ser lá, mas não é só lá. Não é. Senão a coisa não anda. Mas acontecem perdas. Acontece lá nas unidades comunitárias, porque às vezes está o freezer cheio de produto que a família coletou, as famílias coletaram, encheram. Olha, está cheio, vem aqui de dois dias buscar, beleza. Bom, mas faltou luz, ou queimou o motor do freezer, ou não sei o quê, e não virou e descongelou tudo. Perde. Então, a perda não é... Tem a perda lá na árvore, lá na floresta, lá no campo, lá na agrofloresta, mas tem essa perda nas outras etapas. Por exemplo, nós tivemos muita perda com as enchentes do Rio Grande do Sul. Você diz assim, mas como que perderam? Se aqui não foi alagado. Sim, mas onde a gente tem freezer e estoque lá em Porto Alegre, foi. Nós tivemos freezer que foi botado fora, porque era freezer nosso, da cadeia solidária, que estava de comodato dentro de uma lojinha que vende nossos produtos. Alagou. Perde o produto, perde o equipamento. E como é que a gente lida com isso? Lida com a gestão financeira que tem. Ver como é que faz. A gente consegue ter um fundo rotativo dentro da cadeia solidária hoje, a gente criou isso, ele é pouco, nós precisamos, que é justamente para a galera lá do Unidade Comunitária, o freezer queimou, precisa comprar um freezer novo. A própria Cadeia Solidária tem um fundo rotativo que empresta o dinheiro, que pode comprar, e ajudando a fazer essas coisas. Agora, com as mudanças climáticas, do ponto de vista produtivo das espécies, do bioma, sim, a gente tem visto muita coisa acontecendo, a gente tem visto alteração, que se envolveram, que contribuíram, que participaram, ou ainda participam ao longo desses vinte e poucos anos desse trabalho com as espécies nativas e tal, mas assim, o tocar isso tem, como é que eu posso dizer? Uma pessoa bem fundamental nesse processo é a Lídia, que é a que junto a gente tem essa responsabilidade um pouco também de ficar olhando e monitorando essas coisas do Encontro de Sabores. Então, no desenvolvimento de vários produtos que ela tem puxado à frente, ou de estar no dia a dia na agroindústria, de estar fazendo a gestão. Porque tu tem que ter essas complementaridades entre as pessoas com papéis distintos, senão a coisa também não vai. Então sim, tem várias pessoas, mas o pessoal fala isso. A galera que está há mais tempo também diz assim: “Não, tu é o que nos animou e faz isso”. Talvez esse papel sim, de botar pilha. “Galera, é possível. Nós vamos se arrebentar, mas é possível e necessário e temos que fazer e tal”. Sim, eu sou bem insistente nisso até hoje. Eu acho que o nosso mundo, não estou nem falando do mundo da sociedade como um todo, porque ele é muito mais diverso ainda e muito mais difícil. Mas aquela galera que está envolvida ou que tem uma certa aproximação, uma sensibilidade para o mundo da agroecologia, do orgânico, tem que olhar para as riquezas e as potencialidades dos nossos ecossistemas. É fundamental do ponto de vista de concepção da ecologia minha, na minha ignorância disso. A gente precisa ter comportamentos humanos e práticas, do ponto de vista dos sistemas produtivos rurais, que restaurem ciclos ecológicos. Não é só não usar um produto que contamina aqui. Isso é extremamente importante. Mas do ponto de vista de equilíbrio nosso, de restauração, se ainda há tempo de fazer isso, de restauração de equilíbrios no planeta, nós precisamos restaurar ciclos ecológicos. Porque é assim que a gente é. Somos feitos de ciclo. Coisa cíclica. Hoje somos tal coisa, amanhã somos outra e depois somos outras. Pra um dia voltar a ser a mesma que a gente foi há 100 anos atrás. Entender isso é fundamental. Entender e se comportar dessa forma. Então, eu preciso ter ambientes que contribuam com o ciclo da água, com o ciclo do carbono. Por que nós temos o aquecimento global? Porque tem mais carbono na atmosfera do que aqui, contido nas florestas, no solo, ou seja, nós botamos mais numa parte do ciclo dele do que na outra, desequilibrou o ciclo do carbono, ciclo do nitrogênio, assim é com a biodiversidade, assim é com a polinização, nós precisamos ter abelha, mas para ter abelha tem que ter flor, bom, aí tem a flor, bom, tudo é cíclico. Então, acho ainda que a gente tem, mesmo dentro do nosso mundo, da ecologia, do meio ambiente, a gente tem uma certa dificuldade ainda de entender e se dar conta dessa necessidade de restauração de ciclos. E é inclusive nós, das nossas reconexões, dos nossos ciclos, quanto indivíduos, quanto espécie humana dentro disso.
P - Você comentou que você estava sentindo a necessidade de viver isso na prática, do que você estava me contando agora, da história do sítio, se você quiser contar rapidamente.
R - A história do sítio?
P - É. E o que você faz aqui, eu sei que tem nascentes de riachos, agrofloresta, enfim.
R - Bom, então, isso não é também numa ordem de importância. Mas assim, chegou um momento que eu queria ter um lugar, que eu achava que era importante ter um espaço que eu pudesse exercitar isso. Porque, às vezes, eu me sentia quase como um vendedor de ilusões. Diz para o outro fazer que é legal, mas tu não faz. Será que, de fato, é legal? Será que, de fato, é isso que eu estou dizendo? Será que, se eu fizer, eu vou sentir isso? Eu estou dizendo que é possível a gente viver e viver bem e ter uma renda de uma propriedade baseada na conservação das florestas. Será que é? Ou será que eu estou dizendo isso porque eu escuto os caras que falam bonito dizer isso? Porque eu leio livros que dizem isso? Porque tem cientista que diz isso? Por que eu tenho essa convicção? Será que é, de fato? Eu me perguntava muito disso. Ah, trabalhar com agrofloresta é legal, é importante, é não sei o quê, é bom, porque... Será que é? Será que lidar com madeira, com motosserra, porque é trabalho braçal, será que é? Então eu senti essa necessidade, de fato de, digamos assim, para mim, consolidar e tirar minhas dúvidas, minhas mesmo, de que isso era, e é, algo interessante. Então eu senti essa necessidade de praticar, de fazer, e também essa coisa de dizer assim, fazer as experiências. Eu quero ter o cantinho de fazer a experiência, porque senão a gente nunca faz. Então essa era uma das coisas, de ter um espaço, que ele podia ser em qualquer lugar. Para ter um espaço, ele podia ser em qualquer lugar. Por que ele é aqui? Porque aqui é onde eu nasci. Isso aqui era a terra do meu avô. Então, esses araucárias que a gente vê aí grandes hoje, dando pinhão, eu vi eles pequenos. Eu andava por aqui, isso aqui era pasto, gado e roça. Então, e meu avô tinha muito disso. Árvore frutífera ele não cortava. Porque ele adorava pinhão, ele sabia. Então, muitas das coisas que estão aqui eu vi pequenas. Porque eu nasci e me criei aqui. Aí, quando o meu avô faleceu e fizeram a repartição das terras, do que era dos irmãos, eu disse, “vou comprar algumas partes”. Não comprei de todos, não tinha grana para isso. Mas comprei esse pedaço aqui porque, para mim, é uma forma de estar conectado com a minha origem. Digamos assim, tem aqui um pouco essa ancestralidade do meu avô, da minha avó, da minha mãe. Não é ancestralidade porque ela está viva, mas isso aqui é roça que minha mãe, com oito, nove anos, plantava trigo aqui. Então, para mim, tem esse elemento bem interessante que é também, pode ser até uma forma meio egoísta de pensar as coisas, mas também de conectar com o meu filho. De conectando isso em gerações e tal, porque eu acho que as árvores, as pedras, os lugares, eles guardam histórias, guardam energias, guardam memórias, guardam um monte de coisa. Então ser aqui é muito mais por isso, por ter essa conexão. E a gente tinha as condições, digamos assim, na nossa dinâmica organizativa de vida, eu já não estava mais morando em Passo Fundo, embora eu estou toda semana lá, amanhã de manhã, oito da manhã eu estou em Passo Fundo. Mas estando em Vacaria, aqui é pertinho, a 45 quilômetros daqui é Vacaria, então é possível ter isso aqui. E também a gente quis ir fazendo as coisas aqui, uma, por uma questão da economia, mas, como eu comentei, essa casa, as casas aqui, as duas, as construções, as coisas aqui, é tudo aí meu pai que fizemos. Então, meu pai participou disso aqui ativamente, ajudando a fazer cerca, a plantar árvores, a construir, que às vezes eu até digo assim, “será que isso é legal? Porque se um dia eu precisar vender, eu não vendo isso aqui. Se for tentar precificar isso aqui, não tem”. Talvez não tenha feito a coisa certa, mas tudo bem. Mas imaginando um pouco, foi assim que a gente veio para cá, por essas, assim, por isso, por ter um espaço. E é muito legal, sabe? É muito legal. É louco, é legal e nós temos aqui uma coisa agora que ele se tornou algo, nós até ganhamos um prêmio a nível nacional de conservação dos sistemas tradicionais, sistemas produtivos tradicionais, o ISAT. Nem sei, eu não trouxe aqui aquele trem. Eu até ganhei um negocinho lá que me deram e tal. Eu sou ruim nessas coisas, os caras te dão uns prêmios, te dão umas coisas, mas enfim. Tem, é uma ação a nível de Brasil do Ministério do Meio Ambiente, acho que tem, tem o Ministério da Agricultura, o IFAM e a Embrapa, que de tempo, cada dois anos, acho que eles abrem um edital, que é para selecionar experiências que ajudam a conservar os sistemas produtivos tradicionais. Porque isso está associado com cultura, então, por exemplo, Sistema Caiapó de Cultivo de Cultura não sei o quê, é um deles e tal. Aí, quando eu vim para cá, comecei a lidar aqui no sítio, eu me dei conta que isso aqui tudo era um potreiro. Vocês nunca ouviram falar de potreiro. Essa é uma terminologia bem sulista. Depois eu posso mostrar para vocês o que é um potreiro. Isso aqui já não dá mais para dizer que é um potreiro, porque não tem mais o elemento animal aqui dentro. Mas o potreiro é aquela... Como é que ele se forma? Jesus! O pessoal chega nessa região, que é floresta, abre a floresta e planta, e começa a criar animais. Então, o potreiro é uma paisagem de gramíneas com o elemento arbóreo natural bem presente e os animais. Depois eu mostro, a gente vai caminhar, vou poder mostrar para vocês aí. E eu fui me dando conta disso, de que os potreiros eram algo extremamente presente na minha paisagem de infância. Você tem uma paisagem, um cenário, é os potreiros. Essa coisa do gado com o araucária, com o ariticum, não sei o quê, os porcos lá por baixo comendo, o pasto, os cavalos, e que são sistemas produtivos extremamente importantes para as famílias agricultoras, ou foram extremamente importantes para as famílias agricultoras ao longo do tempo, porque é ali dentro, é daquele ambiente que eles tiram a lenha, que tira o leite, que tira a lã da ovelha, que no Rio Grande do Sul era muito importante, foi uma economia importante, a lã, seja para a venda, seja para fazer cobertas, para fazer roupas, a carne, a proteína, mas eles vendem um boizinho, dois boizinhos por ano também, ou seja, é um sistema produtivo biodiverso, com a presença dos elementos do ecossistema natural muito presente. Então, é o sistema produtivo nosso, do sul do Brasil, aonde o elemento produtivo, digamos assim, manejado, e o elemento natural mais se convergem, mais estão juntos, não era numa roça, não é um parreiral, não é um pomar, por mais orgânico e ecológico que ele seja, é no ambiente de potreiro. E nós como agricultores, agricultores não, como movimento ecologista, nunca nos demos conta disso. Nunca nos demos conta disso. E aí a gente começou a olhar um pouquinho para isso, e disse assim, vamos olhar. Quando a gente foi olhar, a gente foi ver que esses sistemas, até 15 anos atrás, porque a gente foi fazer essa análise há 15 anos atrás, mais ou menos, eles representavam 50% da área de terra da maioria das famílias agricultoras familiares, das que a gente trabalha. E a gente diz assim, “a gente não está olhando para isso. Nós estamos indo na casa dos agricultores e olhando para a horta”. Eu falando assim, depois tu corta isso, porque parece que eu estou criticando as hortas orgânicas. Não é isso. Estou dizendo, como é que a gente tem um olhar para sistemas produtivos ecologicamente mais eficientes? E não está olhando para os potreiros. Por quê? Porque ali está o animal, está não sei o quê. E o sofisticado é fazer agricultura. E quanto mais tecnificada, melhor. Porque isso é moderno. Aí entra naquele elemento que eu te trazia lá no início da subjetividade, das emoções. Por que a gente adere tanto a tecnologias? Porque nos impõe uma necessidade. E essa necessidade é imposta por uma subjetividade de tu querer ser sempre melhor. Ou achar que tu vai ser melhor. Ninguém quer ser chamado atrasado. Então, tu quer que alguém compre algo, ideia, quer dizer que é moderno. Isso é o que tem de mais novo. Cara, opa, não, isso é como os ancestrais faziam. Deixa quieto. Entendeu? E aí a gente começa a mexer um pouquinho com isso. E aí eu venho para cá e me desafio, aquela parte de baixo toda do meu sítio, como fazer um processo de restauração ecológica e econômica de potreiros. Eu não teria feito se eu não tivesse isso aqui. Ninguém tinha topado. Eu comprei um cavalo para fazer isso, porque eu não tinha o elemento animal, e eu precisava ter o elemento animal porque o potreiro tem o elemento animal. Aí meu filho já estava naquela ideia de querer ter um cavalo, porque ele via meus tios com os cavalos e tal, disse, “bora lá, agora eu resolvo o problema do elemento animal na minha área experimental e meu filho vai ter um bicho para se entreter também”. Quase não andava, o cavalo morreu. Depois, ficou velhinho, e hoje é um dos principais sistemas tradicionais de manejo das espécies nativas, os potreiros. 60% mais ou menos das frutas nativas trabalhadas na cadeia solidária tem origem no extrativismo dos potreiros. E por que a gente fala da restauração econômica e ecológica? O ecológico precisa enriquecer esses espaços, sempre é importante, porque é ali que tem as nascentes da água, os córregos da água, enfim, tem toda uma biodiversidade associada. E econômica por quê? Porque só o elemento animal, que normalmente tem sido a geração de renda desses ambientes, hoje é baixo. Então, vou ter dois hectares, três hectares de terra para tirar um boi, dois boi por ano, é muito pouco. É vantagem eu lavrar tudo isso, virar tudo isso, fazer uma horta, fazer um pomar, fazer uma lavoura de soja, fazer um parreiral, que economicamente é mais rentável, num primeiro momento pelo menos. Então, a restauração econômica vem disso. Como é que tira a renda daqueles elementos que estão dentro daquele ambiente? Das mais diferentes formas. Por exemplo, se eu tenho um baiado, que é um espaço alagado, como é que eu posso estar cultivando nesse baiado ou manejando, nem é cultivando, manejando e aproveitando espécies, por exemplo, de artesanato que são nativas? A gente faz artesanato com um monte de coisas que são exóticas e chama de artesanato em muitos lugares. Essa cadeira que eu estou sentado é de uma palha de uma fibra que dá nos baiados de potreiro. Mas hoje a gente bota nas cadeiras fibra de plástico. E nem lembra mais da macega, como se dizia, de empalhar a cadeira. Aquela sanga que corre por dentro, aquele riacho que passa nesse ambiente, ele pode ser uma boa fonte de produzir uma planta aquática alimentar, considerada a segunda mais importante pela FAO, que é o agrião nativo nosso aqui. Porque ele tem essa capacidade de... É uma planta aquática comestível nossa, que era cheio nesses rios aqui, o rio que passa aqui no sítio, nós colhíamos agrião nessa época do ano. Hoje não tem mais, sumiu pela contaminação, por várias coisas, ou do pessoal não cercar para proteger do gado. Aquela guabiroba que está ali dentro, aqueles pés de guabiroba, de goiaba serrana, de guamirim, de araucária, é tudo fruta que o pessoal pode colher e começar a comercializar. E como a gente tem a cadeia produtiva está se estruturando em cima disso, é potencializar. Então nós temos um trabalho bem forte nessa questão da restauração ecológica e econômica dos sistemas tradicionais de potreiro. E é isso. Hoje a gente está aí com 40, 50 famílias já trabalhando com isso. Começou aqui. Começou depois da _____. Os primeiros exercícios, assim, de vir ali, de roçar, de entender, de tu estar ali trabalhando no sábado e domingo, porque é isso que eu faço aqui, é sábado e domingo, é trabalhando aqui. E é onde tu pensa, tu vê. Então, ter esse espaço é bem legal. Tem horas que dá vontade de desistir, porque não é fácil manter. É trabalho. É trabalho mesmo. Roçar, manter, cortar, ajeitar, fazer lenha, fazer cerca, só para roçar os entornos da casa aqui, demora um dia. Então aquela coisa, final de semana descansar, não tem. Só que é um outro serviço. Não estou dirigindo, não estou na frente do computador, não estou dando palestra, nem curso. Estou aqui, mas é legal, é bom.
P - Essa parte de não desistir vem da fé? Tem uma questão de espiritualidade que ela falou. Não tem uma certa religião, mas a espiritualidade faz parte da tua vida. Como é isso?
R - Não sei. Não sei. Não procuro explicar, sabe? Não sei se vem da fé, do que que vem. E se é na fé, na fé do quê. Eu brinco, às vezes, que digo assim, “acho que eu não sei fazer outra coisa. Sempre fui envolvido com isso”, essa é a história que a gente falava, desde muito cedo envolvido com esse mundo da agricultura ecológica, da agroecologia, das organizações, que eu não consigo me ver em outra coisa. Eu não sei. Eu acho que pode ser que sim, Luiza. Pode ser que tenha coisas que a gente nem entenda, e se não entende, muito menos vai conseguir explicar. Eu me sinto bem. Eu não consigo me ver... Mesmo dentro desse mundo da agroecologia e tal, eu não consigo me ver, não estar trabalhando com as questões da agricultura mais florestal mesmo. Tanto é que por muito tempo eu sou um daí que me envolvo muito cedo com a temática das agroflorestas, fala muito das agroflorestas. Hoje a nível do Brasil e tal. Eu já acho que desvirtuou, é uma agrofloresta muito já sistematizada, em linha, cheia de máquinas. Bom, é o futuro? Pode ser que sim. Mas eu não consigo me enxergar nela. Mas enfim, claro, nós temos contextos e contextos. Agora, se é espiritualidade, se não é, eu não sei. É um gosto, de onde ele vem?
P - E sua esposa, sua família, como você conheceu?
R - Bom, nos conhecemos lá no Tocantins. Ela é de Goiás, de Anápolis, e nos conhecemos no período que eu estava no Tocantins porque ela trabalhava naquela região também. Aí depois eu vim para cá e de um tempo ela veio, enfim, e estamos aí até hoje. Faz um tempinho já. Mas a família dela toda é lá de Anápolis ainda. Ela é a única que está no Rio Grande do Sul, mas ela tem uma família bem dispersa assim, ou espalhada. Ela tem um irmão que está em Porto Velho, ela tinha um irmão que morou no Acre, tinha outro que estava no Pará, e um em Anápolis. Então, para você ter uma ideia, estavam bem espalhados. Mas agora tem dois que estão em Anápolis e tem um que está em Porto Velho, e ela que está aqui. E aí veio, nós morávamos em Passo Fundo, o nosso filho nasceu em Passo Fundo, então ele é passofundense, tem 15 anos, Ayruman é o nome dele. Ela trabalha com, ela está na Coordenadoria Estadual da Educação. Porque a gente tem a Secretaria Estadual de Educação, que fica em Porto Alegre, e depois a Secretaria tem os seus ramais nas regiões, que são as Coordenadorias Regionais de Educação. Então, ela trabalha na Coordenadoria Regional de Educação dessa região toda, a Sete Macré, como se diz, que fica sediada em Vacaria e o departamento dela é bem esse das escolas rurais, da educação do campo, como se chama, e educação ambiental. Então ela trabalha com esse aspecto, com as escolas do campo dessa região toda. É isso aí.
P - Eu teria mais um milhão de perguntas, mas eu te pergunto, você gostaria de contar alguma passagem da sua vida que eu não tenha te perguntado? Alguma história, algum momento que você acha importante ter registrado? Ou deixar uma mensagem
R - Ah, e tem tantas coisas. Tipo assim, a gente foi fazendo uma linha do tempo a partir de alguns tópicos. Centro Ecológico, CETAP e Acre e Tocantins. No meio disso tudo tem um monte de coisa. Assim, de envolvimentos, de ações.
P - Você morou fora?
R - Morar fora, fora não, mas eu fiz assim, tipo, isso, ficar 30 dias, 40 dias em outros países, isso sim. Eu fiz parte dessas redes internacionais de causas ambientais e sociais, a gente faz parte até hoje por muito tempo de uma rede chamada Terra do Futuro. A rede Terra do Futuro tem sede na Suécia, em Estocolmo, e atua na Ásia e na América do Sul. E foi fundada lá nos anos 90, 90 e poucos, 91, 92. Uma das primeiras reuniões de fundação foi aqui. E isso é bem engraçado, porque eu não sou a pessoa mais velha que está na rede, de idade, mas sou um dos mais velhos da rede. Porque com 13 para 14 anos, eu estava sentado numa sala onde a fundadora da Terra do Futuro deu a primeira palestra. Se tu entrar, tu vai encontrar esse nome, que é a Brigitta, que é uma das grandes ambientalistas a nível mundial lá da Suécia. Que foi a primeira pessoa que eu ouvi falar que tinha chuva ácida no mundo e que isso ia piorar, isso lá nos anos 90. Então eu fiz parte, eu fui da coordenação da Terra do Futuro. Então teve um período da minha vida, ali pelos anos 2003 a 2015, 2014, eu parava mais dentro de avião do que em casa. Porque era isso. Então, tinha os países aqui da América do Sul, parte da América Central. Assim, era difícil um mês que eu não estava em algum deles. Difícil de ir para a Suécia, para a Noruega, participar de conferências internacionais, de cooperação internacional na França, na Espanha. Isso tudo a gente fez. Não me encanta mais. Foi muito legal, é legal, é necessário, tem que ter gente fazendo, mas se tu disser assim, “Alvir, tem uma viagem para a Espanha de 30 dias”, “arruma outro, tô de boa”. Adorava, não é que eu não gosto, não, é muito legal conhecer, mas tem gente que se deslumbra com isso, ou gosta demais, que tá de boa. Mas, para mim, não... Chegou um momento que eu acho que essas... Até esses dias eu estava... Segunda-feira, na saída da reunião, e a galera... “Ah, não sei o que”, eu disse: “Galera, deixa eu cuidar do quintal”. Porque eu acho que está bom. Estou gostando dessa fase. Mas me envolvi muito com isso, foi muito legal. Porque tu ir pra Bolívia, no altiplano boliviano, saber o modo de vida das comunidades do Titicaca, tu volta pra cá, tu volta pirado, entende? Aí tu baixa na Amazônia Equatoriana, tu sabe? Aí a pouco tu tá lá no solar de ______, não sei o quê. Então, o conhecer, pra mim, foi muito enriquecedor, eu acho, de conhecer esses mundos todos que existem, e a beleza de cada um deles, e aquela coisa que diz assim, não adianta. Por isso que eu acho que, quando eu resumo essa questão da nossa causa aqui, contribuir e ajudar no restaurar os ciclos ecológicos, porque isso está vinculado a todos os ecossistemas e todos os povos. Os ciclos são os mesmos. Muda os ambientes, muda os ecossistemas, muda os modos de vida, muda o se alimentar, mas essa ordem, ela é global. E aí quando a gente entende isso, tu entende um pouco o teu lugar. Então o meu papel nesse local é fazer isso. Não é fazer o que o outro faz na caatinga do lado ou o que o outro faz no pampa aqui do lado. Mas eu estou dentro desse movimento, dentro dessa causa do reconstruir e restaurar ciclos ecológicos, porque eles são os mesmos em todos os lugares. Água é água em tudo que é lugar, ar é ar em tudo que é lugar. Muda, tem suas... Mais quente, mais frio, não sei. Então, acho que o conhecer esses universos todos foi a... Não foi conhecer o Museu do Louvre, nem Notre-Dame, nem sei lá o quê. E do ponto de vista histórico, acho que também. Quando a gente viajar, eu sempre disse que se um dia pudesse dar uma dica para algum presidente brasileiro, ele tinha que ter um programa de incentivo a viagens. Mas não viajar só por viajar. Porque, para mim, é o que mais faz as pessoas sentirem as coisas. Não é ler um livro, que é importante, e muito menos escutar um podcast hoje. Porque tu não sente, tu não tem sensação. Eu posso ler o melhor livro sobre o Pampa, mas se eu não senti o friozinho do Pampa, ouvi o barulho daquele passarinho cantando, ouvi o sotaque da pessoa falando, eu não sei o que é. Emoção tu tem, sensações são despertadas com essas diferentes coisas. Então viajar eu acho que é algo fantástico, fantástico assim. Independente da distância que tu vai, às vezes é 10 quilômetros, às vezes é 10 mil. É extremamente importante. Necessário, diria, não só importante. Agora, não é viajar para entrar num shopping, ir para São Paulo para ir para dentro de um shopping. Vai para São Paulo, vai para sentir, nem que seja muvuca, mas vai sentir a muvuca, entender o que é aquele mundo. E isso também a nível de Brasil, o fato de eu ter me envolvido bastante com as redes, a ANA, a Articulação Nacional de Agroecologia, fiz parte do núcleo executivo, sempre tive nessas linhas. Pelo CETAP, representando a instituição, me fez conhecer esses Brasis também. Andei bastante pelo Nordeste. A região do Cerrado, para mim, é a região mais linda do Brasil. Então, bom, tem muita história no meio disso tudo. Mas são coisas assim, são momentos assim que eu considero esse momento, um período assim, que foi muito de estar nesses espaços mais macros. Não que eu não esteja hoje, estou em alguns, mas bem menos. Ele foi um período bem interessante. Não só do ponto de vista pessoal, do ponto de vista também para ir juntando elementos, conhecimentos e tal, e capacidades para a própria instituição ir fazendo o seu trabalho. Acho que foi legal. Mas eu não tenho um momento específico, assim, “ah, tal coisa”. Se a gente estivesse contando o caos, não é? Porque acaba vendo muita coisa. Não tem um específico, não. Se eu lembrar, depois eu te digo.
P - Quais são seus sonhos?
R - Bah, não pergunta isso, não, Luiza. Deixa eu ir dormir para ver seu sonho. Bah, o que eu vou te dizer? Meu sonho? Não sei. Eu não sei. Eu não sei o que você quer dizer. Porque dizer assim, o teu sonho é aquela coisa que tu diz assim, eu quero ver isso acontecer, de qualquer jeito. Parece que tem, é um pouco forte isso. E é muito difícil de definir um sonho. Talvez se eu pudesse dizer assim, “meu sonho é que minha vida siga por muitos anos como ela é hoje”. É impossível. Amanhã eu sou mais velho, aqui no dia um morre. Então, eu acho que hoje, assim, se pensar, uma das coisas que eu mais quero é ver meu filho bem. E, associado a isso, eu acho que eu iria ficar muito feliz se isso um dia acontecesse, independente de onde está, é de ver essa galera jovem se reconectando. Porque talvez é uma das coisas que mais me causa estranheza. Se reconectando com o mundo mesmo, com pessoas, com a natureza, se dá para chamar assim, porque a galera está fechada dentro de casa, de você sair, viajar, que não é o caso do meu menino, ele até não tem muito disso, mas eu vejo isso acontecer com pessoas, não crianças, tô falando de jovem, 20, 25 anos, de você estar 3, 4 pessoas dentro de um carro, prosa boa, super interessante, as pessoas botam um fone de ouvido, preferem ficar escutando um podcast de um indiano, tá nada contra o indiano, ou árabe, ou sei lá, ou paulista, seja quem está falando português, aproveita aquele momento, vive. Os caras estão contando histórias, estão contando causos. Sabe, essa parece uma necessidade de cultivar e cultuar o teu eu e o teu indivíduo. Eu faço o que eu quero no momento que eu quero, do jeito que eu quero, muito forte. Isso, para mim, acho que é complicado. Eu gostaria de, parece de ver esse convívio e essa coisa muito forte. Então, quando eu falo um pouco do meu filho, assim, do meu filho bem. E também olhando um pouco para essa questão dessas gerações que já estão aí. Não é as futuras, não. É essas que estão aí. Dez anos, quinze anos, vinte anos. Se continuar assim, o que essa galera vai ver? É uma galera que, se não tiver dinheiro, morre de fome. Porque não sabe cozinhar, não sabe plantar. Mas não sei se chega a ser um sonho. Eu não paro para pensar nessas coisas, qual é o meu sonho. Você tem que parar, né?
P - Para finalizar, como foi para você compartilhar um pouco da sua história e de algumas histórias?
R - Ah, é legal. Bom, gostei. É interessante porque a gente vai puxando na memória algumas coisas. Eu acho que se eu fosse responder às mesmas perguntas amanhã ou depois, eu ia responder diferente. Porque a gente vai respondendo até de uma forma quase que espontânea, sem pensar muito. “Será que é isso? Será que não é?” Então é bem provável que eu Eu responderia coisas de maneira distinta, se fosse pensar um pouco mais sobre, ter mais elementos, mais fatos. Mas é legal, gostei de poder estar relembrando algumas coisas e proseando. É isso.
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