Projeto Vidas Vozes e Saberes em um mundo em chamas
Entrevista de Marco Antônio Moreira Xavier (Kako Xavier)
Entrevistado por Luiza Gallo
Pelotas, Rio Grande do Sul, dia 5 de julho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1484
Revisado por Nataniel Torres
P - Querido, primeiro eu quero te agradecer demais por nos receber nesse espaço, no seu espaço, no espaço de mais tantos. Quero que você comece se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Então, eu sou Marco Antônio Moreira Xavier, nascido em 8 de dezembro de 1968, na cidade de Lavras do Sul, região da Campanha, aqui no Rio Grande do Sul.
P - Te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Sim, eu tenho cinco irmãos, nós somos cinco irmãos, e eu sou o caçulinha. Então, me criei com os meus irmãos sempre contando, porque já estavam aqui quando eu cheguei, que foi o dia mais feliz da vida deles, o dia que eu cheguei.
P - Por quê?
R - Ah, porque tava chegando ali uma pessoa que vinha com um olhar de unir mais aquela família. Então, seguimos?
P - Seguimos! E por que? Você sabe a história do seu nome?
R - Não. Talvez assim, o que eu lembro é... Todos nós temos nomes compostos. Então, tenho uma irmã que é a Beatriz Helena, a Sandra Beatriz, o José Carlos, o João Francisco e o Marco Antônio, quando chegou então. Mas eu acho que tanto o Marco quanto o Antônio são dois nomes fortes que me representam na caminhada. Mas na minha formação escolar, o Marco... E depois, quando eu comecei a me sentir mais dono de mim, eu sempre levei o Antônio comigo. Não sei se é a força do “Tô”, do Antônio. Então, acho que gosto do meu nome.
P - Em que momento o Antônio chega com mais força?
R - Então, eu acho que teve um momento de um confronto com a minha família, onde o meu desejo de seguir, levando adiante o que eu vinha construindo na adolescência, ele teve que ter o meu primeiro passo de coragem, de chegar nessa construção familiar tão...
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Entrevista de Marco Antônio Moreira Xavier (Kako Xavier)
Entrevistado por Luiza Gallo
Pelotas, Rio Grande do Sul, dia 5 de julho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1484
Revisado por Nataniel Torres
P - Querido, primeiro eu quero te agradecer demais por nos receber nesse espaço, no seu espaço, no espaço de mais tantos. Quero que você comece se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Então, eu sou Marco Antônio Moreira Xavier, nascido em 8 de dezembro de 1968, na cidade de Lavras do Sul, região da Campanha, aqui no Rio Grande do Sul.
P - Te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Sim, eu tenho cinco irmãos, nós somos cinco irmãos, e eu sou o caçulinha. Então, me criei com os meus irmãos sempre contando, porque já estavam aqui quando eu cheguei, que foi o dia mais feliz da vida deles, o dia que eu cheguei.
P - Por quê?
R - Ah, porque tava chegando ali uma pessoa que vinha com um olhar de unir mais aquela família. Então, seguimos?
P - Seguimos! E por que? Você sabe a história do seu nome?
R - Não. Talvez assim, o que eu lembro é... Todos nós temos nomes compostos. Então, tenho uma irmã que é a Beatriz Helena, a Sandra Beatriz, o José Carlos, o João Francisco e o Marco Antônio, quando chegou então. Mas eu acho que tanto o Marco quanto o Antônio são dois nomes fortes que me representam na caminhada. Mas na minha formação escolar, o Marco... E depois, quando eu comecei a me sentir mais dono de mim, eu sempre levei o Antônio comigo. Não sei se é a força do “Tô”, do Antônio. Então, acho que gosto do meu nome.
P - Em que momento o Antônio chega com mais força?
R - Então, eu acho que teve um momento de um confronto com a minha família, onde o meu desejo de seguir, levando adiante o que eu vinha construindo na adolescência, ele teve que ter o meu primeiro passo de coragem, de chegar nessa construção familiar tão legal, tão unida, e dizer: “Olha, eu quero dar uma volta sozinho”. Então, aos 17 anos, eu saí de casa. Eu saí aqui da cidade de Pelotas e fui morar em Porto Alegre. Eu tinha uma banda de rock, e aí eu digo: “Eu quero seguir”. E claro que a gente enxergava a arte com esse olhar de que não era um trabalho, que não era seguro, que era uma diversão. E eu já tinha convicção que aquilo ali seria a sequência da minha vida. Então, ali eu acho que o Antônio entrou em cena.
P - Vou voltar um pouquinho, tá? Queria que você descrevesse o jeito da sua mãe.
R - O jeito da minha mãe... A minha mãe sempre foi uma pessoa, assim, amável. Sempre foi uma pessoa com um brilho no olho, sabe? De pegar todos os seus filhos, botar debaixo da asa, se dedicar a fazer as coisas pros filhos. Conviver com os filhos. Claro que numa formação mais antiga, das gerações mais antigas, tinha aquela coisa. Meu pai muito machista: “Eu trabalho, eu trago dinheiro, tu cuida das crianças”. Mas ela fazia essa parte dela com muita sabedoria, porque ela trouxe uma leveza e, naturalmente, uma união entre os filhos dela, que hoje, não estando mais aqui nem o pai, nem ela, essa união, essa corrente ainda é super forte, é sólida. E eu lembro de algumas passagens da mãe, assim, de ter aquela coisa assim de: “Eu vou falar pro teu pai. Não faz isso que eu vou falar pro teu pai”. Então era uma forma de ter… E comigo, eu lembro que ela tinha uma coisa assim... “Quer falar com a mãe?” Então ela resolvia certas coisas da minha vida comigo. Então eu sentia essa presença do: “Eu vou contar pro teu pai”, na minha direção menor. Então, e sempre foi. Ela terminou a vida dela com doze anos de Alzheimer. E nesses doze anos de Alzheimer, ela manteve essa doçura. Todas as pessoas que eu conheci que diziam: “Bah, o Alzheimer deixa a pessoa agressiva, que a pessoa está em conflito com a doença”. E ela tinha uma coisa assim, o grande lance dela era entrar na sala e beijar todo mundo. E ela saía e voltava e cumprimentava todo mundo de novo, mas sempre com um sorriso. E uma coisa que me chama a atenção é que, mais próximo, assim, do final da vida dela, quando ela já não lembrava mais dos filhos, já não lembrava mais da história da vida dela, eu pegava ela para caminhar e eu cantava. E aí, incrivelmente, ela sabia as letras das músicas e me olhava com aquele olhar, como eu coloquei, com aquele brilho no olho, que é o mesmo olhar de quando eu morava em Porto Alegre, voltava para Pelotas e ela me recebia na escada. Então, esse brilho no olho dela, ela me olhava daquele mesmo jeito e seguia. Eu puxava uma música e ela seguia cantando a música.
P - A música conectava. E o seu pai?
R - Então, meu pai... Meu pai, meu melhor amigo. A pessoa que sempre foi rude, que sempre foi forte, mas que comigo achamos o caminho de desconstruir isso, essa macheza. Meu pai tem várias passagens. Por exemplo, quando eu saí de casa, claro, eu fui falar com a mãe pra convencer o pai. Eu queria morar com os meus amigos em Porto Alegre, que a gente tinha uma banda, que a banda ia fazer sucesso, que aquela era a vida que eu queria. E ela se despedaçou. Não teve o... Não conseguiu sentir o filho saindo de perto. E ele me disse só uma frase: "Me bota na lista dos teus melhores amigos”, olha só! “Quando precisar, quando tiver em alguma situação que tu não estiver conosco e tu precisar de um amigo, me bota nessa lista”. Então, claro, até assim, a minha volta pra Pelotas, depois de morar 23 anos em Porto Alegre, foi em função de achar que eu tinha que recuperar um tempo de convívio com eles, que era o tempo que eu tinha dedicado para construir a minha história individual. Mas lembro dele ser uma pessoa muito de juntar os filhos, juntar a mãe, de achar alegria, um piadista, uma pessoa que sempre buscou o humor, a diversão. Acho que isso é uma qualidade que todos nós deveríamos procurar, buscar, que é conseguir driblar as dificuldades da vida com humor. Porque isso nos deixa tranquilos, isso nos faz pensar, isso ativa a nossa inteligência. Quando a gente fica muito preocupado, muito tenso, a gente não pensa bem. E aí a gente não decide bem, não resolve bem. E acho que a minha vida, pela escolha que eu fiz, ela tem muito disso, muitos momentos onde a gente tem que decidir. E estar em paz, tranquilo, para decidir, é uma coisa essencial.
P - Como era, na sua infância, Lavras do Sul? Onde você cresceu?
R - Então. Eu fiquei em Lavras até os três anos de idade. Então é uma memória muito rasa, assim. De Lavras, eu fui pra Dom Pedrito, que é uma cidade próxima. E de Dom Pedrito, eu fui pra Bagé. E, de Bagé, eu vim para Pelotas. Quando eu cheguei em Pelotas, eu tinha seis anos. Então as minhas memórias da saída de Lavras, passagem por Dom Pedrito e o tempo de Bagé era um incêndio num supermercado que tinha, como se fosse um canil, mas era de botijão de gás. E eu lembro da casa que a gente morava, essa coisa das pessoas assim: “Tá pegando fogo no supermercado”. Então, isso pra mim é uma coisa que, eu digo, o que será que fez que isso ficou guardado dentro da minha memória? Talvez eu tenha ficado muito impressionado com isso. Mas depois que eu já fiquei maior. Eu tive a necessidade de voltar a esses lugares. Então eu tenho boa parte da minha infância... Férias em Dom Pedrito. Eu fiz num certo momento. Depois, quando eu tinha uma carreira artística, eu voltei a Lavras para fazer um show. Depois oficinas, enfim, assim. É um lugar que acho que sinto falta, porque fui tirado dali muito novo. Acho que o interior nos oferece uma relação com o lugar valiosíssima. E eu acho que talvez eu sentisse falta disso, de ter vivido, ter me construído mais no interior. Pelotas já era uma cidade enorme, perto de Lavras, Dom Pedrito e Bagé. E quando eu fui para Porto Alegre também, eu comecei a ver as qualidades de Pelotas. Porque Porto Alegre, para o Rio Grande do Sul, já é um centro onde tu bota o pé na rua, ninguém é de ninguém, um passa por cima do outro. Tá todo mundo na busca desse novo, tá todo mundo querendo mais. E eu vendo assim: “Pô, é legal essa coisa do menos”. Até porque menos é mais. Então, quanto menos tu tiver e for. Menos quantidade, mas tu tem uma relação. Então, eu fico vendo, hoje eu moro num lugar totalmente ligado à minha infância.
P - Por quê?
R - Porque é aqui, hoje eu moro num bairro em Pelotas, e é aqui que eu vou ali pra frente de casa no chão batido. É aqui que eu vou no mercado e tem caderneta. É aqui que eu ando de bicicleta, é aqui que quando eu começo a sentir uma tristeza, eu caminho, eu estou na beira da água, estou na beira da lagoa. Então, essa possibilidade que o lugar, que a natureza do lugar me proporciona, eu acho que é a riqueza, é a paz para poder ter essa guerra tão grande que eu tenho na minha escolha de vida, de estar querendo ser quem eu sou, viver do que eu vivo. Então, a gente precisa das ferramentas, e as ferramentas que eu tenho aqui é acordar, é pisar na grama, é ouvir o pássaro. Então, isso realmente, fazendo aqui uma reflexão, isso realmente é bastante importante pra mim, sabe? Porque às vezes eu fico vendo: “Como é que eu vou resolver isso, isso, isso? Eu tenho que preparar isso, isso, fulano, tal, querendo... Eu tô na vida de hoje, olha aí, ó. Eu tô na vida de hoje, porém, eu fico vendo: “Cara, tá tudo bem”. Aí eu vou ali, aí eu vejo uma laranja no pé, aí passa um vizinho cheio de tempo: “Ó, viu que botaram uma lavagem no posto?”. Digo: “Cara, estou super atento. Não está atrasado. Aproveita isso”. Isso é o combustível, a riqueza de combustível para a gente.
P - Isso é diferente de Porto Alegre, essa dinâmica?
R - É. Porto Alegre, para ter uma ideia, em 23 anos eu morei no mínimo em 10 lugares. Bastante tempo naquela sensação de guerra, de batalha. Por quê? Minha vida sempre foi focada na questão da arte. Eu sou uma das poucas pessoas que eu conheço que só trabalhou com arte ligada à música a vida toda. Eu tenho 56 anos e eu, nesses 56 anos, eu só trabalhei dentro do setor. Meus amigos ficam assim: “Ah, pô, eu fiz um estágio no banco, eu fui frentista do posto. Eu fiz um estágio no veterinário”. Digo: “Cara, o meu negócio sempre foi ligado à música, ou era aula, ou era banda, ou era na publicidade com música, cantava Jingle, produzia Jingle”. Então, eu fico vendo assim, é difícil você ter uma escolha tão cedo e continuar dentro dessa escolha, com a caminhada toda, até encontrar os grandes, as preciosidades.
P - Ainda na infância em Porto Alegre. Acho que você tem mais recordações dessa infância.
R - Quando eu cheguei em Pelotas, eu tinha seis anos. Eu saí de Pelotas e eu tinha dezessete.
P - Então, em Pelotas.
R - A minha construção cultural, a minha infância, a minha adolescência, juventude, foi feita aqui em Pelotas.
P - Como foi esse caminhar?
R - Para mim, foi bacana. Tinha uma insatisfação de o lugar não me levar para os desafios maiores. Aí, com o tempo, eu digo: “Não te leva, mas te prepara para os desafios maiores”. Então, aqui é o lugar que eu saía e discutia política. Aqui tinha os amigos, a gente saía para conversar. Em Porto Alegre, eu saía para trabalhar e para me posicionar no mercado de trabalho da arte em Porto Alegre. Eu tinha que trazer essa construção que foi feita em Pelotas. E aí eu via que, em alguns momentos, eu me destacava. Por quê? Porque aqui em Pelotas, o teatro era mágico. Tu fazia uma oficina de teatro, tu te preparava pra vida, da tua posição, teu posicionamento corporal, tua impostação vocal, a tua troca de saberes com as pessoas, as descobertas da tua vida, de tu dizer... Cara, eu me lembro de uma passagem assim, ó... O pessoal se cumprimenta e se dava beijo na boca. “Será que todo mundo é namorado de todo mundo?” Eu digo: “Cara, é uma forma mais livre das pessoas se encontrarem e se cumprimentarem”. E isso, de repente, te prepara para outras situações, se tratando ainda de Rio Grande do Sul, onde tu começas a circular num cenário onde todo mundo é forte, todo mundo é macho, todo mundo é isso, todo mundo é aquilo. E tu fica vendo assim. “Cara, talvez essas pessoas não tiveram a mesma oportunidade que eu de estar naquela cidade que é conhecida como a cidade dos viados. A Pelotas é terra de viado!” É terra de liberdade, é terra de aprendizado. Que pena que essas pessoas não passaram por esse lugar em determinado momento das suas vidas para entender certas coisas que, com o tempo, eu pude ensinar para o meu pai. Olha que loucura. Eu tava lá em Porto Alegre e o meu pai chegou. Quando eu abri a porta no apartamento que eu morava, eu tava lavando louça. Aí ele não me deu um oi, ele disse assim: “O que que tu tá fazendo?” Eu digo: “Ah, tô aqui lavando uma loucinha, fiz uma comida”. Ele disse assim: “Cara, isso é coisa de mulher”. Eu digo: “Como assim é coisa de mulher?” Entende? Então, claro, tudo tem volta. Uma visita minha aqui, a minha mãe fez uma boutique de tortas, fazia doce pra fora, abriu um espaço pra ela e ele pirou. E aí ele, quando eu cheguei num dia, ele disse assim: “Garoto, você não sabe fazer um arrozinho, um ovo? Porque eu só tô comendo torta”. Eu digo: “Isso é coisa de mulher?! Te lembra lá do…” Tem que aprender das coisas, entende? Tem que aprender das coisas, de tudo, de como que a gente se cuida, da nossa higiene, e para poder cuidar da higiene dos filhos, como que a gente cuida da nossa educação para poder ter alguma coisa para passar, alguma coisa para deixar? Então, acho que isso tudo está ligado nessa relação de tu poder ter tido um estágio, que considero como estágio, uma preparação pra vida, e ter essa formação, principalmente cultural, aqui em Pelotas. E aí me senti forte o suficiente pra ir a Porto Alegre, e mais forte o suficiente pra quando a turma que foi comigo pra Porto Alegre decidiu voltar, sair da guerra, e eu achar que eu tinha força suficiente pra ficar sozinho lá. E aí começa a minha carreira. Olha que louco!
P - Tá, chegaremos, chegaremos. Eu queria te perguntar da sua escola. O começo da escola, foi aqui já?
R - Isso.
P - Que recordações você tem desse período?
R - Muitas.
R - Pode ser amigos, professores, histórias engraçadas e peças, causos, enfim.
R - É, eu estudei aqui. Aqui nós temos uma escola que se chama Assis Brasil. É uma escola estadual. E ela tinha um anexo. É um anexo da Assis Brasil, que era num outro lugar, uma escolinha menor. E ali eu fiz o meu jardim da infância. Então, ali foi a minha primeira escola. Eu tinha ali a professora Marciliana, que era a coisa mais querida. Eu dizia que ela era a minha segunda mãe. Era a professora que eu convivia todo dia. E eu lembro que era muito legal, eu tinha memórias assim do... Quando tu ia fazer aniversário, tu fazia um bilhetinho, escrevia um bilhetinho, entregava pros teus colegas de sala, tu largava aquele bilhetinho em cada classe que tu queria. E o meu aniversário sempre era em dezembro, então já tinha acabado o período das aulas. E eu tinha uma vontade de dar o bilhetinho pra convidar os meus amiguinhos pra ir. Então, isso era uma coisa que me lembrava. Tinha lá no fundo, depois do pátio, tinha um, tipo um galpão, que era um lugar onde o pessoal guardava ferramentas pra cuidar, máquina de cortar grama, essas coisas. E aí a gente tinha um negócio que era uma casa mal-assombrada. Eu lembro, eu tenho isso na infância, da gente ter o recreio e ter aquela coisa. “Não pode passar além do pátio”. Tipo, não pode ir lá naquele lugar. E, algumas vezes, a gente já queria atravessar, queria desobedecer. Por que não pode ir lá naquele lugar? Então, a gente fazia... Isso é uma coisa que eu lembro muito. Uma coisa que desenvolveu um lado meu, que eu debocho, porque não é um lado bonito, mas eu debocho muito, é que, uma vez, as minhas irmãs mais velhas me buscavam na escola. E, uma vez, a Sandra ia me buscar e ela esqueceu de me buscar. E aí eu fiquei na escola, na frente da escola, foi todo mundo embora e eu fiquei ali sentadinho com a minha pasta e ficou uma das funcionárias da escola tipo assim: “Não vou deixar a criança sozinha aqui”. Até que ela me olhou e disse assim: “Tu sabe onde tu mora? Eu tenho que ir embora”. E aí eu sabia onde eu morava, mas eu tinha seis anos. E aí eu comecei a ir indo em direção de casa, fazendo o caminho certinho. Vai nessa, vou dobrar aqui, vou andar quatro quadras, vou dobrar ali e vou estar em casa. E, no meio do caminho, vinha a vinda da minha irmã. E eu disse assim para ela: “Tu vai ver, tu vai fazer tudo o que eu quiser daqui para a frente”. Eu tinha uma coisa assim de... E a gente ri até hoje disso, que a gente tem assim essa... Até agora, porra, a gente já está quase com sessenta anos, quando a gente janta juntos, quando a gente... “Não esquece que tu tem que fazer tudo que eu disser, senão eu vou contar para o pai e para a mãe”. Bom, saindo dali, aí eu fui para o Pedro Osório, que era uma outra escola estadual que eu tenho orgulho também, porque eu sempre estudei em escola pública, eu sempre tive conexão com a diversidade, eu sempre tive amigos negros, amigos não negros, eu sempre vi, eu tive muitos professores negros naquela época, que era legal, o OSPB, orientação de… Não me lembro do significado da matéria, mas eu lembro da professora Gil, que era uma professora negra e que falava com muita força do que ela estava trazendo para nós como conteúdo. E aí lembro do Pedro Osório, lembro que ali eu desenvolvi uma coisa bem legal pelo esporte, que tinha uma coisa que eu também desenvolvi. Minha primeira vontade de matar a aula foi ali, porque eu tinha uma coisa com o pátio. Quando a gente fala dessa relação da rua, eu tinha uma relação muito forte com o pátio do colégio. Ali a gente fazia a educação física, mas eu lembro que às vezes eu dizia: “Eu estou me sentindo mal, eu posso tomar água?” E eu saía e ficava no pátio. Olha só. E isso aí eu já estava na terceira, quarta, quinta série. Até que, aos 12 anos, eu estava entrando da sexta para a sétima série e eu entrei na banda do colégio. Aí eu comecei a ter essa ligação com a música muito forte. E eu me dediquei tanto que eu pedi emprestado pro coordenador lá da banda um par de baquetas. E aí eu levava pra casa e ficava nas paredes tec tec tec. E todo mundo dizia: “Pelo amor de Deus, cara, para com isso”. Eu vivia batendo nas paredes, no chão. Até que entrei na banda e a banda tinha o Mor. O Mor era o solista do bumbo e o solista do tarol, que puxavam toda a banda da escola. O meu foco era: “Eu vou ser o Tarol Mor. Um dia eu vou puxar a escola”, e tinha os desfiles na avenida. Então, isso me lembra, porque a gente botava toda uma roupa, ia lá, as comemorações de Sete de setembro desfilavam as escolas, as bandas das escolas. E aí, às vezes, era uma… para você ver como é que era a minha mãe, que eu lembro que uma vez a gente foi hastear a bandeira, e tinha isso aqui, era assim, às seis horas da manhã. E aí aquela grisadinha lá. E ninguém na praça pra ver. A minha mãe e a minha irmã lá paradinha vendo: “tenguendém, tenguerenguendém”. Então, é uma lembrança boa que eu tenho da escola. Lembro muito de um colega que é o Chester. O Chester nasceu com uma deficiência no braço. Ele nasceu com o braço esquerdo, ele ia até o cotovelo. E aí ele tinha uns dedinhos pequenos assim. E essa deficiência dele nos aproximou muito, muito. Nós viramos, assim, muito amigos. E foi passando. A gente fez a quinta série juntos, sexta, sétima, oitava. E aí a gente fazia um time de futebol e eu dizia pra ele: “Chester, vamos fazer um time?” E aí a gente já se olhava e dizia: “Quem é o goleiro?” Era ele que não tinha o braço inteiro. “Vamos tocar na banda”. Eu digo: “Eu tô de tarol mor, tu tem que ir pra banda.” Aí ele disse: “Bah, eu vou lá”. Quando ele chegou na banda, toda aquela turma, aí os guris muito maldosos, o bullying, que a gente nem falava em bullying, dizia: “Ah, ele vai tocar surdo, que era só com uma baqueta”. E aí eu dizia: “Esse aqui é o meu amigo Chester, ele vai tocar na banda, ele vai tocar tarol com duas baquetas” E ele botava a baqueta aqui, o toquinho segurava, e eu toquei as seis cadências pra ele, na frente de toda a banda, e ele repetiu as seis cadências. E ele deu uma aula, assim, pra todo grupo, sabe? Que a deficiência dele tava no olhar de cada um, não tava nele. Então, tu vê, nas Olimpíadas do colégio, ele era o goleiro que não tinha um braço. Não tinha parte de um braço. E a gente ria e gostava muito disso. A gente gostava de se desafiar, de mostrar para as pessoas assim... “Isso não é nada, cara. Isso não é nada. Isso é uma coisa que… Eu vim assim, tu veio assado. Tu veio branco, eu vim preto.” Entende? E é isso. E a gente é massa porque a gente é assim como a gente é. Então, acho que o Chester mesmo, que eu lembro, depois tinha o Caninha, mais próximo de terminar, a gente foi morar, a gente mudou para um prédio perto da Santa Casa, e o prédio tinha uma base que era tipo uma proteção para chuva, para tu apertar no porteiro eletrônico, uma coisa assim. Só que a gente morava no segundo andar, e da janela da nossa sala a gente conseguia subir nessa base. E eu lembro de uma vez a mãe chegando e nós, uns dez guris da aula, vamos lá subir nessa base. Então, a gente entrava no apartamento, aqueles dez guris, o cara, assim, caía um ali, se quebrava tudo. Então, eu acho que essas coisas, assim, desafiadoras, fazem parte dessa minha construção. E, inclusive, as coisas que me chamavam atenção estavam ligadas ao desafio. Eu tinha essa coisa assim, como é que nós vamos fazer isso? Como é que nós vamos fazer aquilo? E aí, isso até os treze, não sei se eu continuo daqui, mas daqui eu fui para o colégio municipal.
P - Você me contou que, então, na escola, você começou a se ligar à música. Mas você consegue dizer que você é dali que vem essa ligação pela música? Ou em outro momento, na sua casa, a música era presente?
R - Tinha uma relação, assim. Isso volta ali nessa questão de convívio familiar. O pai sempre disse que ele não tinha o menor jeito para a música, que ele era desafinado. Mas eu sabia, eu via fotos, eu sabia que ele gostava de dançar. Quando eles eram namorados, ele e a mãe saíam para dançar. E ele ouvia muita música, e ouvia muita música boa. Então ele tinha uma vitrola. Era um móvel. E aí tu abria, assim, o móvel, tinha um prato, e ele tinha vários discos. Cara, tem uma passagem dos discos. Tu tem que me lembrar depois.
P - Agora sim.
R - Cara, a gente jogava, brincava, pegava disco de vinil e jogava pela janela pra fazer disco voador. Eu e meus irmãos. Quando o pai descobriu isso, ele fez a gente ir em cima do telhado. Ele disse: “Nós não vamos ouvir mais, vai buscar o disco”. E era Agepê, era Betânia, era Joana, era Roberto Ribeiro, Chico Buarque. Pô, o que a gente ouvia. E essas músicas também tocavam na rádio. Isso era uma coisa que me chamava a atenção, porque o que eu ouvia em casa, a gente ouvia também na rádio. Então, é uma construção que a gente acaba tendo essa... Então, acho que tinha essa ligação do pai trazer isso, talvez por ter dentro dele ali, na história dele, alguma... Ele gostava daquilo. E o pai sempre teve uma coisa assim: “Vamos sair todo mundo para jantar”. Aí não tinha carro. Aí saía o pai e a mãe, as duas gurias, a Sandra e a Bia. E aí, desde que eu... Tem um detalhe. Desde que eu cheguei em Pelotas veio conosco a Cristina. A Cristina, que é a Kitty, era filha de um casal amigo deles. Que, saindo de Dom Pedrito, que era uma cidade pequena e indo morar em Bagé com a pretensão de morar em Pelotas, era uma oportunidade para a Cristina estar em um centro maior. Então, a Cristina virou a nossa irmã. E, como eu era o mais novo, e a Cristina era a mais velha, era quase que uma ligação das pontas. Ela me adotou como o maninho querido. Então, era o pai e a mãe na rua, a Sandra, a Bia, a Cristina, o Kako, o Kiko e o Kuko. Porque o João Francisco, José Carlos e Marco Antônio, os apelidos é Kako, Kiko e Kuko. Olha que doido.
P - É dali que veio o Kako?
R - Isso. Quando o Kuko nasceu, que foi o primeiro menino, disseram que ele tinha a cara de passarinho. E era o “Cucu-Cucu-Cucu”. E aí ficou o apelido dele. Aí quando nasceu o Kiko, ele era o João Francisco. Aí o pai disse: “O Chico”. E a mãe disse: “Não, meu filho não vai se chamar Chico. Não chama o guri de Chico, então chama de Kiko”. E aí tinha o Kuko. E o Kiko, quando eu nasci, ia ser o Kako de qualquer jeito. Então, vem daí. E aí a gente tinha essa coisa assim, voltando, que o pai tinha essa coisa de: “Vamos jantar”. Então ia todo mundo pela calçada. “Vamos ouvir música”. Sentava todo mundo, botava um disco e ouvia música todo mundo junto. Eu fico pensando hoje que tem três, uma família, três pessoas no máximo, cada um no seu celular, mas cada um no seu mundo. E isso vai lá e eu fico vendo, olha que privilégio que a gente teve de poder ter esse convívio onde, cara, tu tinha que estar te conectando, o lado humano, essa relação real, ela tinha que estar acontecendo na prática. Hoje é incrível, cara, capaz de eu estar aqui e a minha filha estar ali e eu dizer: “Vamos almoçar?” E ela ali: “Só mais um pouquinho”. É incrível, mas é a nossa realidade, a atualidade.
P - Tinha, pensando nesses encontros de todo mundo, toda a família, você lembra de alguma história que alguém contou, que vocês discutiram juntos, alguma passagem marcante nesse sentido?
R - Eu lembro mais das coisas divertidas, sabe? Por exemplo, o Kuko era um guri muito desligado. Então, uma vez o pai comprou um carro, comprou uma Brasília, e aí alugou uma casa no Laranjal. Eu devia ter uns dez anos. Aí, oito pessoas na Brasília para vir para a casa do Laranjal. Então, era lá, aí, é familhão. E aí está todo mundo dentro do carro e “cadê o Kuko?” “Só falta o Kuko, só falta o Kuko”. Daqui a pouco, naturalmente, o Kuko está dobrando uma esquina de bicicleta. Só que ele vinha assim, dobrando, assobiando, olhando para cima. Todo mundo já pronto para ter… Então, tinha essa relação. Uma outra vez, a gente veio aqui, em Laranjal. Aqui, perto do Laranjal, são bairros, subdivisões dentro do bairro. Então tem o Laranjal, que é o todo, só que aí tem o Valverde, aí tem o Santo Antônio. Então, o Valverde, daqui a pouco nós vamos chegar lá naquela questão da enchente. O Valverde é o bairro mais próximo do Arroio Pelotas e da Lagoa. Aí vem o Santo Antônio, que é onde a gente está agora. Aí vem a Colina Verde, que é um pouquinho mais alta. Aí vem o Barro Duro e vem a Colônia Z3. Então, nessa caminhada, nós estávamos aqui no Laranjal, no Santo Antônio, e tinha chovido muito. “Ah, vamos conhecer o Barro Duro?” “Vamos, vamos conhecer”. Entra toda a família. E aí, no meio do caminho, um barro só atolou a tal da Brasília. E aí desce todo mundo. Cara, eu lembro dessa cena como se fosse ontem. Todo mundo empurrando e o carro mandando barro. Na Brasília, a tração puxava atrás, então as rodas patinavam no barro, no lodo, e era empurrando. E assim, quando ele saiu, mas deu aquela enxurrada, caíram uns dois, três de cara no barro, depois tinha que entrar, foi assim, todos juntos, a gente ria muito. Então, quer dizer, todo Natal era uma data em que a família estava junto, sempre contava a história do Barro Duro, que atolou a Brasília. Então, que outras histórias que poderiam ter dessa época? Assim, eu não lembro muito. Lembro uma vez que o meu irmão quase botou fogo no apartamento, que aí ele já era mais velho. E chegou de uma noite, assim, e aí ele disse que ele tava com fome, e aí ele foi fazer uma batatinha frita. E aí se prestou a descascar a batata, cortar a batata, botou na panela e dormiu. Dormiu com a batatinha no fogo.
P - O Kuko?
R - O Kiko, aí já era o do meio. Aí... Cara, daqui a pouco tava todo mundo tossindo dentro de casa. Dentro do quarto, tu ouvia o pai, a mãe tossindo, as gurias tossindo. E aí quando abriram a porta, tava aquela fumaceira, as batatinhas dele pareciam palito de fósforo, torradinha assim, era só as coisinhas. E aí ele tinha apagado, geral. Então, são pequenas histórias, assim, que tu vai lá na memória e começa a buscar.
P - E aí a escola estadual?
R - Essa aí era a escola estadual, o Pedro Osório, que era o meu primeiro grau, uma escola estadual. Aí eu fui para uma escola municipal, que aí eu fui fazer o meu segundo grau na época, que era o segundo grau. Então, quando eu cheguei nessa escola, como eu fazia aniversário em dezembro, eu era um cara muito grande, fisicamente, eu era uma criança de 13 anos, mas eu era um cara grande. E eu era o menor da turma, porque eu ia fazer 14 anos em dezembro. E os meus colegas todos já tinham 14 anos. E aí eu estava lá. Então, eu era o menor que era maior. Então, tinha uma coisa, assim, de me deixarem de fora de algumas coisas, porque eu era o menor e querer a minha presença em algumas coisas porque eu era o maior, o time de basquete do colégio. “Ah, tem que chamar o Kako”. E ali eu já tinha essa ligação que a professora chamava, fazia chamada: “Marco Antônio”. E aí sempre tinha um amigo lá e dizia assim: “Kako”, parece que tinha uma coisa do apelido e do nome, sabe? De uma relação que eu vejo assim, cara, só na escola é que me chamam de Marco Antônio. Eu já consegui construir dentro da minha família, é o Kako. Já construí junto com os amigos, é o Kako. Na escola, é o Kako. Então, isso eu acho que tem uma relação da forma que as pessoas se comunicam contigo. Como daqui a pouco tu vai chegar ali e vai dizer assim: “Ah, o Nenê”. Não, o Nenê é o Joel. Mas é que na quadra todo mundo diz: “Bah, Serviços Gerais, fala com o Nenê”. O Nenê é um cara de 70 anos, entende? Então, essa relação, ela é assim. E aí, chegando lá, toda a nossa turma, ela era, ela vinha do primeiro grau desse colégio que se chama Pelotense, Colégio Municipal Pelotense, vinha do primeiro grau, pulou para o segundo grau, primeiro ano. Então, eu e um colega, que era o Alan, nós viemos de escolas diferentes e nos juntamos com uma turma de quase 40 alunos que vinham da 8ª a 7ª, todos eles andavam juntos. E a gente chegou, então, nós éramos “os forasteiros”. E aí eu lembro que a gente tinha que ter, eu jogava muito bem basquete, o Alan jogava muito bem vôlei. E a gente, na hora já, a gente já percebeu assim: “Cara, eu e tu, tu e eu o quê? Vão nos excluir de tudo aqui, não faz parte dessa história". E uma vez, inclusive, a gente começou a ficar muito porque nós éramos muito exibidos. O pai do Alan era da Polícia Civil, então ele falava dos códigos. “Isso é um, dois, quatro, três. Isso é um, sete, sei o quê”. E o Alan vinha com esse papo. E aí ele se destacava com esse papinho dele, assim, de querer dizer os códigos e as pessoas. E aí uns guris da aula já começaram a ficar meio aqui. Aí eu já tocava um violão. Aí já tinha os encontros, já fazia violão. Aí o pessoal já cantava, já rolava um ciuminho dos que vinham dali. E, uma vez, eles queriam dar em nós, no recreio, queriam brigar. E eu lembro, eu e o Alan, um de costas para o outro, no recreio, pareciam dois caranguejos, assim, se protegendo, e aquele monte de guri na volta querendo nos dar. E o Alan dizia assim, tipo: “Para, que isso é um 7-8, não sei o que”. Então, era uma defesa, sabe, a gente conseguir traduzir isso. Para um olhar assim, tu está novamente numa situação desafiadora: ser aceito, chegar numa turma, ser quem tu é no teu ambiente, mas não sendo no teu ambiente, como é que tu consegue ser aquela pessoa que eu era lá? Cheio de amigos, queridão, banda, lidava com todos os professores. Você chega em um lugar que ninguém te conhece. Como é que você constrói isso? Como é que você constrói as coisas praticamente do zero? Depois, chegou um peruano, na metade do ano, chegou um peruano na nossa turma, que era o Pedro. Quando o Pedro entrou na sala, a gente já disse: “Pedro, vem, vem. Nós não somos mais uma dupla, agora nós somos um trio”. Porque aqui, claro, depois a gente fez o primeiro ano, o segundo, com essa mesma turma, viramos todos amigos, que é incrível, porque essa época eu tinha 14, 15, 16 anos, então está fazendo 40 anos. E essa turma, até hoje, no final de ano, se encontra. É um encontro por ano, mas essa turma se encontra, são uns 20 caras. A gente diz que é só... Tu sai de lá com a barriga torta de tanto que tu ri, porque esses caras não têm mais 15 anos, tem 55, 57, e a gente vai pra algum lugar e a gente dá risada. Então, é aquilo de tu dizer que essa construção, lá da tua faixa etária de criança, adolescente e jovem, essa construção é muito mais sólida, nas relações que a gente constrói, ela é muito mais sólida do que os teus melhores amigos da atualidade. Então, quando o pessoal diz que está chegando dezembro, já dá uma euforia, claro. Grupo de WhatsApp: “Mas onde vai ser?” “Vai ser no Cruz de Malta?” “Vai ser aqui?” “Vamos fazer na casa de um?” Então, a gente revive aquela época de criança nesses momentos. E aí o Pelotense também começou a me dar esse segundo grau, me dar mais essa coisa de eu entender que eu tinha que ser um cara mais forte, porque eu estava ali no estágio final, ou no final de um estágio, para alçar um voo maior e independente, porque é ali que aquele toquezinho de violão virou uma audição mais... “Bah, olha só, tem essas bandas aqui, esses caras viajam, esses caras fazem shows”. Aí entra aí o cabeça, que é o Leonardo, que virou um irmão nosso, nessa idade de 13, 14 anos, que o Cabeça, ele tinha os pais separados e o pai ausente. O pai morava em outro lugar. Então, ele era criado pela mãe e era ele uma irmã. Então, era ele e duas mulheres. Então, o Cabeça vinha com uma bagagem já do mundo feminino. E nós, uma família conservadora, aquela galera, o pai, a mãe, três guris e três gurias. E o Cabeça foi, eu vim pegando, o Cabeça é o cara que a gente toca violão no colégio, o Cabeça é legal. Claro, o Cabeça tem irmã, tem mãe, mas não tem pai. É um cara que vai somar numa história que o Cabeça foi adotado pela nossa família, eram os quatro, já não eram mais os três guris, já eram os quatro. Então, aonde a gente ia, o pai já tinha, cabeça está junto. “Ah, vai visitar a tua madrinha lá em Criciúma, em Santa Catarina”. Já vão os quatro guris. Então, já tinha essa relação assim. E o Cabeça era o cara que tinha essa afinidade comigo da música. Então, a gente já entrou numa fase de 15, 16 anos de pegar as tardes, estudava de manhã, pegava as tardes, destruía tudo quanto era disco. E aí, claro, a gente ouvia rock. Na época, tinha as bandas que eram Led Zeppelin, Pink Floyd, Rush. Então, tinha uma influência. E aquilo ali me trouxe um olhar à música progressiva. Que era, no estilo rock, mas era uma música, onde os elementos da música eram audaciosos. E aquilo despertava em mim o interesse. Não era... O baixo... Eu era o baixista. O baixo não era... O baixo era... Já era uma coisa mais viva, movimentada, assim. Aí eu dizia: “Bah, eu me identifico aí com o baixo”. E o cabeça tocava a guitarra. Aí a gente saiu atrás de um baterista e depois de um cantor. E com 16 para 17, nós montamos uma banda. Mas uma banda que era um fenômeno para a cidade, porque a gente fazia as nossas músicas. A gente tinha uma identidade rara, porque a nossa música era rara mesmo. E aí a gente pegou uma festa que a gente tinha no pátio da Odonto. Nós descobrimos que a menina que organizava aquela festa era a nossa produtora. Porque ela tinha toda a visão, “cara, as pessoas vão chegar aqui, tem que ter a bebida, tem que ter isso, o palco tem que ser ali, aqui a gente vai botar umas cortinas”, e ela vai fazer isso pra nós na banda. Então a banda virou um quinteto. O baterista, o baixista, o guitarrista, o cantor e a produção. E, rapidamente, nós começamos a tomar conta do território de Pelotas. Todos os bares tinham show, festa de Réveillon, Natal, era “Procurado Vulgo”, “Procurado Vulgo”, as pessoas cantavam, a gente fazia...
R - Procurado Vulgo?
P - Procurado Vulgo. Aí a gente fazia fitinha cassete, ia nas rádios, entregava a fita cassete, aí a nossa música tocava na rádio. Aí começou o conflito. Aí o meu pai começou, nos almoços em casa, o pai começou assim: “Não, teus irmãos trabalham, tu te divertes”. Eu digo, eu guardando assim: “É, mas eu me divirto, mas eu tenho que ensaiar. Todos os dias eu ensaio. Quando a gente se apresenta, a gente ganha um cachê. Eu não estou comprando meu baixo de mesada. Eu estou guardando um dinheiro que eu estou ganhando para ver se eu consigo ter o meu baixo”. Porque, na real, a gente tocava tudo com instrumentos emprestados, nós eramos tudo pelado. Não vinha das nossas famílias grana para ter uma guitarra importada, alguma coisa assim. Mas, enfim, eu acho que esse momento, para mim, ele é o que eu citava antes de... Está te aprontando para uma coisa maior, que não é muito fácil. Até tu tomar a decisão de deixar toda essa construção que tu conhece até aqui, Lavras, Dom Pedrito, Bagé, chega em Pelotas, um colégio, colégio estadual, vai construindo, começa a tocar na banda. Aí, junto com isso, ali, quando a gente foi fazer essa banda, um pouquinho antes dessa banda, nós... Quem é que nos falou? O Zico. O Zico era primo do Cabeça. O Zico tocava os artistas clássicos da raiz gaúcha. Ele tocava violão, umas coisas bem gauchescas. Uma música bem de raiz gauchesca. E aí ele dizia: "Pô, vocês que são esse negócio de música, vocês têm que tocar música gaúcha e tão tocando rock. Não sabe falar nem português direito, ou cantar, tocar música em inglês. E aí ele começou a trazer essas músicas pro nosso universo. E ali tinha uma coisa diferente nessa música gaúcha. E aí a gente fez um grupo, antes do Procurado Vulgo. A gente fez um grupo que se chamava Ayangá. A gente fez um grupo e esse grupo, mas ali tinha 14-15, Procurado Vulgo, 16, 17. Então, com 14, 15 anos, a gente tinha o Ayangá, e aí a gente foi tocar em festival. Aí a gente se destacou no festival. E aí eu era o quê? Eu tocava bombo leguero, que é um tambor, tipo aquele ali, um tambor argentino, o Cabeça tocava violão, e o meu outro irmão, que é o Kuko, que foi o cara que o pai disse: “Se a gente vai ter um artista nessa família, é o Kuko”. Comprou um violão, botou ele na aula. O Kuko aprendeu e ensinou todo mundo. Ensinou o Cabeça, ensinou eu, ensinou todo mundo a tocar. Mas o Kuko não queria a relação profissional com a música. Ele queria o banco, a faculdade, essas coisas. Aí... Então, depois do Ayangá, que a gente começou a tocar nos festivais, a gente fez essa banda, que era o Procurado Vulgo, e com essa banda nós acabamos indo embora para Porto Alegre, e vem esse momento na minha vida que é deixar essa trajetória aí, dessas cidades que eu passei, dessa primeira construção, banda do colégio, a Ayangá, banda de música gaúcha, fortalecimento e profissionalizando numa carreira uma banda de rock, que até aqui, não sei se vocês já ouviram falar, no Planeta Atlântida. O Planeta Atlântida é um festival de música que tem na Praia de Atlântida aqui, que é no litoral norte do Rio Grande do Sul, que é o maior festival. É como se fosse o Festival de Salvador, como se fosse o Rock in Rio, o Lollapalooza do Rio Grande do Sul. Então, é um mega festival, é gigantesco, é o maior festival que tem no Rio Grande do Sul de música. E aí, esse festival, ele fez um festival piloto. E nesse festival piloto, que era o Circuito de Rock, ele era eliminatórias em várias regiões do Rio Grande do Sul. Então, era um pequeno festival com dez bandas, cada festival. Saía uma vencedora de cada região. Depois, iam todas as vencedoras para Porto Alegre e faziam a final do Circuito de Rock. E nós, muito banda de sucesso: “Não, nós não queremos tocar em festivalzinho. Não, não é isso que a gente quer”. E a nossa produtora, a Bia, foi lá e nos escreveu no festival. E disse, olha, nós vamos fazer um show em Camaquã, uma cidade perto daqui. Quando a gente chegou lá era o festival. E a gente subiu, tocou uma música só. Claro, era uma música pra cada banda. Tocamos uma música, mas destruímos o festival. E ganhamos o festival. E aí, quando terminou, ela disse assim: “Viu? Vocês não queriam participar, agora a gente tem um show para fazer em Porto Alegre, com todas as melhores bandas do estado”. E aí a gente disse: “Cara, o que que essa mina fez? Como é que nós vamos tocar em Porto Alegre?” Aí Porto Alegre virou um monstro. “Nós não temos instrumentos. Nós não temos bateria”. Aí fomos para Porto Alegre. Chegamos lá no festival, com o instrumento todo emprestado, ganhamos o festival. E esse festival era o piloto, então, desse festival nascia o Planeta Atlântico. Então, isso para nós já era o motivo para eu achar assim, “cara, você está no caminho certo. É isso, é a escolha que você fez, é a atividade que você gosta, você tem que ir para Porto Alegre fazer esse festival e ficar em Porto Alegre. Então já conversa com o pai, com a mãe, já fala para os irmãos, porque é isso. Daqui para frente, tu vai começar a dar conta da tua vida. E quem vai te ajudar? A música”. Então, na realidade, eu acho que essa parte da minha vida, ela é dividida nesse... Porque ali eu comecei a... Mas eu, muito esperto, nesse momento de transição, o que eu fiz? Quando eu comecei a me preparar para morar em Porto Alegre, eu fiquei grávido com a minha namorada. Então, além de eu ir para Porto Alegre, além de eu ter que trabalhar e me dedicar para uma carreira, eu tinha uma namorada, eu tinha 20, e eu tinha uma namorada de 18, e nós estávamos em Porto Alegre, os dois, grávidos. Então, aí o bicho pegou. Porque aí a arte e a necessidade pessoal se juntaram e começaram a brigar. Aí a banda começou: “Ah, não, peraí. A gente não pode tocar por dinheiro”. “Fralda, berço, médico, ou eu saio da banda ou a banda começa a tocar por dinheiro. Eu acho que a banda tem que fazer shows por dinheiro. Trabalho com recompensa financeira”. E aí eu comecei a fazer um trabalho paralelo, tocar com outras pessoas em Porto Alegre, onde eu ganhava uma grana, e eu ganhando essa grana, eu comprei berço, eu comprei fralda, eu mantive o apartamento, eu preparei a chegada do meu filho e comprei um baixo. E aí a banda que não tinha instrumento, eu digo: “Olha, eu tenho um baixo. A gente tem que comprar uma guitarra, quer tocar lá comigo, no outro lugar, tu vai ganhar uma grana, tu vai ter a tua guitarra, cara, tu vai parar de pedir guitarra emprestada”. Então, eu acho que isso, pra mim, passa a ser sempre aquela coisa assim, ó, cara, tu tá certo. É isso. Esse é o teu caminho. Porque tu tá dando a real para quem mais te interessa, que são os teus colegas de banda, que são os teus amigos, só que tu está colocando que a vida não é só o que te interessa, que tu tens outras coisas na tua vida que são super importantes, a tua relação com a tua família que tu deixou para trás, tu está sozinho, cara, teu dia a dia não vai ser fácil, o show é legal, mas e o dia a dia? Bom, então assim acabou que a gente ficou dois anos em Porto Alegre lá com essa banda e fazendo alguns shows, e aí meu filho nasceu, e aí o pessoal voltou pra Pelotas. E aí eu fiquei por Porto Alegre. E aí comecei uma outra trajetória lá.
P - Antes disso, como foi se tornar pai?
R - Oi?
P - Como foi se tornar pai?
R - Foi maravilhoso. Foi maravilhoso, foi a melhor coisa da minha vida. Foi assim, foi a confirmação de que todo o meu aprendizado de troca de carinho, de troca de afeto, de desejo de estar junto, de querer, de aprender aquilo que eu dizia lá: “Pai, tu tem que aprender”. Cara, eu assim ó, eu dava banho, eu trocava a fralda, eu levava no médico, eu comprei o que eu achava o máximo, um baby bag, que era uma coisinha que tu botava nas costas, eu, então, andava com o meu filho no peito, assim e dizia: “Ó, tu andava com a mãe aqui antes de nascer, agora tu anda com o pai aqui depois que tu nascer”. Então, tinha uma coisa, sabe, e essa coisa de tu ter que fazer as coisas dentro de casa e ter que buscar as coisas fora de casa. Então, isso pra mim era uma coisa assim, ó, a gente tem que ter equilíbrio entre as nossas necessidades. A tua necessidade de buscar o que tu quer, mas a tua necessidade de tu dar conta do que tu precisa. Tu está morando num lugar, cara, tu precisa de certas coisas. A gente, para estar aqui, precisa dessa luz, a gente precisa hoje da internet, a gente precisa das coisas. E, às vezes, a gente fica esperando que... Ah, não, mas o mais importante para mim é a minha banda. Então, já não é por aí. [intervenção]
P - E aí, como segue?
R - E aí, segue que o Vinícius nasceu. Aí, quando o Vinícius nasceu, eu tenho uma tia, que ela é obstetra de alto risco. Ela só trabalha com gestantes que já perderam filhos, são mães muito novas ou com idade mais avançada para ser mãe. Então, eu fui direto nela, era a pessoa que eu conhecia, era a minha tia. Eu digo: “Tia, eu vou ter um filho? Como é que isso acontece? Como é que funciona? Como é que se faz um parto? Como é que se acompanha?” Então ela foi, ela disse: “Não, cola aqui”. A Vivi, que é a mãe do meu filho, a Vivi tinha 18 anos. Então ela disse: “Não, vamos fazer todo o acompanhamento, aí vai pra lá”. Ela disse: “A única coisa que tu vai gastar eu vou te dar de presente. Como eu sou tua tia, vou dar todo esse acompanhamento de presente. A única coisa que tu vai gastar é o anestesista”. O anestesista era mil dólares, o trabalho dele, porque ela tinha uma equipe sofisticada, trabalhava nos hospitais legais de Porto Alegre. Aí eu digo: “Bah, tia, mas de repente todo o pacote de médico, hospital, sai menos do que isso. Eu não vou ter condições de ir”. E ela diz duas coisas: “Trabalha mais e faz os exercícios para o parto com ela. Passa o creme, prepara ela para o parto”. Aí eu: “Bah”. Nessa época, eu tocava, eu comprava 15 dólares. Eu trocava o meu cachê assim: “Bah, com esse dinheiro eu compro 15 dólares”. Aí eu comprava 40 dólares. E eu fui juntando. Quando chegou na hora do parto, eu tinha os 1.000 dólares. Tocando e juntando, mas assim, ó, de formiguinha. E creme, massagem, prepara aqui, fortalece aqui, creme de tartaruga, não sei o quê. Cara, ffoi uma... E aí o que aconteceu? Chegou na hora do parto, prepara tudo, chama anestesista, o anestesista tá ali. Quinze minutos de parto. Sai o Vinícius. Não precisou do anestesista. Ela melhorou e disse assim: Ganhaste mil dólares. Não precisou do anestesista, ele nasceu assim, foi para o hospital, teve a preparação, entrou no trabalho de parto, ele nasceu. Então, isso para mim, prova tipo assim, a recompensa de não expor a Vivi a uma cirurgia. Porque todo parto, ainda mais hoje em dia, os partos assim, a coisa da cesariana ela é, pra mim ela chega a ser animalesca. Porque tu atravessa o natural. Tu já marca assim: “Ah, teu filho vai nascer dali a tal em tal hora”. Porque tu vai ali, tu vai dar uma injeção numa pessoa, tu vai cortar a pessoa e vai tirar o filho de dentro da pessoa, sabe? Cara, tudo isso era pra ser uma coisa natural. Então, e aí eu tive essa coisa que eu digo assim: “Olha só, cara, o Vinícius nasceu de parte natural, tá?” Consequentemente, o meu baixo, que era um baixo super simples, se transformou num baixo com alta qualidade, porque eu tinha uma grana, eu também tinha buscado recurso pra poder ter, dentro da minha simplicidade, uma estrutura bacana pra ele nascer, e dali tu vai desenvolvendo, aí tu vai construindo essa... Essa relação de tu ter um trabalho que te traz recurso, uma banda que supre o teu sonho e a convicção do teu dia a dia com uma menina, eu, um cara de 21 anos, ela fazendo 19, já com um bebê. “Hoje eu não vou no ensaio, porque tenho médico do Vinícius”. “Não vou poder fazer esse show porque eu vou tocar lá e o cara não me liberou”. Então, começa a lidar com como é que tu acomoda as coisas para que a tua vida siga. Então, acho que esse é um aprendizado.
P - Ainda jovem.
R - É. Essa idade, assim, de 21, ela foi bastante marcante para mim, sabe? Porque eu acho que esses desafios vieram todos com muita importância, tudo ao mesmo tempo. Se eu tivesse me estabilizado, se eu tivesse assim: “Cara, eu já moro num lugar legal, a minha banda tá legal, eu já consegui convencer o pessoal que não precisa ser todos os dias, que a gente pode se preparar melhor, que a gente tinha que gravar”, porque a banda tinha isso também. Como eu trabalhava e buscava uma grana, eu dizia: “Gente, vamos gravar uma música. Uma música pra tocar na rádio, a música custa dois mil, nós somos quatro, quinhentos pilas de cada um, tá aqui os meus quinhentos. E os caras me olhavam assim, diziam assim: “De onde que eu vou tirar quinhetos pilas?” E eu digo: “Cara, não sou eu. É o nosso projeto. A gente precisa brigar, a gente precisa cuidar do nosso projeto. A gente tem uma banda há cinco anos. A gente tinha 17, 16, a gente já está com 22, 23. E a gente tem uma banda, cara, e a banda é um negócio também. E a banda é quem traduz quem nós somos”. Ser autoral, que hoje, por exemplo, hoje eu tenho a minha carreira solo, digamos assim, é todo autoral. Eu vou nos lugares, eu conto a minha história, eu adoro a história de vários compositores. Mas eu digo: “Cara, eu não posso ficar nos bares, nos eventos, tocando só a obra do Djavan, só a obra do Gil, que eu adoro. Eu tenho que chegar lá e dizer, ‘olha, eu fiz essa música baseado nisso, eu penso assim. Eu botei uns acordes para te deixar alegre com esse texto que eu estou te trazendo. Eu fiz esses acordes mais tristes para te contar dessa tristeza que eu estou sentindo’, entende?” Então, essa é a nossa participação dentro da história.
P - Você fica 23 anos em Porto Alegre.
R - Depois de chegar em Porto Alegre com o Procurado Vulgo e o Procurado Vulgo voltar, eu fiquei morando sozinho em Porto Alegre. Naturalmente, me separei. Mas quando eu digo naturalmente que a mãe, a Vivi, a mãe do meu filho, voltou também para Pelotas. E aí eu comecei a ter essa ligação, que era quando a minha mãe via o brilho no olho, eu chegando, porque eu vinha uma vez por mês, eu vinha de Porto Alegre, ficava aqui, ficava com o Vinícius, até o Vinícius fazer uns 15 anos, 13 para 15, eu já estava bem melhor em Porto Alegre. E aí eu montei na minha casa, o espaço do Vini. Claro, ele sempre teve, mas aí era um espaço que ia ser a moradia dele, tipo uma negociação familiar. Olha só, 13 anos, aí eu conheci um pessoal bem bacana de Porto Alegre, que já disseram: “Teu filho vai fazer o segundo grau, ele já faz ali naquele colégio, que é o Aplicação”. O Aplicação é um colégio da FURG, da FURG em Rio Grande, da URGS, da Universidade do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Então, a universidade, ela tem um colégio preparatório para a universidade, que é anexo ao Parobé. Aí ele disse assim, um cara lá que já era da Secretaria de Educação, o cara disse assim: “Ó, cara, posso te ajudar. A gente coloca uma vaga para ele, ele faz a Aplicação, já faz o trabalho de jovem aprendiz, já começa a trabalhar, 15, 16 anos, começa a fazer. Termina, ele tem já uma indicação para começar a faculdade dele na URGS, porque ali ele vem já da URGS. Ele só vai pular do segundo grau para o terceiro grau, digamos assim”. Então, trouxe essa informação. Conversamos todos, negociamos, aí lá na casa montei o espaço. Só que quando chegou na hora que a minha mãe, Magali, teve que soltar a minha mão para eu ganhar com tranquilidade, a Vivi teve essa dificuldade de dizer: “Vá. Eu não quero que o Vini vá embora. Eu acho que a gente tem que traçar um novo plano. Ele ia fazer aqui... “E eu, naturalmente, ali, eu fiquei assim frustrado. Claro, o que eu queria? Ser um pai que ia morar com meu filho, sabe? Ter essa coisa assim de... Mas, claro, que eu entendo a questão também de ele estar tranquilo, ela estar tranquila. O que eu buscava era uma condição para que ele realmente pudesse fazer, dar um passo na vida dele e ter aquilo que todos os pais fazem, as mães, que é: “Vou dar para o meu filho aquilo que eu não tive”. Quer dizer, quando eu fui para Porto Alegre, eu tive que buscar certas coisas. E aí eu queria oferecer isso para o meu filho. Inclusive, quando eu estava no auge da minha indignação com essa situação... Então, no auge da indignação, que assim, eu tinha traçado um plano para o Vini morar comigo, moradia, nesse plano tinha o transporte que parava na frente de casa e levava para o colégio de Aplicação, tinha a aula, o almoço no lugar, o trabalho e o passaporte para a universidade. E aí eu trouxe isso para a minha família, super indignado assim: “Como é que dá para trás agora? Baita plano, não é para ela nem para mim, é para o filho, é para ele”. E aí o meu irmão me olhou e disse assim: “Baita plano para ti”. E ali ele me desconcertou. Porque eu vi mesmo, eu tava resolvendo um problema meu. O que eu faço pra achar que eu tô fazendo uma coisa legal pro meu filho? Eu sou um bom pai. Tô fazendo isso pelo meu filho. Cara, tu sentou e perguntou pro Vini se é isso que ele quer? Se esse é o plano dele pra vida dele. Não. Então é um bom plano para ti, para ele, nem para a mãe dele. Mesmo que eu achasse, ainda acho que o plano seria ótimo. Porém, então eu acho que esse aí é um aprendizado de depois eu poder dizer isso para ele. De poder dizer: “Olha só, nosso plano não vai, mas outros planos bons…” Tanto é que hoje ele tem 35. E hoje ele mora no Canadá, ele fez a faculdade dele, ele tem a filha dele. A gente comemorou junto aqui, eu, a Mari, que é minha companheira, a Vivi, que é a mãe dele, e o Ed, que é o companheiro dela. Com ele, com a Bruna, que é a esposa dele, e com a Sosô, que é a filha, todo mundo junto. Então, isso, depois de tanto tempo, vai te mostrando como os aprendizados são legais, são necessários, como te acrescenta, como a frustração te ajuda a poder enfrentar as coisas sem perder esse equilíbrio que a gente tem que ter entre a alegria e a tristeza. Entre não ficar muito triste, não ficar muito eufórico também. “Ah, consegui! Fiz isso porque eu sou legal, porque... Daqui a pouco, não, cara. Tu fez outra coisa. Tu aceitou que o plano não é o teu e tu participou do plano dele, que era continuar vindo aqui, acompanhar, o que você quer fazer, ah, eu quero fazer direito. Digo, cara, nós somos diplomatas, cara, a gente gosta de conversar com as pessoas, sabe? Ele se dava, eu via assim, eu tinha um mega orgulho, cara, o Vini chegava nos lugares e falava com os tops, os donos, os reis, e vivia com a galera da mesma forma, sem precisar ter preparação para isso ou para aquilo. Então, claro, aí ele fez um pouco de direito, voltou, ele fez um pouco de economia, voltou, até que ele disse, “pai, vou fazer relações internacionais”. Eu digo, cara, tu vai te dar nessa aí. E aí fez, se formou e está aí. Casou com a Bruna, que também era colega em relações internacionais. Foram fazer uma viagem para o Canadá para perceber como é que eram as coisas. Já voltaram de lá, assim, ó, “é mais um ano aqui, nós vamos morar lá”. Estão há cinco anos lá. Então, é um orgulho. E aí, quando tu pergunta e o lance do pai. Então, a minha relação com o Vini tem essa coisa de construção, admiração e aceitação das realidades.
P - E seu retorno para a Pelotas?
R - Então, quando eu estava em Porto Alegre nesses 23 anos, chegou um momento que eu quis ter uma carreira solo. Porque quando o Procurado Vulgo se desmanchou, que se desmanchou pra mim. Quando os guris voltaram pra cá e eu fiquei lá, eu fiquei um pouco assim, ó... “Pô, eu tinha uma banda. Eu tinha um projeto de cinco anos e esse projeto não tá mais aqui comigo. Pra eu continuar nesse projeto, eu vou ter que voltar a Pelotas e voltar a fazer as coisas que eu tava fazendo com a gurizada lá, nos mesmos lugares, tipo assim, tudo que eu já fiz”. E eu queria desafios maiores. Aí eu comecei a tocar, morar em diferentes lugares, e tocar em diferentes lugares, em Porto Alegre... Até que surgiu uma oportunidade de eu cantar num festival que se chama Moenda da Canção, que é em Santo Antônio da Patrulha. E era um lugar, uma cidade, um festival que tinha por característica que as pessoas da cidade se envolviam com os artistas. Então, as pessoas se inscreviam e diziam: “Olha, na minha casa podem ficar três. Na minha casa pode ficar um, Na minha casa pode ficar cinco”. Então, tu fazia uma música, mandava para o festival, se a tua música classificasse, tu ia defender e tu passava aquele final de semana na casa dessas pessoas, participava do festival. E eu achei que era uma coisa legal, sabe? Aí, me convidaram para ir nesse festival. E aí, eu ia cantar uma música sobre a África. O nome da música era Maputo.
P - Sua composição?
R - Não, eu era o intérprete. Eu ia como o cantor da música. E aí, nessa época, eu tocava na noite em Porto Alegre. E aí, na realidade, não era para eu cantar a música. Era para eu tocar baixo. E aí, no lugar que eu tocava, eu tinha que sair. Aí eu deixei um cara no meu lugar. Contratei um outro músico pra tocar no meu lugar. Porque eu digo: “Cara, eu quero ir nesse festival. Porque é uma outra janela de trabalho. É um grande evento numa cidade. Uma cidade pequena, mas é o evento do ano daquela cidade. E eu acho importante eu estar ali no meio”. E dois dias antes do festival, o cara que ia cantar não pôde ir. E o autor disse assim: “Eu vou tirar a música do festival”. Aí eu disse: “Não, cara. Eu canto num bar cinco horas por noite. O cachê que eu vou ganhar para tocar uma música é equivalente a duas semanas que eu toco de terça a sábado Nesse lugar. Eu preciso entrar nesse cenário. E outra, essa música que a gente vai tocar, eu canto. Se o cantor não pode cantar, eu canto tocando baixo”. Aí o cara: “Sério, tu te anima?” Eu digo: “Claro, cara. Imagina! Eu canto cinco horas por noite. Isso não vai ser pra…” E aí: “Tá. Então passa. Tu canta, a gente vai. Tu é o cantor da música”. Aí, claro, eu comecei a me dedicar, a estudar a música. A música era incrível, parecia uma ópera, porque ela tinha várias nuances. E aí eu digo: “Cara, como é que eu vou fazer isso tocando?” Porque ela precisava de uma interpretação. Aí, quando chegou na hora de ir para o festival, ele disse assim: “Ah, quando tu for cantar, o pessoal vai te apresentar. Vai chamar o intérprete da música, o artista tal, como é que é o teu nome artístico?” E eu não tinha um nome artístico. Eu era o Marco Antônio, o Kako. Aí eu digo: “Ah, bota aí: Kako Xavier”. E aí tá, chegou lá na hora, só músicas de fora do Rio Grande do Sul, artistas de Belém, do Rio, de Pernambuco, artistas da Argentina, e eu ali acostumado a tocar num reduto pequeno, bar, pizzaria. Quando eu cheguei naquilo, aquele baita palco abriu aquilo, assim, eu digo: “Cara, que pavor!” Dois telões, um de cada lado. E eu olhava do palco e me via no telão, carão, aquele ginásio lotado. Show do Gilberto Gil depois, para ter uma noção. Ali já fizeram shows do Gilberto Gil, Ivan Lins, João Bosco, infinidade de artistas grandes do nosso cenário. E eu digo: “Cara, onde eu me meti? O que eu fui fazer?” Aí a gente tocou a música e a música foi para a final. E a música tinha um trecho que dizia assim: “Branca Europa onde o papa canoniza, enquanto negra África agoniza. Branca Europa onde…” E aquilo ali dizia assim, ó: “Cara, é aí que tu tem que te agarrar, velho. Esse tem que ser o teu lema. Porque tu tá começando uma história, daqui a 50 anos, teu texto vai estar atual”. E que a 50 anos você vai dizer: “Branca Europa onde o papa canoniza, enquanto negra África agoniza”. E vai estar acontecendo a mesma coisa. Porque, infelizmente, essa é uma realidade de todos os tempos. Aí passou para a final, teve mais tranquilidade, já tinha vivido aquilo uma noite, já tinha visto os bastidores. Me preparei de uma forma... Enfim, tiramos o segundo lugar no festival e eu ganhei melhor intérprete. Quando eu ganhei melhor intérprete, muitos compositores olharam e disseram: “Opa, tem um cara novo no cenário”. E cara, assim ó, bombou a minha vida. Bom, assim a minha vida mudou completamente. Porque aí eu tinha dez músicas pra cantar em dez festivais. E aonde eu ia: segundo lugar, terceiro lugar, melhor cantor, primeiro lugar, no Musicanto, que era o grande festival, que era o festival que tinha como madrinha a Mercedes Sosa. Então, era um negócio e eu fui lá com uma música pela primeira vez e ganhamos na opinião do júri e do público. Ali foram cinco festivais, vem uma gravadora, que era do pai do Cazuza, a Som Livre, com o escritório do Rio Grande do Sul, que era a RGE. “A gente quer fazer um disco contigo”. Eu digo: “O que é isso, sabe? De uma hora pra outra”. Isso de agosto de 94 a janeiro de 95. Eu tinha, então, cinco festivais grandes, a minha presença ali, e um convite pra gravar um disco. E aí eu gravei o disco e lancei na Moenda, em 1995. Um ano depois que eu tinha surgido, eu estava fazendo um show com o Ballet de Brandsen e o Kleiton e Kledir, que eram os artistas daqui, um show lançando esse CD, com propaganda na TV, que eu já não aguentava mais, não parava de dar. Então aquilo ali, para mim, começou a ver assim: “Cara, tu continua certo. Continua fazendo”. E outra, assim, “não briga”. Os festivais no Rio Grande do Sul, que é uma grande potência, e eu percebo que, com o tempo, por ser competitivo, ela é uma fábrica de perdedores. Porque tu sai de casa para ganhar. Só que todos os teus colegas saem de casa para ganhar. E quando tu está no festival, a gente se abraça pouco. A gente conversa pouco, porque a gente está competindo um contra o outro. Diferente de um festival, onde cada um vai mostrar um pouco dessa arte, como todos esses outros festivais. Aí já foi uma outra bandeira que eu quis levantar. “Vamos parar de competir”. Só que, então, o que eu fazia? Eu já não cantava mais no festival. Eu fazia o show no festival. E, assim, eu fui criando uma relação simpática e profissional e comecei a fazer muito show. Fazer show em todos esses festivais. Bom, daí eu desenvolvi uma carreira baseada na história do tambor, baseada na música gaúcha. Consegui ter essa relação de misturar. Tem negro no Rio Grande do Sul? Tem. Ah, os negros tocam tambor. Nós temos uma cultura. Tá, mas é só arte? É só carnaval? Não, vamos pesquisar? Vamos. E esse tambor? Esse tambor é da charqueada. O que que é charqueada? Charqueada é um território onde se faz o charque. Como é que se faz o charque? Se mata o boi, se mata a vaca. Quem mata? Os escravizados. Quantos bois? Quinhentos? Quando? Num dia. Tirar a vida de quinhentos animais por dia para transformar, através daquele território charqueada, o Rio Grande do Sul numa potência onde os filhos dos donos das charqueadas ganham um mundo para estudar na Europa, para conhecer França, para conhecer Itália, para conhecer Espanha, trazem essa postura, esse comportamento europeu para o Rio Grande do Sul e transformam o Rio Grande do Sul numa pequena Europa, uma ponta do Brasil que é a Europa. O Rio Grande do Sul é a Europa do Brasil, mas também é a África. Também tem o que nós temos em Pernambuco, o que nós temos no Rio, o que nós temos na Bahia, nós temos no Rio Grande do Sul. Nós temos uma cultura da etnia negra aqui fortíssima e que influencia o povo gaúcho na moda, na gastronomia, nos saberes, na cultura, na dança, na música. Então, isso para mim virou assim: “O Kako Xavier, que estreou lá cantando uma música da África, é o cara que vai levantar essa bandeira. Então, nós vamos começar a contar para as pessoas o que nós estamos aprendendo nas pesquisas. A história da charqueada. Onde mais que tem etnia negra” Cara, a nossa fronteira com o Uruguai. Aqui a gente tem uma ligação com o Uruguai, lá da ponta. Rivera. Santana do Livramento: Uruguai e Brasil. Melo e Bagé: Uruguai e Brasil. Rio Branco e Jaguarão: Uruguai e Brasil. O que você toca ali? Candombe. Esse tambor aqui. Então, o candombe é a música negra popular do Uruguai. Como é que os negros escravizados faziam o charque? Eles deitavam esse tambor, faziam o toque para os Orixás e pediam a permissão para tirar a vida de um outro ser vivo, que era um boi ou uma vaca, se não era o castigo. Então, é através de um toque de tambor, da mão escravizada, que se constrói essa visão do charqueador que trouxe fortunas para o Rio Grande do Sul, que trouxe arquitetura, principalmente. Só aqui em Pelotas nós temos quase 40, tínhamos quase 40 charqueadas, hoje nós temos ativas como prédios que o pessoal usa para formatura, para celebrações, casamentos, o pessoal casa da charqueada. Hoje a gente tinha esse território ali, onde era feito esse trabalho. E esse trabalho resultou na riqueza da construção do estado. Então, o estado tem a participação negra, tem a participação da mão escravizada na construção através do trabalho, não no carnaval, não somente nas suas crenças. E a gente ainda assim assina essa parte da fala quando o Rio Grande do Sul hoje, é o estado com o maior número de casas de religião de matriz africana do Brasil. Quando a gente fez uma viagem contando a história dos tambores em 2013 e 2014, que fizemos o Sonora Brasil, passamos por 120 cidades em dois anos, visitando todos os estados. Quando fizemos isso, o Rio Grande do Sul era o segundo estado. O que a gente percebe nos últimos 12 anos? Aumenta. Aumenta o espaço onde se cultua a matriz africana. Então, o Rio Grande do Sul não está embranquecendo, ele até se mostra embranquecedor, mas ele não é. Ele está enegrecendo e as pessoas estão começando a perceber a qualidade das conquistas da etnia negra. O trabalho que eu faço hoje, nesse amadurecimento de 94 até hoje, vem para mostrar as qualidades, não mostrar a etnia negra simplesmente como o povo que foi escravizado, mas mostrar como o povo que troca saberes, como o povo que mexe na tua culinária, que mexe na tua roupa, que mexe no teu corpo, faz tu te movimentar, faz com que as pessoas ter trança, cabelo loiro, liso, vira dreadlock. Entende? Começa a ter uma identidade com a etnia através da valorização, que ainda é pouco, mas a gente já percebe isso. Como que a gente faz isso? Misturando pessoas negras com pessoas não negras, destacando a cultura negra. Então, a gente faz um grupo e independe da tua etnia, mas nós vamos celebrar a etnia negra. Vamos? Vamos. Vamos construir tambor? Vamos. O projeto que a gente tem aqui na Casa do Tambor já construiu mais de 200 unidades, entre o tambor praeiro e o tambor de sopapo, construídos um a um, artesanal. Já se passou. Então, tem muita gente aqui que tem um tambor, que toca um tambor, que fala sobre isso. Então, acho que essa parte foi a parte que me trouxe para Pelotas de volta, fazendo o gancho. Porque esse período de 23 anos em Porto Alegre, dentro desse período, foram três anos morando em Salvador. Eu achei que eu tinha que pegar o tambor gaúcho e levar para Salvador. Eu digo: “Olha o louco, o cara vai chegar com o tambor do Rio Grande do Sul, lá no Pelourinho, os caras vão me correr de lá”. E pelo contrário, despertou um interesse e muitas pessoas que eu conheci nesses três anos em Salvador, que ficaram inclusive com esses três, eu levei três tambores pra lá, desses tambores praieiros, e consegui deixar lá um na escola do candeal, o pracatum, que é um símbolo. Tambor de sopapo, tambor negro, dos negros do Rio Grande do Sul, o grande tambor. Tem um filme na internet sobre o tambor de sopapo, que se chama “O Grande Tambor”. Então, esse tambor tem um exemplar lá em Salvador. Então, em algum momento lá se discute a etnia negra, a cultura da etnia negra no Brasil, e a gente consegue, então, dizer: “Lá no Rio Grande do Sul tem o candombe dos negros uruguaios, na fronteira com o Brasil com o Rio Grande do Sul, onde, eu já digo, essa fronteira não separa dois lugares, ela une”. A nossa fronteira é para trazer o povo uruguaio para cá e levar o povo gaúcho para o Uruguai e a gente fazer esse trânsito através de que instrumento? Através do tambor. Claro que faz através do violão e da gaita. Todo mundo diz que o Rio Grande do Sul é a terra da gaita, do violão argentino. Claro, mas a gente precisa contar para as pessoas, além da história da gaita, além da história do violão, a história do tambor. Então esse é um papel que a gente vem desenvolvendo e de uma forma muito de celebração. Quando a gente chega nos lugares, a gente chega assim: “Gente, a gente veio aqui comemorar, porque nós também temos isso. A gente não quer dizer que o Rio Grande do Sul é o território negro, somente território negro. Não, ele é um território de diferentes etnias, onde a gente se faz presente com trabalhos, com mestres, griôs”, aqueles ali do quadro. São pessoas de notório saber aqui, de Pelotas, que tiveram o reconhecimento desse saber e ganhavam bolsas para circular pelo Brasil contando, trocando essas informações desses saberes. Ali a gente tem o Giba Giba, que é o cara que mostrou o tambor de sopapo. Primeiramente para Pelotas, depois para Porto Alegre, e por onde foi, é o artista que representava. Do lado dele, o mestre Batista, que é quem fazia o tambor de sopapo. Um fazia e o outro se exibia com o tambor de uma forma assim, um cara gigante. Gigante no sentido assim, um negro alto, grande, mas uma personalidade gigantesca para a nossa... E é pelotense. E a dona Sirley, a rainha. A dona Sirley, ela é assim ó, ela faleceu em 2021. E a dona Sirley, ela é história de Pelotas. Ela era mestre-sala, ela era bailarina, ela era dançante dos blocos de carnaval, e ela se transformou numa verdadeira rainha para nós. Onde tava a dona Sirley, todo mundo ficava. Eu tive o prazer de estar num palco de festival cantando uma música da Nossa Negritude com ela. Nós fizemos, aqui na pandemia, aqui na Casa do Tambor, um festival onde a madrinha desse festival foi a dona Sirley. Isso é uma coisa muito importante, porque eu acho que o Museu da Pessoa, que eu estou conhecendo agora, mas eu acho que ele busca ações, iniciativas em algumas pessoas. E tem momentos que essas iniciativas são raras. E elas precisam acontecer naquele momento. E nós fizemos aqui em 2020, quando deu a pandemia do Covid, todo mundo ficou isolado. O mundo inteiro se isolou, cada um no seu cantinho. E eu criei um projeto, nesse período em que eu estava sozinho aqui, eu criei um projeto que era o ‘Salve Arte Festival’, onde os artistas vinham para cá, todos de máscara, junto com os artistas, sem um real. Os artistas vinham pra cá, nós tínhamos uma equipe que filmava, uma equipe que captava o som, nós tínhamos uma produção, nós recebíamos o pessoal com lanche, com café, com frutas, e a gente fez isso sem um real. E nós fizemos 24 shows de 10 minutos. Então, esses artistas vinham aqui, mostravam seu trabalho musical, de teatro, conversavam sobre cinema, mostravam suas fotografias, os artesanatos. E o mais legal, essa minha andança pelo Brasil me fez muitos amigos. Então, eu dizia lá pro cara de Ceará: “Cara, canta uma música pra mim no teu telefone, e apresenta um artista aqui da nossa cidade do lado. Então chega ali, toca um trechinho da tua música, ‘olha, eu sou fulano de tal, sou aqui… Sou cearense’, quererá’. Queria dizer pra vocês que vocês vão assistir agora o trabalho do Sulimar Rass, um artista gaúcho”, ele tinha um release. Um artista gaúcho que vem, que tem dois discos gravados. “Então, agora com vocês: Sulimar”. Aí o Sulimar gravava aqui. E a gente fez um programa WebTV. Nós fizemos 24 shows com 24 convidados.
P - Gaúchos.
R - Os convidados envolveram nove países e nove estados. E os artistas, os 24 daqui da nossa região sul, de dez cidades. Porém, depois que a gente fez isso e apresentou, e foi super legal, super bem aceito, a gente escreveu num edital. Aprovamos e transformamos esses 24 shows em 212 shows. Foram 106 artistas da Zona Sul do Rio Grande do Sul, apadrinhados e amadrinhados por 106 artistas desses nove países, desses nove estados. E isso, para mim, foi o que eu consegui fazer na pandemia. Então, tudo que a gente está conversando, todo o aprendizado dos desafios, você fica vendo assim: como é que você consegue contribuir na vida desses artistas? O que você pode fazer nesse momento para que essas pessoas que estão... E os artistas, eu sei, eles não têm como trabalhar. Eles não têm, eles não vão receber nada. Então, como é que tu consegue contribuir? Então, o Salve Arte Festival, ele vem, claro, quando ele teve aprovação, as pessoas vinham aqui, ganhavam um cachê legal, ganhavam um cachê de show para tocar uma música. O artista que estava lá, sei lá, lá em Madrid, mandava um vídeo dele sapateando e ele estava ganhando um cachê, na pandemia, por 40 segundos da sua arte. Então, isso, para mim, para nós aqui, porque a Casa do Tambor tem um grupo de amigos que vão mantendo... Para nós, isso foi uma coisa, uma preparação digna para desafios maiores que a gente não imaginava que a gente ia ter. E que acabou que a gente acaba tendo outra. A enchente de 2024 acaba sendo outra coisa que tu diz: “Cara, o que tu faz agora? Agora não é o vírus, agora não é o ar, agora é a água.”
P - E aí, como foi?
R - Bueno, essa parte aí, pra mim, particularmente, é uma situação dúbia. Por quê? A minha filha... Eu não falei da minha filha ainda. A minha filha mora em Lajeado, que é a região do Vale do Taquari, aqui no Rio Grande do Sul. Então é a região que foi a primeira a ser atacada pela enchente. A enchente no Vale do Taquari veio com uma agressividade que, por onde ela passou, ela destruiu. A água que chegou ali mudou a geografia dos rios. O que tinha curvas virou um lance reto. Se tivesse uma cidade na frente, a água levou. Então, lá naquela região, algumas cidades foram devastadas pela água. E a minha filha me trazia muito isso: “Pai, a cidade está abaixo d'água, as pessoas não têm…” Parou tudo, porque ali foram os mais atingidos. Porém, tudo o que aconteceu ali foi descendo. E aí, descendo, passou por Porto Alegre, a lagoa toda Porto Alegre. E, descendo de Porto Alegre, passou por São Lourenço, que é aqui perto, Lagoa dos Patos, a lagoa toda São Lourenço. Então, nós aqui, nós sabíamos, “vai alagar”. E a gente teve tempo, a gente teve umas duas, três semanas do pior momento lá do Vale do Taquari até o pior momento daqui. Mas ninguém imaginava que o pior momento daqui ia ser como foi. Aqui eu estou numa região do bairro que eu estou a 7 quadras da beira da lagoa e eu estou a 10 quadras do canal São Gonçalo. Então o canal São Gonçalo transbordou e 10 quadras para lá, ele alagou tudo até aqui, 7 quadras para lá que é a lagoa. A lagoa até aqui, e aqui, na Casa do Tambor, foi praticamente o limite. Aqui, onde a gente está, a água não entrou, mas ali, na Brita, a água tapou. Nessa distância. Claro que a defesa civil veio aqui e trouxe a realidade: “A gente não sabe se a água vai ficar aqui ou se a água vai chegar no teto. Então, tem que sair”. “Não posso, como é que eu vou sair de casa? Não tem como, cara, como é que vai abandonar?” “Cara, eu não sei como, mas tem que sair” Então, eu tive que sair daqui e fiquei 28 dias na colônia aqui de Pelotas, na casa da minha sogra, com a minha companheira, com a filha dela, com o meu cachorro, com os cachorros dela, com o gato, e ali a gente ficou vendo pela TV Tudo o que estava acontecendo. A minha companheira morava aqui no Laranjal também. Só que ela morava a três quadras do canal e a cinco quadras da lagoa. E aí nós fomos lá na casa dela e a gente levantou tudo. Tudo na casa dela tinha, no mínimo, um metro de altura. E nós fomos os exagerados. A gente diz: “Capaz, não vai dar água no joelho. É uma enchente séria que está vindo, mas a água vem no joelho.” Você destruiu tudo. Ela perdeu tudo. O que estava a um metro, a água na casa dela foi acima de um metro. E aí você está naquela coisa, porque, quando você não se prepara, mesmo sabendo que vai acontecer, que a gente sabia que ia acontecer, mas, quando você não se prepara, a sua história está dentro da sua casa. As cartas de infância da filha dela. Fora a roupa, o armário, a água entra. A água é uma violência. Ela entra, só que assim, é o bairro inteiro. Então, quando a água baixou e a gente voltou da colônia e veio para cá, quando a gente foi lá enfrentar, parecia uma guerra. Porque todas as casas tinham um monte gigantesco de móveis, das coisas, das pessoas, na frente das casas. O resto, os entulhos. Mas não era a casa do fulano. Eram todas as casas. Então, tu andava numa quadra e tu via aquele monte de coisas, assim, e as pessoas todas destruídas. E isso aconteceu há um ano. E aqui, hoje, foi todo mundo quase embora. Aqui as casas foram todas quase colocadas à venda, quem tinha casa. E tu vai no supermercado, tu vai no açougue, as pessoas estão tristes, as pessoas têm medo. Vocês vão na praia agora, tem um metro de areia erguida, porque choveu mais forte há três semanas. Então, as pessoas estão assim, começou a chover, “levanta tudo, vou me mudar”. As pessoas ainda estão em pânico. Então, a nossa Casa do Tambor, por exemplo, que vinha, ia comemorar, em 2024, 10 anos. Porque eu voltei para Pelotas e, dentro desse período, voltei em 2015 para cá. Porque eu vim para Pelotas em 2010, mas eu fiz essa temporada de 13 e 14, e aí o meu grupo era de Porto Alegre, então fiquei por lá também, me separei do meu segundo relacionamento, que aí vem a história da minha filha. Mas quando eu volto para Pelotas em 2015, eu volto para Pelotas e ativo a Casa do Tambor com força. Transforma, assim, um centro cultural do bairro. Onde vem, então, esse pessoal que vem da África, vem aqui, mostra, conversa, elaboração dos projetos, vem as escolas, aí tem ensaio de bloco de carnaval, tamborado, é uma coisa crescente, uma efervescência, uma loucura, e quando tu vê assim, ó, acabou. Dá um sumiço, a gente conseguiu fazer, de 2024 até hoje, três eventos aqui, num lugar onde a gente tinha aula segunda, terça e quinta, onde a gente tinha evento final de semana sim ou não, às vezes todo, que no verão era uma loucura, porque se usava a área externa, se usava aqui onde tem o Salve Arte, que contemplou todos esses artistas na pandemia. E, hoje, a gente fica vendo assim, será que o tempo vai nos permitir retomar alguma coisa perto do que era? Sinceramente, não sei. E, quando busco saber, busco ajuda com outras pessoas, as pessoas dizem assim: “Bah, acho que não vai rolar”. Então, hoje, a sensação que se tem é que as pessoas não acreditam mais, porque as pessoas têm o danado do medo dentro de cada um de nós, e com razão, porque foi uma devastação o que aconteceu. Eu consegui vir um dia, burlando a lei, que eu não aguentei, eu vim um dia aqui, que era o dia que tinha água, aqui no pátio, e não tinha luz, era só um breu. Quando tu chegava aqui na Praia do Laranjal, o que tu via ali, logo que vocês passam o posto de gasolina, que é o posto do Guga, e dobram pra vir pra cá, o que tu via ali eram só botes. Era escuro e botes. Caminhão do exército.
P - Como foi ver essa cena? Você consegue recuperar a sensação?
R - Ah, eu não tenho como esquecer. A minha sogra, a Adri, mãe da Mari, minha companheira, e a Alissa, a gente foi lá e a gente sempre chorou muito junto, porque quando tu vê que a situação pra ti tá horrível e que tu tá bem ainda, tu tá com a tua saúde. Tu tem condições de te recuperar, mas tu tá vendo que tem pessoas que não vão ter isso. E tem pessoas que estão dentro da sua casa, com água no peito, e aquela água tá com cobra, com vaca morta, com resto de obra, lodo. Como é que tu vai? Hoje a gente conversa, a Adri, a minha sogra, ela diz assim: “Não, eu deletei esse momento da minha vida. Porque foi tanta coisa ruim ao mesmo tempo, que é como se tu estivesse apanhando e tu tivesse apagado no primeiro soco”. Então, o que eu vejo hoje é que parece que tu fica assim, a sensação que tem. Tu guarda o que tu sentiu na memória e, quando acende uma pequena luz de que aquilo pode acontecer novamente, tu já fica olhando pra ver por qual caminho tu vai sair. Sabe quando tu tá numa sensação de pavor que tu diz: “Como é que eu consigo sair dessa situação?” E aí tu procura, e aí a sensação que se tem é que aquela tristeza que a gente sentiu vindo pra cá, aquele choro que tu já não tem, assim, vou chorar, tu tá chorando. Então, tu já está chorando porque tu lembra do teu vizinho, porque tu lembra do seu Hernani aqui. Ele e a Dona Lípia, que depois disso a Dona Lípia faleceu. E a minha vizinha, a minha mãe de Casa do Tambor, desde que eu cheguei aqui, está ali. Era a pessoa da conversa das flores, das laranjas, pelo muro. E a gente botava 40 tambores aqui e dizia: “Dona Lípia, como é que está o barulho?” “A gente nem ouve nada.” A gente sente falta. Entende? Então, essa relação do que é muito bom e do que é terrível é o novo momento, é o novo aprendizado. Como lidar? O desafio já não é mais aquele de eu vou para Porto Alegre, ou eu vou tentar alguma coisa em Salvador. Então, acho que, quando a gente volta, no que a gente se agarra hoje, no que a gente está vendo ali na rua? Que essa grama que ficou colada de lodo, ela está verdinha de novo. Aquela árvore que estava no chão, tu bota aqui, puxa uma corda, e olha como ela está bonita hoje. Ela está que está tudo vivo, que está, não está mais aqui, a dona Lippia faleceu, aqui tinham 21 moradores fixos o ano, hoje tem seis, porque o pessoal disse: “Cara, não vou passar por isso de novo. Não vou passar, não vou pagar para ver". E olha que a gente está numa das partes que é o limite do avanço do canal e o limite do avanço da lagoa.
P/2 - Kako, foram quantos dias fora, assim, do Kako?
R - Eu fiquei daqui...
P/2 - Ah, desculpa, você olha para a Luiza? Isso.
R - Eu fiquei aqui, eu fiquei fora daqui 28 dias. E fiquei fora daqui num lugar seguro, com todas as dificuldades que nós passamos quando a gente foi lá, porque a gente foi lá com a cabeça aqui, mas a gente sabe que nós não representamos o choque real da enchente. A gente sabe que essa água desceu do Taquari. Essa água carregou a vida das pessoas. Essa água chegou em Porto Alegre. Ela invadiu inúmeros lugares, bairros de Porto Alegre, como nunca se imaginou. E ela foi alta. A água parou… Na Casa da Mari, a água parou em um metro, um metro e dez, e ficou. Não subiu e desceu. Ela ficou mais de um mês que ficou com o metro e dez. Depois que a água abaixou, tu abria a chavezinha da tomada e caía a água. Eu digo: “Como é que está a fiação elétrica? Como é que tu vai ligar alguma coisa? Como é que tu vai estar dentro desse ambiente de novo?” E aí ela, que é o meu convívio, o meu amor, ela que tem as reações sensíveis, tanto pro lado da felicidade, ela vê assim: “Cara, acabou tudo. Tudo que tinha aqui não tem mais. Agora tu tem que pegar uma máquina de lavar, uma geladeira e um colchão”, que foi o que a gente atinou realmente em tirar. Que não era só erguer, e começar todo o entorno disso do zero. E aí, hoje, o que acontece? Ela mora no centro. Então, para manter a construção que se tinha aqui, de tu ter a tua relação amorosa, de tu ter o colégio da filha, era aqui. Vou buscar a Liz na escola, vai de bicicleta. Não tem escola, não tem Liz, não tem bicicleta. Quer dizer assim, agora tem, mas é lá no centro, é em outro lugar. Então, a maioria das pessoas que passaram por isso só permanecem porque é a única saída, porque, se tivesse uma oportunidade, certamente não estariam. E aí eu amo esse lugar. Esse lugar, eu tenho as minhas lembranças de oito anos de idade, dez anos de idade, doze anos. Aí eu vou pra Porto Alegre, aí eu venho pra cá, e eu chego aqui, eu digo: “Vou lá no Laranjal comer um pastel”, e eu digo: “Cara, eu tinha que morar aqui”. Aí chega 2010, eu venho e moro aqui, e consigo dar o peitaço da minha vida, comprar uma casa, pagar em 30 anos, porque eu vou ficar 30 anos nesse lugar. Está tudo certo, está tudo como tem que ser. E aí acontece isso que hoje te diz assim: “Cara, está na hora de sair. Teu pai, guerreiro, te ensinou que o melhor guerreiro é o que sabe a hora de sair da guerra e que tu tens muitas coisas pra fazer.” Hoje eu fico vendo assim, o projeto que a gente tem aqui, Tamborada, hoje ele tem mais de 30 pessoas de diferentes cidades, etnias, gêneros, lá na Praia do Cassino. Um lugar não atingido, um lugar atingido, mas não na proporção que foi atingido aqui. Mas um lugar onde as pessoas usam o tambor pra recuperar traumas. Perdas, separações, tristezas. A gente se reúne pra tocar o tambor e o tambor vai curando. O tambor é meio mágico. Vai curando, vai conectando as pessoas, assim, sabe? E isso é legal, não tem idade. Não tem idade, não tem cor. Então, eu acho que isso é uma corda que fica me puxando. “Por que você não vai morar lá, perto dessas pessoas?” Eu digo: “Bah, cara, mas é correr sem pé. Meus pés estão aqui”. Então, existe essa raiz, parece que é a do lugar e que eu digo: “Cara, calma, vai chegar um momento que não é só tu, que as pessoas vão se recuperar. E tu vai ser um porto para que essas pessoas possam ter um apoio também dentro disso”. E acho que tem uma parte que eu ainda não falei, que é a parte da minha filha, que é a minha filha Antônia. A Antônia, ela veio pra cá comigo em 2010. Então, a Antônia nasceu em 2007, ela nasceu em Porto Alegre, e, quando eu vim morar com a mãe dela e com ela aqui, a gente teve um momento bem crítico, porque a gente descobriu um problema no coração dela. E aí a gente viu que a gente ia ter que passar por uma cirurgia quando ela tinha de 3 para 4 anos. E, a princípio, era um cateterismo, uma prótese. E que, na realidade, acabou sendo uma cirurgia de peito aberto... E isso, para mim, era uma coisa que eu vinha para cá, tudo vai acontecer, porém, toda madrugada era hora de levantar e botar o ouvido perto do nariz dela para ver se estava tudo bem com a respiração. Claro que aí veio a cirurgia, deu tudo certo. Ela é uma menina, uma mulher hoje, incrível. Ela teve um momento com o meu pai que ela começou quando ela tinha, assim, uns sete anos, mais ou menos. Ela revelou que a cicatriz que ela tinha no peito começava a incomodar, porque era só ela que tinha. E o meu pai fez também uma cirurgia de coração, há bastante tempo atrás. E ele olhou pra ela e disse assim: “Que isso, cara. Ninguém tem o que nós temos. Essa aqui é a nossa tatuagem de coragem. O que o vô passou e tu passou, ninguém na nossa família passou. Só nós. Então essa aqui é a marca que a gente vai carregar pra toda a vida. E só quem tem somos nós.” E ela começou a trazer aquilo com orgulho. Quando a gente, por exemplo, vai viajar no verão, e ela já é uma mulher, aí ela bota um biquíni, e aí tu vê aquela cicatriz ali no meio, e ela anda na praia com uma coisa, como se aquilo fosse um orgulho, assim, sabe? E é no peito, sabe? É uma coisa assim de... E eu tenho um aprendizado maior de tudo com ela, que é uma distância que eu tive dela indesejada. Me separei dela, ela tinha 4 para 5 anos. E o meu amor por ela me carrega, nesses últimos anos, de uma forma assim, triplicada. Porque tu não tem... Quando tu acerta o casal, que ele não vai andar mais junto, mas ele vai se respeitar, ele vai se acompanhar, ainda mais que ele tem um elo, que é um filho. Quando tu acerta isso, e tu quer... Agora, quando tu não quer, e tu consegue ter cada momento que eu tenho com ela, pra mim, cara, é a viagem dos sonhos. E, pô, eu tô três dias com ela lá na cidade dela. É a viagem dos sonhos. Eu vou pra lá, eu vou bem, eu chego bem, eu fico esses dias bem e, quando termina, eu digo: “Cara, ainda bem que eu passei esse tempo com ela.” Porque a minha vontade era de estar sempre junto com ela. Hoje eu sofro porque ela já tem 18 anos. Então, tipo assim, esse tempo dos 4 aos 18, que a gente não teve convívio diário, mas a gente construiu, nos primeiros 4 anos, uma relação muito forte, porque a gente se trata muito bem, a gente se cuida, a gente torce muito um pro outro, conversa muito. E eu sempre fiz esse movimento de ir até ela, mesmo sendo longe da cidade dela, de ir até a cidade dela, pegar, trazer, ficar, levar de volta. E agora, nos últimos anos, ela já tem a independência, e sinto, me sinto feliz porque ela vem, ela enfrenta cinco horas para ficar um dia aqui e mais cinco horas para voltar. Então, quer dizer, são as construções que a vida coloca pra ti, e tu vai lidando com elas e tentando assim, ó... É isso. Não é uma perda. É um distanciamento. É um distanciamento que tu gostaria de não ter, porque tu gosta muito de estar junto. Mas precisa entender que ela, lá onde ela tá, com a mãe dela, ela tá super bem. Ela é massa, uma pessoa humana, uma pessoa que cuida das coisas. A gente consegue conversar de muitas coisas. Eu mostrei o Salve Arte para ela e aí ela disse... Eu disse: “O que tu mais gostou?” Pô, 200 artistas. Ela disse: “Eu gostei da Trupe da Dança”, que é de um bairro aqui de Pelotas, o Dunas, que são quatro crianças de 13, 14 anos, que dançam, fazem uma dança do passinho, de coisas assim. E eu acho legal isso, sabe? Porque ela disse assim, ó: todos os artistas se produziram para estar em cena, e eles não estavam preocupados com a produção, eles estavam dançando, se olhando, cheio de códigos. Eram duas duplas, dois meninos e duas meninas. Então, eu fico vendo que, quando a gente consegue dividir, compartilhar esses momentos de celebração, de coisa boa, de como isso tem valor, eu acho que está valendo, sabe? Então, é isso.
P - Ver, fazer essa visita rápida, você falando no escuro, sem luz, enquanto estavam com as enchentes, qual que era o som e quando que recupera esse som?
R - É.
P - Dos passarinhos.
R - É, isso tem muito a ver com a normalidade. Tipo, quando que a normalidade voltou? Quando eu vim aqui, nós viemos aqui, eu e a Mari, numa noite dentro da pandemia, dentro da enchente. Nós não... Não era pra gente ter vindo. Porque a gente tava com um... A gente estava com um sinal que na estrada do Laranjal, no Trevo, depois da ponte, fechou. Então, da ponte para cá, tinha um isolamento. Quem estava aqui não podia ir para o centro. E aqui é um caminho de três, quatro quilômetros até chegar na parte onde já começava a água, que era a parte onde estavam esses botes. Então, o que a gente viu ali era um filme de terror. Tu não tinha uma luz, tu tinha um silêncio, porque as pessoas não podiam estar ali. E, dentro desse silêncio, a gente tinha ainda a melancolia de apitos. Apitos de resgate. Então, esses botes, por exemplo: uma casa com água até o teto, um cachorro em cima do teto, um apito, e aí os botes seguem, porque muitas pessoas resistiram, com medo que suas casas fossem saqueadas. E a gente sentia assim, a gente estar num lugar. O que aconteceu? A gente veio pra cá pra ficar tranquilo. Bobagem? Muita. Por quê? Por causa de coisas materiais. Que não estavam aqui, mas estavam lá. Estavam seguras. E a gente veio aqui. O que acabou acontecendo? A gente não dormiu. Porque a gente ficava um pouco, ia aqui na frente, tem isso aqui de água. Aí ia pra lá. Aí voltava, tem isso aqui de água. Cara, se a gente dormir amanhecer, a água tá aqui. E aí tu não consegue sair com o carro, e já não vinha por aqui, já saía por trás, um bairro que tem aqui o Amariles, tudo alagado. Então, acabou que a gente veio pra sofrer. A gente veio aqui pra tentar ficar calmo, porque tava pra ver como é que tava, e a gente veio aqui passar uma noite de ir presenciar a realidade. A realidade é que só os voluntários, só as pessoas que pegaram e se dedicaram a trabalhar, porque teve muita gente que foi para os abrigos e nos abrigos as ações de voluntariado. Quando eu cheguei aqui em Pelotas, em 2010, em 2012, teve uma enchente, que foi menor. Eu tinha uma caminhonete e consegui juntar algumas comidas, porque tinha uma igreja aqui em cima, que eles diziam: “Olha, o Pontal da Barra não tem, mas tu vai até um lugar e bota num bote. Como tem um carro que é um pouco mais alto, dá pra tu ir mais perto. Tu vai e voa”. E agora, só que dessa vez, tu não tinha o que fazer. E dentro dessa... Não tinha o que fazer nessa distribuição, porque não era... Não tinha o acesso até o... Estava tudo. Só quem podia fazer essa movimentação era o exército que estava aqui. E a ordem do exército era, junto com a Defesa Civil... “Ah, mas o meu carro”, vizinho aqui, “o meu carro”. Ele disse: “Cara, é só o teu carro. O seu Hernani aqui teve que sair no colo brigando. Ele não saiu, ele foi retirado. Então, dentro dessas realidades, quando tu vê assim, “ó, tá, passou”, “baixou a água, vou dar uma caminhada”. Pra quê, cara? Aí tu vai aqui, caminhando em direção da praia, e tu só vê um monte de coisa. Todas as gramas, elas têm uma pasta de barro. E que deixa a grama e um cheiro de podre da lagoa. Uma coisa assim... Que tu fica vendo, cara, quando que isso... Quando que alguém aqui vai olhar pro outro e rir? Quem vai contar uma piada? Então tu fica com uma coisa assim, ó... Acabou, o assunto das pessoas é esse, é um assunto terrível. Eu perdi tudo, eu não sei o quê, o que eu vou fazer? Como é que eu vou isso e aquilo? Eu vou sair daqui, eu vou... Então, eu acho que eu voltei pra cá, 8 de maio. Eu voltei pra cá dia 25 de junho do ano passado. Eu voltei pra casa e aqui eu fiquei mais ou menos, eu acho que até... julho, agosto, eu acho que até setembro. Setembro, quando começou a entrar o que, para nós, seria o momento mais lindo do ano, que é a entrada da primavera aqui, porque aí, assim, tudo ganha vida. Ali, parecia que estavam abrindo os olhos, parecia que a natureza estava abrindo os olhos. Aí aquela grama já tinha pego uma chuva, já tinha... o que estava alto já tinha sido cortado, aquele cheiro já estava indo um pouco. Mas eu acho que é mais ou menos isso, acho que uns três meses depois que eu voltei para cá, que eu consegui ver e ter visita de novo. E a visita sempre tinha que ser de lá para cá, e ela era muito difícil de tu lidar, porque eu tinha passado por uma pandemia e, na pandemia, eu tive uma trombose na perna direita. Então, durante a pandemia, tive que ficar quatro meses parado. E a dona Lípia vinha com a chave e fazia comida. Dona Lipa era enfermeira, mas já era aposentada. Então, de certa forma, ela via que tu estava com a luz acesa da noite, me trazia um maracujá. Era uma mãezona. Então, dentro dessa realidade, era para todo mundo. A pandemia atingiu todo mundo, a enchente não. Então, algumas pessoas que vinham fora da realidade da enchente chegavam aqui e tinham esse papo natural. Tinha essa conversa normal, mas o mercado já não foi. “Ah, colonial, saíram dali.” Estão lá perto do colégio, lá em cima, na estrada. “Ah, uma ferragem. Ah, dois guri, começando a ferragem. Perderam tudo.” Então tu fica vendo assim, ó... é outro tipo de conversa. Como eu tava num limite, como eu te disse, eu tô atingido, mas eu não tô preso, eu não tô atacado pela enchente. Sabe? Ela chegou, mas ela não teve essa coisa, pra mim. O que ela teve é emocional. Aí tu vê, por exemplo, a escola que tem aqui, o Barreto, que é uma escola que já veio aqui três, quatro vezes. Eu tenho uma música que abre um disco que foi feito com os alunos do Barreto, que diz o refrão: “Eu sou de um lugar legal, eu sou da Praia do Laranjal.” E foi muito legal, porque a gente construiu essa música juntos. As crianças falavam uma frase, a gente canta no formato de quadrinho: um canta e todo mundo repete. Super bonito. E aí eles vieram, eu gravei uns depoimentos deles: “Eu queria vir na Casa do Tambor todo dia, segunda, terça, quarta, quinta e sexta.” Isso tudo está no registro da música. A gente colocou na abertura da música. Só que, cara, a escola ficou totalmente debaixo d'água. Então, é uma coisa assim... Hoje a escola está aberta, mas está todo mundo com medo, porque a escola é muito perto do canal e muito perto da lagoa. Então, acho que é isso. Acho que essa normalidade natural, os pássaros... Claro, eu já fico vendo assim, eu já peguei um verão, depois de setembro, já peguei em verão, que foi legal. Eu, particularmente, tive que buscar esse acalanto lá, na Praia do Cassino, com esse grupo, porque o grupo que a gente tinha aqui durante a enchente também se desfez. Porque as pessoas param de fazer as coisas, começam a fazer outras coisas. Aquele nosso ensaio de segunda-feira já não tinha mais. Então, o que aqui já era maduro, lá está começando. O que era maduro aqui, caiu do pé e apodreceu.
P - E, Kako, só teria muitas, muitas perguntas, mas um ensinamento do tambor para a sua vida?
R - Um ensinamento do tambor? Ah, o ensinamento, o principal: é resistir. É resistir. Eu estou aqui porque o tambor está me dizendo, todo dia: tem que resistir. Quando a gente fala da resistência, se tu pegar, por exemplo, assim, pega uma situação: o escravizado mais maldito, aquele teimoso, aquele que não aceita ser tratado do jeito que está sendo tratado, ele é mandado para a charqueada. Ele pode estar lá na Bahia. Então, ele vem num navio negreiro, entra pelo porto de Rio Grande, vem pra Pelotas e trabalha na charqueada. Por quê? Porque na charqueada ele vai trabalhar sete horas com o joelho no sal. E ele vai trabalhar quatorze horas por dia, e ele tem uma previsão de sete anos de vida. É o trabalho mais maldito que tem, porque o que é que tu faz? Como é que é o teu dia? Mata a vaca, tira a carne, tira as vísceras, tira o couro, e aí, tira o couro: vai nascer um tambor. Morre o animal: vai nascer o tambor. Derruba a árvore: vai nascer um tambor. Então, pra mim, tambor traz essa identidade. Esse tambor aqui, ele tem uma árvore aqui, uma vaca aqui. Ele sabe a doação de órgãos que continuam a vida no outro corpo? É aqui. Então, para nós, dentro dele, a gente tem uma sonoridade que, por exemplo, entre o profano e o sagrado. O sagrado: tu coloca esse tambor em contato com a terra e tu toca pros Orixás. E tu pede permissões e tu atua sob respeito e obediência. O profano: tu bota esse tambor de pé, veste ele e vai pra festa do carnaval. E ali está todo mundo dançando, bebendo, e o tambor está ali no meio, causando aquilo. Então, essa ligação que a gente aprendeu a ter, principalmente na cidade de Pelotas, principalmente com esse tambor, eu acho que traz essa identidade. O carnaval o que é? O carnaval é a celebração de um ano duro. Quando chegar o carnaval, a gente faz uma festa e pega um gás e enfrenta o próximo ano. A nossa devoção, aprendizado de ancestralidade, a nossa devoção, ela tá nisso assim. O respeito que tu tem que ter: qual é a trilha sonora do respeito, da matança? É o toque do tambor, é a mão humana, preta, escravizada, tocada no couro do animal. Quando a gente toca um tambor de sopapo e conta as histórias, e canta histórias, tu já tem essa sensação, já te remete para um lugar que te faz participante de resistência. Tu valoriza mais a etnia negra quando tu ouve um tambor. E eu acho que tem uma coisa, assim, de tu querer mostrar para as pessoas que aquilo ali é de todos os lugares, e aquilo ali é de todas as pessoas. Quando as pessoas teimam em dizer: “Ah, isso é coisa dos negros…” Isso é essência dos negros, mas é de todos nós. Ele reproduz o que todos nós sentimos sempre, que é a batida do coração. Todos nós que estamos vivos temos coração. Os animais têm coração. Então, algumas lendas que a gente tem do tambor... Uma, por exemplo, é a lenda do tambor de sopapo que, quando os escravizados iam apanhar dos donos das charqueadas e das lavouras, porque as pragas vinham — lavoura, praga de gafanhoto... Um dia, um escravizado percebeu que ia chover e que tinha dado um trovão. E que, quando tinha dado esse trovão, a praga do gafanhoto, a nuvem de gafanhoto que vinha devastar com a lavoura, foi embora. Aí ele botava um tambor dentro da lavoura. Quando vinha a praga do gafanhoto, a nuvem, eles tocavam o tambor, porque parece um trovão. O som parecia uma trovoada. E os gafanhotos iam embora. É uma lenda? É uma lenda. Mas é um ensinamento. Então... É um monte de coisas assim. Que tem de... Quando a gente vai aqui, pega, por exemplo, uma área como essa aqui. 50 metros quadrados. E aí tu bota oito tambores desses e vinte daqueles. E bota 20, 30, 40 pessoas conectadas com o som que está acontecendo ali. Não tem, a gente ainda sacaneava, porque a gente botava um tamboreiro aqui, fazia toda a volta na casa, até aqui. Então, quem entrava aqui estava dentro do som dos tambores. E aí tu começava a falar uma música… “Meu pai, Ogum Beira Mar.” Cara, não tem. As pessoas começam a rir do nada, como tu tá rindo agora. As pessoas começam a sentir que, cara, tem alguma coisa positiva dentro de mim que tá querendo sair. Aí as pessoas dançam, as pessoas se abraçam, as pessoas riem. Então eu vejo assim, cara, isso é a essência de alguma coisa que tá tocando em ti. Não é só o ritmo musical, não é só essa relação. É uma coisa que eu digo assim: “Cara, como é que tu pega isso, bota dentro de ti, e aí tu tá no trânsito, e aí um cara te fecha e desce com uma arma, como é que tu lida com esse louco? Tu tens um aprendizado. Não foi nada. Calma, vai em paz. Não foi nada, tudo bem. Eu errei, tu errou, mas tá tudo bem”. Como é que tu lida com essas coisas? Bah, recebe uma ligação: “Fulano morreu”. Tu te desespera. A gente precisa se preparar para as coisas, sabe? E algumas pessoas usam o tambor como uma preparação. Porque o que acontece quando tu fica nervoso? O teu coração dispara. E aí tu ouve o teu coração. O que acontece quando tu ouve o tambor? Tu tem essa relação, tu diz: “Pô, meu coração tá disparando, meu coração tá ali e tá disparando”. Eu não sei, eu aprendi a sentir assim e agradeço o momento que eu entrei nessa jornada de... Sei que foi através do contrabaixo, que é um instrumento grave, que reproduz a sonoridade grave de um tambor. Sei que foi através dali, mas quando chegou num instrumento específico, eu comecei a dizer assim, ó: “Cara, segue esse cara aí. Acredita nesse cara e segue esse cara. Procura saber mais sobre ele.” E aí, sabendo disso, o que aconteceu? Cara, as coisas começaram a acontecer na minha vida. “Ah, eu vou para a Bahia.” Quem é que me levou para a Bahia? Tambor. Todos os estados do Brasil, eu fico vendo... Pô, se eu fosse um arquiteto, será que eu conheceria o meu país? Será que eu seria contratado para conhecer o meu país, para contar as minhas histórias sobre a minha profissão, sobre a minha pesquisa em todo o meu país? O tambor fez isso para mim.
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