Entrevista de Ely Daniel dos Santos Silva
Entrevistado por Elias Mello e Ana Paula Kummer
Maceió, 19 de junho de 2025
Projeto Memórias que não afundam
NOS_HV003
0:29 P/1 - Ely, muito obrigado por ter aceito o nosso convite em realizar essa conversa para o projeto Memórias que não afundam. Eli, para começar, gostaria que você se apresentasse dizendo seu nome, local e data de nascimento?
R - Ely Daniel, morador do Mutange, 15 do dez de 2001.
0:50 P/1 - Ely, qual são os nomes dos seus pais?
R - Inajara dos Santos Silva e Derivaldo Silva.
P/1 - Os seus pais, eles trabalhavam, trabalham com o quê?
R - O meu pai era motorista na época, e ainda é. E minha mãe na época, ela era zeladora da igreja Batista do Pinheiro.
1:07 P/1 - Ely, como você descreve seus pais?
R - São pessoas muito batalhadoras, pessoas que nunca deixaram faltar nada dentro de casa, apesar das situações. Foram pessoas que passaram por momentos muito difíceis na vida. Minha mãe nasceu numa realidade onde a fome era presente, do tipo de pessoas que infelizmente iam para a escola para ter um alimento, muitas das vezes. Meu pai também passou por várias situações difíceis, ele perdeu o pai dele aos 14 anos por alcoolismo, então, dos 14 para a frente, ele só teve a mãe presente, que precisava trabalhar, precisava manter a casa, então era uma dificuldade bastante grande. Então, foram pessoas que viram a realidade que eles estavam e decidiram que fariam o melhor possível para que os filhos tivessem uma vida decente, uma vida que não necessitasse estar buscando trabalho fora, não necessitasse estar em busca de algo para… que possa estudar e ter uma carreira na vida, ter um estudo, ter uma dignidade.
02:18 P/1 - Como eles se conheceram?
R - Meu pai e minha mãe, eles faziam parte de torcidas organizadas, são dois torcedores do CSA [Centro Sportivo Alagoano], eles moravam próximos, minha mãe morava numa parte de Mutange e meu pai morava em outra, só que eles nunca estiveram tão próximos assim. Mas eles tinham amigos próximos e nessa ida e vinda, eles acabaram se conhecendo através de amigos e também de estar em locais relativamente próximos.
2:50 P/1 - Ely, você tem irmãos?
R - Eu tenho uma irmã mais velha.
P/1 - Como é sua relação com sua irmã mais velha?
R - Aquela relação de irmãos, a gente briga muito, mas é minha companheira para a vida. A relação que eu tenho com a minha irmã é muito linda e eu posso dizer que ela é muito linda, porque a gente se protege muito, se cuida muito, apesar de ter pirraças que temos porque somos irmãos, mas é uma pessoa que eu carrego no coração para sempre e que sempre está aqui para me apoiar, sempre está aqui para me proteger, para dizer: “eu estou aqui, estou lhe apoiando, estou lhe dando forças”.
P/1 - No caso, é uma irmã?
R - É irmã.
P/1 - Você poderia falar o nome dela e a idade?
R - Elaine Cristina, ela tem 25 anos.
3:43 P/1 - Ely, o que é que você sabe sobre a origem da sua família?
R - Por parte da minha mãe, o meu avô, que já faleceu, era de ______dos Santos, ele nasceu aqui no no bairro do Pinheiro, e na época que ele estava no exército, ele costumava fazer caminhadas, que ele fazia parte da cavalaria, ele acabou conhecendo minha avó, aí eles se relacionaram. Minha avó na época já tinha uma criança, um filho, devido de… um abuso. Aí, eles se conheceram, se gostaram e se juntaram. Com a minha parte paterna, eu não conheço muito a história de como meus avós se conheceram, ou como aconteceu essa relação, mas eu acredito que tenha sido em algumas caminhadas que a minha avó fazia. Meu avô, se eu não me engano, ele era de Recife e aí ele veio morar aqui e tudo. É isso.
P/1 - Você lembra o nome dos seus avós? Só lembro o nome da minha avó paterna, o nome dela é Maria do Carmo Silva. O nome da minha avó materna é Josenete Maria dos Santos.
5:15 P/1 - Ely, quais eram os principais costumes na sua família, por exemplo, assim, comidas, cheiros? Assim, como eles se divertiam, lazer?
R - Olha, a minha família é a típica família brasileira, gostava de se divertir. Eu morava numa vila de famílias e várias casas, então estava sempre lá a família unida, apesar dos” arranca rabo” que tinham várias vezes, mas sempre foi uma família que buscou ter união. E uma das coisas que quando eu falo de morar no Mutange, e essa questão de família, é quando a gente se juntava para descer para a lagoa para tirar sururu, minha família tinha muito esse costume para descer para a lagoa, tanto para tirar sururu como pescar. Tanto que hoje em dia eu sou apaixonado por pesca, foi uma arte que o meu pai passou para mim, que ele já fazia isso quando ele era mais novo, ele descia para a lagoa, tirava sururu, catava caranguejo, ia pescar e foi isso que ele passou. E foi isso que me fez se apaixonar por aquele ambiente. Uma imagem que me vem muito a cabeça, que eu sempre falo, é que quando eu estava muito triste, por alguma situação que acontecia na vida, eu parava de frente para a minha casa, porque a minha casa era de frente para a lagoa e eu olhava o pôr do sol e era algo que me acalmava muito, era como se Deus estivesse próximo de mim naquele momento. Então, a imagem que está muito fixada na minha cabeça, esse momento que eu olhava para a lagoa, olhava o pôr do sol, respirava fundo e pensava: hoje foi difícil, mas amanhã é um novo dia. Então, essas imagens vêm muito na minha cabeça, também a questão de a gente descer para a lagoa para pescar, meu pai me ensinando a andar de bicicleta, jogar bola, minha mãe também. Sempre foram duas pessoas muito parceiras e estiveram muito presentes na minha criação. E brincadeiras que a gente tinha, porque como era uma vida de família, tinha muitos primos, a gente se divertia muito andando na barreira, que era como a gente chamava. E até nessa época de chuva agora, tinha muitos riscos, porque tinha deslizamento e tal, mas eu sou do tipo de pessoa que pode estar caindo tempestade lá fora que eu estou dormindo, ai minha mãe ficava muito preocupada, mas aí eu relaxava, ficava de boa. Mas existiam momentos de crise realmente em que você vê que era o momento em que a pessoa realmente se juntava, se unia. E nesses momentos de crise que a gente vê quem são realmente as pessoas que estão com você, né? E acontecia isso. Outra coisa que eu lembro, essa época agora de São João, meus pais faziam um palhoção lá, era muito divertido. Teve até uma época que a temática do palhoção era homens vestidos de mulheres e mulheres vestidas de homem, e foi uma diversão, veio gente de todos os bairros, uma galera do Pinheiro desceu para o Mutange para ver e se divertiram muito. Então são essas memórias que me trazem do Mutange.
8:28 - Ely, sobre o seu nascimento, os seus pais e contaram como foi o seu nascimento e como foi que eles deram o seu nome?
R - Eu nasci na Maternidade Santo Antônio, inclusive, foi um parto bastante complicado, porque eu nasci colado junto com a minha mãe, os dois nascimentos foram cesáreas porque a minha mãe não tinha passagem, e o meu foi foi mais difícil justamente por conta que eu estava colado. Aí, se eu não me engano, eu tive que ficar entubado um dia, mas depois ocorreu tudo certo. E minha mãe brinca comigo que ela me concebeu no dia do aniversário do meu pai, que era dia 29 de janeiro, e aí no dia 15 eu nasci, no dia 15 de outubro, que também era o aniversário de uma tia avó minha, ou é tia bisavó, se não me engano, foi no mesmo dia dela. Teve meu nascimento, inclusive, minha mãe brinca muito dizendo que eu não era filho dela, porque ela dizia: eu não posso acreditar que esse é meu filho, ele nasceu muito bonito. Aí, ela gosta de brincar muito com essa questão.
09:51 P/1 - E o seu nome?
R - O meu nome, ele surgiu porque minha mãe queria colocar dois nomes bíblicos, e são os dois nomes. Ely que é Elimeleque, que era um profeta, profeta não, um sacerdote e Daniel. Aí, ela quis colocar esse dois nomes, inclusive, o pessoal toda vez que pergunta meu nome, fica perguntando se eu assistir o livro de Ely, é da onde é que vem esse nome? Aí, eu falo: foi tanto por Elimeleque, mas também foram as últimas palavras de Jesus na cruz, que é: Eli, Eli, lamá sabactâni”, que significa “Meu Deus, Meu Deus, por que me abandonastes?” Mas acredito que tenha sido por causa do sacerdote.
10:34 P/2 - Ely, retomando aqui o que você falou sobre os costumes da sua família. Então, a tua relação, assim, forte com o meio ambiente, ela nasce junto com a tua família, com a influência dos teus pais, da pesca, você acredita nisso?
R - Com certeza. Eu sempre fui uma pessoa que amei a natureza. Eu faço agronomia, que foi um curso que desde pequeno eu me apaixonei. Na época, eu brinco que eu me apaixonei por conta do que você vê no Globo Rural, que é aquelas grandes fazendas, só que ao decorrer da vida eu tentei entender realmente o que é essa consciência ambiental. Minha família sempre foi uma família muito ativista, que briga por seus direitos, então eu sempre tive presenças na minha família e exemplos na minha família de pessoas que realmente lutam por seus direitos. Então, sempre isso foi muito presente na minha vida. Aí, essa consciência ambiental, eu junto com isso. Outra questão é a Igreja Batista do Pinheiro, onde eu nasci e cresci, que é uma igreja que ela está sempre presente em movimentos, lutando pelos pequenos e por essa questão ambiental. Então, é algo que me marca muito, eu posso dizer que não só a minha família me moldou, mas também a igreja me moldou, ser a pessoa que eu sou hoje em dia, e eu agradeço muito por isso.
12:05 P/1 - Ely, você lembra da casa, da rua, onde você passou a sua infância?
R - Se eu fechar os olhos, eu sei de cada detalhe da minha casa. Eu morava na Rua Coronel Lima Rocha, 225, na parte do Mutange. Lá batia ainda com o Pinheiro, pelo pelo mapa, mas era do Mutange. Era uma casinha pequena, simples. Na época que construíram a casa, minha mãe estava no Rio de Janeiro junto com o meu pai, porque meus pais tinham parentes lá e eles foram para lá, na época. E minha mãe mandava dinheiro para que o meu avô pudesse construir. Aí, eles construíram uma pequena casa de um cômodo só, para eles conseguirem vim para aqui, morar aqui, porque quando eu estava no Rio de Janeiro, eu tive adenóide, eu fiquei muito magro, só tinha a cabeça, meus pais acharam que eu ia morrer. E lá os médicos não conseguiram descobrir o que era. Aí, meus pais disseram: Vamos juntar tudo e ir embora, voltar para Maceió. Quando voltaram aqui, descobriram que era adenóide, eu não precisei nem de cirurgia, me tratei só com medicamentos e deu tudo certo. Aí, eles conseguiram, fizeram a casa e depois foram aumentando aos poucos e tal, até chegar numa casa de dois quartos, onde morava, na época, quando a gente saiu, morava eu, minha mãe, meu pai, minha irmã e minha sobrinha, que tinha três para quatro anos, quando a gente saiu. Essa casa era uma casa simples, mas uma casa acolhedora, uma casa que se alguém precisasse a gente estava à disposição, para ajudar e tal. E o que eu mais gostava, era justamente a vista que eu tinha quando eu sentava na beira da porta e conseguia olhar para frente e ver, na época tinha um pé de pampulha na porta da minha casa, que era lindo. Quando ele estava florido eu achava maravilhoso. É basicamente isso.
14:12 P/1 - E quais eram as brincadeiras que você mais gostava?
R - Ah, eu brincava de muita coisa, era pega pega, era um rouba bandeira, brincadeira de cuscuz. Não sei se você sabe o que é cuscuz? Quando você faz um montinho, ai você vai derrubando, quem derrubasse apanha. Você brincar de cuscuz no plano, é de boa, você brincar numa barreira, é outra coisa. Que a galera quando corria atrás de você, você saia correndo pela barreira e tal. Ou se não quando você jogava bola na barreira, que a bola ia e caía na casa de alguém, aí você tem que ir lá buscar. E às vezes o vizinho não queria dar. Eu brincava de várias coisas. Eu gostava de estar me pendurando. Eu posso dizer que eu sou que nem um macaco, gostava de estar me pendurando nos cantos. Tudo que eu via, eu amarrava uma corda e me pendurava.
15:00 P/1 - Ely, além das brincadeiras, tem outra coisa que você gostava de fazer quando era criança?
R - Eu tinha um cachorro, que inclusive, quando eu penso nele, eu choro muito, foi um cachorro que eu passei a minha infância com ele, infelizmente ele veio a falecer, então era o meu melhor amigo. Aquele cachorro eu contava tudo. Eu brinco que ele morreu levando todos os meus segredos que eu tinha na época, porque tudo o que eu tinha desabafava com ele, coisas que eu não conseguia falar para meus pais, eu falava para o cachorro que eu sabia que ele não ia contar para ninguém. Aí, eu gostava muito de ficar com ele, era um cachorro vira-lata, mas era guerreiro, viu! Não peitava para nenhum. Tem até uma história, que uma vez, estava só ele, o meu cachorro, aí tinha cinco cachorros de raça, ele botou os cinco cachorros de raça para correr. Aí, eu falo, era um cachorro guerreiro, e sempre grudado em mim. Ele era muito grudado em mim, na minha mãe também, no meu pai.
16:07 P/1 - Esse cachorro morreu do que, Ely?
R - Ele já estava numa certa idade, só que infelizmente tinha um vizinho lá que ele tinha um cachorro e ele achava que só o cachorro dele podia existir no mundo, que ele fez? Ele deu uma paulada na cabeça do meu cachorro, aí inflamou e começou a criar pus, e acabou que a gente tentou cuidar, mas se eu não me engano, com umas duas semanas, ele veio a falecer.
P/1 - Qual era o nome do cachorro?
R - Era Bartô.
16:40 P/1 - Ely, quando você era criança, você sonhava em ter qual profissão no futuro?
R - Eu sempre sonhei com a agronomia. Eu já tive várias outras atribuições de profissão, mas a principal foi agronomia. Já quis ser pescador, já quis ser historiador, já quis ser arqueólogo, já quis entrar para o Exército. Mas a agronomia sempre ficou no meu coração, e foi o curso que eu consegui entrar e realizar esse sonho.
P/1 - E desses sonhos que você falou aí, quais eram as referências? Por que você pensou em ser historiador? Quem é que você tinha como referência?
R - Referência familiar eu nunca tive nessa questão profissional, porque eu sou o segundo da minha família a ingressar na Universidade Federal. O primeiro foi meu tio Genilson, que é uma grande referência como profissional, como estudante, ele é uma pessoa muito esforçada, que enfrentou muitas barreiras, por ser uma pessoa que vem de uma vivência difícil, além disso, ser uma pessoa preta, e conseguir estar na universidade federal, e conseguir chegar no patamar que ele chegou. Então, ele foi uma referência muito grande para mim, mas para agronomia eu não tive. Eu tive algumas influências aqui na igreja, tinha um rapaz que ele era agrônomo, que foram as pessoas que me inspirou a querer entrar para agronomia. Quando eu queria entrar para o exército, porque eu sempre gostei da área, e também o meu vô, era ex militar e eu achava, e ainda acho essa profissão linda. Mas para o curso que eu estou atualmente, não existe essa referência familiar, mas a questão de determinação, sempre acreditar no que você almeja. Meus pais foram pessoas que nunca me forçaram, eles nunca disseram: “Ah, você é obrigado a estudar.” Eles dizem: “estudar é o correto. Você tem que fazer isso para ser isso. Então, se você não fizer isso, não tem como você chegar nesse patamar”. Mas nunca foram pessoas de forçar a dizer: “Ah, se você não fizer isso, vai ter tal punição.” Então, isso eu acho que me ajudou bastante, porque ao mesmo tempo que eu tinha o apoio deles, eu não tinha essa pressão tão grande, e esse medo de que caso eu falhe eu vou decepcionar meus pais.
Então, essa questão do apoio e da determinação deles por isso, eles sempre colocaram todas as fichas nos meus sonhos, eles nunca disseram: “Não, você está indo pelo caminho errado.” Eles sempre disseram: “Se essa é a sua vontade, siga em frente, batalhe, faça o máximo para ser o melhor na área que você está.”
19:41 - P/1 - Ely, qual a formação do seu tio Genilson?
R - Se eu não me engano, ele faz parte das artes plásticas, cenografia, ele trabalha com isso.
19:54 - P/1 - Ely, onde você estudou?
R - Eu estudei a minha vida toda no CEPA [Centro de Estudos e Pesquisas Aplicadas], e desde do ensino fundamental, estudei na escola, na época que era o Jardim, agora é o Rosália Ambrósio, estudei na escola Vitorino da Rocha, na Escola José Loureiro e na Escola Moreira e Silva, que foi onde eu concluí o ensino Médio.
P/1 - Como foi a sua experiência escolar? Você se sentiu acolhido?
R - Rapaz, é complicado. Sim, pela escola, sim. Por todas as escolas, foram ótimas escolas, eu tive um ótimo ensino, apesar de todas as dificuldades. Eu acredito que, mediante as situações, o ensino sempre foi bom. Tive ótimos professores que hoje em dia são referências, tenho professores que hoje em dia eu tenho como amigos, por questões de amizades e tal. Acho que como todo mundo, tem os seus problemas e tal, tinha amizades, mas eu sempre fui uma criança que era muito afastada, por conta de vários fatores, tanto é que na época que eu estudava no jardim, o meu pai, ele trabalhava no CEPA, para secretaria do CEPA, ele fazia limpeza, cortava mato, e muitas das vezes ele trabalhava no colégio que eu estava estudando. Aí, no intervalo, ao invés de eu estar brincando com as crianças, eu ficava conversando com o meu pai, vendo ele da grade cortando os matos. Ele ficava: “Porque tu não está brincando? Porque tu não vai brincar?” Porque eu não me sentia confortável e tal e eu queria estar na presença do meu pai. Outra coisa que marca muito, como ele trabalhava lá, ele trabalhava com um carrinho de mão, muitas vezes ele ia me levar, ia me buscar de carro de mão. Aí, eu me divertia, me acabava, mandava ele ficar correndo para ter uma diversão. E são essas coisas que me marcam muito nessa época, porque sempre tive essa proximidade com o meu pai, com a minha mãe.
22:06 P1 - Ely, a arquitetura dos espaços da escola que você estudou, esses espaços eram inclusivos?
R - Rapaz, dificilmente se via falar de inclusão, naquele tempo, quando eu estudava, apesar de ser uma pessoa nova, como as coisas, elas evoluem muito rápido, essa questão de não inclusivo e inclusivo, veio estar agora atualmente. Então, tipo, tinha várias problemáticas em vários colégios, tinha escolas que infelizmente devido ao tamanho, não conseguia trabalhar individualmente cada pessoa ou tentar entender cada aluno. Então, existiam vários fatores que complicavam a convivência e tal, mas no geral eram colégios que sim, tentavam dar o máximo possível.
23:02 P/1 - Quais foram as pessoas mais marcantes da sua vida escolar?
R - Na minha vida escolar? Eu tenho uma professora que até hoje… Hoje em dia eu não tenho contato dela, infelizmente eu acabei perdendo. Mas é Silvânia o nome dessa professora, ela foi minha professora do fundamental I, e eu era apaixonada por essa professora, ela realmente, ela é uma inspiração para a profissão, ela é daquelas pessoas que ela leciona por gostar mesmo, por ser apaixonada, ela dava o máximo, se esforçava ao máximo para passar para o aluno, e era daquelas pessoas que não buscava… Porque tem professores, que infelizmente, se o aluno ele for um pouco mais atrasado, ele não está nem aí. Ele vai dar o conteúdo dele, acabou, mas ela não, ela buscava o aluno, ela conversava, ela ia lá tentar entender o que ele estava precisando. Então, essa professora, ela é uma inspiração como pessoa, não só como profissional, mas como pessoa, pra mim. Outras que eu tive foi… tem a professora Greice, que eu tive no fundamental II, que era uma professora minha de matemática. Uma professora, a Josiane, que era uma professora de arte muito inteligente, uma professora que ela realmente cuidava dos alunos, que não só fazia o trabalho dela como professora, ela fazia o trabalho dela como ser humano, e isso são coisas que realmente eu acho lindo. Eu já acho a profissão de professor lindo, porque você lidar com pessoas, lidar com alunos, é difícil. Não só com alunos, porque quando você é professor, você lida com o aluno, você lida com pais, você lida com coordenação, você lida com direção. Então, são sempre problemáticas. E ela é uma pessoa que sabe muito lidar com isso. Tem o professor Antônio, que é um professor de biologia, que me ensinou muito, e eu agradeço muito os ensinamentos dele. E outros professores também.
25;19 P/2 - Ely, a escola, você sente que ela ajudou nessa formação da tua consciência ambiental?
R - Eu não diria a escola, eu diria personagens, eu diria professores. Eu tive muitos professores que têm essa consciência. Não só essa consciência ambiental, mas dentre outros fatores. Então, eu tive professores que realmente me influenciaram muito. Eu acredito que a escola é um ambiente que vai ajudar o ser humano na sociedade. A escola não está só para ensinar o ABC, ou você fazer um mais um, ela está para colocar o ser humano lá fora que consiga conviver. Então, eu acredito que a escola teve uma influência gigantesca nisso e nessa consciência ambiental também.
26:08 P/1 - Ely, ainda sobre o período da escola, você tem alguma outra história marcante que você possa compartilhar aqui com a gente?
R - Eu tenho várias histórias que são tristes, que eu não vou contar agora no momento, mas uma das coisas que me marcam muito são minhas amizades que eu tive no ensino médio. Eu tinha um grupo de amigos, que ainda tenho até hoje, depois de tanto tempo que a gente se formou, que eu levo para a vida, foram pessoas que realmente me ajudaram muito e que fizeram o ensino médio se tornar leve. A gente se divertia muito. Eu não sei se vocês já viram o CEPA, ele tem uma área gigantesca, então a gente andava, brincava, pegava a bola, jogava bola. Eu sei que isso é errado, então crianças, não façam isso. Mas a gente jogava bola dentro da sala de aula. A gente fazia várias brincadeiras. Então, foram esses momentos que tornaram o ensino médio leve.
27:18 P/1 - Ely, você sofreu algum preconceito durante esse período na escola?
R - Sofri. Eu sempre fui uma criança gordinha, então eu sofria bullying. Eu sofria preconceito por ser uma criança pobre, apesar de todos os colégios que eu estudei, terem sido colégios estaduais, públicos, existiam pessoas que tinham certos preconceitos. Então, eu sofri muito com essa questão do bullying, sofri com essa questão desse preconceito financeiro que as pessoas tinham, também por eu ser morador do Mutange, que a gente sabe que era um bairro que ficava em uma barreira, então ele sempre foi discriminado. Muitas pessoas tem na cabeça de que quem sai do Mutange, ou sai bandido, ou sai uma pessoa que não vai ter muita coisa na vida. Então, teve sempre esses preconceitos que eu tive por parte de algumas pessoas e tal, de alunos, principalmente. Foi isso.
28:26 P/1 - Você falou das amizades que você teve no ensino médio, jogando bola e tudo. Mas além dessas, tem outras amizades marcantes?
R - Tenho, eu tenho as amizades dos fundamentais, que infelizmente a vida afastou. `Principalmente no fundamental, eu tinha uma amizade de uma menina chamada Manuela. Se eu fechar os olhos ainda lembro da fisionomia dela, que meu pai brincava muito, que a gente seria namorado um dia. Mas era uma amizade que eu digo que eu levo no coração porque era uma pessoa incrível, infelizmente a vida nos afastou, mas que eu ainda torço muito por ela, onde ela estiver.
29:11 P/1 - Ely, eu queria que você falasse agora como foi essa sua entrada na Universidade Federal de Alagoas? Quando você saiu do ensino médio e foi para a UFAL [Universidade Federal de Alagoas]. Com relação a preparação para sua prova do ENEM [Exame Nacional do Ensino Médio], e até a entrada na universidade, e até os dias de hoje, qual período você está?
R - Então, eu terminei o ensino médio em 2018, na época eu não tinha feito o ENEM. Aí, deu a pandemia, eu disse: eu não vou fazer o ENEM porque eu não quero entrar na universidade, na pandemia, porque eu sei das minhas dificuldades, então, se eu fosse estudar online, eu não ia aprender nada, então eu queria aprender. Aí, eu fiz a primeira prova do ENEM 2021, não consegui passar, e em 2022 eu fiz, e em 2023 eu entrei. Questões de dificuldade, o que acontece? O ensino que a gente tem, apesar de para algumas coisas ser bom, para outras não. Então, para um curso de Agrárias você levar o que você tem de bagagem no ensino médio para a Universidade Federal, num curso de Agrárias, é muito difícil. Por que? Porque é muito raso. Então, eu tive muito essa dificuldade, eu estava afastado de uma sala de aula há quatro anos, teve toda essa problemática da pandemia e da minha retirada do bairro, coisa que ocasionou ansiedade, eu tive vários episódios de ansiedade, então eu tentei ao máximo. Eu fiquei com muita coisa na cabeça, achando que estou ficando velho para estudar, apesar de ser uma pessoa nova, mas tipo, você tem esse negócio na cabeça, pô tô ficando velho, estou entrando com pessoas que acabaram de sair do ensino médio, pessoas que tem outra visão de mundo, pessoas que tipo, estão em um momento da vida e você está em outro. Então, tem sempre esses pensamentos. Eu estou agora no quinto período, apesar de todos os dias eu pensar em desistir, eu não vou desistir, eu sei disso, porque é um curso que eu sou apaixonada, um curso que eu amo, que eu tenho certeza que vai ser muito importante para a minha vida, porque eu estou estudando não só para ter uma profissão, mas para poder ajudar o mundo ser melhor. Porque o meu objetivo é justamente esse, com essa consciência ambiental, ter essa consciência de que a gente não precisa degradar o planeta para ter produção, a gente pode trabalhar em conjunto, até porque a gente faz parte do planeta, se a gente acabar com esse ciclo, a gente se acaba junto.
31:58 P/1 - Ely, com que idade você começou a sair sozinho, sem os seus pais, com os amigos? E para onde vocês saiam, e como vocês se divertiam?
R - Eu sempre fui uma pessoa muito caseira. Meus pais, eles não me proibiam de sair, eles sempre foram muito preocupados. Então, até hoje, quando eu saio que eu vou chegar tarde, minha mãe, meu pai, liga para mim. E tipo, eu acho isso muito lindo porque apesar da idade eles tinham essa preocupação. Então, tipo, não foi nem questão dos meus pais proibirem ou determinarem a idade. Eu sempre andei pelos locais, eu acho que a partir dos 16 anos, comecei a andar, mas sempre fui uma pessoa que preferia ficar dentro de casa, sempre fui a pessoa mais família. E eu não saía muito. Quando eu saía com os meus amigos ia para o shopping, aí às vezes a gente ia na praia... Atualmente, com os amigos que eu tenho da escola, a gente aluga uma casa e passa um um domingo e tal. Mas essa questão de sair dentro de casa, meus pais sempre confiaram muito em mim, eles sempre tiveram essa confiança e eu sempre fui uma pessoa responsável e que demonstrava para eles essa responsabilidade. Então, eles nunca tiveram medo de me perder na vida.
33:19 P/1 - Como vocês se divertiam no shopping e na praia?
R - No shopping… Tem um negócio engraçado, eu ia com três amigos meus, aí um deles, ele é preto retinto, e o shopping é uma parte do mundo que ele é elitizado. Aí, às vezes, a gente estava no shopping, estava sendo seguido por segurança. A gente tirava onda mesmo, fazia o segurança andar atrás da gente, a gente entrava em loja, a gente ia para algum local que o segurança viesse atrás, só para tirar onda, para a pessoa tentar entender que não é porque você é preto que você vai ser ladrão, entendeu? Quando a gente ia para a praia, jogar bola, tomar banho de mar, conversar. Porque eu acho muito importante isso. Acho que para mim uma diversão é você estar junto com o seu amigo batendo papo. Você não precisa estar fazendo algo específico, você não precisa estar na diversão específica, mas você está batendo papo. Uma coisa que eu gosto muito, como eu já retratei, é pescar, então eu vou bastante, bastante não, mas eu ia muito pescar com o meu pai. Hoje em dia a gente vai pouco por conta das questões da vida, a correria da vida, mas é algo que eu gosto muito de fazer, entendeu? Uma das coisas que eu mais gosto de fazer, até porque tem uma proximidade com meu pai fazer isso. A gente vai… ia para o estádio de futebol, assistir jogo do CSA, junto com a minha mãe. Essas coisas que a gente fazia.
34:55 P/1 - Ely, você poderia falar sobre as relações amorosas, se você tem? Se você teve, tem, conta pra gente, compartilha essa experiência, por favor?
R - Rapaz, com relação a parte amorosa, sou um fracasso, eu confesso. Então, tipo, não tenho. Não tenho essa parte amorosa, tentei algumas vezes, mas sempre foi algo que não ia para a frente. Então, tipo, não tenho. Essa parte amorosa na minha vida, ela está empatada, ainda, não vai para frente.
35:37 P/1 - Ely, quais são as lembranças mais marcantes da sua adolescência?
R - A minha adolescência foi uma adolescência simples. Eu não tive momentos muito mirabolantes, eu acho, mas por ser um membro da igreja, eu acho que a minha adolescência eu penso muito na igreja, momentos como acampamentos, que a gente tem momentos como festas, que acontecem, partilha. Eu acho que toda essa relação religiosa, toda essa relação de comunhão, eu acredito que tenha sido isso, que tenha marcado mais a minha adolescência.
36:31 P/1 - Ely, eu queria que você falasse o curso que você faz? Pode repetir.
R - Eu faço curso de agronomia.
P/1 - Quais momentos mais marcantes nessa sua trajetória universitária?
R - Desde o início foi algo que realmente eu imaginei que ia marcar a minha vida, porque é algo que eu entrei querendo e sabendo que era aquilo. Então, tem momentos que você pensa, pô, vou desistir porque está muito difícil, mas as amizades e tal, ela fortalece. Eu atualmente faço parte de centro acadêmico, então é algo que eu acho muito importantíssimo lutar, porque eu busco em todos os locais, todos os ambientes que eu estou, eu busco dar o meu máximo e tentar fazer algo para melhorar. Então, eu busquei entrar no centro acadêmico para tentar melhorar essa parte do curso, tentei buscar, para estar a disposição das pessoas e ajudar as pessoas que eu acho isso muito importante. Atualmente eu estou num laboratório, que inclusive, é uma das coisas que me ajudam muito nessa parte ambiental. Estou no laboratório da professora_____, que é um laboratório de Geologia, e uma pessoa que ela é referência na parte de manejo, na parte de solos. Então, é uma pessoa que eu me inspiro muito, e que me ajuda bastante. Ela é uma pessoa que, como eu já tinha falado de outras pessoas, não é só um exemplo de profissional, é um exemplo de pessoa. É uma pessoa que realmente faz aquilo que gosta. Ela é cubana, ela veio para o Brasil _______, dando aula lá no CECA [Campus de Engenharias e Ciências Agrárias], na UFAL, e eu dei a sorte de conseguir entrar no laboratório dela. E hoje em dia está na presença dessa pessoa que é tão incrível também.
38:44 P/1 - Ely, qual a sua expectativa hoje com relação a carreira neste período de estudo?
R - Eu estou estudando muito para hoje tentar ser o melhor possível. Eu acredito que o curso de agronomia é um curso muito amplo, mas que eu já entrei com a cabeça do que eu queria fazer. Eu quero trabalhar com recuperação da área degradada, que é algo que eu acho lindo, e que eu acho necessário. Justamente por isso que eu estou nesse laboratório para trabalhar essas questões. Então, eu acredito que após eu me formar, quero fazer mestrado, eu quero fazer doutorado, justamente para ser uma pessoa entendida na área e poder ajudar ao máximo possível.
39:35 P/2 - Ely, você fala que às vezes questiona se deve permanecer no curso e pensa em desistir. E eu queria saber quais os principais desafios que você enfrenta, que te fazem você sentir, assim, questionar a sua permanência?
R - Eu acho que muito a exaustão mental e emocional, porque acho que tudo tem suas dificuldades. Só que você está numa universidade federal, ela tem uma problemática muito grande, porque primeiro que as pessoas sempre tem um preconceito, entrou na universidade federal, é vagabundo. E outra, é que onde eu estou já é difícil de chegar. Aí, tem questões de quando eu entrei na faculdade, eu estudei em um campus que antigamente era um local de usina. Ele era um espaço que ele era utilizado para usineiros e fazer pesquisas de cana de açúcar. Então, tipo, não tem desenvolvimento nenhum, os poucos desenvolvimentos que tem está acontecendo atualmente. Então, tem toda essa dificuldade. Aí, tem problemáticas de professores que não estão nem aí, tem problemáticas de eu estou no curso, como eu estou no CA [Centro Acadêmico], tem vários problemas, que as pessoas acham que você é um deles e vai resolver tudo, e não tem condição de você resolver tudo. Então, tem todos esses fatores. Além, tipo, às vezes você bomba numa prova, aí você fica pensando, “pô, será que é isso mesmo e tal?” Você vai confiante para fazer uma prova, faz bem uma prova e se dá mal. Aconteceu recentemente. E aí, você fica, pô, porque disso. Aí, eu acho que isso. Além disso, eu sou uma pessoa, que inclusive, meus pais falam muito que eu deveria parar, meus pais e uma amiga minha que eu tenho, que ela diz que eu gosto de procurar sarna para me coçar, porque eu me envolvo com muita coisa. Além da universidade, eu estou me envolvendo em vários projetos, então isso tudo acaba fazendo com que eu não descanse direito, e eu acabo tendo essa exaustão toda. Aí, vem esses problemas, você pensar em desistir, você pensar em dar um tempo, além de todo o convívio que você tem, até porque pessoas, é ser humano, então é sempre, você nunca sabe o que vai acontecer. Mas eu sei que eu não vou desistir, porque é algo que eu sou apaixonado, mas isso sempre vem na minha cabeça.
42:14 P/1 - Ely, você já realizou estágio nessa sua área de estudo?
R - Eu estou estagiando só no laboratório agora.
P/1 - Ely, você já trabalhou carteira assinada?
R - Não, desde que eu tirei minha carteira, eu nunca assinei. Eu sempre trabalhei fazendo bico, fazendo trabalhos freelancer. Trabalhei junto com meu pai fazendo entregas, já trabalhei em corridas, já trabalhei fazendo jardinagem, já trabalhei fazendo montagens de som. Então, sempre foi trabalhos assim, nunca foi de assinar carteira.
43:08 - P/1 - Qual foi o primeiro então? Qual foi a primeira experiência? O primeiro freelance que você trabalhou?
R - Eu acho que foi montagem de som. Meu pai, ele trabalhava tanto fazendo entregas para empresas, como também, nos finais de semana, ele trabalhava em equipe de som, e às vezes eu ia com ele. Aí, a gente fazia montagem para teatros, para festas.
P/1 - E durante essa sua trajetória de freelancer, você enfrentou algum preconceito?
R - Eu acho que não, porque sempre foi ambientes em que eu estava com pessoas de confiança, ambientes que eu estava com pessoas próximas. E muitos dos trabalhos que eu tive foi através do meu pai, ou com pessoas da qual eu já conhecia. Então, eu acho que eu nunca tive esse preconceito. Se tive olhares preconceituosos de outras pessoas, eu não percebi.
44:12 P/1 - Você passou por várias experiências de freelancer?
R - Sim. Eu trabalhei com som, atualmente eu trabalho às vezes fazendo corrida, naquelas corridas que tem na praia, tem uma empresa que ela me chama, e eu trabalho fazendo essa montagem, essas corridas. E outras coisas também, o que aparecer para mim, eu estou fazendo.
44:39 P/1 - Ely, quais foram seus maiores desafios no período de freelancer e também quais foram os maiores aprendizados?
R - Eu acredito que os desafios é justamente você conseguir se adaptar ao que você está fazendo, porque cada cada situação exige uma dedicação a mais. Então, tipo, você precisa aprender a lidar, você precisa saber o que realmente você está fazendo, até para poder passar confiança para a pessoa que está lhe contratando, para a pessoa que quer o seu trabalho. Eu acredito que aprendizado é ter responsabilidade e saber que o que eu estou fazendo, é porque alguém está dependendo de mim. Então, se eu não me dedicar o suficiente para aquele momento, se eu não for uma pessoa responsável, uma pessoa pontual, de nada adianta. Então, é algo que em todas as situações em que eu participei, eu acredito que a responsabilidade foi o que eu mais aprendi. E nisso, eu aprendi a lidar com o público, porque fazendo entregas eu aprendi a chegar na casa de uma pessoa e ser o mais solícito possível. Questões de trabalhar com equipamentos de som, a segurança. Então, tipo essas pequenas coisas, esses pequenos detalhes que às vezes a gente pensa que vai passar despercebido, mas que ao longo prazo ele é essencial para sua vida. Você ter essa responsabilidade. Você aprender a chegar em um local e sair desse local sendo uma pessoa respeitada e respeitando os outros. Porque não adianta você chegar num local se achando algo que você não é. E aí, você acaba desrespeitando. Então, é necessário que haja um respeito, é necessário que haja uma dedicação, é necessário que haja uma responsabilidade.
46:41 - Ely, aqui durante a nossa conversa, você falou que seus pais nunca lhe cobraram com relação a profissão, não é isso? Mas assim, eles também nunca falaram o que eles queriam que você trabalhasse assim de forma específica?
R - Não, eles sempre foram uma pessoa que aceitaram o que eu decidi. Meu pai, eu acredito que muito de eu querer ter sido agrônomo, tenha sido também por questões do meu pai. Meu pai sempre foi uma pessoa apaixonada por cavalos, e ele sempre teve um sonho de ter um sítio. Tanto que um dos meus maiores sonhos é justamente ter condições de comprar um terreno e comprar uma área para dar para meus pais, poder proporcionar a eles aquilo que eles não tiveram. Então, acho que esse sonho que o meu pai tinha, passou muito para mim. Eles nunca foram de dizer, “olha, eu tenho um sonho que você seja isso.” Tipo, ah, tem pais que tem sonho que o filho seja médico, ou que o filho seja advogado. Eles nunca implantaram os sonhos deles em mim, que nem muitos pais fazem. E é isso que eu agradeço muito neles, porque apesar de tudo, eu não tive essa pressão, porque eu fiz o ENEM duas vezes, então eu sei como é a pressão, você já não teve essa pressão externa, e imagina você tendo essa pressão externa, você tendo esse esse desafio, de tipo, se eu falhar, vou estar decepcionando quem eu amo. Então, eu fico feliz deles não terem sido dessa forma.
48:16 P/1 - Ely, quais são os projetos futuros na sua profissão?
R - Eu quero, assim que eu terminar a graduação, quero continuar estudando, fazer pós, mestrado, doutorado, porque justamente eu quero levar um conhecimento, eu quero empreender, porque eu acredito que no ramo que eu estou o empreendedorismo, ele é a melhor arma, porque essa procura que está tendo… Eu falo para muita gente, que apesar de eu querer fazer doutorado, eu não quero ser professor, eu acho que essa profissão de professor é algo muito a mais, você realmente necessita ter paixão, e apesar de eu me considero uma pessoa que consiga passar uma dinâmica boa, uma didática boa, eu acho que se for para mim ser um professor que não se dedique o suficiente é melhor eu não ser. Então, eu quero trabalhar com questões de áreas degradadas, é o meu viés, tanto por já ter essa consciência ambiental, mas também por questões da mineração. Quando eu entrei na universidade, que eu fiquei pensando, porque desde o início eu pensei, que TCC eu vou fazer, o que é que eu vou fazer no meu TCC? O que é que eu vou trabalhar? E essa questão da mineração veio muito firme. Então, eu preciso fazer alguma coisa, como morador, como estudante de agronomia, que deve trabalhar com essa área, eu tenho que pensar algo que possa modificar, mudar o que essa empresa está fazendo. Então, foi justamente o que eu pensei, eu vou trabalhar com a recuperação de áreas degradadas. Se eles estão destruindo, eu vou ajudar a reconstruir. Então, é justamente isso que eu quero fazer. Trabalhar em conjunto com a natureza, que é algo que eu sou apaixonado. Eu falo muito que eu sou muito ligado mais às plantas e animais do que as pessoas, e me sinto muito mais confortável quando eu estou em um ambiente de natureza do que quando eu estou com muita gente reunida. Então, é isso que eu quero fazer para minha vida, é trabalhar com isso, ter esse senso ecológico, ter essa consciência ambiental. Eu sou uma pessoa que eu sou ativista de várias áreas. Eu luto contra várias problemáticas que existem na sociedade, principalmente a ambiental, que é minha área. Então, eu acho isso muito necessário. E se eu puder passar esse conhecimento que eu tenho, não de forma lecionar, mas de forma, ser exemplo como pessoa, como muita gente são exemplos para mim. Eu quero ser um exemplo de pessoa para outras pessoas. Então, eu quero que tudo o que eu fizer seja revertido de uma forma boa, e não de uma forma ruim.
51:04 P1 - Ely, se sinta à vontade para falar quais são as outras áreas que você é ativista, pode ficar a vontade em falar.
R - Eu, como eu já falei, na Igreja Batista do Pinheiro, ela é uma igreja que ela luta por várias questões. Então, a gente luta por questões raciais, questões do direito da mulher, questões do direito dos homossexuais. Então, a gente sempre luta por essas causas, questões ambientais... Quando a gente fala muito da Braskem, a gente procura muito falar sobre a questão do racismo ambiental, porque é algo inevitável, porque quando você puxa historicamente, pessoas que estão em áreas que são exploradas, são pessoas que elas não tiveram a oportunidade de estar em outra área. Eu tive uma matéria dessa, de projeto paisagístico, esse período, que a gente pegou uma tese de uma autora para estudar e apresentar como era. E quando a gente foi apresentar, a gente colocou o Estado de Alagoas, e a cidade de Maceió, como uma problemática, porque a cidade de Maceió, historicamente ela era para crescer para as bandas de Marechal, aquela parte do Sobral, a parte do Jaraguá. Só que o que foi que aconteceu, quando a empresa, a Braskem foi implantada, aconteceu várias problemáticas, que acabou que as pessoas que estavam nessa região, elas saíram. E isso acabou com que a crescente de Maceió fosse para as bandas da Pajuçara, Ponta Verde e Jatiúca. Então, toda aquela área lá, ela só não é popular, ela só não tem pessoas, justamente por essa questão da empresa, que ela também afetou. Inclusive, eu estava em conversa com o Eduardo, que eles acabaram tirando uma problemática, porque se tivesse essa crescente, aquela região seria uma região que teria muitas pessoas. Então, a restinga que ainda resta lá, não existiria. Mas ela tirou uma problemática e trouxe outra, inclusive um professor meu, eu achei uma fala dele infeliz, porque ele falou: “graças a Deus que a Braskem chegou, porque ele conseguiu comprar uma casa”, na época com o valor de três salários mínimos, por conta dessas questões que ninguém queria comprar, foi desvalorizado o local. Então, ele conseguiu comprar barato, e é uma área que não atinge ele, mas que as pessoas tinham medo de estar lá, e simplesmente saíram. Aí, o que acontece? Quem são essas pessoas que estão nesses bairros afetados? Por que racismo ambiental? Porque quando o preto foi livre, como dizem que foi livre, que não foram, você não é mais escravo, mas você vai trabalhar com o quê? Você vai ser o que? Você vai ser bandido, porque é o que eles faziam. Você está livre, mas se você for visto na rua sem estar trabalhando, você vai ser preso por vagabundagem. O que eles faziam? Eles fugiam para morros, quilombos. Eles fugiam para margens de rios que atualmente se tornaram comunidades ribeirinhas, se tornaram favela, se tornaram comunidades em morros. Então, todas essas pessoas que saíram de ambientes que relativamente são seguros, elas foram para ambientes que não são seguros. E esses ambientes são muito explorados historicamente. Só exploraram essa região do bairro do Mutange, Bebedouro, Bom Parto, porque são regiões que não são elitizadas. Se fossem regiões elitizadas na época, não seriam exploradas. Então, justamente eles exploram essas regiões que são regiões de pessoas de classe média baixa, são pessoas que não tem como lutar, e depois que eles exploraram, eles vão embora, partem para outro local. Simplesmente deixar lá, não querem nem saber da problemática que aconteceu, não querem saber dessas pessoas.
55:25 P/1 - Ely, na Rua Miguel Palmeira, aqui no Pinheiro, existe um projeto de uma horta ao qual você está envolvido, queria que você falasse como surgiu e como funciona?
R - Então, essa horta comunitária, ela surgiu a partir de uma conferência que teve dos jovens da Igreja Batista do Pinheiro. Todo ano a igreja, ela faz acampamentos de jovens, acampamentos de adolescentes, mulheres, homens, da família. Nesse ano, que foi no ano de 2023, os jovens resolveram fazer uma conferência ambiental para falar sobre as problemáticas, convidaram pessoas. E uma dessas convidadas foi a Maria do Bosque, que ela é lá do Assentamento Flor do Bosque, em Messias. E em uma das falas dela, ela indagou a igreja a usar o terreno que a gente tinha como estacionamento para uma horta, para lutar contra esse problema contra a Braskem. E era uma ideia que eu já tinha na cabeça, mas eu não tinha essa força de falar. E aí, ela indagou. Aí, o pastor chegou em mim, que atualmente sou estudante de agronomia, e outra moça, que ela já é engenheira agrônoma, e disse: “Tem essa proposta para vocês. Vocês abraçam?” A gente chegou e abraçou. E a ideia da horta é justamente a gente lutar contra essa problemática, porque é em um ambiente que o pessoal diz que não vai brotar mais nada, e um ambiente que relativamente a gente está vendo como um local de destruição, a gente está trazendo frutos, a gente está conseguindo colher frutos. Então, um local onde eles acham que estão morto, que está morto, a gente está trazendo vida. Então, é justamente para isso. E também para cutucar a empresa, dizer: “olha, vocês não mandam aqui”. Atualmente aquela área, só dois locais são locais privados, que é a horta da igreja e a Igreja Batista do Pinheiro. E só um dos locais a gente consegue entrar de livre acesso, que é a horta, porque até a igreja, infelizmente a Defesa Civil, ela junto com a empresa, a Defesa Civil Municipal, ela não nos permite entrar, dizendo que é de risco. Eu não sei porque de risco, se tem trânsito o tempo todo, o CEPA, que fica de frente, tem pessoas estudando, quase todos os dias, tem ensaio de quadrilha, os jogos de futebol que tem lá no CEPA, então eles impedem a nossa entrada, justamente porque a gente é uma igreja que está cutucando, a gente é uma igreja que está lutando contra. Então, o quanto mais eles conseguirem tentar derrubar a gente, eles vão tentar. Eles só não derrubaram ainda um prédio porque eles não podem. Atualmente, a Igreja Batista é um patrimônio material do Estado de Alagoas, então eles não podem acessar. Mas também junto com a Defesa Civil, eles impedem a nossa entrada. A gente fala muito que a gente tem que pedir licença para entrar em um local que é nosso, e não deveria ser assim. A gente tem a chave, a gente tem um acesso, mas a gente não pode acessar.
58:38 P1 - Então, a realidade da horta é a seguinte: praticamente não tem vizinho, só tem o CEPA como vizinhos, não é isso? Mesmo sem vizinhos, por causa da desocupação, por causa desse desastre ambiental, a horta está aberta ao público?
R - Ela está aberta pra acessos de manutenção. A gente só tem acesso com chave, então são pessoas específicas. Mas quiser levar pessoas de escola, quiser grupos irem lá visitar, inclusive, a gente convida que pessoas vão lá, até porque justamente essa horta é uma horta comunitária para que as pessoas vão lá visitar, e olhem, pô! Mesmo nesse ambiente que é um ambiente de guerra, a gente consegue ver brotar frutos em um pequeno espaço. E a gente quer ser exemplo. A gente justamente está querendo dar o exemplo, dizer “olha, você consegue produzir um pequeno espaço, você consegue trazer vida em um pequeno espaço, mesmo em um ambiente que relativamente é de destruição.” Quando a gente deu início na horta, na época, ela era um estacionamento, já tinha sido uma oficina, então era um ambiente que tinha um solo compactado, era um ambiente que tinha muita degradação. E a gente justamente por conta da questão da Braskem e tal, trabalhar essa problemática da degradação, a gente resolveu. “Não, vamos recuperar essa área, vamos usar essa área de exemplo para o que pode fazer de forma mais ampla. Então, a gente tenta ao máximo usar a horta como um laboratório, usar a horta como exemplo. Então, nisso a gente faz parcerias, nisso a gente faz convites, para qualquer pessoa que quiser ir lá fazer entrevistas, fazer alguma visitação, fazer algum experimento, alguma pessoa que queira usar o espaço para algo, a gente está disposto para tudo isso.
1:00:32 P/1 - Horário de funcionamento e agendamento para visita?
R - O agendamento você pode fazer em qualquer horário, se tiver pessoas disponíveis, normalmente, como eu sou, junto com outra menina, nós somos os coordenadores, e nós somos as pessoas que mais entendem dessa área, a gente normalmente está dia de quarta feira de tarde e domingo, porque são os melhores horários para a gente. E eu acredito que nesse próximo período, mais no dia de domingo, porque eu estarei mais ocupado. Mas todos os dias tem alguém lá para regar as plantas. Nesse período de chuva não está precisando muito, mas todo dia tem alguém lá. E caso queira agendar, é só falar comigo, ou falar com outra pessoa, a gente marca uma data e vai lá.
1:01:18 P/1 - Ely, agora a gente vai falar sobre o período mais atual. Você saiu do Mutange para qual local e como é o seu dia a dia nessa sua nova moradia?
R - Eu saí do Mutange no dia 30 de março de 2020, fez cinco anos agora. Quando a gente saiu foi muito difícil. Eu ainda lembro, na área que eu morava, a gente foi a última casa a sair. E a gente só saiu porque não tinha o que fazer, a gente foi obrigado a sair. Tanto que pouco antes de a gente sair, o pessoal estava roubando os fios de energia e querendo desligar água, só não fizeram isso porque a gente pedia, porque a gente ainda ia sair. Então, foi algo muito difícil. A gente foi para o bairro do Tabuleiro dos Martins. Eu, atualmente moro no Campo da Cerâmica, no bairro. E quando você vê essa problemática da Braskem, não é nem você sair, é os olhares das pessoas perante a você. As pessoas acham que a gente saiu sendo rico. Então, houve muita inflação na questão de preços de aluguéis e tal. Então, a gente teve que ir atrás daquilo que a gente conseguiria no momento. Então, foi muito difícil. A gente passou sete meses em uma casa de aluguel, depois conseguiu comprar uma casa, uma casa que as condições permitiam na época. E era um bairro que era relativamente perigoso lá, porque quando a gente chegou, eu lembro que em três meses mataram três pessoas. E eu fiquei, pô, não era assim no Mutange. Mas, como quando a gente saiu, foi na época da pandemia, teve essas duas problemáticas. Eu saí do bairro que eu vivi 18 anos da minha vida, o bairro que eu nasci, cresci, e junto disso, a pandemia. Então, além de eu sair do bairro que eu morava, eu tive que ficar isolado em uma casa. Isso acabou desenvolvendo ansiedade de várias formas, não só em mim, mas em todas as pessoas da minha família. Então, além disso, você conviver, porque você tem uma família, mas uma pessoa vai trabalhar, outra vai estudar. Quando você convive 24 horas no mesmo ambiente, acaba estressando. Então, existia todo esse estresse, existia toda essa problemática. Quando eu entrei, quando eu fui para o Tabuleiro, eu ainda não estudava na faculdade, eu vim estudar depois, entrei em 2023. E atualmente minha rotina é, eu saio de casa logo cedo, para ir para a faculdade, volto no final da tarde, porque eu passo todo esse período lá. E em casa eu não tenho muito… Eu já não tinha no Mutange, no Tabuleiro menos ainda, o convívio com outras pessoas. Até porque quando a gente chegou lá, eu não sei se os vizinhos eram apaixonados pelas pessoas que estavam na casa, mas eles detestaram a gente, simplesmente sem conhecer. Não sei que fatores isso. Hoje em dia está até melhor, mas na época a gente ficava muito isolado na casa, então era de casa para a igreja, para algum lugar fora, mas no bairro dificilmente a gente andava. Hoje em dia circula, tem meus três sobrinhos, eu tenho três sobrinhos, que a gente tenta permitir que eles brinquem na rua. Até porque para ter esse negócio, que a gente sabe que as redes sociais, a televisão, ela prejudica bastante. Então, eu quero que meus sobrinhos eles tenham uma vivência, tenham uma infância de verdade, não só direto na tela de celular. Então, a gente tenta permitir que isso aconteça, tenta dialogar o máximo com as pessoas para ver como é que vai cada situação. Hoje em dia é um bairro que o pessoal está tentando ajeitar de certa forma, mas é basicamente isso.
1:05:29 P/1 - É como são os momentos de lazer nessa nova moradia?
R - Rapaz, eu não tenho um momento de lazer para falar a verdade, eu sou uma pessoa que sou muito caseira, e eu não diria nem caseira, e que é algo, quando eu saio, eu já quero voltar para dentro de casa. Então, tipo, é algo que eu preciso trabalhar bastante. Eu acredito que tenha sido por esse processo de saída e algum trauma me deixou dessa forma. Então, eu tento buscar lazer muitas vezes no trabalho e na horta. Porque eu acredito que a minha ligação com a natureza é muito grande. Então, estar trabalhando na horta, por mais que seja um trabalho, é lazer para mim. Eu, quando a gente morava no Mutange, a gente procurava muito ir para jogos de futebol, a gente assistia muito. Só que como aconteceu todo esse processo, minha mãe, ela foi desligada do trabalho, então os problemas financeiros dentro de casa não permitem coisas tão gigantescas, mas a gente tenta sair, às vezes. Sair mais minha família, eu sou mais de ficar em casa, mas eles tentam sair, às vezes, procurar alguma coisa, principalmente para os meninos.
1:06:54 P/1 - Ely, quais eram as vegetações que tinham ali no seu antigo bairro, onde você morava, no Mutange?
R - Eu morava de frente para o Sinteal [Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Alagoas], e para o _____, então tinha toda aquela área de manguezais, tinha a lagoa, e tinha a mata nativa, ou que tentava ser nativa. Então, lá no Mutange, eu via muito a natureza, tinha, nem que fosse um ou outro, pé de árvore, ou algum indício de natureza. Era um local, que sim, era urbanizado, mas tinha a sua parte de natureza. Inclusive, na parte do Pinheiro, tinha um sítio que era muito utilizado pelo pessoal lá, e eu brinco muito com o pessoal atualmente, que quando você olha o Mutange, você só vai ver um paredão vermelho. Agora, que está chovendo, você vai ver um paredão verde, por conta do gramado. Mas a referência que eu tinha de onde eu morava, era uma árvore gigantesca, que foi a única árvore que eles não derrubaram. Então, a referência que eu tenho da minha rua, quando eu olho, vamos supor, de lá do Bom Parto, que é o bairro abaixo, eu consigo ver a árvore, consigo ver onde eu morava. Então, essa referência de natureza que eu tenho.
1:08:22 P/1 - E que árvore essa essa?
R - Eu não sei a espécie da árvore, eu sei que era uma árvore gigantesca, que ainda está lá.
P/1 - Ely, quando você começou essa relação com a lagoa, e como foi essa relação? Você poderia falar de forma mais detalhada?
R - Com a lagoa? Se eu não me engano, acho que três ou quatro anos, meu pai começou a descer comigo para a lagoa para pescar. E eu me apaixonei de primeira. Tem uma história que eu estava pescando na beira da lagoa, meu pai estava jogando de mão na outra parte, aí eu botando a linha, e o peixe comendo, eu botando a linha, e o peixe comendo. Não, eu não, meu pai botando a linha, peixe comendo. Aí, ele resolveu me deixar. Quando ele me deixou, o peixe pegou, que o peixe pegou, ele puxou a vara com tudo. Eu pequeno, aí eu comecei a gritar, “Pai, pai, pai, vem aqui, vem aqui, vem aqui!” Aí o peixe enganchado, o peixe enganchado, quando puxou, era um peixe enorme. Aí, ali eu me apaixonei pela pesca. E é até hoje. Hoje em dia, se você me der um anzol, eu fico mais feliz do que você me dá um iPhone. Porque é algo que eu realmente sou apaixonado. E eu acredito que eu ser apaixonado por isso, não só pela arte da pesca, mas porque me traz essa ligação com o meu pai. Porque eu acho que é necessário que exista essa ligação familiar. Eu falo que a relação com o meu pai é a pesca, e a relação com a minha mãe, é a cozinha, é a costura. Minha mãe me ensinou a cozinhar, então a gente tem muito essa relação. Então, a gente ia lá pescar, minha irmã, ela sempre pegava mais peixe que eu, mas hoje em dia nem gosta de pescar. Eu não sei porque, mas ela não gosta. Mas a gente ia, ia descer pra pegar sururu. O meu vô, ele era um grande catador de sururu, ele descia, eu ia junto com ele, algumas vezes. Então, teve sempre essa ligação. Eu sempre tive perto da lagoa, sempre estive com o pé na lama, por assim dizer. Era algo muito bom, porque quando a gente descia para a lagoa, a gente descia, aí passava pela linha de trem e até o CT [centro de treinamento] do Mutange, do CSA, lá no Mutange, e a gente entrava pelo CT. Então, eu via o campo de CSA, eu via o pessoal treinando. Então, sempre me trazia memórias. Aí, a gente ia para a lagoa, às vezes vinha com muita coisa, às vezes não vinha com nada, mas a diversão de estar naquele ambiente, a diversão de estar com a família, era o que valia.
1:11:04 P/1 - Ely, existem cheiros, barulhos, vozes que você lembra da sua rua, da sua vizinhança antiga?
R - Sim, o cheiro da natureza, porque eu me acordava de frente para a lagoa. Hoje em dia eu acordo de frente para outra casa. Então, o cheiro da natureza, o cheiro da maresia, que era muito presente, o barulho do trem às 5h00 da manhã passando, era o que despertava, algo que eu sinto muita saudade, é o barulho do trem tocando. E hoje em dia eu não consigo mais andar de trem. Não porque eu não quero, mas é porque a rotina não me permite estar fazendo isso. E são essas memórias. O barulho dos pássaros é algo que eu me recordo muito. Minha mãe, ela tinha um… Eu não sou uma pessoa que concorda com criação de passarinhos em gaiola, mas o meu primo uma vez pegou um passarinho, deu para minha mãe quando ele foi embora para São Paulo. E esse passarinho, se a gente soltasse ele, ele não sobreviveria na natureza. Então, ele continua com a gente na gaiola, inclusive, ele morreu e eu enterrei ele lá no bairro, ele ficou no bairro, que ele não aguentou sair. Eu coloco isso na cabeça, que ele quis morrer antes porque ele não aguentaria a mudança. Então, ele ficou lá. Então, é isso. O som da natureza, dos pássaros, o cheiro da lagoa, o cheiro do sururu, o cheiro do mato, da folha, das frutas. No sítio que eu falei, tinha vários pés de fruta, tinha acerola, tinha pitanga. E eu costumava muito subir nos pés para tirar. Inclusive, tem uma história que eu estava junto com um primo meu, eu era pequeno, e ele ficou no chão esperando e eu subi no pé, tinha uns três metros e meio o pé de acerola, comecei a catar. Aí, o rapaz que cuidava do sítio, ele veio pedindo informação para a gente, para falar uma coisa. Só que eu percebi que ele estava de malícia. Porque ele estava com a camisa dele levantada e dentro eu conseguia avistar algumas pedras. Quando ele abriu a boca que eu vi, eu falei para o meu primo, corre. Ele começou a tacar pedra na gente. Eu não sei como, eu pulei sem sentir nada, saí correndo, consegui pular o muro que tinha mais de dois metros de altura, sem cair, e consegui chegar em casa. Só tive alguns arranhões, graças a Deus. Mas essa memória fica muito marcada em mim, esse dia.
1:13:54 P/1 - Ely, eu queria que você descrevesse, por favor, a frente da sua antiga casa e por dentro?
R - A gente tinha uma porta no meio, porque a minha casa, ela era tipo, pegando ela de frente, na parte esquerda, tinha a porta e era fechada. Só que depois meus pais construíram um quarto do lado, que era para eles. Aí, tinha uma escada, porque ela era uma casa mais alta, ela tinha uma escada. Aí, ela tinha uma janelona grande, que ela era a janela e pega ladrão. Que era uma janela que eu queria trazer, só que quando a gente se mudou, eu não consegui tirar no mesmo dia, aí quando a gente foi no outro dia, já tinham levado a janela. Aí, quando a gente entra, era a sala, aí pegando a direita, tinha o quarto da minha irmã com a minha sobrinha e ia pelo corredor, na direita tinha o quarto dos meus pais e eu ficava, eu dormia em uma cama perto do corredor. Atrás tinha cozinha e banheiro. Era uma casinha pequena que a gente tinha, então tinha uma cozinha pequena e tinha um banheiro pequeno.
P/1 - Tinha quintal, como que era?
R - Ela não tinha. Ela tinha um espaço atrás, só que para você acessar era muito difícil. Inclusive, atrás da minha casa, na parte de cima, tinha uma casa grande que a gente chamava de casarão, que era o medo do pessoal, de cair. Deu esse esse problema por causa da Braskem, e a casa até hoje não caiu. Só que derrubaram ela, mas até hoje não caiu.
1:15:36 P/1 - Fique à vontade para falar quais foram os momentos marcantes que você teve nesse local, na sua casa?
R - Eu gostava muito… Já criei galinha onde eu morava, inclusive a galinha roubaram e o galo o meu primo… O galo era enorme, ele tinha acho que uns dez quilos. Ai, meu primo empurrou o galo de altura alta e o galo não conseguia nem pousar, de tão pesado que ele era, ele quebrou as pernas e ficou doente. A gente teve que sacrificar. Mas já criei galinha. Eu gostava de estar brincando de fazendinha lá no bosque. Gostava de estar amarrando a corda no negócio para me pendurar, fazer rapel, como dizia. Gostava muito de brincar com meus primos, brincava bastante quando eu era criança, e a gente tinha essa questão, sempre foi uma família que tinha muitos primos, então a gente brincava bastante com isso, de várias coisas diferentes. O que eu fazia lá normalmente era isso. Eu soltava muita pipa, rodava pião. Teve até uma história, eu começava a soltar pipa, aí quando o vento parava, eu saía e entrava dentro de casa para assistir desenho, aí o vento voltava, eu voltava a soltar pipa. Aí, nisso de eu estar indo e vindo, indo e vindo, um rapaz entrou dentro da minha casa. Esse rapaz, ele era ladrão. Ele não roubou a minha casa porque ele era parente de alguém lá, se não me engano, ele só queria se esconder da polícia. Aí, o que foi que aconteceu? Minha mãe saiu com a gente, deixou a casa pra ele. Ele não roubou nada, só queria se esconder da polícia. Depois que a polícia foi embora, ele saiu. Então, a minha mãe sempre fica contando esse negócio de eu estar entrando e saindo, entrando e saindo, acabou entrando uma pessoa que não deveria dentro da casa. Aí, brincava muito com meu cachorro. Eu ensinei a minha sobrinha a soltar pipa naquele local, ensinei a jogar chimba. Essas memórias me marcam muito. Eu gostava muito de ficar na porta dos meus avós para conversar. Os meus avós maternos, eles moravam do lado da minha casa, então a gente gostava muito de sentar para brincar, jogar baralho, resenhar, contar piada.
1:18:20 P/1 - Ely, você tinha vizinhos que marcaram a sua vida? Você fica à vontade para falar quem eram.
R - Os meus vizinhos eram a minha família, praticamente, porque todos os meus vizinhos, eles eram da minha família. No início da vila, tinha a casa dos meus avós, depois tinha minha casa, aí tinha outra casa, que era da minha avó também, aí tinha a casa de uma tia avó minha, que morava os meus primos, tinha uma casa de outra tia, uma casa de uma prima e depois uma casa de uma tia. Então, era basicamente uma vila de família. E eu acredito que todos marcaram minha vida de alguma forma. Como toda família, tem suas problemáticas, inclusive tinha uma vizinha que morava abaixo da minha casa, que sempre discutia com a minha avó, mas era assim, discutia num dia, no outro dia estava conversando de boa, na amizade. Era coisa do dia a dia. Infelizmente, quando a gente se mudou, as únicas pessoas que foram morar perto da gente, de lá de casa, foi a minha avó materna e meu vô e a minha avó paterna, que ela morava em outra parte do Mutange, e também foi morar perto da gente. Então, todas essas pessoas que a gente tinha um convívio, por mais que a gente não tivesse grandes afetos, mas tinha, era algo que você estava lá, rotineiro, você acostumado a sempre ver essa pessoa e do nada você não consegue mais ver essa pessoa, não consegue mais falar, não consegue sentir o cheiro dessa pessoa, que eu acredito que é algo que marca bastante.
1:20:06 P/1 - Que festas, celebrações, tradições culturais marcaram você e sua comunidade?
R - Lá a gente costumava, na época de São João, fazer uma festa muito grande, a gente brincava muito. E era uma vila, a passagem era pequena, mas a gente colocava fogueira, não sei porquê, mas a gente colocava uma fogueira. Uma vez eu fiz uma tão grande que o pessoal não conseguia nem passar perto. Final de ano também o pessoal se juntava, vinha famílias de outros bairros para ir para lá, o pessoal da família ia para lá para se divertir. Minha casa não muito, porque como a gente sempre foi muito religioso, não que a religião prendia a gente, mas a gente optava muito mais para vir para a igreja, para estar nesse momento junto a Igreja do que na farra. Mas depois, quando a gente chegava, a gente ia lá se divertir, compartilhar esse momento com a família.
1:21:07 P/1- Ely, agora a gente vai falar sobre esse processo de saída. Eu queria saber de você como é que você se sentiu, como você foi tratado durante esse período de realocação?
R - Então, esse processo foi muito chato, porque eu tive todo o tempo junto com a minha mãe, para resolver os problemas, não só dela, mas também das minhas duas avós. Uma questão foi que… Eu bato muito na tecla, é que quem morava no Mutange, não sofreu a pressão apenas da empresa, sofreu a pressão de várias pessoas, porque o pessoal do bairro do Pinheiro, eu entendo que também foi um bairro afetado, mas quando você fala sobre a problemática da Braskem, sempre vem o bairro do Pinheiro. E o Bairro do Pinheiro não foi o bairro mais afetado. Atualmente, o bairro do Mutange não existe no mapa. Se eu procurar a minha casa, eu não vou achar. E se você procurar muitas casas aqui no bairro do Pinheiro, você vai achar. Se você procurar o Bairro do Pinheiro no mapa, você vai achar, mas o bairro do Mutange não. E a gente era colocado como pessoas interesseiras. Como é que a pessoa pode ser interesseira? Eu vivi 18 anos naquele bairro, meus avós viveram 40, meus pais viveram mais de 40 anos naquele bairro. Então, como é que eu posso ser interesseiro sendo que eu nem queria sair daquele local? Eu não queria perder a minha casa. As pessoas tem que entender que não é a casa, não é o imóvel, é o que você vivia lá dentro. Era o que acontecia lá dentro. E as vidas que foram perdidas, inclusive o meu avô, ele foi uma das pessoas que morreu através disso. Meu vô desenvolveu depressão e junto a isso várias problemáticas. Então, não é a casa em si. Então, dinheiro nenhum vai pagar. Mas as pessoas acharam, que a gente que morava no Mutange, tinha que se conformar com a indenização mínima. Eles diziam: “Ah, vocês moram em choupanas, vocês moram num barraco, então vocês têm que se conformar com a indenização mínima. Vocês não têm que querer exigir riquezas.” E a gente não queria exigir riquezas, a gente queria ser tratado como pessoas. A gente foi tratado pior do que um cachorro de rua. Então, não só pela empresa em si, porque ela simplesmente não ligava, dizia que tinha acompanhamento psicológico, não tinha, dizia que tinha assistência social, não existia. Eles simplesmente não ligavam. Me disseram: vocês vão sair e tal momento e vai ser isso e acabou, depois a empresa não se responsabiliza por nada. E além disso, tinha todo esse preconceito do pessoal de outros bairros que colocavam a gente como se a gente fosse pessoas exigindo o que não era nosso direito. E simplesmente é nosso direito. Eu não pedi para sair, eu amava o local que eu morava, entendeu? Eu não gosto do bairro que eu estou. Eu falo que hoje em dia eu moro numa casa, eu não tenho um lar, eu moro em uma casa, porque o lar era onde eu estava, era onde eu pisava, era onde eu podia botar o pé no chão e dizer: aqui é meu lugar. E onde eu estou hoje em dia, não é. Então, tipo, as pessoas tem que tirar da cabeça. Toda vez que alguém conversa comigo, que descobre que eu sou um dos ex-moradores do bairro, a primeira pergunta é: você recebeu indenização? E mano… É que eu não quero falar palavrão. Mas não importa se eu recebi ou se eu deixei de receber. Por que você não se importa com o que eu senti? Por que você não se importa com o que aconteceu comigo de verdade? Por que você não se importa com as pessoas que morreram? Por que não se importa com as pessoas que se mataram? Você se importa com o dinheiro. Você se importa com o capital. Simplesmente, véi, dinheiro vai e vem. O dinheiro entrou na conta, a gente teve que comprar uma casa, esse dinheiro não ficou para a gente, a gente não recebeu dinheiro e uma casa, entendeu? Então, eles simplesmente fizeram o mínimo possível, a empresa. E a sociedade simplesmente tapou os olhos e disse: “Ah, não é comigo, então não vou me envolver”. Tanto que é incrível você parar para pensar que mais de 60.000 pessoas foram afetadas diretamente, e quando você vai para uma manifestação contra a empresa, nem 10% dessas pessoas estão lá. E as pessoas que não estão ainda te julgam, achando que você é um vagabundo, achando que você só quer riquezas. E simplesmente isso é algo que não deveria existir, né?
1:26:02 P/2 - Bom, Ely, você pontuou que muitas vezes as pessoas tratam como se essa fosse uma tragédia só do Pinheiro, que o tremor tivesse acontecido só no Pinheiro. E como que foi o dia do tremor? Você sentiu, você estava no bairro? Como que isso afetou?
R - Eu estava no bairro, mas se eu disser a você que eu senti o tremor, eu não senti. Eu vim saber depois que por notícias, o que tinha ocorrido, porque na região onde eu estava, não houve. Se alguém disser que houve, é mentira, porque não houve.
1:26:43 P/1 - Ely, como foi esse processo de mudança?
R - Foi bem complicada. No dia em questão, porque o dia em questão eu digo, quando a gente saía, no dia 30, tinha marcado para, se eu não me engano, três horas da tarde. Então, o pessoal quando chegou eles… Simplesmente a gente já tinha levado algumas coisas pra casa e tal, mas quando eles chegaram para realmente fazer a mudança, foi que eu senti o impacto de que eu não veria mais a minha casa. Eu fui a última pessoa a subir a ladeira, inclusive quando eu subi, eu parei um momento e olhei para trás e chorei, porque eu avistei a lagoa. Eu disse: eu não vou ver mais a vista da lagoa desse local, eu não vou ter mais essa vista como eu tenho. Hoje em dia, quando eu olho para a lagoa, por mais que me traga uma sensação de alívio, vem aquela lembrança de tristeza, de eu não estar mais vendo, do ambiente que eu vivia, do ambiente que eu me sentia eu. Eu me senti muito perdido. E meus pais, eles foram muito abalados. Então, ao mesmo tempo em que eu estava triste, eu tinha que me fazer forte para que eles não desabassem. Então teve todo esse problema de, eu estou sentindo, mas eu tenho certeza que eles estão sentindo mais ainda, então eu vou me fazer forte para que eles se segurem. Então, quando eu parei ali, que até minha mãe me chamou e disse: “Bora, está na hora.” Porque eu acredito que ela tenha feito isso, porque ela não queria nem olhar. Tanto que meu pai e minha mãe subiram sem olhar para trás, porque eu acredito que se eles olhassem para trás, eles desabavam. Teve um momento em que eu estava esperando o carro chegar, que eu estava sentado na porta e minha mãe estava numa cadeira na minha frente. Eu tinha tirado até uma foto dela, só que essa imagem se perdeu. Ver minha mãe desolada, ao perder a casa dela, ao perder o lar dela, onde ela criou os filhos, foi uma dor gigantesca. Aquilo ali partiu meu coração, porque eu olhava aquela imagem dela triste, e olhava para a vista da lagoa, e disse “Pô, isso não era para estar acontecendo”. Então, foi um momento muito conturbado, foi um momento muito difícil passar por isso. E até hoje, porque muitas pessoas quando saíram, não voltaram para os bairros, mas eu ainda tinha ligações aqui, então eu voltava para o bairro. Eu tenho uma ligação com a Igreja Batista do Pinheiro, então eu voltava para a Igreja Batista do Pinheiro. E minha mãe, quando ela trabalhava, na época, então ela viu todas as casas indo embora. Ela viu todo esse processo. Ela estava aqui todos os dias, então ela estava vendo esse processo todos os dias. Dias e dias chegando caminhões e levando pessoas, casas sendo fechadas. Então, a gente passou por todo esse processo. Então, foi difícil, não foi só você, “ah sai da minha casa e vou tentar esquecer.” E você sair da sua casa e ter que voltar aqui e ver tudo acontecendo com outras pessoas.
1:30:28 P/1 - E como ficou a sua casa do Mutange após a sua saída e de sua família?
R - Quando a gente saiu, logo após a gente voltou lá, para ver se encontrava alguma coisa. Já tinham retirado telhado, já tinham retirado portas, já tinham retirado janelas. Ficou só o oco da casa mesmo, porque acontecia de muita gente ganhar dinheiro com essas destruições. Muita gente simplesmente só esperava você sair e ia lá fazer o raleio e acabou-se. E aí, a gente ainda voltou para lá, se eu não me engano, umas três vezes. Na terceira vez que a gente foi, na primeira vez que a gente foi, estava nessa situação, tudo retirado, só estava só o caixote da casa. Na segunda vez estava cheio de mato, estava com mato cobrindo que a gente quase não conseguiu entrar. E na terceira vez tinham limpado, a empresa tinha mandado limpar, inclusive, estava bem limpo, tem até uma foto que eu tenho do meu pai de costas, ele olhando para a frente da vila, e outra, ele olhando de canto, de lado, ele chorando. E aquilo me machucou muito. Tirar essa imagem, mas principalmente ver essa imagem na hora. Aí, da outra vez que a gente tentou chegar já não dava mais, já estava o mato coberto de novo, já tinham fechado de tapumes, já não dava mais para acessar minha casa.
1:32:01 P/1 - Como foi buscar por um lugar para morar?
R - Foi difícil. Foi eu e meu pai, porque teve toda essa questão do pessoal achar que a gente estava ganhando milhões. Então, sempre eles aumentavam o preço das casas. E a gente procurou em vários bairros, que a gente achou que seria acessível. O bairro mais acessível que a gente conseguiu foi o Tabuleiro. Não foi a casa ideal que a gente conseguiu para o aluguel, mas foi a que deu no momento. Durante esse período, a gente pegou o período de chuva. Então, tipo, teve toda a problemática de telhado, então, a gente saiu do bairro Mutange porque tinha esse problema e acabou entrando numa casa que também tinha. Então, a casa enchia de água, a casa tinha várias coisas, e foi sufoco passar por esse momento, inclusive, estando com duas crianças. Principalmente, uma que era de colo. Aí, a casa que a gente conseguiu comprar também tinha vários problemas, como sempre, não é uma casa que você está construindo, você só sabe se a casa é boa, se você vai realmente construir, você construir do zero. Mas quando você compra uma casa, você nunca sabe a problemática que tem. E aí, teve várias. Mas teve muitas dificuldades, porque o aluguel social era R$1.000,00, o aluguel da casa era R$700,00, a energia batia R$400,00. Fora a água. Então, tipo, a gente saiu da onde a gente morava, era um bairro que a gente não pagava água, nem energia. Não, porque a gente não queria, mas simplesmente porque o poder público não chegava lá. A gente simplesmente só era visto quando tinha voto. Em época de eleição, como é, e acontece em vários locais até hoje, até no Tabuleiro onde eu moro, por mais que seja um bairro que esteja numa parte alta, seja como a gente diz, um bairro plano, que a gente não mora pendurado, muita gente dizia que a gente morava pendurado. Ele também é um bairro que ele é de classe média baixa, então o pessoal só vai procurar lá em época de eleição. Não era porque a gente não queria, era simplesmente porque não tinha. Aí, você sai de um local onde você não paga água nem energia, você vai para um local onde o custo benefício é muito mais alto. Porque você saiu do Mutange, que é perto do mercado e perto do centro, as coisas baratas, e vai para um bairro onde tudo é distante, e o preço aumenta. Isso tudo afetou economicamente. Você tendo que pagar aluguel, coisa que você não pagava, você tendo que pagar água e energia, coisa que você não pagava. Então, tudo isso afetou.
1:34:51 P/1 - Quais os maiores desafios na adaptação ao novo lar?
R - Eu acredito que seja o ambiente, porque é completamente diferente. O Tabuleiro é um caos, eu digo, que o tabuleiro é um caos. Eu não conhecia o bairro do Tabuleiro em si. A minha vida era na parte baixa, era daqui do Mutange, do Pinheiro pra baixo, eu não ia lá pra cima. Você tendo que se adaptar a movimentação, tendo que se adaptar a pessoas, tendo que se adaptar a lugares, aonde eu vou comprar um pão, onde eu vou fazer isso, eu vou fazer aquilo. Como é que eu vou pegar transporte? Como é que eu vou chegar em tal lugar? Como é que as pessoas vão me enxergar? Como é que eu vou lidar com tudo isso? Tanto que todo esse período que a gente ficou nessa casa de aluguel, a gente ficou isolado. Porque a gente não tinha vontade de sair. Tanto pela questão da pandemia, mas também por outras questões, que simplesmente não dava vontade de você sair. O máximo que a gente saía era para uma feira, para fazer algo. Mas, “vou tentar sair para fazer algo, vou tentar espairecer a mente.” Era impossível.
1:36:25 P/1 - Você conseguiu criar raízes nesse novo bairro?
R - É que nem eu falo, hoje em dia eu habito uma casa, eu não moro num lar, eu habito uma casa. Se eu sair do Tabuleiro, obviamente eu vou sentir, porque é comodismo, o ser humano, ele é cômodo, o ser humano, ele tenta se adaptar ao máximo o ambiente que ele está. Então, a partir do momento em que a humanidade começou a ficar em locais fixos, ela se acomoda nesse local. Então, obviamente que eu vou sentir. Mas se eu disser que se eu sair desse bairro for pra outro, eu não vou ligar, porque é algo que, tipo, não me prende, é algo que não está marcado em mim. Que está marcado em mim é o bairro do Mutange, é o bairro que até hoje eu penso, é o bairro que mesmo sabendo que eu não vou voltar, eu penso em voltar.
1:37:20 P/1 - Você mantém contatos com os seus antigos vizinhos?
R - Os meus vizinhos eram minha família, então eu tenho alguns contatos por redes sociais, mas dificilmente a gente conversa. Eu acho que por esse problema, quando você… Você tenta ao máximo esquecer, por mais que você não esqueça, você tenta ao máximo esquecer. E quando você busca esse contato com pessoas que eram do seu convívio nesse ambiente, você acaba lembrando. Aí, é meio que tipo um egoísmo, você, “ah, eu não quero lembrar.” E aí, acaba que você perde contato com essas pessoas, Mas é uma forma de você se proteger e não sofrer tanto.
1:38:03 P/1 - Você sentiu impactos ambientais por conta desse desastre?
R - Muito. De várias formas. Tanto áreas degradadas pela própria exploração, como a questão da lagoa, que era algo que a gente, na época, não sabia. Inclusive, meus pais falam que na época, porque eles tomavam banho numa biqueira, em certas épocas do ano, essa biqueira ela estava com uma quantidade de sal gigantesca, que você sentia quase que sal puro, e eles não sabiam a razão. E muitas das vezes eles sentiam como se realmente tivesse cloro dentro da água da lagoa. E era justamente por essa questão. Então, teve todo esse impacto. Eu acredito que um dos maiores impactos ambientais que teve foi a questão dos impactos sonoros, que afastaram os animais. Hoje, se você chegar lá na horta, você vai ver muitos macaquinhos, você vai ver pássaros, porque é um ambiente que eles se sentem acolhidos. Mas se você for em qualquer outra área desses bairros, você não vai ver isso, porque o impacto sonoro, o impacto degenerativo que teve com a destruição desses bairros foi gigantesco, tanto que os animais se afastaram. Então, todo esse processo, dos animais saindo… Hoje em dia, o sururu não conseguir ser retirado da lagoa, na parte do manguezal, o sururu que eu como, que eu comia, era sururu da lama, ele é o melhor sururu, no meu ver. Mas hoje em dia o pessoal tira o sururu lá de Coqueiro Seco e de Roteiro, que é o sururu da areia. Então, tem esse impacto da questão que impactou não só na natureza, mas também na renda de muita gente. A minha família não tirava sururu pra renda, a gente tirava sururu porque a gente gostava de comer, mas muita gente trabalhava com o marisco, muita gente trabalhava com a cata do caranguejo, muita gente trabalhava com a pesca. E hoje em dia não conseguem fazer essa retirada.
1:40:24 P/1 - Ely, qual o impacto do desastre para os animais domésticos? E com relação aos silvestres, se você percebeu, com relação até aos jacarés, naquela área ali do mangue? Então, quais foram os impactos para esses animais domésticos e silvestres?
R - Acho que os domésticos, a questão foi o abandono, porque o que é que acontece? As pessoas moravam em casas, então elas tinham liberdade para ter seus animais, quando eles saíram, o mais fácil para você conseguir um apartamento, e esses apartamentos, eles não aceitam muitas vezes esses animais. O que aconteceu? Aconteceu muito abandono. A Braskem, em parceria com a UFAL [Universidade Federal de Alagoas], disse que iam fazer um projeto de acolhimento desses animais, e que não foi para frente. Então, cansei de ver gatos mortos, cansei de ver cachorros mortos pelos bairros, cansei de ver bichos sendo atropelados, porque infelizmente eles eram abandonados, e aí não tinha ninguém que acolhesse. Inclusive, não é divulgado, mas muitas das vezes eles botavam veneno para matar esses animais pelos bairros. Então, teve todo esse impacto, por conta disso. Aí, nisso vem várias doenças, porque a empresa, ela tirou a gente, o que é que acontece? As casas, que elas não estão sendo mais acessadas, elas necessitam de um cuidado, se não, os animais silvestres vão entrar, vão entrar ratos, tudo. Tem a questão do mosquito, e eles simplesmente não cuidam disso, eles simplesmente deixam pra lá esse negócio. Com relação aos animais silvestres, eu acredito que a natureza, ela está tentando voltar, ela está tentando voltar ao seu habitat, porque se você vê o mapa de Alagoas a muitos anos atrás, a lagoa, ela ia mais ou menos até o pé do Mutange. E ao longo dos anos, ela foi sendo aterrada, para que construções fossem feitas. E a lagoa começou a voltar. Ela simplesmente está voltando para o seu habitat. E nisso vem animais, e nisso a natureza tenta voltar. E aí, ela sai desse ambiente que é um caos, que é o ambiente das construções destruídas, e o ambiente dessas casas demolidas, e vai para essas áreas. Por isso a questão de aparecimentos de jacarés. Inclusive, aqui no CEPA mesmo, apareceu. Tem todas essas questões por conta disso.
1:43:13 P/1 - Ely, e com o impacto, o desastre para a vegetação da sua região ali, o Mutange? R - Eu acredito que a degradação do solo, na verdade a região do Mutange, ela não deveria ser uma região habitada, por questões da natureza mesmo. Mas infelizmente ela foi afetada, por conta de toda essa questão histórica de você realocar essas pessoas para essas regiões onde ninguém moraria, e você coloca aquelas pessoas que não tem um lar. Então, teve todo esse impacto, porque você desmata a natureza, você está trabalhando ali na encosta. Essa encosta ela deveria ser de mata nativa, ela não deveria ter casa. E aí, tem essas casas, aí tem a problemática da extração. Quando você extrai algo de um local e você não faz uma análise para melhorar essa extração, você acaba destruindo. Então, tem a questão dos… Não vou dizer afundamento, porque não afundou, mas tem toda a questão da lagoa invadindo, justamente por isso, porque você acaba meio que o solo da região, ele sendo… ele descendo, ele vai descendo e vai afetando, obviamente. Aquela região do Mutange, era uma região que tinha natureza, comparada com as outras, e hoje em dia não tem. Se você procurar árvores, não tem. Quando eu fiz uma visita, a gente fez uma visita, eu fiz uma visita com o Carlos, a gente fez lá no bairro do Bom Parto, e a gente tentou subir pelo Mutange. Aí, a gente começou a olhar as árvores que tinham lá. Tem uma árvore que ela é chamada de embaúba, que se você olhar, você vai ver essa árvore gigantesca que ela tem um tronco fino, ela é considerada uma árvore pioneira, ela é a primeira árvore que nasce quando acontece um desastre. E eu fui procurando melhor essa árvore, ela cresce muito rápido, justamente para fazer sombra às outras plantas, e as outras plantas, elas vão crescendo a partir disso. E com outras pesquisas, eu descobri que essa árvore, ela cresce assim em vários ambientes, porque é uma das plantas que os pássaros mais gostam. Então, eles comem o fruto e vão fazendo a semeadura na natureza. Por isso que essas árvores crescem. Por isso que em locais de desastres você vai ver muito essa planta, que eu considero como uma forma de resistência da natureza, porque você vê brotar uma árvore em um chão que era de concreto, que não deveria acontecer, porque ali é concreto puro, e você vê a natureza brotando, você vê a força da natureza, você vê que a natureza, ela está se recuperando. E por isso que eu falo muito das vezes, que se o ser humano morrer agora, se a humanidade acabar agora, a natureza, ela vai se regenerar, ela vai conseguir voltar e ela vai conseguir manter o equilíbrio. Eu acredito que o câncer do mundo é o ser humano, mas infelizmente a cura do mundo também é o ser humano. Se o ser humano não procurar ser a cura do mundo, vai continuar adoecendo mais e mais. As pessoas têm uma consciência ambiental de uma maneira equivocada. A pessoa acha que ser consciente ambiental é ter um jardim, e você plantar só uma árvore. Não, é você aprender a não jogar lixo, é você aprender a tentar cuidar da natureza, manter a natureza. Uma das coisas que aconteceu que eu acho horrível aqui na Fernandes Lima, tinha um corredor de árvores linda, e aí a prefeitura resolve fazer uma ciclovia, e nessa ciclovia para tentar melhorar uma problemática, que eles não melhoraram, porque as pessoas continuam circulando pelas pistas, os ciclistas, você destrói a natureza. Você destrói todo um corredor ecológico que existia. Relativamente um corredor ecológico. E você pode ver a diferença na temperatura, se você chegar lá em cima, lá na parte do Tabuleiro, a temperatura é muito mais baixa do que a região daqui do Farol e do Pinheiro, justamente por conta disso. Então, teve todo esse impacto ambiental, porque isso está tudo ligado ao impacto econômico, eles simplesmente não ligaram para nada, e simplesmente resolveram destruir tudo.
1:48:17 P/1 - Você sente que houve justiça nesse processo de revogação?
R - Não, eu sinto que houve injustiça. Não, houve justiça, mas para a empresa, porque como é que a empresa, ela é culpada de um crime, e simplesmente ela é colocada como uma empresa que cuida da natureza, ela é colocada como uma empresa ambientalista, ela não é cobrada como deveria. Porque não adianta eu falar, não adianta outro morador falar, não adianta uma dúzia de pessoas reclamarem. Se o poder público não cair em cima, e se as pessoas não…
As pessoas que realmente deveriam lutar, não lutar pela gente, não vai adiantar de nada. Então, eu acho que houve justiça para a empresa, porque ela é culpada do crime ambiental, e simplesmente ela não está arcando com a sua devida culpa. Porque como é que você é culpado desse negócio… E há pouco tempo, não sei se foi o governo, ou se foi a prefeitura, doa para Braskem 500 apartamentos para que ela possa distribuir. Como é que pode isso acontecer? Se a empresa está sendo culpada, ela que deve arcar com as consequências. Ela que deve arcar com as coisas dela. Porque enquanto a gente está sofrendo, enquanto a gente está perdendo os nossos lares, está perdendo as nossas vidas, a empresa está lucrando e está enriquecendo. É uma coisa que eu bato muito na tecla, porque as pessoas que vêm de fora não procura entender isso, as pessoas acham que a gente simplesmente está fazendo isso por birra. Isso não é birra, porque eles falam, “Ah, mas é uma empresa grande, se essa empresa acabar, o Brasil vai falir, Maceió vai falir.” Não importa, entendeu? Não vai falir, Maceió existia antes da empresa e Maceió vai continuar existindo depois que a empresa sair. Até porque quando essa empresa chegou, ela veio com a proposta de que? De tirar os maceioenses das mãos dos usineiros, que também é uma problemática aqui. Infelizmente, Alagoas é um estado onde a produção de cana de açúcar sempre foi muito grande, é um estado onde a gente sempre foi refém dessa problemática. E a empresa chegou com essa proposta, de melhorar e de livrar a gente das mãos dos usineiros. Eles acabaram tirando uma problemática, que continua ainda, e criando outra maior ainda.
01:51:01 P/1 - Você participou de alguma atividade para preservar a memória do bairro que você morava?
R - A memória do bairro em si, eu acho que ficaria difícil. Eu participei de entrevistas, participei de manifestações, das quais a gente procurava que esse bairro fosse visto, mas como um bairro, simplesmente, ele foi morto, eu posso assim dizer, porque não existe mais nada lá, só a natureza que está tentando voltar. Eu acho que a memória dele vai estar na cabeça das pessoas. Eu acredito que a memória de um local, ela está muito relacionada a mente das pessoas, a lembrança. É por isso que eu aceitei estar aqui, porque eu acredito que falar sobre isso, eu acredito que expressar isso, principalmente dessa forma, onde a gente está gravando, vai trazer para as pessoas, por mais que as pessoas não vejam. E a questão do trabalho com a fotografia, eu acho incrível. Eu acho que são trabalhos lindos e que devem ser feitos periodicamente, porque são esses trabalhos que vão mostrar como era o bairro e como ele vai se tornar, porque a gente sabe que esses bairros daqui para frente eles vão se tornar lotes e vão ser vendidos. A gente sabe que daqui para frente essa empresa vai cada vez mais destruir e tentar de alguma forma apagar tudo o que a gente está tentando lutar, para que seja reconhecido. Então, eu acho que fazer isso, trazer essa memória, trazer essa lembrança e registrar essas memórias é importantíssimo.
1:53:07 P/1 - Houve algum processo de reparação? Fora a compensação financeira?
R - Nenhum. Só isso. A gente vê conversas sobre a questão de ter questões de danos morais, por conta da gente está afetado, mas nada. Só a reparação financeira por conta da casa. E simplesmente eles viraram as costas.
1:53:35 P/1 - Houve danos morais, patrimoniais e extra materiais da Braskem?
R - Tem! Eles fizeram um plano de compensação, que o mínimo era R$81.500,00, de acordo com a Justiça. E foi isso que… pelo menos a gente recebeu.
1:53:56 P/1 - E o que falta ser reparado, na sua opinião?
R - Eu acredito que R$81.500,00, não paga nem a casa. Mas eu não coloco em questão a casa. Mas tipo, a reparação, porque por danos morais, a questão de… não é nem pelo dinheiro, é por tudo o que a gente passou. É inadmissível a gente ter sido jogado às traças dessa forma. A empresa, ela destrói um local, a empresa, ela acaba com vidas, e simplesmente a gente que tem que pagar. Eu não pedi para a empresa estar ali, eu não pedi para a empresa operar ali, eu não pedi para sair. Por que eu que tenho que pagar por isso? Por que tem que ser o meu sangue? Por que tem que ser a minha lágrima? Entendeu? Então, tudo isso. Reparos psicológicos. Tem pessoas que desenvolveram ansiedade, teve pessoas que desenvolveram depressão, pessoas que se mataram. Então, tudo isso entra em questão. Tem um senhor, que ele morava também no bairro do Mutange e ele também foi morar no Tabuleiro, e uma das cachorras dele morreu. E ele, o que ele fez? Ele carregou a cachorra até o bairro para enterrar, logo depois esse senhor veio a falecer. Então, tipo, tem todas essas questões e tal. Então, as pessoas tem que começar a se conscientizar. Porque eu falo as pessoas, porque a empresa está nem aí, a empresa não liga, a empresa só liga para o lucro. Então, as pessoas, a sociedade, tem que apoiar a gente. A gente não está aqui porque a gente é coitadinho, a gente está aqui lutando por um direito nosso. Eu não estou aqui lutando por dinheiro, estou aqui lutando por um direito.
1:55:47 P/1 - Quais foram as cicatrizes que ficaram em você e sua família, com essa realocação?
R - A perda do espaço, a perda do local, a perda da existência. Eu acredito quando a gente anda pelo mundo o que a gente carrega é o local de onde a gente veio. E se você não tem para onde voltar? Porque saída não tem, mas eu não tenho como voltar para o Mutange. Então, eu acredito que esse senso de existência, pô, eu existia nesse lugar, não existo mais, porque esse local não existe mais. Esse local só existe na minha memória. Eu posso até ver esse local na minha mente, mas ele fisicamente não vai existir. Inclusive, a minha sobrinha, quando a gente saiu, ela tinha quatro anos… Eram três para quatro anos. E depois que a gente voltou lá, ela simplesmente esqueceu que a gente morava lá. E ela perguntou se a gente morava de frente para o mar, porque ela confundiu a lagoa com o mar. E eu pesquisando de forma brusca na internet sobre isso, e porque nessa idade, até os quatro anos, a criança, para não ter um trauma, ela tende a esquecer. O cérebro tende a apagar essas memórias. Então, foi justamente como uma forma de defesa, o cérebro dela apagou as memórias que ela tinha nesse bairro, para que ela não sofresse. Então, tem essa questão de ter apagamento de lembrança. O meu avô que veio a falecer, questões de ansiedade e depressão que as pessoas têm, não só quando você tem ansiedade, depressão, acarreta muitas outras doenças. Então, tem toda essa questão.
1:57:51 P/1 - Tem mais alguma forma que a saúde mental sua e da sua família foi atingida?
R - Eu acredito que sim, porque ela reflete em várias outras coisas. A minha mãe, ela ficou muito mal com a situação. O meu pai, às vezes, quando a gente procurava onde é que estava o meu pai, não sabia. E aí, quando vinha ver, meu pai estava aqui no Mutange, chorando. Então, essa tristeza, essa dor que a gente tenta colocar pra fora e não consegue. Eu acredito que essa dor nunca vai sair do meu peito. É ainda mais sabendo tudo o que acarretou a saída do bairro, então é uma dor que nunca vai sair.
1:58:50 P/1 - Qual o sentimento que você carrega ao relembrar na sua casa e vida nessa mudança?
R - É um misto de sentimentos. É tristeza, é um sentimento bom, por tudo aquilo que eu vivi, naquele ambiente, é um sentimento de alegria por todos os momentos que eu passei naquele ambiente com a minha família e com meus amigos, mas é um sentimento de tristeza por não ter mais aquilo, por não estar mais naquele local. Um sentimento de amargura que muitas vezes eu não consigo expressar. Eu sou uma pessoa que chora pouco, eu acredito que seja uma forma de as pessoas não ver isso como uma fragilidade, então eu tento me fazer de forte, mas acaba que muitas das vezes isso não ocorre. Então, tem esse sentimento de dor, de perda, de amargura, mas também tem aquele sentimento de felicidade por tudo aquilo que eu vivi naquele ambiente.
1:59:57 P/1 - Qual o sentimento que você tem hoje ao ver como é que está o Mutange?
R - Eu acho que eu fico desolado, porque quando eu vejo o Mutange, eu não vejo o Mutange, eu vejo uma parede de solo. Eu não vejo casas, um bairro, ele é composto de casas e pessoas. Então o Mutange, ele perdeu sua referência, não tem casas e não tem pessoas. Então, quando eu olho, eu fico desolado. Fechar os olhos e imaginar algo, e quando abrir os meus olhos, vê que é tudo diferente. Tanto que eu falo com muitas pessoas que se eu trouxer alguém que não sabe da história, levar para o bairro para olhar o bairro do Mutange e perguntar: Você imaginaria que aqui já foi um bairro? Essa pessoa vai dizer que não tinha um bairro. Essa pessoa vai dizer que ali foi sempre daquela forma, porque é o que a gente vê. Eles deixaram de uma forma para que na nossa cabeça, a gente pensasse que aquilo ali não era um bairro, que nunca foi um bairro. Então, é um sentimento que eu fico, é, desolado.
2:01:13 P/1 - Depois dessa realocação, o que mudou para sempre na sua vida?
R - Rapaz, mudou tanta coisa. Eu acredito que as convivências. Eu acredito que a forma com que eu vejo a vida, porque você passar por um processo desse, você sente na pele o que a injustiça. Então, por mais que eu sou uma pessoa que estou o tempo todo lutando por direitos, sinto essa injustiça. É algo louco. Então, eu acho que é isso. É o senso de justiça que eu venho desacreditando, entendeu? O que realmente é justo, e o que é justiça para essas pessoas.
2:02:07 P/1 - Como é que você vê o futuro das regiões afetadas?
R - E que nem eu falo para muita gente, isso daqui vai virar um lote. Eles vão fazer lotes e vão vender para empresas, ou construir condomínios, ou construir casas. Esse negócio de dizer que vai arborizar, que eles vão fazer um plano para arborizar e recuperar essa área. É mentira! Eles vão explorar o máximo possível, com o aval do governo, com o aval da prefeitura, e depois ele vai pegar essa região, que não vai afundar, e a gente sabe que não vai afundar. Eles vão fazer lotes e vai vender e vai criar condomínios. E como eu falei: as pessoas que moravam nesse local, não vai ter mais oportunidade de voltar a morar, não vai ter essa oportunidade, porque não vai ter condições. Eles vão pegar, vão fazer um mirante lá no Mutange para ter uma vista para a lagoa, vão fazer condomínios de luxo. Infelizmente a gente vai ter que ver tudo isso de boca fechada, porque se o poder público, que deveria estar junto com a gente, não está, como é que a gente vai lutar?
2:03:22 P/1 - E o futuro do meio ambiente, como você vê, nessas regiões afetadas?
R - Quando você procura estudar um pouco sobre o meio ambiente e essas problemáticas, e você vê que uma região como a Amazônia, que é símbolo mundial e deveria ser preservada, não está sendo preservada, o que você imagina de um local que globalmente não é visto? Então, eles fizeram o que eles podiam fazer, destruir, e simplesmente não estão nem aí. Porque se o próprio Plano Diretor da cidade, do Estado, permite que eles façam isso, eles não estão nem aí. Eles vão continuar fazendo. Se o próprio Instituto do Meio Ambiente, que deveria ser o instituto que fiscaliza esses crimes ambientais, ele dá licença para que a empresa faça isso, de nada adianta. A gente vai lutar, obviamente, ativistas ambientais, pessoas que têm essa consciência, vai lutar, mas a gente sabe que é um processo lento, e a gente sabe que se o poder público não se juntar com a gente, de nada adianta.
2:04:36 - O que você gostaria que as pessoas soubessem de toda essa experiência da realocação?
R - Como realmente aconteceu. Porque a visão que as pessoas têm é o que Braskem passou. A visão que as pessoas têm é que a Braskem cuidou da gente. Por isso que todas as vezes que alguém chega para mim e pergunta como é que eu estou com relação a isso, eu sempre volta a esse fator de perguntar sobre o aporte financeiro da Braskem, e não se preocupa como que está o seu psicológico, como é que está o seu emocional, como é que está a sua saúde física? Porque isso tudo foi afetado. Tinha um um posto de saúde, que era o posto Vicente de Paula, que tinha aqui no bairro do Pinheiro, era um posto de referência principalmente para idosos. Esse posto, quando a gente saiu, simplesmente as pessoas de lá, eles entregaram o nosso prontuário médico e disse: “Busque algum posto no seu bairro e cadastre.” Como é que a gente vai fazer isso? Então, se eles não ligam nem para a nossa saúde física, imagina para a nossa saúde psicológica. Então, eu acredito que as pessoas têm que ouvir de quem passou. Eu não tive a oportunidade de escolher uma advogada. Eu não tive a oportunidade de fazer um acordo decente. Eu tive que aceitar, no caso, minha família teve que aceitar o que eles disseram. Então, a gente não tinha forças para lutar contra isso. Então, as pessoas têm que parar de ver propagandas da Braskem e achar que a Braskem é a coitadinha, que a Braskem está sendo injustiçada. Porque não é o que acontece. Infelizmente, é isso que a mídia está fazendo. Está sempre colocando a Braskem como uma uma empresa que tem essa consciência ambiental, apesar de ter destruído cinco bairros. E vem destruindo ainda mais. Eu não sei como é que as pessoas colocam na cabeça que a Braskem é uma empresa com consciência ambiental depois de tudo isso. Então, as pessoas tinham que parar de estar ouvindo essas propagandas na televisão e começar a buscar realmente o que é que está acontecendo. Buscar realmente ouvir de quem foi afetado, porque cada um é uma história, foram mais de 60.000 pessoas. E são mais de 60.000 histórias. A minha história é diferente da sua, uma história diferente da dela. Então, cada um tem o seu ponto de vista. Tem pessoas que sim, eles foram privilegiados, tem pessoas que sim, ganharam com isso. Tem pessoas que tinham causas aí e tinham casas em outros locais, e que simplesmente pegaram o dinheiro e não ligaram para o bairro. Por que? Porque tem aquele senso de permanência, entendeu? Eu acredito que você tem esse senso de permanência no local e o que lhe faz fazer parte desse local. Se você não tem esse senso de permanência, você simplesmente não liga. Você só liga para o material e aconteceu com muita gente. Só que quando você tem esse senso de permanência, você sofre muito mais. Então, as pessoas deveriam ouvir de quem sofreu e não da empresa que causou isso.
2:07:47 P/1 -Você gostaria de acrescentar algo mais? Contar mais alguma história que a gente não pode falar aqui durante a entrevista?
R - Não, acho que só pedir que a sociedade, ela seja mais consciente, tentar buscar. A gente está em uma cidade onde teve cinco bairros afetados por conta de uma empresa e infelizmente, ou tem empresas chegando aqui no estado, destruindo a cidade de Caraíba, e parece que a gente não aprende, sempre cometendo os mesmos erros. Então, pedir que a sociedade se una, pedir que a sociedade, ela busque a verdade, não fique só ouvindo tais mentiras e acreditando como se fosse uma verdade absoluta. Quero que as pessoas, elas tenham essa consciência. E aqui vim agradecer a vocês por essa oportunidade. Eu acredito que esse trabalho, ele é essencial, assim como todos os outros trabalhos de fotografias que tem esses registros. Então, eu como morador do bairro, eu como membro da Igreja Batista do Pinheiro, que é uma igreja que luta muito contra essa problemática, eu agradeço em nome de todos os moradores e da Igreja por esse trabalho que vocês vem tendo, por esse cuidado que vocês vem tendo. Porque muitas das vezes a pessoa faz um trabalho em prol do benefício próprio, ela faz um trabalho com o ideal de “ah, não, eu vou me vangloriar com isso.” Mas vocês tiveram um cuidado, vocês tiveram realmente o pensamento, “pô, eu vou ouvir essas pessoas. Eu vou tentar entender todo esse contexto”. E isso realmente é importante, e espero que isso seja propagado muitas das vezes. E que a sociedade tenha essa consciência de procurar e buscar a verdade.
2:10:02 P/1 - Sobre essa problemática. Qual o legado que você quer deixar para as próximas gerações?
R - Tem uma fala que eu falei uma vez que foi em uma manifestação que no bairro onde eu morava, eu não vou poder levar meus filhos e nem meus netos, eu não vou poder dizer para os meus filhos e meus netos que eu brincava naquele local. Simplesmente 18 anos da minha vida foram apagados. Eu não tenho como mostrar, então poder fazer isso e poder tentar lutar pelo melhor dos meus filhos e meus netos, é o que é mais importante para mim. Para que as gerações futuras, elas tenham uma consciência ambiental, para que as gerações futuras elas possam realmente viver e não apenas sobreviver.
2:10:58 P/1 - Como foi contar a sua história?
R - Foi bom. É bom você conversar sobre isso. Em alguns momentos você fica meio entristecido por algumas situações, mas trazer essas lembranças na memória é sempre bom, porque é algo que acalenta o coração.
2:11:22 P/1 - Ely Daniel, a gente conclui aqui essa conversa, eu agradeço por você ter compartilhado a sua história. Muito obrigado!
R - Obrigado vocês!
Recolher