Projeto Vidas, Vozes e Saberem em um mundo chamas
Entrevista de Elaine Padoan
Entrevistada por Luiza Gallo
Porto Alegre, 8 de julho de 2025
Código da entrevista: PCSH_HV1487
Revisado por Nataniel Torres
P - Primeiro, quero te agradecer por topar estar aqui com a gente e dividir um pouco da sua história. E eu queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Meu nome é Elaine da Silva Paduan. Nasci em 19 de dezembro de 1969, em Porto Alegre. E moro desde lá, aqui, em Porto Alegre.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não detalhadamente, eu sei a hora, são 55 anos atrás, então era uma época, minha família sempre foi bem humilde, não existiam fotos, registros nesse momento, então realmente as lembranças são das falas, mas não tinha muito, não se entrou muito nesse detalhe e eu também nunca tive essa curiosidade, mas eu sei que eu nasci ao meio de 30, então deve ser porque eu sou muito comilona, porque eu nasci no horário do almoço. Minha mãe sempre dizia, minha irmã, eu tenho uma irmã, minha irmã nasceu à noite, é dorminhoca, e eu nasci no horário do almoço e sou comilona, sempre fui fofinha, gordinha, eu acho que deve ser devido ao horário que eu nasci, mas o registro que eu tenho é do horário, sabe, da questão do horário, ‘olha, tu nasceu no meio-dia e trinta’. A minha mãe, nós morávamos, minha mãe me teve na casa que nós perdemos ano passado na da enchente. Então, eu nasci naquela casa e eu sabia que quando a minha mãe foi pra lá e o meu pai, era um lugar descampado e, digamos assim, tudo era com muita dificuldade, não existia água encanada. Então, eu sei que esse processo da gestação, do meu nascimento, foi um momento de mais dificuldade pros dois. Meu pai trabalhou fora e trabalhava sempre, minha mãe era do lado. E a minha mãe, muito batalhadora. Primeiro filho, sozinha, digamos assim, durante o dia, porque meu pai trabalhava em...
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Entrevista de Elaine Padoan
Entrevistada por Luiza Gallo
Porto Alegre, 8 de julho de 2025
Código da entrevista: PCSH_HV1487
Revisado por Nataniel Torres
P - Primeiro, quero te agradecer por topar estar aqui com a gente e dividir um pouco da sua história. E eu queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Meu nome é Elaine da Silva Paduan. Nasci em 19 de dezembro de 1969, em Porto Alegre. E moro desde lá, aqui, em Porto Alegre.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não detalhadamente, eu sei a hora, são 55 anos atrás, então era uma época, minha família sempre foi bem humilde, não existiam fotos, registros nesse momento, então realmente as lembranças são das falas, mas não tinha muito, não se entrou muito nesse detalhe e eu também nunca tive essa curiosidade, mas eu sei que eu nasci ao meio de 30, então deve ser porque eu sou muito comilona, porque eu nasci no horário do almoço. Minha mãe sempre dizia, minha irmã, eu tenho uma irmã, minha irmã nasceu à noite, é dorminhoca, e eu nasci no horário do almoço e sou comilona, sempre fui fofinha, gordinha, eu acho que deve ser devido ao horário que eu nasci, mas o registro que eu tenho é do horário, sabe, da questão do horário, ‘olha, tu nasceu no meio-dia e trinta’. A minha mãe, nós morávamos, minha mãe me teve na casa que nós perdemos ano passado na da enchente. Então, eu nasci naquela casa e eu sabia que quando a minha mãe foi pra lá e o meu pai, era um lugar descampado e, digamos assim, tudo era com muita dificuldade, não existia água encanada. Então, eu sei que esse processo da gestação, do meu nascimento, foi um momento de mais dificuldade pros dois. Meu pai trabalhou fora e trabalhava sempre, minha mãe era do lado. E a minha mãe, muito batalhadora. Primeiro filho, sozinha, digamos assim, durante o dia, porque meu pai trabalhava em outro bairro, bem distante, e esse processo todo. Então, eu lembro que a minha mãe dizia, ‘ah, eu te deixava no chiqueirinho’, naquela época tinha um chiqueirinho, ‘e ia buscar água’. Então, tu tinha que ficar sozinha porque eu tinha que pegar água, e a água não era no pátio, era como se fosse no final da rua onde nós morávamos, onde todo mundo buscava água do poço. Então eu tenho essas lembranças, tenho as falas também que nossa casa foi uma das primeiras que surgiu lá porque era um local que não era habitado assim, não era habitado, não era ainda um bairro, então era uma casa aqui, outra acolá, então eu tenho essas vagas lembranças faladas pela minha mãe, mas não era uma coisa frequente e também na época eu não tinha essa curiosidade de perguntar, até porque era uma vida dura, assim. A gente não criava essas memórias que hoje a gente quer criar com os filhos da gente. As memórias, elas foram surgindo conforme as coisas foram evoluindo. Hoje tu faz assim, ‘ai, quero criar essa memória com minha filha’. Naquela época não tinha essa condição, não pra minha família, assim, não naquele momento. Mas eu tenho uma memória de uma infância maravilhosa.
P - Como foi?
R - Ah, nós tínhamos, aí com o passar dos anos, foi uma casa aqui e outra acolá e tinha muitas crianças, da minha faixa etária. E aí eu lembro muito de brincar na rua, eu sempre fui muito travessa, mas muito mesmo, terrivelmente travessa. Deus me privilegiou não me dando uma filha igual. E eu tive uma infância de brincar na rua, de brigar na rua também. Eu era muito brigona, sabe? Muito. Mas eu lembro dessa infância de rua, de estar com os amigos, e meu pai não gostava muito, meu pai era muito conservador, então ele achava que nós, depois a minha irmã nasceu, mas eu digo, na minha infância, ele queria mais que eu estivesse dentro de casa. Como ele passava o dia inteiro na rua, minha mãe não conseguia me segurar dentro de casa, e eu ia para o pátio, para a rua brincar. E tem uma situação específica que eu recordo muito: tinha uma brincadeira que eu queria participar e ninguém deixava eu participar, eu tinha que dar alguma coisa em troca, e eu dei todas as laranjas do meu pai no pé que tinha na frente de casa. Isso eu recordo muito bem. ‘Ah, eu quero participar.’ ‘Tá, mas então qual é a tua participação pra participar da brincadeira?’ Tinha que ser uma coisa bem difícil. Bem impactante. Eu dei todas as laranjas que meu pai tinha na frente de casa. Não preciso te dizer que, quando ele chegou, não tinha mais laranja. Eu recordo quando meu pai chegou, ele não viu porque era noite. Ele foi ver dias depois. Preciso dizer: castigo. Meu pai nunca foi de me bater, nada, mas era o castigo. Naquela época eu ficava sentada olhando pra uma parede, horas e horas. Esse era o castigo. Meu pai nunca levantou a mão pra mim. Minha mãe fazia o que podia e não adiantava. Fugia de casa, ia pra casa de uma vizinha que ela não gostava, provocava. Eu nunca tive muito, nesse ponto. Era aquela coisa assim: ‘Quando teu pai chegar, tu vai te ver com teu pai.’ E realmente, o pai me metia medo. A mãe era danada. Bem displicente nesse ponto. Então, eu sempre fui muito levada. Muito, muito, muito levada, assim. Aí depois veio a minha irmã. Minha irmã tem sete anos a menos que eu. Aí bateu o ciúme. Aí o ciúme foi bem grande, eu voltei a chupar bico. Aí eu queria a cola do meu pai, porque durante sete anos eu fui só eu, tudo era em função de mim. E como eu era muito elevada, eu também judiava muito da minha irmã. Minha irmã dormia no berço, no quarto, e eu tinha uma cama de mola. E a minha mãe ia pra beira do tanque pra lavar a roupa, minha irmã ficava no bercinho dela, e aí eu ainda tava na minha caminha. E uma vez a minha irmã chorava muito, muito, muito, muito. Claro, eu levantei da minha cama de mola, fui lá e dei um beliscão nela. Só que a minha mãe percebeu, porque a cama de mola fazia barulho. Mas ela teve a sensibilidade de não registrar o fato de eu ter agredido a minha irmã, beliscado ela. E eu lembro que aquilo ali foi um divisor de águas, porque como eu sentia que ela estava roubando o meu espaço, eles tentavam não fomentar isso. Ao contrário. Mas eu não, sempre fui muito levada nesse ponto, então não era com a minha irmã, pois a minha mãe, quando minha irmã já estava um pouquinho maior, minha mãe foi trabalhar fora, porque meu pai era daqueles que achava que mulher não tinha que trabalhar fora. Então, aconteceu da minha irmã estar grande e ele: ‘Então, agora eu permito que tu trabalhe.’ A minha mãe começou a trabalhar meio turno. E eu ficava com a minha irmã, mas ainda malvadinha, dava uns tapinhas nela de vez em quando. Aí ela, quando se sentiu mais forte que eu, se vingou. Se vingou de uma vida inteira. Ela dizia assim: ‘Mãe’, quando a minha mãe chegou, ‘eu acho que eu aleijei a mana, porque eu dei tanto nela.’ Ela deitou em cima de mim e me bateu. Eu acho que todos os nove anos de vida que eu aprontei com ela, ela se vingou. E aí ela contou, exatamente, contou pra minha mãe: ‘Olha, fiz isso.’ Aí, durante uns bons anos, houve um respeito mútuo, digamos assim, em relação a uma respeitar a outra, mas a minha relação com ela nunca foi boa. Apesar de ser só nós duas, eu sempre tinha, no fundo, uma insegurança que ela venha pra roubar o que era meu. E eu não sabia nem o quê, mas eu tinha essa sensação. E nós fomos criadas, assim, dentro da nossa simplicidade, tudo muito equalizado. Minha mãe chegava a pegar uma bala, se tivesse, cortava ao meio, metade pra cada uma. Ela sempre nos deu tudo da mesma proporção. E mesmo assim, eu tinha essa insegurança em relação à minha irmã. Então, o nosso relacionamento nunca foi muito bom. E aí, conforme a gente foi amadurecendo, digamos assim, quando a gente já estava casando, nós ainda tivemos uma bela de uma briga na frente dos respectivos cônjuges. E também foi a última. De lá, assim, a partir de lá, isso tem 25, 26 anos, a partir de lá, a nossa relação cada vez foi mais próxima, mais próxima, mais próxima. Hoje a gente tem uma relação muito boa. Nós tivemos que enfrentar uma barra com a minha mãe há cinco anos atrás. Minha mãe sempre teve problemas, eu não posso dizer psiquiátricos, mas psicológicos desde os seus 38 anos. Minha mãe sempre foi muito dependente do meu pai pra tudo. E meu pai morreu em 97, e ela acabou transferindo pra mim essa dependência que ela tinha do meu pai. Eu sou a mais velha e eu acabei ocupando o papel do meu pai na vida dela. Eu morava com ela, eu tinha tido já um primeiro relacionamento onde eu tive a minha filha. Minha filha não é desse relacionamento, minha filha é de um primeiro relacionamento, e eu morava em outro local. Nessa época, meu pai ainda era vivo. Aí eu me separei, o pai da minha filha era alcoólatra, e aí foram um, dois anos, não teve mais porque eu tava passando uma situação bem pesada pra minha filha com aquela convivência. Aí eu optei em me separar. Só que, nesse primeiro momento, eu fiquei sozinha com a minha filha. Isso foi em janeiro de 97. E o meu pai faleceu em agosto. E, nesse momento, eu decidi voltar e morar com a minha mãe. Aí foi no momento que a minha mãe acabou transferindo o papel do meu pai pra mim. E eu assumi, aceitei. Não foi uma coisa conversada, foi uma situação que foi ocasionando. E eu acabei assumindo esse papel de protetor, de cuidador. A minha irmã, nessa época, tinha 21 anos, não era casada, então a gente foi morar nós três, mais a minha filha, na minha casa de nascença, onde eu nasci. E aí foi. Minha mãe cada vez mais apegada a mim. Aí, em 2000, três anos depois, eu conheci meu atual marido. E aí, no primeiro momento, foi muito bom. Porque nós optamos em morar com ela, pra não deixar ela sozinha. Daí, meu marido atual foi morar conosco. No primeiro momento foi bem difícil, porque tinha a situação da minha filha, que já tinha três anos, então era uma pessoa que não era o pai dela, que sempre quis ser o pai dela, mas a minha filha também quase foi rebelde que nem eu no começo. Mas a gente conseguiu dar uma contornada. Então, ele foi morar conosco, a relação dele com a minha mãe era boa no começo, mas daí começou a questão da posse. Minha mãe voltou àquela coisa que eu tinha que ser - vou dizer bem o termo que a gente sentia - ‘tinha que ser dela’. Então, ela tinha muito ciúme do meu esposo, e isso gerou muitas confusões na minha casa. Muitas confusões, muito pesadas mesmo, até de quase agressão entre eles. Meu marido, eu tenho 55, meu marido tem 70, e a minha mãe tem 77. Então, a proximidade de idade deles é muito mais próxima do que a minha com ele. E as brigas eram muito frequentes. A minha mãe simulava agressões dele, a minha mãe falava coisas que realmente não existiam. E isso não é porque era a palavra dele ou dela, era porque existiam situações que comprovavam que ela falava coisas que não procediam. Então, em 2016, ela teve uma crise muito forte de depressão. Muito forte. Ali foi a pior coisa que aconteceu, porque ali eu acabei mimando mais ela. Então, eu dava comida na boca, eu dava banho. Em 2016, ela tinha 68 anos. Ela ainda era uma mulher jovem. Ela ainda é. Então, quando nós percebemos, tanto eu como a minha irmã - porque minha irmã morava na casa de cima e eu na de baixo -, quando nós percebemos que ela já não estava mais naquele momento tão depressivo e nós quisemos retomar nossa vida normal... E quando eu digo retomar minha vida normal, é trabalhar normalmente, é poder sair no final de semana com meu esposo, porque minha mãe não é uma mulher inválida. Não era e não é. Ela não aceitou. Aí as brigas ficaram muito piores. Mas muito, muito piores. Perdemos a proporção. Acabou-se o respeito, digamos, na casa. Mas a minha irmã, morando em cima, acompanhava tudo que acontecia. Minha irmã sempre foi muito presente. Foi aí que eu me aproximei muito da minha irmã. E aí nós tivemos que tomar uma decisão em 2021 - nós estamos em 25 -, nós tivemos que tomar uma decisão. A mãe tinha um acompanhamento com uma psiquiatra há muitos anos. E a psiquiatra sempre dizia: ‘Eu acredito que, apesar da mãe de vocês ser jovem, eu acho que vocês vão ter que decidir em relação ao que fazer com ela. Porque o que vocês podem dar não é o que ela quer. Ela acha que ela precisa de mais.’ E isso significava pensar em colocar a minha mãe numa clínica geriátrica. Foi uma decisão muito difícil pra mim, mais ainda porque, como eu tinha a sensação de ser responsável por ela e morar na casa - a princípio que seria dela, era uma casa do meu pai e dela -, era como se eu estivesse descartando a minha mãe. E isso foi muito difícil. Mas, assim, nós tivemos que decidir isso num momento assim, que nós tínhamos até um laudo da psiquiatra com essa sugestão, baseado no quadro da minha mãe. E nós tivemos que decidir isso num momento assim, desses ápices de brigas. Então, quando nós optamos e colocamos, a gente vinha pesquisando clínicas, fazendo várias pesquisas até, porque a gente queria que ela estivesse num lugar que, dentro do que aconteceu, ela tivesse pelo menos uma assistência adequada. E a gente tomou essa decisão no dia 6 de setembro de 2021. Vai fazer quatro anos agora. E ela foi. Ela foi achando que ela tava indo pra uma clínica pra fazer um tratamento. Lúcida, bem, bem, assim, sabendo o que que tava acontecendo, nós levamos ela. Aí ela ficou uma semana, duas, daí ela dizia pra mim: ‘Pronto, não adiantou, não vou melhorar aqui também, agora eu quero ir embora.’ Ali foi complicado. Mas a gente sempre teve a assistência da psiquiatra dela junto conosco, nos orientando, nos acompanhando ela também. Então, nessa época, eu me perdi completamente, porque a culpa era muito grande. Aí foi, eu disse assim: ‘Meu Deus, o que eu tô fazendo? Será que tá certo? Será que tá errado? Me diz o que eu tô fazendo, porque se tiver errado, eu posso voltar atrás.’ Daí, a minha irmã dizia: ‘Não, mana, a gente tá certo.’ A doutora sempre dizia assim: ‘Vocês fizeram tudo que vocês podiam. Tudo o que vocês podiam. Só que vocês também precisam viver a vida de vocês. Vocês ainda estão no momento que trabalham.’ Eu trabalho fora até hoje, no trabalho. E eu não tinha como ficar com a minha mãe. E eu também não podia impor que meu marido, aos 70 anos, cuidasse dela. Eu poderia ter botado alguém lá em casa? Poderia. Mas eu diria que tem uma pessoa de manhã, uma pessoa de tarde, e a minha mãe se acha até hoje inválida. Então, ela já não queria tomar banho sozinha. E a psiquiatra sempre dizia: ‘Não, você tem que incentivar ela. Ela tem que fazer, porque ela tem condições de fazer.’ Só que ela não queria tomar banho sozinha. Se não fizesse a refeição na hora que ela quisesse, e ela esperava isso do outro, ela não comia. Então, a coisa tomou uma proporção que a gente tinha que decidir. E a gente optou em colocar ela na clínica. Então, eu vou te dizer que eu acho que o primeiro ano... O primeiro ano foi o ano da... Nós ainda estávamos na pandemia. Foi muito difícil pra mim. Muito. Assim, era uma tortura. Foi nessa época que eu optei, optei e não. Que eu entrei na Umbanda. Porque não foi uma opção minha naquele momento. Não fui eu que busquei. A minha filha sempre foi muito... como é que eu vou dizer assim? Ela sempre teve uma sensibilidade muito grande. Muito grande, muito grande. Tanto é que, quando a mãe tinha as crises, ela tinha reações que, pra mim, eram muito estranhas. Ou eu fui espírita, eu fui batizada na Igreja Católica, mas eu nunca segui. Eu tinha uma afinidade com o espiritismo. Daí minha filha dizia, ‘mas não é isso’. Ela dizia assim, ‘não é aí que eu me encaixo’. Mas então, por eu ter essa afinidade com o espiritismo, eu sentia que, quando a minha mãe tinha essas crises, a energia da minha casa, assim, era caótica. Então a gente sabia que, pra nós que acreditamos, eram portas abertas e que ali entrava de tudo. E aí a minha filha, em 2022, tem uma casa de Umbanda, próximo da onde a gente morava, que tem uma amiga minha de infância que trabalhava. Daí a minha filha começava, ‘mãe, tá aberta? Tá aberta?’, porque, como foi pandemia, eles fecharam. E eu dizia, ‘não, não abriu ainda’. E eu rezava que não abrisse, que, pra mim, era um bicho-papão. Eu achava que era um... sei lá, que a minha filha ia entrar lá e ia ser abduzida. Sei lá o que eu pensava. E eu dizia, ‘não, não tá aberto’, e rezando. ‘Ai, que bom que não abriu ainda, que bom que não abriu’. E a minha filha entrou numa depressão muito forte. E eu não consegui perceber. Ela teve até bons desejos de se suicidar. E eu não consegui ver isso. Eu só fui saber depois que ela entrou nessa casa. E aí, a casa voltou a atuar. E ela foi sozinha. Ela simplesmente pegou e foi e me disse, ‘tô indo lá’. E eu, ‘meu Deus, e agora?’ E ela foi num sábado, sozinha, chegou lá. Aí depois ela me contou que ela chegou muito mal, muito mal, ela teve um atendimento de urgência porque ela estava com essas... essas vontades assim de suicídio. E isso foi tipo assim, foi uma semana, duas semanas, ela começou a ir todos os sábados. Eu acho que fazia uns 15 dias que ela estava frequentando e eu senti nela uma melhora. Ela estava mais leve. Então, ‘se faz bem pra minha filha, não é um mau lugar. E eu quero saber o que faz bem pra minha filha’. E eu fui. Eu cheguei lá e me escondi. Lá atrás, assim. Ah, ‘tu quer tomar um passe?’ ‘Não, imagina’. Sentei na última cadeirinha lá, bem quietinha, pra ninguém me ver. Porque vai que me abusam lá. E aí, ali eu fui indo. Eu fui indo e fui gostando do que eu via. E via minha filha cada vez melhor. E também eu sentia a minha culpa com a minha mãe, então eu consultava, eu dividia a minha angústia. Resumo: foi em 2022, eu frequentei por um ano, a minha filha, seguida, começou a trabalhar. Seguida, sim, porque ela sempre foi muito desenvolvida. Eu, pra mim, não tinha nenhum tipo de mediunidade, não me desenvolvia, mas como eu frequentei, frequentei, isso foi surgindo. Aí, no ano passado, começo do ano passado, eu recebi um convite pra trabalhar na casa. E lá a gente tem um... como é que eu vou dizer assim? Um critério. A gente chega e vai trabalhar, por exemplo, recebendo as pessoas, fazendo os agendamentos pra quem quer consulta, pra quem quer tomar um passe. A gente não se trabalha com trabalhos, é Umbanda mesmo, então é só consultas e passes. E eu me estico a dizer assim que eu ia ser a menina da porta o resto da vida. Porque o que eu posso auxiliar, que não seja recebendo as pessoas? E isso, pra mim, foi uma descoberta gigante. Só que eu entrei em abril. Em maio veio a enchente. Eu tinha trabalhado 15 dias na casa. E aí veio aquela situação, aquele vácuo na vida da gente, a casa fechou. Por esse tempo, a gente chegou a fazer alguns encontros online, mas só retomamos em outubro do ano passado. Aí foi quando eu realmente comecei a trabalhar na casa. Aí eu voltei para o meu... quando era meu dia de trabalho, eu ia para a portaria, eu recebia as pessoas. O melhor momento, pra mim, era essa troca. Era o abraço afetuoso, era o olho no olho, era saber que eu tava sendo útil de alguma forma, nem que fosse pra dar aquele abraço naquele momento. E de lá pra cá eu tô normal, tô normal, a casa tá assídua, eu também tô assídua, eu trabalho todas as semanas, a gente tem momentos de estudo, eu vou me descobrindo cada vez que eu vou lá. Hoje eu tenho um lema na minha vida, porque eu digo, ‘a gente ouve muito isso, não julgai, não julgai’. E muitas vezes tu fala alguma coisa assim, ‘ah’, tu fala qualquer coisa, ‘mas eu não estou julgando’. Está. E isso é uma coisa muito difícil, porque mesmo que tu não queira, tu acaba de alguma forma julgando. E a gente trabalha muito isso, ‘não julgai’. E toda vez que, sem querer ou querendo, eu faço qualquer tipo de julgamento, eu sou pega de uma forma que eu digo, ‘meu Deus, não era pra ter sequer pensado’. Mas só o fato de eu trabalhar isso comigo hoje me torna uma pessoa cada dia um pouquinho melhor. O ano passado, com a enchente, a gente saiu. E o meu marido, a gente acabou saindo sem nada. Porque a nossa intenção era ficar na casa da minha irmã, porque, como eu morava lá há 54 anos, nunca passamos por isso. Nós nunca tivemos problema do local que eu morava encher d'água, então a gente não tinha noção, a gente não tinha ideia da proporção que aquelas águas tomariam.
P - Onde vocês moravam?
00:24:04
R - Aqui no Sarandi, na Zona Norte de Porto Alegre. É muito interessante. Porque onde eu moro hoje, até onde eu morava, são cinco quilômetros. E eram... Como é que eu vou te dizer? Eram situações assim que tu não tinha noção do que se estava vivendo onde eu morava. Porque se tu tivesse na Assis Brasil, ou onde eu trabalho, que é próximo de onde eu moro hoje, 15 dias depois era tudo normal. Só que se tu fosse para onde eu morava e entrasse dentro da vila, era outro mundo. Tu começava a chegar assim na metade, eu morava a 1,2 km da Assis Brasil, então tu ia tipo 600 metros, tá, tu via aquele caos, aqueles estragos, mas daí, dali pra lá, a coisa era como se fosse fazendo assim. Tanto é que a minha casa ela ficou submersa. Na casa da minha irmã ficou mais 40 centímetros, pra ter uma ideia da proporção da água.
P - E era em cima.
R - Que era em cima. Então, no dia que isso aconteceu, a gente parece que tem um insight. Porque tu olha assim e diz assim, ‘não, mas essa água tá diferente de qualquer outra coisa.’ Ela vinha com muita velocidade. Muito rápida. E aí, ‘tá, vamos subir.’ Peguei, assim, gordinha. Aqui de comida; ovos, água, mantimentos. Porque, sei lá, provavelmente a gente vai ficar dois dias aqui em cima, depois eu posso descer. Aí peguei pijaminha de andar em casa, uma muda de roupa e isso, e subimos. Dois travesseiros, subimos. Aí quando eu cheguei lá em cima, olhei, ‘opa, a água tá vindo muito rápido pra casa da minha irmã.’ Da janela dela eu olhei e vi a água vindo muito rápido. Nisso, o meu afilhado queria ficar conosco. Minha irmã já não mora mais ali, mora em Bagé, faz dois anos. Só mora o meu afilhado, filho dela. E ele disse, ‘Dinda, eu vou pra minha mãe.’ Aí eu disse, ‘filho, vai, avisa nós.’ Aí eu disse, ‘Chico, já tira o carro aqui da frente do pátio, porque eu tô achando que a água vai cobrir.’ Aí meu marido pegou o carro, botou mais pra uma quadra ali de casa, um lugar mais alto assim ó, foi eu sair pra fazer qualquer coisa quando eu voltei a água já tava no pátio aí eu olhei assim, eu disse, ‘nós não vamos ficar aqui mas assim’ foi, sabe, ‘acorda, nós não vamos ficar aqui’ só que não dava tempo de eu voltar na minha casa e pegar mais nada aí a gente levou o que deu pra levar pegamos nós, aquele, uma caixinha azul assim, uma cestinha azul com os mantimentos A mochila que a gente tinha, com as roupas, eu peguei os meus documentos, meu marido não pegou, minha filha pegou, peguei os meus e da minha mãe, porque minha mãe estando na clínica tinha ficado comigo a documentação dela. E fomos, quando nós chegamos no carro, a gente fez umas três idas e vindas pra levar, aí quando nós chegamos no carro a água já tava aqui. Aí eu digo, ‘não, a coisa não vai ter.’ Parecia uma ação de guerra, sabe? Quem podia dar vazão estava saindo. Eu já estava saindo, daí nós fomos para a casa da minha irmã em Imbé. Aí foi difícil pra chegar até a freeway porque tava tudo congestionado, acho que parecia uma situação de guerra, todo mundo querendo sair. E era carros atrás de carros, atrás de carros e tudo muito demorado. Aí a gente chegou na freeway, a vida normal. Claro que as águas na Freeway, a Freeway fica entre o Rio Gravataí e é onde estava o dique do Sarandi que estourou. E aí nós fomos para a minha irmã, chegamos lá, assim, é uma incredulidade que assim, tu fica pensando, ‘o que vai acontecer? Qual é a proporção que isso vai ter? Eu vou conseguir voltar pra minha casa daqui dois dias, três dias?’ Que era o que a maioria das pessoas tinham esse pensamento, que é uma coisa muito... ‘não vai ser tão trágico assim.’ Isso foi num sábado, 4 de maio, quando foi nesse mesmo sábado à noite a gente começou a receber vídeos, só que era vídeos de barcos, de barcos andando nas ruas, onde de manhã a água estava ali embaixo. Então, ali começa aquela coisa da fomentação da desgraça que tava acontecendo. A gente recebia vídeos, só podia chegar através de barco, mas não tinha nem como chegar nas casas. Porque as casas ficaram submersas. A minha, que era térrea, ficou submersa. Então, quem morava em dois pisos, tentava até buscar alguma coisa que tinha deixado, que pudesse pegar na casa de cima. Só que daí passou um... Eu fui pra casa da Cecília, depois da minha irmã. Eu fiquei na minha irmã dois dias, e a Cecília, que é a minha chefe, e hoje é minha amiga, que eu conheço há 40 anos. Ela disse, ‘não, vem pra cá, vem pra cá, aqui tem uma estrutura pra vocês, a gente tem uma casa à parte, vocês vão estar bem.’ Só que tu tá sem rumo, tu não sabe nem o que tu vai fazer da tua vida. Isso foi na segunda, dia 6 já, tinha passado dois dias, e eu fui pra Cecília. Foi eu, cachorro, marido, filha, tudo junto. Nossa vida tava dentro do carro, que era o que a gente conseguiu levar, graças a Deus, tinha o carro. Que a gente tinha uma casa ambulante nesse momento. E aí fomos pra Cecília dia 6 de maio e saímos de lá dia 15 de julho. Só que eu sempre digo. Nós fomos pra Cecília. Nós não fomos pra uma casa. Nós fomos pra uma família. Então, eu fui privilegiada de, por 71 dias, estar num lugar com todo o acolhimento possível, que foi o que nos deu força para decidir com clareza o que a gente queria. Então, deu 15 dias que a água, porque foram 32 dias de casa submersa. Não, 32 dias até o momento que a gente pôde entrar na casa. E aí, quando deu acho que 10 dias, eu e meu marido, assim, foi muito unânime entre nós dois. ‘Nós não vamos voltar. Como? O que nós vamos fazer agora? Vamos decidir, mas voltar a gente não vai.’ Porque o encanto quebrou. Não se tinha mais segurança. E se a gente tinha essa oportunidade de não voltar, ‘por que não?’ ‘Daí, o que nós vamos fazer?’
P - Como foi essa decisão?
R - Não foi assim, nós não sentamos e decidimos. Foi uma coisa muito natural. É como se nós dois já soubéssemos o que a gente queria. E vamos agora só ver se a gente vai alugar ou vai comprar, o que a gente vai fazer. E aí a gente procurou, então, vamos alugar. Porque comprar alguma coisa assim, sem... Como é que eu vou dizer? De primeira, assim. Geralmente, tu tem uma idealização, tu busca alguma coisa quando tu tem essa ideia de se mudar. E nós não tínhamos. Era a opção. Daí nós fomos ver aluguéis. Aí, aluguel era muito alto, essas coisas, para nós. ‘Mas se a gente vai pagar aluguel disso, por que a gente não dá um jeito de pagar isso por alguma coisa própria?’ Eu tenho 38 anos de empresa, então eu tinha um fundo de garantia que eu podia usar e nunca tinha usado ele. A gente tinha uma reserva. Aí a gente, ‘vamos comprar alguma coisa’. Começamos a procurar, a procurar. E a gente foi numa imobiliária ali, próximo de onde eu estou hoje.
P - Enquanto a sua casa estava com água?
R - Estava. Ainda estava. Porque a minha casa deixou de ter água. Foi em maio, a gente conseguiu entrar na casa exatamente no dia que saiu o financiamento do apartamento. No mesmo dia. Eu estava indo para entrar na minha casa e a gente recebeu a ligação da corretora dizendo que o financiamento tinha sido aprovado. Então eu já entrei na casa com outra energia. Aí a gente começou a procurar, procurar, e aí os corretores nos mandavam. Eu queria alguma coisa aqui, ali na região onde eu moro, porque minha mãe tá numa clínica que é duas quadras de onde eu moro, e eu trabalho duas quadras depois. Então, pra nós, seria o melhor lugar, mas ali é uma região mais cara. Então o que que a gente procurava? Procurava um corretor, levava nós pra bairros afastados, pra cá, pra lá. Por que que eu tô te contando isso? Porque, na minha concepção, quando é pra ser, nada, nada volta. Nada volta, é aquilo. E num belo dia a gente tava bem assim, ‘não vai rolar, porque não aparece nada aqui’. Então vamos ficando na Cecília, a gente sabia que a gente podia ficar lá morando se a gente quisesse. E aí entrou no meu celular, de tanto eu procurar, entrou o apartamento, assim, assim. Aí eu disse pro meu marido - a gente tava indo pra Águas Claras, lá pra Cecília, e tava um pouco antes desse local que eu moro - eu disse assim: ‘ah, é aqui próximo, vamos dar uma olhada’. Aí a gente foi, olhou o prédio por fora. Daí, eu sou muito decidida. Eu demoro às vezes pra decidir, mas quando eu decido, tá resolvido. Aí eu disse pra ele: ‘já liguei pro corretor, já marquei dois dias depois’, e aí fomos ver o apartamento. O apartamento tava fechado há três anos. Eu moro no último andar, face norte, pega um sol muito bom, maravilhoso. E aí eu liguei pro corretor, perguntei se eu podia ver. Ele disse: ‘sim. Vamos agendar?’ Agendei dois dias depois. E aí, quando eu entrei no apartamento, já entrei filmando, porque eu queria que a minha filha tivesse a mesma percepção que nós, no mesmo momento. E aí o meu marido, um foi para um lado, outro foi para o outro. E nós nos encontramos no corredor falando a mesma coisa. Eu saí do quarto, ele saiu do banheiro e ele disse: ‘é esse’. E eu também falei: ‘sintonia. É esse’. Aí a gente olhou, riu. E aí eu já: ‘como é que eu faço uma proposta?’ Porque eu sempre fui muito decidida. Meu marido já fica mais assim. Eu disse: ‘como é que eu faço uma proposta?’ Daí ele disse: ‘não, faz assim, diz as condições que tu pode pagar’. E fizemos. Encaminhamos pra ele, ele nos sugeriu uma despachante, já encaminhei pra ela. E aí começou essa tramitação da mudança. E aí, no dia 21, a gente já tinha assinado o contrato de compra e venda. No dia 21 de junho, a gente foi pegar a chave, saiu o financiamento. A compra e venda foi depois. Só que, no dia 21 de junho, saiu o financiamento, a despachante nos ligou e disse. E eu estava indo para o Sarandi pela primeira vez, quando ainda tinha água, que não era nem água, era um lodo fétido, uma coisa surreal de ver. Mas como eu tive essa notícia que o apartamento - que tinha saído financiamento do apartamento -, nós já fomos com outra mentalidade. Então, a gente não chegou lá com lamúrias. A gente chegou lá com decidido o que a gente ia fazer lá. O que a gente ia fazer lá nesse dia? No dia seguinte, iam alguns amigos meus para nós tirarmos tudo, para limpar a casa. Mas a gente tinha algumas coisas que a gente gostaria muito de encontrar, que eram coisas mais sentimentais. Então, tinha uma pulseira que a minha sogra tinha dado para o meu marido. Minha sogra morreu faz dois anos e era uma pessoa muito iluminada, mas, antes de morrer, ela resolveu pegar tudo que ela tinha de joias e fez quatro pulseiras: uma para cada filho e uma para a neta que casasse primeiro. E essa pulseira tinha um valor muito sentimental para o meu marido. E eu também tinha uma que ele tinha me dado. Como achar isso num lugar assim, onde tu tava com uns 10 centímetros ainda desse lodo, dessa coisa preta? Sem luz, porque a gente lá não tinha luz nessa época. E nós fomos pra casa pra fazer esse garimpo. E foi muito assim. Apesar de eu ter dito que eu sou muito emotiva - e eu sou -, nesse momento eu fui... Eu sou muito extremo. Nesse momento eu fui a pessoa mais prática do mundo. Eu sabia o que eu queria, eu não me abalei com nada do que eu vi. E foram cenas muito difíceis de ver. Porque é a tua história, mas eu não conseguia ver aquilo ali como a minha história. Aquilo ali, pra mim, era só entulhos. É como se a minha história tivesse ficado no dia que eu saí. Ali era só entulhos, entulhos, entulhos. Tu não conseguia nem identificar o que tu tinha ali dentro. E aí tivemos que arrombar a porta, porque a porta encheu. Entrar, se deparar com aquele cenário pós-guerra. Surreal, assim, surreal. E fomos à caça das coisas que a gente queria, que eram essas coisas sentimentais. E aí era pra botar a luva e catar. Mas, como as coisas são para acontecer, tudo que a gente queria foi achado.
P - O que vocês acharam?
R - Tudo, a pulseira dele, a pulseira minha. A única coisa que eu não achei, e eu procurei, era minha carteira de trabalho, porque eu ainda não sou aposentada. E eu gostaria muito de ter ficado com a minha carteira de trabalho, pois eu achei até do meu falecido sogro, que morreu faz 30 anos e estava com meu marido. Todas as carteiras do meu sogro, achei da minha filha, achei do meu marido, que já é aposentado. E a minha não achei, então não era pra ser achada. Porque foi procurada. E aí, dali, o que eu disse para os meus amigos que estiveram lá? Eu disse assim, ‘eu não quero nada’. Meu marido disse, ‘como assim?’ Eu disse, ‘eu não quero nada. Nada, nada, nada, nada’. E realmente, eu tirei toda a minha história, como se não fosse minha, como se fosse de uma outra pessoa. Eu acho que seria até mais dolorido se fosse de uma outra pessoa. Porque eu estava muito indiferente ao que eu estava fazendo. Se fosse com uma outra pessoa, provavelmente eu estaria mais empática. Eu acho que é uma proteção. E eu tirei toda a minha história. Toda. De pegar roupas, quadros e botar tudo no lixo e largar na frente da casa. Assim, sem nem olhar, muitas vezes, o que eu estava fazendo. Era no automático. Aí meu marido ia lá, buscava uma coisinha, eu disse, ‘não, vai ficar lá’. Ele, ‘não, mas eu quero guardar’. ‘Não, tu não vai, não tem que guardar’. As fotos eram... A minha filha tinha ainda uma caixa, ou eu tinha, da minha filha, eu tinha todas as fotos que eu não tive na minha infância. Então, a Mariana tinha desde a gestação dela, da minha gestação dela, tudo guardado. E tu abria aquela caixa, eram imagens distorcidas, tu não sabia nem identificar. Mas eu deixei. Essas fotos, elas estão lá em casa hoje. Naquela casa. Naquela casa que ficou lá, eu deixei todos esses documentos, fotos, mas tá lá no canto, foi a única coisa que a gente deixou. Mas tá lá, não tem o que fazer com ela, mas eu deixei. Até por um respeito a toda aquela história que tinha ali, ficou lá. O que eu vou fazer, não sei. Mas daí, como a gente tinha optado em sair dali, a gente tinha que decidir. Ou a gente fica aqui, investe, gasta, limpa, refaz a casa, porque o forro caiu, toda a fiação foi estragada com a enchente. Aí nós dissemos, ‘não, temos que escolher, porque não dá para fazer as duas coisas financeiramente, não se tem tempo, a gente precisa seguir’. Então a gente optou em seguir nesse novo caminho e deixar a casa lá. Se mais tarde... Até porque eu tenho uma questão mais assim, como é que eu vou dizer assim, mais emocional por ter sido a casa que meu pai construiu. A casa foi construída pelo meu pai, tijolo por tijolo. Meu pai era um exímio serralheiro, então todas as grades que tem na minha casa foi ele que fez. E não foi fácil, meu pai não tinha carro, então ele trazia os ferros dentro da bolsa, comprava da empresa e trazia pra ele fazer. Então, meu pai não concluiu a casa quando ele chegou a falecer, porque foi um processo muito longo. Então, ele não tinha concluído a casa, nós concluímos depois, quando eu fui morar lá novamente. Então, quem sabe mais tarde eu retome, eu possa cuidar um pouco mais desse espaço por ele. Que é uma sensação que eu tenho, porque eu fui muito feliz ali, eu sei o trabalho que ele teve, a dedicação que ele teve, eu acompanhei a construção, eu ajudei a minha mãe. Então, mais tarde, quem sabe a gente dê esse cuidado que agora a gente não deu. Então, tiramos tudo de dentro, não conseguimos lavar. Então, não deu tempo hábil de fazer a lavagem. Então, a casa, se tu chegar lá hoje, tu vai ver que ali teve uma enchente. A casa tá vazia. Mas teve uma enchente. No começo, eu ia mais lá. Eu ia. Por último, não tenho ido. Eu sinto uma energia muito pesada.
P - Você ia visitar?
R - A gente tinha, meu marido tinha uma adega, então a gente ia buscar as bebidas que ele achava que podia usar. E tem ainda lá, ficou algumas lá, então a gente, de vez em quando, ia lá pra buscar uma, duas, três, quatro garrafas de vinho, alguma coisa que ficou lá. E já... Como é que eu vou dizer? Já dava uma olhada no espaço. Pra não abandonar de vez. Mas daí, com o passar do tempo, cada vez isso foi se espaçando mais. E, energeticamente, eu não me sinto bem mais lá dentro, assim. A última vez que eu estive lá, me senti muito mal. Não sei nem te dizer exatamente o que que é. Então, eu não estive mais lá. Não fui mais lá. Acho que ainda é uma situação, assim, mal resolvida. Porque, se mexe emocionalmente, é porque não tá bem resolvido. E também não acredito que nunca vai estar. É dúbio o sentimento porque, ao mesmo tempo que teve todo esse sofrimento, toda essa dor, teve toda uma força para conquista. Eu sempre quis ter uma casa própria, sempre. Desde que eu fui morar, no primeiro momento eu fui morar com meu marido, depois nós casamos, e eu sempre sonhei com uma casa própria. Até porque a minha relação com a mãe era ruim. E eu queria ter meu canto, deixar ela no dela e ter o meu espaço. E eu sempre mentalizei: ‘Eu quero a minha casa, eu quero a minha casa, eu quero a minha casa’. Em 2015, 2016, a minha sogra, que tinha um terreno muito grande em Itajaí, no centro de Itajaí, em Santa Catarina, teve uma proposta pra vender, pra construírem edifício, condomínio, não sei. E a venda foi quatro apartamentos. Três num prédio no centro de Itajaí e um onde ela quisesse morar. Então, três iam ficar para os filhos. Onde ia ser construído esse edifício, foi dado três apartamentos em troca da venda do terreno. A minha casa nasceu. Onde a minha casa nasceu? Em Itajaí. Eu moro em Porto Alegre. Minha vida toda está em Porto Alegre. Eu ainda trabalho. Ali eu vi que, quando a gente quer muito, muito, muito, vem. Mas não como tu quer. Ali eu vi que não adianta eu ganhar uma casa. Eu ganhei a casa. O que eu ia fazer? Não podia abrir mão de tudo que eu tinha aqui naquele momento e ir morar em Itajaí. Ali caiu a minha ficha: ‘Cuidado com o que tu queira’. Porque a coisa acontece. E aí foi. A casa tá lá, o apartamento tá lá até hoje, a gente continua com o apartamento, ele tá alocado em Itajaí. Nem quando aconteceu tudo isso eu pude usar essa casa como a nossa casa. Então, ali também foi um marco pra mim entender que a gente quer, quer, quer, quer, mas não é como tu quer, não é na hora que tu quer. Isso é muito gritante. Isso chega assim como: ‘Acorda! Tu não sabe o teu dia de amanhã, tu não sabe nada. Ninguém sabe. A gente tá aqui a passeio’. ‘Não, não é a passeio. A gente tá aqui pra evoluir, pra aprender. Jamais a passeio. Por mais que a gente pense que é a passeio’. E o ano passado, quando tudo isso aconteceu, que no primeiro momento tu te questiona. Sempre o ‘por que eu, o por que comigo, nunca tinha acontecido isso’. Mas eu sempre senti, a minha vida inteira, que tudo era muito bom. Eu não tô a passeio aqui, tá tudo tão bom, parece que tem alguma coisa que, não sei, tá falho nessa vivência. Nessa vivência que eu vim pra evoluir, digamos assim. Aí eu pensava assim: tem alguma coisa assim... Eu viajava, eu trabalho há 40 anos na mesma empresa, tenho uma estabilidade. Meu marido e eu, era só pra passear. A gente, a casa era própria, não gastava com nada. E eu disse assim: ‘Mas tá tudo tão bom’. Não que não quisesse que estivesse, mas sabe quando tem a sensação que tá bom demais? Aí aconteceu tudo isso, ano passado. Vocês não têm ideia do quão forte eu me sinto hoje. Eu dizia pra Cecília, porque eu vinha, eu e a Cecília de carro pra Porto Alegre, pra trabalhar. Ela é minha chefe. A gente vinha junto, e eu dizia: ‘Chefe’ - as lágrimas pingavam - a gente chama ela de chefe, sempre chamamos - ‘Chefe, tu vai e escreve o que eu te estou falando. Eu vou ter tudo o que eu tinha, mais ainda. Escreve’. Eu dizia isso na ida e na volta, na ida e na volta. E, realmente, hoje eu tenho muito mais do que eu tinha. Muito mais. Mas não é só o material muito mais. É a pessoa. Porque eu me sinto muito mais forte. Apesar de chorona, eu me sinto muito mais forte. Eu acho que qualquer situação que eu venha a passar hoje, eu vou saber enfrentar. Ou as coisas vão encaminhar. Vão se encaminhar pra que eu consiga ter forças pra enfrentar. Porque eu sempre me senti muito insegura. Mas passava pros outros sempre uma pessoa segura. E sempre quis passar isso porque não queria que ninguém visse a minha fragilidade. E eu sempre fui muito insegura. Muito, muito, muito, muito. Assim, até hoje eu tenho momentos assim que eu me sinto muito insegura. Eu lembro do ano passado. Eu disse: ‘Não, retorna um pouquinho. Se tu passou o que tu passou no passado, se tiver que passar qualquer coisa agora, vai ter. Vai ter insumos pra que tu consiga lidar’.
P - Você pensa isso?
R - Penso, eu sinto. É muito difícil. É muito difícil, porque a gente vive provações diárias. Profissionalmente, a gente fez um financiamento do apartamento. São dez anos de financiamento. A gente financiou um terço do apartamento, os outros a gente conseguiu. Mas meu marido tem 70 anos, eu tenho 55, daí eu fico pensando: 10 anos, meu marido vai estar com 80, meu marido é uma pessoa bem saudável, mas tudo quando tu pensa. Aí eu fico pensando hoje, hoje, hoje, pensa hoje. Porque não tem como, eu não sei o que vai acontecer daqui a uma hora, não sei o que vai acontecer amanhã, e aí eu me lembro do ano passado. Eu disse que a mulher que passou o que eu passei o ano passado. E isso não foi mérito meu. É só chegar onde eu moro hoje e olhar para as casas: tu vai ver que a desgraça foi muito grande. Mas a mulher que teve força para passar o que eu passei. E se sentir segura, se sentir forte, se sentir vencedora. Eu acho que… Estando com a minha família, estando com o meu marido, estando assim próximo ou vendo a minha filha bem, hoje para ela vai ser um dia bem impactante, hoje sai o resultado da OAB. E ela fez a prova, a segunda prova agora, então ela tá bem ansiosa. Então, se eu estiver com eles, eu tenho força pra tudo. Eu vi que a família sempre pra mim foi uma base, tanto é que a minha relação com a minha mãe se tornou doentia por eu me achar responsável pela minha mãe. Então, se eu estou com eles, eu me sinto forte pra tudo. Pra tudo. Se eu passei o que eu passei junto com eles no ano passado e a gente superou, pelo menos, emocionalmente, vai levar muitos anos. Eu acho que nunca vai chegar a superar porque foi muito traumático. Mas a gente passou por tudo isso e a gente hoje tá junto e tá forte e isso nos tornou mais fortes, nos tornou mais unidos, mais fortes, valorizando coisas que antigamente a gente não valorizava, se desentendia por coisas bobas, sem sentido. Então, eu fico pensando, vamos viver o dia de hoje, vou pensar hoje. Porque insegurança eu sempre tive, é difícil, é um treinamento diário pra mim. A gente escolhe quem a gente alimenta: o diabinho do bem e o diabinho do mal. Então, às vezes fica assim, ‘ah, mas acho que vai dar tudo errado’. ‘Não, mas mesmo que dê errado. Onde fecha uma porta, abre uma janela’. Isso pra mim é muito forte e na terreira a gente ouve muito isso: ‘Vocês nunca estão sós. Não esqueçam disso. Por mais que vocês se sintam sós, vocês não estão sós. Vocês têm sempre um protetor, tem o anjo da guarda’, a gente dá o nome que a gente quer. Mas a gente não tá só na minha concepção. E eu tenho essa sensação. Lá atrás, quando eu me sentia muito abençoada, que eu dizia, tá tudo muito bom. Hoje eu também me sinto, mas eu me sinto mais forte do que lá atrás. Porque hoje eu sei que eu sou capaz de enfrentar grandes problemas e de alguma forma sair deles. Mas é mais ou menos isso da minha vida, tem o lado profissional também.
P - Isso, queria. Posso voltar um pouquinho?
R - Pode, porque eu fui falando, tu não precisa nem perguntar, tu viu? Eu fui falando.
P - Eu queria te perguntar, na sua infância, como era o seu bairro? Como era a sua casa? Se você puder descrever pra gente na tua infância.
R - Minha casa? Que essa que tá lá, não era essa que tá lá, óbvio. Ela era uma, na época nem sei se vocês vão saber o que que é isso, mas a gente falava que era uma meia-água. O que que era meia-água? Era três peças, três peças na frente do pátio, aonde o telhado ele era assim, ele era inclinado. Pra frente a casa era aqui, o telhadinho era assim, eram três peças. Ali era a cozinha, a sala e o quarto. Eu dormia na sala, na cama, aquela de molinha. Muito interessante, porque quando eu era criança, eu sempre gostei muito de trabalhar, eu achava que ia trabalhar com papéis. Então, eu achava o máximo, porque naquela época era datilografia, e eu não tinha uma máquina de escrever, eu tinha um pianinho. Então, nós não tínhamos roupeiro, nessa época nós tínhamos uma mala antiga, uma mala bem antiga, bem grande, assim, que eu lembro. E as minhas roupas ficavam ali dentro. E ao mesmo tempo que as minhas roupas ficavam ali, pra mim aquilo ali era a minha escrivaninha. Então eu botava os papeizinhos que eu tinha, botava a tal da máquina datilografia ali, que era o meu pianinho. E ali eu me sentia, sentava num banquinho e ficava ali. Daí a minha mãe queria pegar alguma roupa. Tirava, desfazia da minha escrivaninha pra pegar a roupa. Então eu tenho essa lembrança dessa casa, assim, com tudo muito simples. Na época tinha talha. Aquela botava água, a gente só tomava o dali, porque minha mãe tinha que buscar água do poço. Então, ainda não tinha água encanada. A gente tinha uma vida muito simples, mas muito mesmo, assim. Mas eu lembro da minha infância muito feliz, assim, por causa que eu estava sempre na rua, sempre com os amigos. Até hoje, tem pessoas da minha infância que moram lá. Então, são histórias de vida. Por exemplo, a minha casa ficava aqui, aqui tinha uma ao lado e outra na frente. Era eu, a menina daqui e a menina de lá. E a gente tem a mesma idade. Então, uma fazia aniversário em outubro, outra fazia em novembro, outra fazia em dezembro. A gente tinha a mesma idade. Então, a gente tinha uma afinidade muito grande. Tanto é que eu sou madrinha de casamento de uma delas. E até hoje a gente mantém contato. A que mora aqui ainda é dona da mesma casa. A que mora na frente foi morar em Caxias do Sul. Mas a gente tem uma relação muito próxima ainda com aquela... Muitos vizinhos daquela época ainda estão lá. Então muitos vizinhos viveram as mesmas coisas que a gente viveu. Mas da minha infância, lembro também que a minha falecida avó morava conosco, lá nessa casa. Meu pai daí na época, como meu pai sempre foi, ele construiu tudo. Ele construiu mais uma, aqui era a tal da meia-água, e ele fez mais uma casinha anexa pra minha avó poder morar. E a minha avó foi morar conosco. Minha avó sempre foi muito, me protegeu sempre muito, muito, muito. E ela faleceu.
P - Mas a avó materna?
R - Materna, da minha mãe. E aí ela morou conosco lá. Em 78, eu tinha 8 anos. Eu tinha 8 anos e a minha irmã tinha 2. A minha mãe, na época, acompanhava a minha avó pra receber. Tinha que ir ao banco. Receber. E num dia qualquer, a minha mãe pediu pra eu ficar na casa de uma das vizinhas, que ela ia com a minha avó no banco receber, zona norte e zona sul. Então era ônibus. Então era uma distância bem razoável. E ela me deixou na casa da vizinha, eu me despedi da minha avó, minha avó disse, ‘já volto’. E ela nunca mais voltou, ela foi atropelada junto com a minha mãe, elas foram atravessar a rua. Minha mãe estava com a minha irmã no colo e a minha avó viu uma moto, se assustou, em vez de seguir com minha mãe, ela voltou. Quando ela voltou, a moto bateu nela, ela caiu, bateu na divisória da rua e teve traumatismo craniano. Então eu lembro dessa... Até hoje isso repercute em mim porque eu tenho muita preocupação quando qualquer um dos meus estão na rua. E eu chego a ser chata, eu fico ligando, ‘já chegou, tá tudo bem’. Tinha oito anos e eu lembro muito dessa minha avó, da minha avó dizendo, ‘já volto’ e nunca mais voltou. Na família da minha mãe tem algumas coincidências. Porque a minha avó é essa... Ela morreu muito jovem, ela morreu com 61 anos. O nome dela era Avelina. E o meu avô era Avelino. Essas são as boas coincidências.
P - Marido dela?
R - Marido dela. As não boas é que a minha avó acabou falecendo no dia do aniversário da filha mais velha. E o meu avô no dia do aniversário da minha mãe. Eu digo, não, são as coincidências mais traumáticas. Então, a minha mãe tem essa, esses traumas dela até desde essa época. Porque ela contava. Que no dia que antecedeu o aniversário dela, o meu avô chegou e disse assim, ‘ah, vamos fazer um bolo pra Zeca’, o apelido era Zeca, ‘vamos fazer um bolo pra Zeca amanhã’. Aí a minha avó disse, ‘ah, vamos’. Meu avô teve um infarto fulminante e morreu. Morreu no dia do aniversário da minha mãe. Então, eu digo que são as histórias trágicas da família. Então, são coisas que eu lembro, assim, de ouvir. Lembro também quando a minha avó faleceu, pra minha mãe foi muito difícil ficar ali, porque lembrava a minha avó. Aí meu pai propôs, ‘vamos sair daqui por algum tempo. Vamos morar em outro local, alugamos aqui, mas dá um tempo da minha mãe se recuperar daquilo, daquelas lembranças’. Eu tinha nove anos, oito para nove anos. E me levaram, da minha infância alegre e feliz com meus vizinhos, meus amigos, para um bairro onde eu não conhecia ninguém. Eu não conhecia ninguém, eu tive que entrar numa outra escola, que também não era no bairro que eu tinha me mudado, era num outro bairro, então eu tinha que pegar ônibus, até então eu saía da minha casa, na quadra eu tava na escola, meus amigos, eu fui pra um bairro, na Zona Sul, que a gente foi morar lá, aonde eu tinha que pegar um ônibus todo dia e ir pra uma outra escola, que eu não conhecia ninguém. Sozinha, porque a minha mãe não podia me levar, porque ficava com a minha irmã que era pequena. E ali eu comecei a criar uma certa imunidade, porque eu tive que fazer, eu tive que me virar. Eu tinha que pegar um ônibus, eu tinha que caminhar pra chegar pra pegar esse ônibus, eu tinha que caminhar pra chegar na outra escola, e isso pra mim é uma lembrança, assim, de novo, dúbio. Ao mesmo tempo que foi dolorido, foi de crescimento. Porque foi aí que eu me tornei mais madura nesse sentido, eu já tive que me virar desde cedo. Aí depois eu tive que trocar de escola, eu nunca me adaptei, nunca, eu chorava de noite, eu ficava doente, de ter febre, e era tudo emocional, porque eu sentia falta do que eu tinha antes, e nós ficamos três anos. Eu acabei rodando na quinta série até, porque foi o único ano que eu repeti, porque eu não conseguia me encaixar naquela realidade. Eu adoeci. E era necessário, era o mal necessário.
P - Você lembra desses trajetos?
R - Lembro, lembro, gente. Era chão batido. Na rua que eu morava até não era. Aí eu pegava o ônibus, eu ia, eu morava na Zona Sul, na Vila Nova, que é um bairro, e estudava no Campo Novo. Nessa escola, ela era pra dentro, assim, ela era um chão batido, batido. Eu, sempre um anjo de candura. Não sei em que momento eu me desentendi com alguém. Porque eu me lembro que eu apanhei muito antes de chegar na escola num desses dias. Eu recordo da menina pegar meu cabelo e passar no formigueiro, que tinha um formigueiro. Mas eu não lembro o que eu fiz pra coitada da menina. Porque alguma coisa eu devo ter feito. Mas era um trajeto muito longo. Então, eu tinha que me virar sozinha, eu ia e voltava sozinha, porque eu não conseguia fazer amizade. Não é assim que funciona. ‘Desliga aqui, liga acolá’. E eu lembro desses momentos com muita tristeza, muita tristeza, tanto é. Por que eles foram pra lá? Porque era onde a minha mãe morou, e era onde o meu pai morou. Não na casa, mas no bairro. Eles eram da Zona Sul, e eles vieram desbravar a Zona Norte, que recém estava começando ali, onde a gente morava. Então, eles resolveram ir pra lá, porque eles tinham os parentes lá, mas pra mim lá não significava nada. Então, eu lembro da casa, era uma casa até, a primeira casa, nós moramos em duas casas, a primeira casa era bem bonitinha. Inclusive a gente chegou, tinha um cachorro, deixaram o cachorro lá, foram embora e deixaram uma chow chow, eu acho, não lembro, eu sei que era uma cachorrinha que ficou lá, ela estranhava muito nós. E a gente não sabia o que fazer com a cachorra, e a vizinha do lado pegou a cachorra. A casa era muito bonita, era uma casa assim, mas era fria, não tinha vida pra mim, não tinha nada ali. Então assim, nós levamos os móveis que a gente tinha, a casa era gigante, os nossos móveis eram poucos, porque a casa era pequena, era três peças. Então, era uma casa que não era uma casa. Era uma casa, mas não era um lar. E aí, a gente ficou nessa casa por, acho que, dois anos. Daí, meu pai resolveu trocar de casa. Aí, foi pior. Aí, nós fomos pra uma casa onde tinha um terreno vazio do lado. Era uma casa de madeira, com um porão gigante embaixo. Era uma casa, pra mim, assustadora. Porque ela era maior que a outra. Tu caminhava, as madeiras rangiam, assim. E nessa época eu já devia ter uns 10 anos, assim, e eu tinha essa lembrança dessa casa, assim, muito ruim. Aí, certa vez, era a polícia entrando, porque tinha alguém, era parte de telinha, alguém fugindo da polícia entrou e se escondeu no porão. E aí a polícia vindo pra olhar. Lembro também de uma cena muito icônica. A gente sempre foi muito gulosa, eu e minha irmã, adorávamos comer leite condensado. E um dia minha mãe disse assim, a minha mãe comprava leite condensado para as ocasiões que ela fazia os docinhos em casa. E de tanto eu e minha irmã incomodar, minha mãe disse, ‘agora eu vou abrir uma lata e vocês vão comer cada um uma lata’. Maravilhosa. Aí a gente foi pegar, tinha uma pia velha nessa casa, pia velha, pia de madeira, e as latas ficavam todas guardadas. Quando a gente abriu tinha uma cobra ali dentro. Uma cobra, literalmente. Daí a gente chamou o pai, o pai tirou assim porque era uma casa velha. Minha mãe fez a gente comer o leite condensado, a gente quase foi parar no hospital. Nunca mais eu quis comer assim, mas teve essa história. Nessa casa, eu principalmente consegui ter afinidade com o vizinho do lado. Os vizinhos do lado, eles eram muito receptivos. E tinha um rapaz, eu devia ter 10, ele devia ter 20, mas ele era muito atencioso comigo. E fora a vizinha, então eu gostava muito dele. E eles em algum momento, alguma situação, eles foram pra praia. Então, a gente sabia, eles vão ficar alguns dias na praia, saíram. Aí, não demorou muito, acho que foi lá uma hora, duas horas, começou um vuco-vuco na casa, o que que tá acontecendo, eles se acidentaram. E esse rapaz, ele ficou muito mal, ele ficou entre a vida e a morte, assim, ele ficou em coma por muito tempo. E eu recordo de ter ido visitar ele no hospital. Então, eu lembro dele deitado. Ele teve um problema bem sério. Acho que ele ficou paralítico. E era um rapaz jovem. E eu recordo dessa cena de eu chorando, segurando a mão dele e ele tentando me acalmar, que estava tudo certo, estava tudo bem. Então, de novo, parecia que quando eu tinha a proximidade, de novo, parece que vai perder alguém. Aí o meu pai resolveu, depois de três anos, voltar pra cá.
P - E como foi?
R - Foi maravilhoso. Aí eu voltei pra onde eu me reconhecia como pessoa. Óbvio que não era mais a mesma coisa. Eu já não fazia parte do grupo há três anos. As pessoas já eram diferentes. Eu saí com oito, voltei com onze. Então já era um outro momento. Eu já fui pra uma outra escola. Aí eu conheci outras pessoas, já não se brincava mais na rua como antes, não tinha mais essas brincadeiras, as pessoas não se reuniam muito para isso porque não foram todas para a mesma escola. Então, as duas minhas melhores amigas foram para uma escola e eu tive que ir para outra porque eu cheguei e não tinha vaga naquela. Então, nessa outra escola eu fui fazendo novas amizades, novos grupos. Nós temos, isso foi em 84, nós temos até hoje um grupo que a gente se fala de 84, onde quase todas as pessoas daquela época ainda se mantêm em contato, e é muito interessante porque a gente fala no WhatsApp, a gente tem esse grupo no WhatsApp, se encontra de vez em quando. E é interessante porque parece que são aquelas pessoas de 84. As falas que saem, eu digo, ‘meu Deus do céu, as pessoas não amadureceram’. É como se a gente voltasse nesse grupo àquela fase lá de seus 14, 15 anos.
P - Queria te perguntar da adolescência, o momento de descobertas, desafios, escolha profissional, de curso.
R - Eu não sou uma pessoa que faça muitos planos, então tudo na minha vida foi acontecendo. Eu não gosto de fazer muitos planos, exatamente porque os planos não saem como a gente idealiza. Então, eu sempre falo, eu menstruei muito jovem, eu tinha 10 anos. E a gente se vê de outra forma. Porque eu vinha de uma família onde não tinha essas conversas abertas como eu tentei ter com a minha filha, eu tive com a minha filha. Então, eu já me senti adulta pelas vivências, fisicamente eu sempre fui muito corpulenta. Então, com dez anos eu já me senti uma mulher. E ao mesmo tempo que eu me sentia assim, eu era uma criança. E o meu pai sempre foi muito rígido, muito. Então, assim, na questão de ter namorado, nem paquera, eu sempre fui muito com medo do meu pai descobrir. Então, eu não tive namorados. Eu não tinha paqueras na escola. Ao mesmo tempo que eu era travessa, era travessa. Mas eu não era de namorar, de ter paquerinha. Porque eu tinha medo do meu pai. Morria de medo do meu pai, que nunca me encostou a mão, mas eu morria de medo. Então, a minha adolescência foi muito retraída nesse sentido. Porque eu gostaria de ter ido em festas. Eu não ia em festas; pra eu ir em qualquer evento, tinha que ter um amigo, o pai de uma amiga. O que eu fazia? Quando eu cheguei em meus 14, 15 anos, eu comecei a mentir. Porque eu queria fazer aquilo e não conseguia. E aí eu comecei a fazer o que não deve. Eu comecei a mentir dizendo que eu ia para um lugar e ia para outro. A sorte que naquela época tudo era muito mais tranquilo. Hoje em dia, se tu mentir, com certeza te acham por aí, se não for pelas redes sociais de alguma outra forma. E aí eu achei que aquilo ali era o caminho. Aí eu comecei, dizia que ia pra dormir na casa de uma amiga, ia pra uma festa, balada, mas sempre assim, bem direitinha. Porque Deus me livre, que meu pai saiba, coisa parecida. E quando eu tinha 16 pra 17 anos, eu tinha que concluir o ensino médio e precisava fazer um estágio, eu fazia técnico em publicidade, e eu precisava fazer um estágio para concluir o ensino médio, que era segundo grau na época. E aí conheci uma colega minha que eu tinha conhecido na escola anterior e estava fazendo estágio numa empresa e estudava comigo na mesma escola que a gente estava no segundo grau. E ela disse, ‘ah, tem uma vaga na empresa que eu tô, tu quer ir?’ Eu disse, ‘sim, preciso fazer o estágio, vou’. E liguei, a dona da empresa era professora da escola também. E aí eu conversei com ela, disse, ‘não, vou te marcar uma entrevista com o Ronald, que é o esposo dela, que era o dono da empresa’. Ela era só a esposa dele na época. E aí ela disse pra mim, ‘tu vai no hospital onde ele trabalha, ele vai conversar contigo, entre um atendimento ou outro, que ele não tá na clínica, ele tá no hospital’. E eu fui. Cheguei lá, tinha 17 anos, cheguei lá, era tipo assim, ele chegava duas horas, eu cheguei uma e meia. Aí quando ele chegou, eu sinalizei pra ele, disse que eu estava ali pra conversar com ele, ele sabia, ele pediu pra eu aguardar. Só que ele esqueceu de mim. E eu. Foi, fiquei duas, três, quatro, cinco, sete horas ele saiu e eu sentada. Não perguntei nada, fiquei passivamente. Sete horas ele saiu. Quando ele saiu eu chamei ele, ele só fez assim, ‘ai, esqueci de ti. Amanhã vai lá na clínica falar com a Neide’, que era a mulher dele. Aí eu fui. Eu queria. Precisava. Imagina. Hoje tu vai ficar cinco horas sentada e nem questionar nada. Aí eu fui, conversei com a dona Neide, que era a esposa dele e comecei a fazer estágio na empresa que eu tô até hoje. Aí eu fiz estágio por três anos, depois de três anos, desculpa, eu fiz estágio por um ano, aí eu fui contratada e comecei como recepcionista nessa empresa, aí depois eu passei por todos os estágios, eu fui trabalhar no faturamento de contas médicas, eu fui gestora do faturamento de contas médicas, aí eu fui convidada para assumir uma unidade no Sarandi, na época que eu estava grávida da minha filha, aí eu fiquei, depois eu me afastei para fazer o meu licença-maternidade, quando eu voltei, eu voltei para a matriz, não voltei pra mesma filial, voltei pra matriz, aí trabalhei mais alguns anos, daí eu fui convidada pra assumir uma outra filial, que era a fisioterapia, aí eu fiquei 10 anos na fisioterapia. Aí esse mesmo médico me convidou para retornar aí para auxiliar eles na direção. Aí eu retornei para trabalhar na direção, daí eu fui assistente de direção. Hoje eu sou oficialmente gestora, mas eu tenho um cargo de diretora financeira, mas a gente é tratado como gestor, mas meus documentos estão como diretora financeira. Mas nessa empresa eu vivi toda a minha vida.
P - Qual que é?
R - É na Urgetrauma, ali perto de onde eu moro, próximo ao Hospital Cristo Redentor, na Zona Norte também. Ali eu vivi toda a minha vida, porque ali eu entrei com 17 anos, hoje eu tenho 55, então eu casei, eu tive uma filha, eu me separei, eu tive a perda do meu pai. Todas as vivências da minha vida são dentro desse âmbito profissional. Vivi momentos também na empresa, hoje a empresa era só dois sócios, que era Cecília e Ronald, a empresa abriu sociedade, então hoje tem mais de 20 sócios, então é um outro momento, é um momento para mim profissionalmente de alguma insegurança, porque são mais sócios, hoje nós temos um conselho, que na época as decisões eram tomadas pelos corredores. Então, toda a minha vida profissional, ela foi embasada dentro da Urgetrauma. Eu nunca cogitei fazer uma faculdade, quando eu entrei aos 17 anos, porque eu recordo do meu pai, quando eu terminei o ensino médio, segundo grau, ele dizendo ‘queria muito poder te proporcionar uma faculdade, mas eu não posso. Então, agora vai ter que ser contigo’. E eu disse, ‘ah, não preciso disso, eu já tô trabalhando tanto. O que eu vou precisar de uma faculdade?’ Já tinha começado a trabalhar nessa empresa. Só que era outra mentalidade. Aí, quando eu conheci o meu marido, meu marido tem duas faculdades, então ele já vinha de um outro relacionamento, as filhas dele também estavam cursando faculdade na época. Eu comecei a ver com outros olhos. E ele sempre foi muito de me incentivar, sempre, sempre. Só que, ao mesmo tempo que ele incentivou, eu disse, ‘depois eu faço’. Eu tava cogitando em ter outro filho, porque eu já tava com 30 anos, eu tinha conhecido ele, a minha irmã tinha engravidado. Eu disse, ‘acho que agora eu vou ter um segundo filho com ele’. Aí a empresa me deu uma pressão, porque como eu estava fazendo a gestão de uma unidade, eles disseram, ‘tu vai ter que te qualificar, porque tu trabalha com profissionais, profissionais fisioterapeutas e tu tem que estar qualificada pra isso’. Aí eu não tive escolha. Eu vi que eu tinha que galgar esse desafio, mas esse desafio pra mim era um desafio, fazia 15 anos que eu não estudava. E a empresa pagou uma parte da minha faculdade, eu pagava a outra, meu marido pagava a outra, sempre me incentivando. Aí eu me formei, levei 10 anos para me formar, comecei numa faculdade, passei pra outra, fiz um, emendei um pós, depois emendei mais outro, fiz mais outro, fui fazendo assim. Fui vendo o quão é importante tu te manter atualizada. Não vou nem dizer qualificar, qualificar compra a minha consequência, mas tu te atualizar, aprender sempre, evoluir sempre. Mas todas as minhas histórias de vida têm a empresa que eu trabalho juntas. O ano passado foi um exemplo. Quem me acolheu foi a Cecília, que é a dona da empresa. Quem estava comigo no dia que meu pai morreu foi a Cecília. Quem estava comigo no dia que a minha filha morreu, morreu, desculpa, tadinha. Quem estava comigo quando a minha filha nasceu foi a Cecília, que me levou para o hospital, me buscou do hospital. Então, assim, a relação de subordinado, de chefe, dentro da empresa tem esse respeito com as hierarquias, mas ela se tornou uma amiga. Então, hoje ela é uma amiga da vida. Estando ou não na Urgetrauma, ou não estando, ela estando ali ou não estando, essa relação perpetua, ela existe. Tanto é que quando tu conheceu ela, ela lembrou das vivências que eu passei. Mas ela faz parte muito disso, se não fosse a irmã dela que mora do lado do sítio, como eu falei, a gente teve, não foi uma casa, foi um lar. Então, isso pra nós fez toda a diferença. Mas, da minha adolescência, que foi o que tu perguntou, eu lembro das coisas acontecendo, fluindo, nada assim programado, nada assim muito ‘uau, uau!’. Não, não foi porque era tudo muito reprimido. Eu não conseguia fazer, digamos, o que eu gostaria de fazer. Eu fui conhecer a praia com 12 anos, porque minha tia me levou. Então, assim, era tudo muito difícil, mas muito valoroso.
P - Como foi conhecer a praia?
R - Assustador, porque para uma criança, apesar de ter 12 anos, a mentalidade era de criança. Mas, assim, te deparar com aquele mar, com aquela imensidão, tanta água, tudo tão grande, para ti que vem de uma... Parece que tu é pequeno ali, mas aquilo lá é imenso. Hoje, o apartamento que nós temos lá em Itajaí, ele dá de frente, assim, tu consegues visualizar lá no fundinho a água, o mar. Só chega na janela que tu vê. Mas, na minha infância, tudo era muito difícil. Tudo, mas era tudo tão saboroso, porque exatamente por ser difícil, tinha outro sabor. Hoje é tudo muito fácil. Eu dei as coisas para minha filha muito fácil. Eu fui criada e é outra época de fralda de pano, minha filha pode ter uma fralda descartável mesmo no momento que eu me separei, que foi muito difícil porque eu tive, entre a separação do pai dela e eu conhecer meu atual marido, foi um momento muito difícil, que eu nunca quis envolver meu pai e minha mãe. Então, de não ter assim, de ter um real para terminar o mês e faltar dez dias. Na época, um real era como se fosse, sei lá, 10 reais hoje, não sei. Eu só dizia assim, ‘Deus, que minha filha não fique doente’. Porque eu nunca quis envolver meu pai e minha mãe. Porque, como meu pai sabia, meu ex-marido era alcoólatra. Eles, tipo assim, tu sabe onde tu tá indo. E eu quis ser. ‘Pode deixar que eu vou e eu vou ser mulher para assumir que eu tô fazendo’. E eu quis ser. Então, eles nunca souberam de nada que eu vivi nesse casamento. Nada. Nada. E não foi fácil, porque tu conviver com uma pessoa, um alcoólatra por três anos, é uma pessoa doente, mas é uma pessoa que tu não consegues ajudar se ela não quiser ser ajudada. Aí é o ponto de tu não querer mais aquilo para tua vida. Então, eu sempre evitei que meu pai e minha mãe se envolvessem. Então, eu sempre fui muito forte nesse sentido. E aí, quando meu pai faleceu, eu acabei voltando lá para minha mãe e conheci meu atual marido. Era outra vida que eu nunca imaginei que eu pudesse ter. Porque, na época, eu vinha desses dez reais, ou um real, na época. E o primeiro mercado que eu fiz com o meu atual marido, a gente gastou setecentos reais. E eu pensava, ‘meu Deus, como é que pode? Isso com isso’. Mas que isso não me deslumbre nunca. Que isso não me faça perder a essência que eu tenho. Porque era outra realidade, é como se eu tivesse saído da pobreza para a riqueza, naquela época. Então, eu tinha vontade de ir no restaurante, eu ia. Eu tinha vontade de comprar uma roupa, eu comprava. E antes não era. Antes, eu tinha uma única calça que eu tinha que trabalhar a semana toda com aquela calça para poder lavar ela e usar na semana seguinte. Então, aquilo poderia ir para um lado de deslumbre, mas eu nunca me permiti, e fico fazendo esse teste, de não perder a minha essência, não me deslumbrar por nada, porque eu sempre boto na minha cabeça, ‘eu não sou, eu estou’. Então, hoje eu estou aqui, estou bem, mas eu posso, amanhã, não estar tão bem. Então, nada é definitivo na minha concepção, vi de tudo que se passou.
P - Como foi se tornar mãe?
R - Sempre foi um sonho meu. Eu acho que esse casamento, mesmo sabendo que não ia dar certo, eu sempre soube que não era a minha alma gêmea e hoje meu marido é minha alma gêmea, eu queria minha filha. E eu tinha, por incrível que pareça, eu tinha o que eu não gosto. Eu tinha aquela meta. ‘Ah, eu quero ser mãe até os 25 anos’. Mas a coincidência. Eu fui mãe até os 25 anos. Foi coincidência, não foi assim, ‘ah, eu vou ser qualquer um porque eu quero ser mãe’. Não, aconteceu. Mas eu sempre quis ter um filho. Uma filha. E eu sempre sabia que ia ser uma filha. Sempre. Eu sempre senti que seria uma filha. E aí eu conheci o pai da Mariana, eu comprei a chave de um apartamento, eu financiei e fui morar no apartamento e ele foi comigo. E eu engravidei, mas eu sabia que eu ia engravidar porque eu queria engravidar. Então ele não queria, ele já vinha de um outro relacionamento, ele já tinha esse problema com álcool, mas eu queria uma filha, imagina. E engravidei da Mariana. Aí era a gemelar. Eu tive uma gravidez gemelar. Eu perdi um com três meses. Com cinco meses eu tive um sangramento. E a Mariana nasceu de oito meses e meio. A Mariana nasceu com suspeita de síndrome de Down. Então, nós tivemos todo um acompanhamento durante 21 dias com geneticista, com isso, com aquilo, porque a Mariana nasceu de sete características do Down, ela nasceu com seis. Ela só não tinha sopro. E aí leva na geneticista. A geneticista olha e diz, ‘vamos esperar o resultado da contagem de cromossomos, mas aparentemente ela tem down.’ Leva uma outra semana, aí eu lembro que a geneticista disse, ‘não, eu acho que ela é um mosaico, parece, mas não é, mas vamos esperar o resultado do exame’. Quando o exame saiu, eu como mãe já sabia que ela não era, porque ela tinha todos os reflexos de uma criança para um mês, mais ou menos, que era o que ela tinha. Então, eu abri o resultado do exame, me entregaram em casa, eu abri e eu já sabia que aquilo era normal, digamos assim. Mas essa gestação foi tumultuada, foi bem complicada porque pelo fato do pai dela ser alcoólatra, então tinha tobogãs de emoções. Ele trabalhava à noite, então, quando ele chegava no outro dia em casa, eu não sabia se ele estava são, se ele não estava. Ele teve convulsões, eu com seis, cinco meses de gestação. Então, foi muito tumultuada. A Mariana não teve uma gestação, nem eu, nem ela, tranquila. E aí, quando nasceu, infelizmente, eu migrei para ela o meu sentimento do pai dela. Sem querer, eu acabei descontando na minha filha. Não, como é que eu vou te dizer? É como se eu visse uma extensão do pai dela. Então, eu tinha que amar a Mariana, mas eu não sabia amar a Mariana. E não era muito forte, era de novo a culpa, de novo o sentimento de estar fazendo tudo errado e não saber como fazer diferente. E eu batia muito nela. Eu batia muito, eu castigava muito ela, porque se ela tinha um ano, dois anos, e ela era terrível porque ela quebrava tudo, mas como é que ela ia ser diferente se a mãe dela era toda descompensada? E foi difícil para mim entender o que que eu fazia, sabe? Essa relação. E eu achei que eu tinha perdido a relação com ela. E como essa relação com a Mariana era muito conturbada, eu não via como sair desse círculo assim, porque era muito forte o meu sentimento. Não vou dizer que era rejeição, digamos que eu não conseguia dar amor, eu dava coisas. Eu dava coisas, mas eu não conseguia dar amor. Minha mãe acabou criando, porque eu já estava morando lá, eu tinha voltado. E a minha mãe acabou assumindo o papel de mãe com ela. Eu era a mãe que trabalhava o dia inteiro, chegava em casa, quando não brigava, não era mãe, não era. E isso foi, eu voltei para lá. Ela tinha dois anos e sete meses. Quando ela tinha cinco anos, eu conheci meu atual marido. E dali para frente foi um divisor de águas. Porque meu marido captou essa relação.
P - Foi com ele que você entendeu?
R - Ele captou que essa relação era uma relação doentia. E ele fazia uma tortura, que na época pra mim era uma tortura, que ele dizia assim, “agora tu vai lá no quarto dela e tu vai ficar Com ela. ‘Vai conversar com ela’. ‘Mas eu não tenho o que falar’, eu disse pra ele. ‘Mas eu não tenho o que falar, o que eu vou fazer lá?’ Aí eu ia. Tipo assim, eu ia lá, ficava dois minutos, dava um beijinho e ela saía. E ele disse, ‘o que tu tá fazendo aqui?’ Tá, já fui lá. Ele disse, ‘não, vai lá e fica com a tua filha’. E isso foi, parece uma coisa louca, mas foi uma coisa. Uma sementinha, uma sementinha, uma sementinha. E foi difícil. Foi difícil criar uma relação quando ela tinha cinco anos. E essa relação criou. Hoje a minha filha, a gente é muito amiga. Muito, amiga. E eu sempre tive muito remorso dessa fase. Então, eu olho pra ela e fico pensando assim, daqui a pouco ela vai dizer ‘mãe, tu lembra que tu fazia lá atrás?’. Mas eu sou muito grata ao meu marido, porque ele conseguiu, com a persistência dele, me desenvolver como mãe. Porque se deixasse por mim, eu achei, não, vai ser isso o resto da vida. Não vai ter uma relação de mãe e filha. E ele foi, foi, foi, foi assim. E era todo dia, ele dizia, ‘vai lá, fica um pouquinho. Fica um pouquinho’. Era literalmente assim, ‘fica lá um pouquinho com ela no quarto’. Eu ia um minuto, dois minutos. Aí depois eu já ia, já deitava na cama. Aí eu já dava um abraço, porque eu tinha muita dificuldade de abraçar ela. Eu tinha muita dificuldade de dar um beijo. Era realmente, hoje eu entendo isso, na época não. Era como se eu estendesse para ela o pai dela, porque foi uma relação bem conturbada, foi difícil e eu não consegui dividir a minha filha dessa relação. Então, eu não conseguia dar um beijo nela, dar um abraço, dizer eu te amo vindo daqui, era muito difícil. Então, quando isso aconteceu assim, também não foi assim, foi aqui. Não, não foi. Eu não sei te dizer exatamente que momento, que processo, mas eu acredito que foi bem longo. Eu acho que foi uns cinco anos. Uns cinco anos até que isso acontecesse. Aí ela já estava com seus dez anos. E ela sempre foi muito carente de mãe, nesse sentido. E hoje ela é uma amiga. Ela tá com 30 anos. Ela mora comigo ainda. E a gente tem uma relação maravilhosa. Uma relação de conversar tudo. Tudo que eu não tive na minha infância, eu tentei passar pra ela em relação a falas de sexo, de namorado. Quando ela teve a primeira relação sexual dela, ela nos contou. Que ela tem muita liberdade também com o meu atual marido. E a relação dos dois também foi bem bonita de ver. Porque assim, ele era alguém que chegou nela através de mim. Então, o vínculo dele com ela era através de mim. Então, a relação deles era muito conturbada pela minha mãe, porque a minha mãe é sempre muito ciumenta, ela não queria que ela tivesse nenhum tipo de relação com ele. E ela, em determinado momento, ela foi se aproximando dele, de chamar ele de pai, porque o pai dela era ausente. Então, nós estávamos todos sentados à mesa e ela chamou ele de pai.
P - Você lembra?
R - Lembro. A gente olhou, continuou comendo, como acontece, geralmente, quando acontecem essas cenas, é assim. Aí a gente continuou comendo. De lá pra frente, ela sempre chamava ele de pai. Aí o pai dela acordou, resolveu aparecer e queria saber quem era a pessoa que eu tinha botado pra morar com a filha dele. Daí, todo o papel de pai que ele não tinha feito, ele queria fazer naquele momento. Só que daí ele conheceu o meu atual marido. E ele viu que o que o Chico estava dando pra filha dele, ele não tinha condições. Então, ele deu a mão à palmatória. Ele agradeceu o Chico por ser o pai que ele não conseguiu ser. Só que ele não conseguia chegar perto da Mariana se não fosse alcoolizado. Aí ele foi lá na minha casa uma, meu marido sempre apoiando pra que ele tivesse contato com a Mariana, sempre, sempre, sempre. Ele foi uma, foi duas, tipo assim, na terceira e na quarta vez, a minha filha não quis mais vir aqui. E aí não teve jeito. Ela não via, ela entrava em pânico quando ele chegava lá, porque ele chegava alcoolizado, ele chamava ela no portão, ele gritava, porque daí ele já tava. Ele bebia porque estava feliz ou bebia porque estava triste. Aí a Mariana não quis mais saber dele, não quis mesmo. Em 2016, a gente recebeu uma ligação. A gente estava no shopping, eu e ele, eu, a minha filha e o meu atual marido, e eu recebi uma ligação da ex-mulher dele, que eu tinha uma boa relação com ela, e ela me disse que ele tinha sido encontrado morto dentro de casa, já fazia uns dois dias. Ele tinha cirrose, ele morreu e ninguém viu. Aí também foi bem difícil, assim, porque aí a Mariana vem com sentimento de culpa, por ter rejeitado o pai. Mas a gente sempre apoiou muito. Eu e o Chico, a gente sempre deu muito apoio pra ela, e ela teve um momento bem difícil com essa aceitação, porque ela sentiu que o pai poderia ter morrido porque ela também não estendeu a mão para o pai dela. Mas também acho que tudo acontece como tem que acontecer, porque, quando ela procurou a terreira, ela fez uma apometria, que é uma volta em vivências anteriores. Não é uma hipnose, são vivências anteriores aonde tu vai desatando nós que podem estar te prejudicando nessa tua vivência atual. E, nessa apometria que ela fez, o pai dela biológico fez parte de todas as vivências dela e todas terminaram de formas traumáticas. Então, é como se, nessa, por ela ter conseguido descobrir o que que linkava ela no pai dela agora e essa relação também ruim que ela terminou com ele, porque ela ficou muito tempo se sentindo culpada... Nessa apometria, ela fez mais de uma até, ela conseguiu entender o porquê que as coisas aconteceram. E eu participei, eu acompanhei, eu estive junto nessa apometria dela. Então, eu também consegui ver coisas que uniam ela a ele. Eu só era um instrumento. Eu não tive nenhum tipo de relacionamento com ele, nenhuma, nenhum passado, mas eu era instrumento para que ela estivesse com ele nessa vivência. Hoje, aparentemente, isso está muito resolvido para ela, muito resolvido. Mas a minha filha, pra mim, é tudo. E eu ainda tenho o privilégio de ela estar comigo aos seus 30 anos. Não sei por quanto tempo, mas eu curto bastante isso, eu aproveito bastante de ter ela próxima de mim, até porque, como a gente demorou muito pra se aproximar, parece que a gente teve uma chance de ficar um pouquinho mais juntas. Ela também sofreu bastante o ano passado, bastante mesmo, porque ela nasceu onde ela morava. Quer dizer, ela nasceu em outro bairro, mas ela foi pra lá bebê. Então, toda referência dela... Ela sentiu o que eu senti lá atrás, quando eu tive que sair e ir pra outro lugar. Ela sentiu agora, já com 29 anos. Então, foi bem difícil pra ela, bem difícil. Ela entrou numa depressão muito grande, ela teve que pedir ajuda, porque ela queria morar lá e ela queria morar lá de qualquer jeito, não importava como estivesse. Aí, hoje, eu ainda pergunto pra ela: ‘Tu quer ir pra lá de novo?’ Ela: ‘Não.’ Ela diz: ‘Não, mas eu sinto falta da casa.’ Ela diz assim: ‘Eu sinto falta da casa.’ Ah, isso, normal. Faz parte, todo mundo. Eu sinto falta do que eu vivi lá, não do que aquilo se transformou.
P - Vocês se lembram bastante? Vocês conversam sobre essa casa?
R - Não, agora não. No começo, sim. Mas no começo era tudo muito dolorido. Eram umas falas, mais de externalizar pra ver se aquilo ameniza. Agora não. Nem ela também, ela tá num momento mais pro lado profissional, tá com namorado novo. Então ela tá de bem com a vida. Pra aquela menina que há quatro anos atrás pensava em se suicidar, ela se achou hoje. Faz terapia também, ela começou a fazer naquela época. Então, a mesma terapeuta, fortalece ela. E eu como mãe, naquela época não percebia isso, mas nunca é tarde pra gente recuperar o tempo perdido.
P - E lazer?
R - O que você gosta de fazer? Eu adoro viajar, amo viajar. Os meus cunhados de Itajaí, porque meu marido tem três irmãos, então eles também são muito mais novos, eles são bem parceiros pra viagem. Então, a gente já foi de carro pra Paraty, pra Campos do Jordão, pra Buenos Aires, pra vários lugares. A gente adora, assim, de pegar o carro mesmo e sair sem rumo. Quando a gente foi pra Montevidéu e Buenos Aires, não tinha nem hotel reservado. Meu marido tava lá, ele me ligou, tinha ido visitar a mãe dele, me ligou e disse assim: ‘Olha, o Edson e a Silvana vão pra fazer esse passeio, tá com vontade?’ Eu disse: ‘Tá, mas o que eu faço? Tem que avisar lá na clínica, não posso simplesmente sumir.’ Aí eu avisei a Cecília: ‘Olha, surgiu essa oportunidade.’ Ela: ‘Vai.’ Aí eles saíram de lá meia-noite, pegaram o carro, seis horas da manhã me pegaram aqui em Porto Alegre, na minha casa, e fomos. Pegamos um estradão, fomos a Montevidéu. Depois, a gente pegou, ficou dois, três dias em Montevidéu, deixamos o carro no estacionamento do bus lá, pegamos uma mochila, fomos para Buenos Aires, assistimos um tango, fomos conhecer alguns lugares, voltamos, e isso foi um dos passeios mais icônicos que a gente fez. Aí, no ano seguinte, a Cecília, ela tem um... não sei como é que é o nome, ela tem uma reserva anual em Punta del Este de um hotel. E aí, cada ano, ela levava um. Ela perguntou, porque o meu marido trabalhava com o marido dela, eles trabalhavam juntos, e aí ela perguntou: ‘Vocês não querem ir com nós esse ano?’ Ah, vamos. ‘De carro?’ Vamos, vamos embora. Aí nós fomos pra Punta, ficamos também uma semana em Punta. Assim, eu não conhecia Punta. Ela dizia: ‘Você conheceu?’ Eu disse: ‘Ah, conheci, mas, claro, eu tinha passado lá, não tinha ideia.’ Aí, quando a gente foi, ela nos apresentou Punta do avesso. Ficamos uma semana lá. Depois, com esse mesmo cunhado e cunhada, a gente resolveu ir pra Paraty. Eu já tinha ido e gostei bastante. Daí eu disse pra eles: ‘Olha, vamos. Vocês topam?’ Tá. Aí fomos até Jair, deixamos o carro, pegamos eles, fomos com uma semana em Paraty. O ano passado, antes da enchente, a gente foi pra Campos do Jordão. Eu conheci todo o Nordeste. Eu nunca fui pra fora do Brasil, e não Montevidéu, Uruguai e Argentina. Mas por quê? Nunca pensei ainda, porque eu gostaria muito de conhecer o nosso país. Eu acho que tem todos os lugares lindos. Eu disse pro meu marido: ‘A gente conheceu todo o Nordeste.’ Eu disse assim: ‘Eu conheci todo o Nordeste.’ Fui a São Paulo. O único lugar que eu não fui ainda, não senti vontade, é Rio de Janeiro. Mais do litoral. Mas o que eu digo nessa parte: Espírito Santo, Curitiba... Eu amo viajar. Amo, adoro viajar. E era uma coisa que a gente fazia com muita frequência. Então, depois da enchente, parece que bateu uma certa insegurança em relação a fazer planos de viagem. Eu falando por mim. Então, assim, o que a gente fez? A gente foi a Gramado, num final de semana qualquer, e foi bem difícil pra mim montar essa... idealizar, não, mas ser só o final de semana. Eu não sei nem te dizer por quê. Parece que, se eu saísse de perto da casa, podia acontecer alguma coisa. Uma coisa doida. Então, a gente foi a Gramado, sei lá, agora há pouco tempo, e vamos ir agora, dia 21, 22, porque a gente faz 25 anos que a gente tá junto. Então, a gente vai passar, estender o final de semana, vai ficar uns quatro dias por lá. Eu gosto muito de Gramado, adoro. É como se eu saísse do Brasil, assim, eu tenho a sensação que eu tô indo pra um lugar, assim, bem diferente. Então, eu gosto bastante de ir. Era um lugar que eu ia uma vez por mês, era fato. Mas depois da enchente tá tudo muito mais moroso. Tanto é que a gente nem programou nada, assim, pra mais longe. Não conseguimos sentar e, nem ele, eu sinto que ele também não está se sentindo ainda preparado para fazer uma viagem mais longa. Não sei, não sei te dizer, assim, exatamente o porquê desse sentimento, mas foi depois da enchente, porque a gente era muito... Meu, ano passado, quando a gente foi para Campos do Jordão, ele já estava com seus 69 e eu com meus 54. Então, não é pela idade. A gente sempre foi muito corajoso de sair. ‘Ah, mas vai fazer uma viagem longa, depois tem que voltar para cá, é uma distância grande.’ Não, não tem problema, vamos embora. Mas agora, parece que a coisa ainda não está firme dentro da gente para ficar tanto tempo longe. Não sei.
P - No telefone, você me contou algo que eu achei bastante significativo, que era uma vida.
R - Era.
P - E agora era outra.
R - É outra. A pessoa, aparentemente, é a mesma. Mas tu não é mais a mesma. Porque, como eu falei, coisas que antes tinham importância, ou ao contrário. Coisas que eram bobas antes, hoje são válidas, e assim vai. Então, tu não é mais a mesma. Tu te vê em outro espaço físico. Tu sai de uma casa que tu imagina que tu vai voltar dois dias depois e nunca mais tu volta. Aí tu vai pra um outro espaço onde tu não conhece nada, tudo é novo. Então, acho que eu comentei contigo. Eu pensava em pegar um, sei lá, qualquer coisa, um utensílio de cozinha. E eu não tinha nem a gaveta que eu tinha na minha cabeça. Isso tá em tal lugar, eu vou lá pegar. Não tem aquele móvel, não tem aquela gaveta e não tem aquele utensílio. E a casa é tua. Mas que casa é essa que eu não reconheço? E isso é um processo que foi muito longo e dolorido. Dolorido, porque, assim, eu nunca fiquei batendo assim, porque eu perdi sapato, porque eu perdi roupa. Não! Isso nunca ficou. Mas aí vinha aquela coisa assim: eu preciso de um termômetro. Meu marido, acho que tá com febre. O termômetro. Onde é que tá o termômetro? Não tem termômetro. É umas coisas poucas assim, mas eu fui dando falta quando as necessidades foram acontecendo. E não era daquele termômetro. Era um termômetro. Eu já tinha dois, três em casa. E naquele momento eu não tinha um pra ver a febre do meu marido. Linha. Linha. Sabe o que é linha? Quando eu comprei um carretel de linha e uma agulha, eu disse, ‘pronto, agora eu tenho uma casa’. Porque era uma coisa, parece tão insignificante. Mas eu tinha aquilo ali, eu precisava naquele momento pra costurar alguma coisa. Então, é como se fosse o último dos últimos utensílios que eu me vincularia a uma casa. Mas, até então, não era a minha casa. Era eu visita na casa de alguém, porque eu não conseguia ter essa sensação de estar na minha casa. Era tudo diferente, era uma cama diferente, era o cheiro diferente, era um espaço. E era tudo melhor do que eu tinha. Mas eu não conseguia me identificar. E eu também não era mais a mesma pessoa, eu não sou mais a mesma pessoa. Eu sou muito melhor do que eu era, porque eu me senti segura, então mais forte do que eu me sentia. Mas não é pesar, é só diferente. Então, pra criar o vínculo... E hoje, se tu perguntar, pode ser que eu não tenha 100% ainda, mas eu sei de olho fechado onde tá o termômetro. E isso tem um significado que não se imagina. Porque, quando aconteceu tudo isso, é como se tu tivesse ficado suspensa no ar. O que tu vai fazer da vida? Quem tu é? Pra onde que tu vai? E tu tem que entender que é só o tempo que vai te mostrar. Não é o teu tempo, é o tempo mesmo. As coisas vão acontecendo naturalmente. Literalmente, como diz a música. Vai acontecendo naturalmente. Só que tu tem a ânsia de achar a linha. Tu tem a ânsia de achar o termômetro. Mas eu podia ter aquela linha, aquele termômetro. E aí eu lembrava: e quem não pode? E quem teve que voltar pra lá? E não se recuperou até hoje. Um ano e três meses depois, um ano e dois meses depois, ainda não se recuperou. E eu tenho essa oportunidade. Então, assim, sou muito grata. Mas eu ajudei muitas pessoas. Estando na mesma situação, eu ajudei muitas pessoas, porque eu ficava imaginando, ‘meu Deus, eu sei que aquela pessoa não vai ter a condição que eu tenho. Eu sei que aquela pessoa está sozinha, ela não tem parceiro que eu tenho, que faz toda a diferença’. A gente conseguiu, junto, um dar força para o outro para sair dessa situação. Então, essa empatia, esse fato da terreira, aonde eu vou lá para me doar. O que eu faço lá? Eu fico de pé recebendo as pessoas e dando um abraço. ‘Ah, não, mas é só isso.’ É isso que eu posso fazer, e é isso que me deixa feliz. Então, essa empatia, essa doação, que muitas vezes não precisa ser material, porque lá onde é a terreira foi onde tudo aconteceu. Então, as pessoas que frequentam a terreira viveram o que eu vivi, a grande maioria. Então, a gente acaba se identificando, as pessoas se identificam com as suas vivências, porque viveram, de formas diferentes, a mesma tragédia. Ontem eu estive lá. Nós tínhamos um encontro, e a pessoa, a dirigente da casa, ela disse assim que ela não sabia que ela podia ver o pôr do sol da casa dela. Porque o dique, onde as casas, que agora... não tiraram as casas para reformar o dique, porque ficou várias pessoas, ou várias casas, no dique, e não pôde ser feita a obra, porque as pessoas precisavam sair de lá. A prefeitura precisava propiciar que as pessoas saíssem de lá para que a obra fosse concluída. E agora aconteceu isso. Todas as casas foram tiradas do dique. E o que ela estava mais feliz, que ela disse, que da casa dela ela via o pôr do sol. Ela viu o pôr do sol. Olha o que as pessoas se pegam. Eu vejo o pôr do sol todo dia. É um bálsamo pra mim. É uma essência, o sol. E eu vejo o pôr do sol todo dia, eu tenho essa oportunidade de ver. E ela estava feliz porque ela ia ver o pôr do sol a partir de ontem, onde ontem. Mas, assim, a empatia que as pessoas ficaram umas com as outras é muito forte, porque ambas viveram coletivamente a mesma dor. Cada um com a sua intensidade, maior, menor.
P - Quais são os seus sonhos?
R - Ai, se eu disser isso, como eu te falei, se eu já não fazia, hoje eu não quero fazer projetos. Mas, assim, eu gostaria muito de ter um momento na nossa vida que a gente pudesse viver, eu e meu marido, minha filha. Eu espero que ela tome o rumo da vida dela, seja muito feliz, e ela vai ser. Mas eu queria muito viver, assim... Hoje eu e meu marido ainda trabalhamos. E eu lembro muito do que a Cecília falava. A Cecília sempre foi uma pessoa muito importante na minha vida. O marido dela morreu faz uns quatro anos, e ela sempre dizia assim: ‘eu gostaria muito de viver alguns momentos com meu marido que eu tô deixando, protelando pela minha vida profissional’. Hoje, o que que eu penso? Eu queria muito viver alguns momentos com meu marido, de voltar às nossas viagens, que pra nós era muito boa. E a gente pode fazer isso. Mas, assim, eu não tenho grandes ambições. Ai, porque eu quero, sei lá... Eu não preciso de muito. Eu cheguei a essa conclusão, que eu não preciso de quase nada. Eu vivi seis meses da minha vida usando roupas emprestadas. Eu não preciso de nada. Eu preciso... Infelizmente, eu tô num... Não é que eu vou dizer assim, num mundo capitalista, eu preciso pagar as contas. Não vou ser hipócrita. Mas, se eu tiver pra arcar com as minhas despesas, eu quero viver, eu quero vivenciar, eu quero aproveitar com o meu esposo, com o meu marido, com o meu parceiro de vida, com a minha alma gêmea, o tempo que a gente puder, sabe? Então, assim, não tenho grandes ambições. Não quero ser rica, não quero ter fortuna, eu quero ser feliz. É isso que eu digo. Eu gostaria muito de retomar as nossas viagens, que pra nós é maravilhoso, assim, enquanto casal. A gente sempre se fortaleceu muito com isso. E não penso em bens materiais. Eu tô num momento, assim, que eu tô me vendo hoje, sabe? Não sei amanhã, não sei depois de amanhã, mas eu tô vivendo o meu hoje, assim. Eu tô te falando o meu sentimento de hoje. O que que eu quero hoje? Hoje eu quero aproveitar o máximo que eu puder com o meu marido, enquanto nós tivermos saúde mental e física. E seria isso, assim. Não tenho nada. Continuar me sentindo útil, de dar o meu abraço uma vez por semana, de me doar, de achar o meu propósito. Digamos que eu entendi o meu propósito. De entender que ter colocado a minha mãe na clínica não foi um... Como é que eu vou te dizer? Não foi um abandono. Hoje a minha relação com a minha mãe é muito melhor. Muito melhor. Eu visito a minha mãe, eu consigo ter carinho, amor, afinidade, não me culpar tanto por várias situações onde eu sempre me sentia culpada, sempre sentia ‘o que os outros vão pensar?’, ‘o que vão dizer?’. ‘Imagina, tu botou tua mãe numa clínica’. Hoje eu consigo trabalhar com isso, sabe? Mas eu sei também que é um dia por vez. Porque, como eu falei, sempre tu vem. Às vezes vêm aqueles pensamentos que tu não gosta, que tu não quer. ‘Ah, e se eu não tiver o meu trabalho amanhã? O que eu vou fazer? Como é que eu vou pagar minhas contas?’. Aí eu lembro da enchente. Eu também não tinha uma casa, mas hoje eu tenho. Então, eu tenho perna, eu tenho braço, eu tenho uma cabeça. Então, eu tenho disponibilidade pra conquistar o que tiver que conquistar. Desde que... Também não é nada eterno. Saiba que eu tenho o apoio do meu marido, mas eu sei também que nada é eterno. Hoje a gente tá junto, por isso que eu quero aproveitar o máximo possível com ele, assim, das nossas vivências, da nossa relação. Porque é o hoje. Amanhã eu não sei. Não sei o que pode acontecer nem comigo, nem com ele, nem com o trabalho, nem com a casa, nem com nada. Então, eu vou viver o meu dia, o meu hoje, da melhor forma possível. E o amanhã.
P - Como foi essa experiência de contar um pouco sobre você, lembrar da sua trajetória e dividir com a gente?
R - É tanta coisa, assim... Que daí tu fica pensando, começa, daí tu vai, daí tu volta. Tudo isso faz parte da minha vida. Não foi difícil. Acho que a parte que mais mexeu comigo foi da minha filha, mas é uma parte hoje que é boa, porque eu acho que, digamos que, como foi revertido aquilo, que poderia ter sido uma outra situação, o que mais mexeu foi essa parte. Interessante de ver o quanto de vivência a gente tem. Eu não costumo falar de mim, abrir, assim, falar. Fala uma coisa aqui, uma coisa ali, mas não assim, dessa forma. Mas não foi difícil. Ao mesmo tempo que eu tô falando pra vocês, vocês tão ouvindo, mas eu também tô me ouvindo. Então, é como se eu dissesse: ‘bah, eu já fiz tudo isso, eu já conquistei tanta coisa, eu já consegui tanto’. É a sensação que tá me batendo. ‘Pô, tu realmente é mulher!’ É o sentimento. É uma... Como é que eu vou dizer, assim? Não de soberba, não, mas assim, eu comigo mesmo. ‘Poxa, eu sou capaz! Eu já passei por tanta coisa e eu sempre saí mais forte’. A sensação é essa, assim, de: ‘vem um desafio aí’. ‘Ai, meu Deus, o que vem?’ ‘Será que vou ser capaz?’ Mas eu sou. Eu consigo ser. E eu vou ser, sabe? É uma afirmação da força que eu tenho.
P - Querida, obrigada.
R - Eu que agradeço.
P - De coração.
R - Eu que agradeço.
P - Por essa viagem junto com a gente.
R - Foi uma viagem mesmo. Mas é a minha vida. A minha história, assim, às vezes pode... “Ah, não tem tanta coisa assim”, mas tem a minha vida. Essa é a minha história. Essa é a minha história.
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