Se a Dona Neca me visse agora, mais de duas da matina, acordada, comendo pipoca e escrevendo freneticamente, ia logo dizendo: "A essa hora, minha filha? Você devia estar dormindo há muito tempo". Mas, se soubesse que o assunto era levantar a bola dela, com certeza sorriria e, com toda a falta de modéstia possível, me faria lembrar pela bilionésima vez: "Bom, a mamãe só quer seu bem"...
Assim era minha mãe, a Dona Neca, igualzinha na essência a milhões de outras, mas tão especial, tão minha, que às vezes, tanto tempo depois que ela se foi, eu ainda a sinto presente no meu presente. Dona Neca não era revolucionária, nem moderna, muito menos culta. Mas tinha uma imensidão humana que transbordava em meio às manhãs de sábado da minha infância, quando a nossa casa (nos fundos) e a de meus avós (na frente) se enchiam de cheiros de limpeza, do frango depenado no forno, de sabão feito no tacho. Nesses dias, os tanques se enchiam de água para acolher meus barcos, a mulata cantava feito doida, e a gente com certeza lavava a alma do sábado, engomava com anil e ficava aquele azul intenso, sem sombras, como só muito anos mais tarde eu veria sob o outono de Roma. A mãe também não deixava por menos nas festas. Era boleira e quituteira nata, e todo ano eu ganhava um bolo de forma diferente - peixe, urso, cesta de rosas, boneca confeitada com vestido de glacê. Aliás, por falar nisso, onde foram parar as coberturas de glacê de antigamente? Hoje só dá gelatina, mousse, e o glacê cheio de gordura vegetal que a mãe fazia nunca mais...
Quando chegava meu aniversário, nas férias de julho, a Dona Neca causava uma pequena revolução na casa. Como a gente era pobre (e nisso houve poucas mudanças), não tinha geladeira (a primeira e única Dona Neca ganhou depois, do Baú da Felicidade) e brigadeiros, canudinhos com doce de abóbora e pés-de-moleque eram guardados nos armários dos quartos. Meus primos, formigões, não se intimidavam e, volta e...
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Se a Dona Neca me visse agora, mais de duas da matina, acordada, comendo pipoca e escrevendo freneticamente, ia logo dizendo: "A essa hora, minha filha? Você devia estar dormindo há muito tempo". Mas, se soubesse que o assunto era levantar a bola dela, com certeza sorriria e, com toda a falta de modéstia possível, me faria lembrar pela bilionésima vez: "Bom, a mamãe só quer seu bem"...
Assim era minha mãe, a Dona Neca, igualzinha na essência a milhões de outras, mas tão especial, tão minha, que às vezes, tanto tempo depois que ela se foi, eu ainda a sinto presente no meu presente. Dona Neca não era revolucionária, nem moderna, muito menos culta. Mas tinha uma imensidão humana que transbordava em meio às manhãs de sábado da minha infância, quando a nossa casa (nos fundos) e a de meus avós (na frente) se enchiam de cheiros de limpeza, do frango depenado no forno, de sabão feito no tacho. Nesses dias, os tanques se enchiam de água para acolher meus barcos, a mulata cantava feito doida, e a gente com certeza lavava a alma do sábado, engomava com anil e ficava aquele azul intenso, sem sombras, como só muito anos mais tarde eu veria sob o outono de Roma. A mãe também não deixava por menos nas festas. Era boleira e quituteira nata, e todo ano eu ganhava um bolo de forma diferente - peixe, urso, cesta de rosas, boneca confeitada com vestido de glacê. Aliás, por falar nisso, onde foram parar as coberturas de glacê de antigamente? Hoje só dá gelatina, mousse, e o glacê cheio de gordura vegetal que a mãe fazia nunca mais...
Quando chegava meu aniversário, nas férias de julho, a Dona Neca causava uma pequena revolução na casa. Como a gente era pobre (e nisso houve poucas mudanças), não tinha geladeira (a primeira e única Dona Neca ganhou depois, do Baú da Felicidade) e brigadeiros, canudinhos com doce de abóbora e pés-de-moleque eram guardados nos armários dos quartos. Meus primos, formigões, não se intimidavam e, volta e meia, havia saques, sempre descobertos antes da festa e exemplarmente punidos com uns tapões na bunda - minha mãe era adepta da psicologia aplicada no lugar e na hora certos.
Na verdade, ela se chamava Maria. Dizia que era para ser Maria Iolanda, como a avó, que ficara na Itália, mas a verdade é que só depois que ela morreu e eu pude resgatar um pouco da nossa história descobri que a avó era Maria sim, mas Amália, Maria Amália Orlando, de onde deve ter vindo a idéia de Iolanda. A mãe virou Neca por causa do Chico, o meu vô, que carinhosamente chamava a primeira filha de boneca. A relação desses dois dava um capítulo à parte. Era uma briga terrível, pelos trocos da feira que ela fazia para ele, pelo que ele planejava fazer ou comprar, pela escolha do médico a consultar. Ele dizia lá uns palavrões em italiano, ela respondia em português e, no outro dia, o velho Chico voltava a procurar a filha que, brigassem quanto fosse, era sem dúvida a que ele mais confiava e preferia sobre todos os (8 vivos, de um total de 11) demais. Uma das histórias mais engraçadas da dupla aconteceu quando ela ainda era criança e ele, bêbado, insistia para que ela lesse o que estava escrito na sua testa. Nada, ué, dizia a Neca. Como nada, vociferou o leão - está escrito Caracu, menina Bocuda, ela revidou: Que Caracu, nada - e teve de ficar muito tempo escondida sobre a mais simpática goiabeira de Cajobi (interior de SP) até que o Chico Sasso curasse o porre e pudesse ver no espelho sua própria testa e desistisse da sova prometida.
Anteontem, quando eu recebi uma carta da Itália, restabelecendo um elo perdido pelos filhos do meu avô há mais de 50 anos, eu pensei em tirar uma foto da família, como aquelas antigas, e mandar para os primos de Taranto. É pena que vai faltar a pessoa mais importante, aquela que quando desapareceu tirou de mim o solo em que eu pisava, o apoio, o rumo. A Dona Neca, a alienada, a que errava as palavras, a politicamente incorreta que sempre dava um jeitinho de furar a fila. O meu abrigo, o melhor refúgio que eu pude ter, meu colo macio, gordinho, sempre carinhoso. A ausência que vai me travar a garganta e fazer chorar sempre que eu lembrar, por toda a minha vida. Mas a vida continua rolando, e vem o vento, e vem o tempo. Meu filho, que não conheceu a Neca, já tem nela uma referência luminosa, da avó que eu tenho certeza que ela seria. Essa luz, que eu dou a ele, também viajará no tempo, como esse texto, e novas gerações poderão senti-la, conhecê-la. Boa Noite, minha gente, que afinal de contas minha mãe tinha razão: já é mesmo muito tarde.
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