Projeto: Memória Oral do Museu da Pessoa
Entrevista de Luiz Egypto - Parte 1
Entrevistado por: Karen Worcman (P/1) e Renata Pante (P/2)
São Paulo, 27 de junho de 2024
Código da entrevista: MUPE_HV007
Revisão: Nataniel Torres e Luiz Egypto
00:00:19
P/1 - Luiz, faz um tempo que comecei um exercício interessante no início das entrevistas, que a gente não fazia, mas que eu venho sentindo como uma coisa muito boa, que é uma pequena pausa, um momento, uma espécie de meditação inicial para a gente fazer um exercício interno de memória, antes de a gente começar. Então, eu ia fazer contigo, propor, que em geral é para fechar o olho, eu vou fechar também, prestar um pouco de atenção na própria respiração. Ver se ela está meio acelerada, se ela está... Escutar os ruídos que estão por aqui. Visualizar a gente mesmo nesse espaço. Quando a respiração estiver um pouquinho regular, eu vou te convidar para levar a sua memória, fazer uma viagem em busca da primeira imagem que você tem, da sua primeira lembrança. Ela pode ser um lugar, pode ser um cheiro, pode ser qualquer coisa… uma sensação. Aí, a gente volta a prestar um pouco de atenção na respiração, se ela continua regular. Quando ela estiver tranquila de novo, eu vou te convidar a passear nesse lugar. Ou nesse momento, ou nessa emoção. Como se esses ruídos que estão aqui no entorno fossem diminuindo, você fosse ouvindo algo desse momento, desse lugar que a sua memória te levou, como a sua primeira memória. E aí, ainda sentindo se a respiração está bem, ver que sentimento, que feeling que esse lugar, ou esse momento, ou essa memória te traz. Sem nenhum esforço de tentar definir melhor. Pode ser apenas um borrão. E é como se a sua memória, assim, você vai encontrando, pousasse nesse momento, e percebesse o que tem em volta, se você está nisso, se esse lugar, esse momento, se tem cheiro, se você encontra alguma ressonância de sentimento. E apenas repousa ali. Quando você tiver reconhecido qualquer coisa desse momento em você, você percebe esse sentimento que te causou, que você percebeu, que você tá olhando pra esse lugar, você tenta fazer uma viagem no tempo, você só percebe que é você agora e você olhando para esse momento, dessa sua memória. E aí, percebe também o ar que entra e sai dessa respiração. Volta a perceber os ruídos daqui, desse lugar agora. Percebe um pouco as sensações do seu corpo. Passe um pouco por esse lugar que você está agora. Percebe o ruído, a respiração. Se tem alguma coisa inconfortável no corpo, nos braços, nas pernas, nos pés, no rosto. Enquanto você tiver feito esse passeio, vai voltando pra cá na hora que você quiser. Me conta que você voltou, volta. E aí, eu ia começar a nossa entrevista. Se você quiser me contar, se também não quiser, aí você me diz. Mas aonde, que memória foi essa primeira?
R - Foi a lembrança de uma lembrança. Porque eu me vi em pé num berço, ao ar livre, num caramanchão que era o quintal da minha casa, onde eu nasci, quando minha família morava, quando eu nasci. Mas eu não lembrei disso; lembrei que, uma vez, eu lembrei fortemente disso. Uma vez, em algum momento da minha trajetória, eu lembrei desse momento vivamente, mas não consegui lembrar agora. Eu lembrei que eu lembrei que era o quintal da minha casa, na Rua Pires do Rio, em São Paulo. Tinha um caramanchão e meu berço estava... Um berço grandinho, por sinal, e eu em pé no berço. Eu me lembrei que, uma vez, tive uma lembrança muito forte disso; lembrança mesmo. Mas hoje, eu não consegui lembrar; eu lembrei de ter lembrado.
00:09:14
P/1 - E você lembra desse momento que você lembrou? Que momento foi esse, que essa memória apareceu na sua vida? Ou você também não lembra?
R - Eu não me lembro. Mas me lembro de ter lembrado.
00:09:35
P/1 - Então, me conta um pouco dessa casa que você... Onde estava esse berço, dessa casa que você nasceu.
R - Meu pai trabalhou a vida inteira na Estrada de Ferro Central do Brasil. E, quando eu nasci, o papai era chefe da estação Engenheiro São Paulo, uma estação que era o terminal de carga da Central do Brasil, aqui em São Paulo. A rua não existe mais, a casa não existe mais, mas os armazéns ainda estão lá. Ficam junto ao Viaduto Guadalajara, na Zona Leste, em Belenzinho. Minha família morava aqui e eu nasci no Hospital 9 de Julho, na Peixoto Gomide. Me lembro que era um pátio de cargas, e me lembro de uma vez que o papai subiu comigo numa máquina e apitou. Eu morri de chorar, me assustei com o apito da máquina. Mas, naquele tempo, até recentemente, eu acho, as lideranças de alguma... O chefe da estação morava na estação. Então, a nossa casa era uma casa que me disseram ser ampla. Eu não tenho muita lembrança dela, porque eu saí de lá com três anos. Mudamos para Três Rios, no estado do Rio, onde meu pai residia, onde todos os meus outros irmãos nasceram. O papai se aposentou e foi para Três Rios cuidar de obras assistenciais. Papai era espírita, kardecista, ele levava muito a sério essa ideia da caridade, muito influenciado pela minha avó, mãe dele, que eu não conheci, que faleceu um ano antes de eu nascer, que era uma parteira e conhecida até hoje como Mãe Ritinha. Foi uma pessoa importante em Três Rios, nessa área da filantropia, da caridade e tudo mais. Criou uma maternidade. Hoje, dá nome a uma rua em Três Rios. Papai dá nome a uma creche. E essa mudança para lá foi para uma casa que meu pai construiu. E ali começam as minhas lembranças a ficarem mais fortes, porque ali eu já consigo lembrar sem precisar ter lembrado. A casa tinha um desenho moderno, e hoje virou uma clínica ortopédica.
00:13:33
P/1 - Luiz, mas antes da gente chegar em Três Rios, só para eu entender, então me conta um pouquinho. Você é o primeiro filho, então?
R - Sou o último. Eu sou caçula.
00:13:46
P/1 - Mas os seus irmãos nasceram aqui, então?
R - Em Três Rios. A história é a seguinte: meu pai trabalhava na Central do Brasil aposentou-se lá. Era radicado em Três Rios. Três Rios é um entroncamento rodoferroviário importante. A história é que, certa feita, houve um acidente no túnel 12. Esse túnel, passando pela Dutra, no sentido de São Paulo, passando Barra Mansa, você consegue ver, pela Dutra dá para enxergar. O fato é o seguinte, virou uma quizumba o tráfego, estamos falando de um tempo em que o trem era um transporte importante, um modal importante, e o papai conseguiu controlar o tráfego a partir de Três Rios. Ele era chefe da estação em Três Rios, ex-telegrafista. O papai foi telegrafista também. Por isso a letra dele era um garrancho, pouca gente entendia. E ele conseguiu administrar o tráfego que vinha do Rio em direção a Belo Horizonte e do Rio em direção a São Paulo. Isso chamou a atenção da direção da Central do Brasil, que, como recompensa, deu a ele esse posto de comando do terminal de cargas da Central aqui em São Paulo. Então, o papai transferiu-se para cá, com toda a família, eu não era nascido ainda. Todos os meus irmãos já estavam estudando e tudo mais, e o meu irmão mais próximo de mim tem 10 anos de diferença.
00:15:54
P/1 - Quantos são, Luiz?
R - Cinco.
00:15:58
P/1 - Então, o irmão mais próximo tem 10 anos?
R - E o irmão mais velho tem 20 anos de diferença comigo. Francisco Luiz Chiquinho, que é o mais velho, Adília, que é a única irmã, Humberto, que mora em Belo Horizonte hoje, José Carlos e eu.
00:16:27
P/1 - E aí você veio nascer aqui, mas ele já estava se aposentando, então?
R - O papai se aposentou e era muito bem relacionado em São Paulo com vários empresários e tudo mais. Ele foi convidado para trabalhar em Campinas, com um grande exportador de café, e o papai manteve a palavra que tinha dado a minha avó, de dedicar-se à caridade. E assim foi. Até a morte o meu pai trabalhou no Grupo Espírita Fé e Esperança, administrou a construção de um lar de meninas, Lar Manuel Pessoa de Campos, reformou o prédio do centro espírita, criando lojas que dessem sustentação financeira ao grupo, dirigiu a comissão de construção de um teatro que tem em Três Rios até hoje, o Teatro Celso Peçanha. Enfim, o papai era um sujeito dedicado à causa. Ele sempre sonhou que eu pudesse ser um orador espírita, mas eu nunca fui. E o papai tinha muito essa visão de que os filhos tinham que estudar. O papai tinha até o quarto ano no primário, minha mãe foi professora. Aída, minha mãe.
00:18:30
P/1 - O nome inteiro dele é?
R - José Ferreira de Cerqueira. E dela? Aída Egypto Cerqueira.
P/1 - Ah, o Egypto vem dela?
R - Vem dela.
00:18:42
P/1 - E essa sua família, do seu pai, só pra gente ver um pouquinho, ela se sabe assim, essa tradição espírita, sempre foram de Três Rios, você sabe?
R - Minha avó sempre foi. São informações que eu recebi a posteriori, não a conheci. Sempre foi. Meu avô, Francisco Ferreira de Cerqueira, também tinha dedicação à obra espírita. Era um tipo de religioso que levava à prática os mandamentos da caridade, da solidariedade e tudo mais. E meu pai viveu esses anos todos, desde a aposentadoria dele, em 1955, 1956, até o falecimento dele, que foi em 1986, trabalhando, vivendo da aposentadoria e pensão a que ele teve direito, e dedicando o seu trabalho todo à obra assistencial.
00:20:12
P/1 - E você nasceu exatamente em que dia?
R - Em 5 de julho de 1952.
00:20:20
P/1 - Então, você nasceu aí depois de, vamos dizer, uns quatro anos depois...
R - Sim, acho que foi em 55, 56 que nós mudamos para o Três Rios. O papai... tinha construído uma casa, tinha acabado de construir e nós fomos para essa casa. Uma casa que eu passei parte da minha infância.
00:20:44
P/1 - Então, antes da gente falar dessa casa, vamos falar um pouquinho da sua mãe. De onde ela vinha? Como ela foi? O que você sabe dela, dessa família?
R - Minha mãe também, pelo fato de ser o último filho, eu não convivi muito tempo com os parentes da minha mãe. Minha mãe era filha de um italiano, Antonio Nocito Fragale, e de uma carioca, chamada Adília, que dá nome à minha irmã, posteriormente. O que eu sei é que a minha avó, Adília, morreu muito cedo, com 24 anos. E o único avô que eu conheci foi o pai da minha mãe, Antonio Nocito Fragale, alfaiate, radicado no Rio de Janeiro. Tinha uma alfaiataria chamada London Tailors, que tinha esse nome porque ficava nos baixos da Casa Londres, na Avenida Central. Era uma alfaiataria chique. Nesse local foi construído um Edifício Avenida Central, na Avenida Rio Branco, no Rio. E o vovô manteve uma loja prêt-a-porter no térreo, e a alfaiataria dele nos 5º ou 6º andar, se não me engano. Continuava sendo um alfaiate de elite. Foi alfaiate do Alfredo Stroessner, o ditador do Paraguai. Até o momento em que caiu de moda esse negócio de mandar fazer terno. Teve uma época, estou pulando um pouco os tempos, mas eu estudei em Juiz de Fora, fiz universidade em Juiz de Fora, ia muito ao Rio, e algumas vezes eu encontrava o vovô. Mas eu não convivi com ele. Não tive histórias dele, não conversei com ele. Me lembro de uma vez ele ter ido a Três Rios. Me levou duas camisetas: uma que tinha escrito “Vive le printemps”, e uma outra camiseta, vermelha. E, por outro lado, eu saí para estudar muito cedo. Fui estudar interno, aos dez anos de idade, em Nova Friburgo, numa escola espírita, chamava Instituto Lucis. Cabeça do meu pai: uma educação de qualidade, se possível direcionada para a doutrina. Eu tenho muitas críticas a esse tipo de postura, mas, na época, eu não contestava. Porque quando eu vejo meu neto com 10 anos de idade, 11, imagino o Martim estudando interno. Mas era um outro tempo. Eu fiquei lá no ano de 1963 e entrei no ano de 1964 e veio o golpe. E aí, felizmente, meu pai me tira do colégio e eu vou estudar em Três Rios.
00:25:35
P/1 - Mas ele te tirou por causa do golpe? Você acha que uma coisa tem a ver com a outra?
R - Tem. Tem a ver porque ele não tinha certeza do que aquilo ia gerar. Então, preferia ter o filho mais novo por perto. A gente já chegou a conversar sobre isso. Ele não tinha muita informação do que poderia ocorrer com o país depois daquela intentona, digamos assim. E preferiu que eu ficasse perto da família. Eu voltei para Três Rios, estudei o ginásio, no então ginásio, odo até o quarto ano e vim para São Paulo fazer o científico. Vim morar com um irmão meu, que já morava aqui. Morava a minha irmã também, que já era casada. Eu fui estudar na Escola Estadual Antonio Firmino de Proença, na Rua da Mooca. Fiz o primeiro científico, repeti de ano, porque eu fui muito mal em matemática. Tinha uma professora danada. Ondina o nome dela. Dona Ondina. E eu não me dei bem com a teoria dos conjuntos, que ela ensinava. Fiquei de recuperação, fiquei de “segunda época”, chamava-se. Perdi a segunda época, fui reprovado por conta da matemática. Repeti de ano, em1967. Estudei no ano de 1968 repetido, aí mudei para Juiz de Fora, onde terminei o científico e fiz a universidade.
00:27:44
P/1 - Antes de a gente seguir nisso, eu queria voltar de novo só um pouquinho para a sua mãe. Ela cuidava da casa? Ela era professora. Então, me conta um pouco dela e o que você lembra dela nesse período.
R - Minha mãe, filha de Antonio Nocito Fragale e Adília, foi criada, com a morte da mãe dela, da minha avó, foi criada por uma madrinha, uma tia-avó, que eu conheci, tia Áurea – Manhá, como a gente chamava. E a mamãe era uma mulher muito bonita, e foi professora um breve período da vida, até os 20 anos de idade. Meu pai a conheceu e ficou perdidamente apaixonado. A gente recuperou... Eu não conseguia achar, mas a gente recuperou um soneto que ele fez para ela. Um soneto perfeito, com aquela métrica perfeita e total paixão.
00:29:03
P/1 - Mas ele morava em Três Rios e ela no Rio?
R - Era no Rio, mas como ela foi criada pela madrinha, a madrinha mudou para Três Rios. Então, papai e mamãe se conheceram em Três Rios. Casaram-se em 1932, em março de 1932. Exatamente. E se conheceram lá. Casaram-se em Três Rios e depois fizeram essa trajetória que eu mencionei.
00:29:52
P/1 - Ela então deixou de ser professora?
R - Deixou de ser professora. Virou uma dona de casa. Uma dona de casa no velho estilo. Cuidava dos filhos e cuidava do funcionamento do lar, muito dedicada ao meu pai, aquela coisa, esposa à moda antiga, digamos assim. Mas uma pessoa muito presente na família, muito carinhosa, embora eu me lembre que antes de eu sair para estudar fora, ela era mais enérgica comigo do que o meu pai. Eu tenho uma lembrança. Evidentemente, não se falava palavrões. E eu me lembro de ter ouvido uma expressão, “vai cagar no mato”, aquilo eu achei engraçado. Aí um dia eu lembrei, estava na copa da minha casa, a casa grande… “Vai cagar no mato”. Levei um tapa na boca. Mas eu não falei para ninguém, eu só achei bonita a expressão, engraçada. E repetia, assim, com uma lembrança alta, pensando alto, perto dela. Levei um tabefe na boca. Foi isso aí.
00:31:30
P/1 - E ela era espírita também?
R - Também.
00:31:33
P/1 - Então você não teve uma educação católica?
R - Não tive educação católica.
00:31:40
P/1 - E como é a característica, o que significa quando a gente é criança e tudo, essa educação espírita? Como isso é presente no dia a dia?
R - Manter a palavra empenhada, ser solidário, fazer o bem. Meus pais tinham essa concepção de religião mais prática. Faziam reuniões semanais no grupo espírita. Essas coisas nunca me encantaram, na verdade. Eu cheguei, em algum momento, a frequentar a chamada Mocidade Espírita, mas não era muito a minha praia. Eu não conseguia mergulhar na religião tal como meus pais mergulharam. Eu sempre fui um pouco rebelde nesse aspecto. Eu não via muito sentido. Eu vejo sentido agora, mas no momento, não fazia muito a minha cabeça. Talvez pelo fato de ter saído cedo de casa, isso me levou a ter outros inputs que não favoreceram uma possível dedicação minha à causa espírita, embora eu a respeite. Meu pai era um exemplo de caráter, reconhecido exemplo de caráter na cidade, por conta exatamente dessa ética que ele exercia, tanto do ponto de vista assistencial quanto do ponto de vista doutrinário. O meu pai era respeitado, um sujeito de caráter ilibado que dedicou a vida inteira ao assistencialismo. Acho que uma vez apenas, eu já morava em Juiz de Fora, ele aceitou ser chefe de gabinete de um prefeito. Passou dois anos como chefe de gabinete de um prefeito, Samir Macedo Nasser, que era um amigo dele, que o convenceu de ajudá-lo na prefeitura. Ficou dois anos como chefe de gabinete e nunca mais se envolveu. Nunca mais, não. Me lembro que, em 1960, ele se envolveu na campanha do Jânio Quadros, 1959, 1960. Ele entrou numa barca furada, coitado. Eu me lembro que o Jânio fez um comício em Três Rios, e o papai foi um dos oradores desse comício. Deu com os burros n’água. E ele também se encantou – numa certa fase, e que não durou muito – com Alziro Zarur, da Legião da Boa Vontade, achando que aquilo podia ser uma grande coisa. Também não prosperou. O papai, embora fosse um sujeito muito dedicado a causas nobres, ele às vezes, ingenuamente, embarcava em algumas situações que não dariam certo mesmo. Imagina, Jânio Quadros? Sete meses depois, ele renuncia e o papai teve uma super decepção. Tem uma foto que eu não consegui localizar, também não procurei, mas... No terreno em frente à minha casa tinha um muro, uma casa de esquina, e o meu irmão Humberto, que já era estudante de engenharia, desenhou um mapa do Brasil e escreveu a frase, “Jânio vem aí”. Então, tem uma foto, estou eu e meu sobrinho, Kiko, Francisco Luiz, filho mais velho do meu irmão mais velho, apontando, cada um de um lado, assim, apontando para o “Jânio vem aí”. Embora o papai tivesse embarcado nessas duas históricas barcas furadas, Jânio Quadro e Alziro Zarur, um ele sublimou rapidamente, que foi a renúncia do Jânio. O papai nunca foi um militante político, mas se identificava com a UDN [União Democrática Nacional]. Ele se identificava com o brigadeiro Eduardo Gomes. E Alziro Zarur foi um lapso de tempo muito curto que, felizmente, passou.
00:37:35
P/1 - Luiz, então, voltando agora a você, a sua vida, quer dizer, você está nessa casa e você vai pra Juiz de Fora, vem para cá, depois Juiz de Fora. Me fala desses inputs que você fala, começa a chegar outras informações, outras coisas que foram te envolvendo.
R - Desde o ginásio, eu sempre gostei de ler muito. Eu adorava geografia e história. Eu lia livros didáticos mais avançados do que os meus. E aprendi com meu pai a ler jornal. Papai sempre foi um leitor voraz de jornal. Então, eu acompanhava. Me informava desde cedo, li o Globo, o Jornal do Brasil. Basicamente, papai alternava, mas a maior parte do tempo no Jornal do Brasil. Estou tentando lembrar. Eu era um sujeito que dava palpite nas coisas, porque eu me sentia razoavelmente informado.
00:39:21
P/1 - Que tipo de coisa você gostava de ler?
R - Eu sabia da política, gostava de noticiário internacional, gostava muito do “Caderno B” do Jornal do Brasil. Mas, no tempo de Três Rios, eu lia mais jornal ainda, porque o jornal chegava em casa. Quando mudei para Juiz de Fora, era um jornal comprado em vaquinha, na república. Fui para Juiz de Fora estudar e, a despeito da minha péssima performance em matemática, no primeiro científico, optei por fazer engenharia, não sei por que, talvez por ter um irmão engenheiro. E, curiosamente, as opções que se colocavam eram engenharia ou direito – engenharia, medicina ou direito. Medicina, nem pensar; direito, eu não me identificava, embora, quando eu era mais novo, ainda em Três Rios, eu tivesse feito um teste vocacional e deu direito. Eu não acreditei. Acabei estudando o curso científico para vestibular de engenharia. Fiz vestibular e passei. Entrei na Universidade Federal de Juiz de Fora, em 1971, no curso de engenharia. Passei em 88º lugar no vestibular. E, evidentemente, foi a minha vez de dar com os burros n’água. Atravessei incólume o primeiro ano, Cálculo 1, Cálculo 2. Comecei a ratear no segundo ano. E aí, vivendo numa cidade, aspas, cosmopolita, que é Juiz de Fora, uma cidade estudantil, a efervescência política daquele tempo, as informações que se tinha. Fui para Juiz de Fora às vésperas do AI-5. Não, não às vésperas, depois do AI-5: em 1969 fui para Juiz de Fora. Vivendo uma efervescência política, eu comecei a descobrir que não ia dar certo na engenharia. Pedi transferência para o curso de jornalismo. Eu entrei na faculdade e entrei também para o Diretório Central dos Estudantes. Fui secretário de Cultura do DCE por três anos consecutivos, três gestões. Naquele tempo, tinha vaga no curso de jornalismo. Eu fiz um requerimento pedindo transferência e me aceitaram. Eu transferi de curso em julho de 1973. Nesse momento eu já estava enfronhado na vida universitária. Me encantei com o teatro. Em 1972, fui ao Festival de Inverno de Ouro Preto e assisti, entre outras coisas, ao espetáculo “A Morta”, do Oswald de Andrade, montado pelo Grupo Divulgação, que era um grupo de Juiz de Fora. Fiquei encantado. “A morta”, vim saber depois, é uma das peças do Oswald de Andrade daquele tipo “imontável”. O Zé Luiz Ribeiro, que é o diretor do grupo, fez um carnaval de “A morta". Eu assisti ao teatro em Ouro Preto e falei: “Preciso me aproximar desse pessoal”. Quando criança, em Três Rios, eu tinha feito teatro também, no Grupo de Amadores Teatrais Viriato Corrêa, cujo teatro foi construído pelo meu pai. Eu protagonizei duas peças infantis: “A onça de asas”... não. “A onça de asas”, não. “O cavalinho azul” e... Não lembro da peça [“O rapto das cebolinhas”]. “Onça de Asas” eu fui fazer depois. “O cavalinho azul” e... Enfim, duas peças infantis. Corta: eu fui para Juiz de Fora. Eu vim com esse papo com o Zé Luiz Ribeiro, eu fui conhecê-lo – ele e a Malu, mulher dele. Ainda estão na ativa até hoje. E disse [a ele] que queria ajudar de alguma forma, queria participar. E ajudei na montagem de um espetáculo chamado “O patinho torto, ou os mistérios do sexo”, do Coelho Neto, onde trabalhei como assistente de iluminação. Depois montou-se um espetáculo infantil, “A onça de asas”, de Walmir Ayala. Aí eu já subi ao palco, fiz o Leão. Isso, ao mesmo tempo, fazendo o jornal do DCE, produzindo shows do então circuito universitário, que era uma forma que os artistas encontraram para levar os shows para o público universitário e num esquema não de cachê, mas de 70% da bilheteria. Isso funcionou muito na época. E produzi shows de Chico Buarque e MPB 4, Vinícius, Toquinho e Clara Nunes, Quinteto Violado, Gonzaguinha, Milton Nascimento. Era uma vida... Enfim, eu não tinha tempo para religião. Mas meu pai era um cara sábio. Quando eu disse para ele que eu ia mudar de curso, ele não zangou comigo, não. Ele deu maior força. Entendeu o porquê. E assim se deu, perdi o fio da meada...
00:48:09
P/1 - Você estava lá na universidade, então. Totalmente envolvido nessa vida cultural, política.
R - Sim, claro. Continuei no teatro até sair da universidade. Aí vieramio “Yerma”, Garcia Lorca, “Seis personagens à procura de um autor", Luigi Pirandello, “As criadas” de Jean Genet. “As Criadas” acho que foi o meu último espetáculo, que era um teatro de repertório que o Zé Luiz imprimiu no Grupo Divulgação. E, nesse ínterim, passei por uma das experiências mais marcantes da minha vida, proporcionada pelo teatro, que foi um projeto maluco, de um maluco chamado Paschoal Carlos Magno, embaixador. Ele criou um projeto – já tinha feito o “Trem da Cultura" anos antes – ele criou um projeto chamado “Barca da Cultura”, que juntou o Ballet Stagium, uma fração do Ballet Stagium, evidentemente, com Décio Otero e Marika Gidali, Orquestra Sinfônica Jovem de São Paulo, um grupo de teatro infantil do Paraná, um coral do Rio Grande do Sul, e o Grupo de Divulgação montou “Cancioneiro de Lampião”, de Nertan Macedo, com músicas da Sueli Costa, e botou essa gente toda numa barca em Pirapora, e saiu navegando pelo rio São Francisco, parando em todas as cidades, fazendo espetáculos em todas as cidades, num grande tablado montado em cima da barca.
00:50:07
P/1 - Que lindo isso!
R - Fantástico. Percorrendo todo o São Francisco até [Juazeiro, na Bahia]. Ainda não existia a represa de Sobradinho. A partir de [Juazeiro], eram três ônibus, uma Rural Willys da produção, um Dodge Dart onde ia o Paschoal, um caminhão que levava os cenários, também montando espetáculos por cidades, de Fortaleza para Teresina, de Teresina até Belém, de Belém para Brasília, e acabou. O Grupo de Divulgação foi até São Luís, Maranhão, e de lá voltou. Foram quase dois meses de mergulho total num país que não teria outro jeito de conhecer melhor. E teatro é uma arte viva. Cada espetáculo é um espetáculo. E a interação com as plateias era uma coisa fantástica. Eu só fui processar isso tudo a partir da volta, porque isso marcou a minha vida, ativou o meu espírito de viajante. Nossa, foi um banho de Brasil. Isso um pouco me provocou a fazer outras coisas. De 1975 para 76, eu já estava terminando o curso, eu me formei em julho de 1976, [pensei]: “Eu quero ver agora outra parte: em vez de subir para o Brasil, eu quero conhecer a América em que a gente vive”. E botei 500 dólares no bolso, em travelers checks, peguei um ônibus da [empresa] General Urquiza, no Rio de Janeiro, fui parar em Buenos Aires. Depois eu vinha pensando: “Que temeridade, um cara sozinho viajando, barbudo, comprando livros numa Argentina que estava prestes a embarcar num golpe”. E dali eu fui de Buenos Aires para Mendoza, de Mendoza para Santiago. Os livros que eu comprei [em Buenos Aires] na Argentina, eu pedi para o livreiro despachar por correio para mim. Paguei. Ele, de fato, despachou. Uma metade. A outra metade faltou. Eu escrevi para ele. Ele mandou a segunda metade. Ele queria ter certeza que eu tinha recebido. Mas viajei, sim, viajei com… No bolso, na minha bolsa, o “Venas abiertas de América Latina”, do [Eduardo] Galeano, que tinha uma edição da Siglo XXI, que eu comprei em Buenos Aires, e um Cuaderno de Crisis, que era de uma revista, Crisis, que publicava cadernos que eram... independentemente da revista propriamente dita, um caderno sobre a Guerra da Tríplice Aliança, que a gente chama de Guerra do Paraguai, e que funcionou para mim como uma desconstrução. Como eu adorava a história, a geografia, como mencionei. eu tinha uma ideia da Guerra do Paraguai e uma ideia dos vencedores. E a leitura do livro do Vivian Trías me deu um nó na cabeça. Aquelas crenças todas, como o velho barbudo diria, “tudo que é sólido desmancha no ar”, foi uma leitura fundamental para mim. No caminho para Mendoza, em algumas paradas, eu encontrava outros Cuadernos de Crisis. Botei na mala, na mochila que eu carregava. De Mendoza para Santiago fui de ônibus e na aduana chilena fui revistado… Até, menos a minha bolsa, mas meus livros, meus cadernos que eu tinha comprado na viagem, foram todos confiscados. Eu me lembro que eu conheci um sujeito, passei o Réveillon com ele, a noite de Réveillon com ele em Buenos Aires, Alberto Beuttenmuller, já falecido, aqui de São Paulo, um poeta, trabalhou no Jornal do Brasil, e ele me deu um exemplar do jornal Opinião sobre cultura popular, uma capa do Jô Azevedo. Eu me lembro que o milico na fronteira [disse]: ¡Cultura popular no pasa”!
00:55:59
P/1 - Mas aí você está falando do Chile, o Chile é que não queria?
R - Eu estava atravessando na localidade de Los Andes, se não me engano. Passa do lado do Aconcágua o caminho por terra de Mendoza para Santiago. Me apreenderam tudo o que eu tinha de publicação, mas esqueceram de examinar a minha bolsa, onde eu salvei o livro do Galeano e o livro do Vivian Trías. Pelo menos isso. E dali... Eu me lembro de um comentário. Eu era muito arrogante, mesmo. Eu me lembro de um comentário. Eu conheci um grupo de uruguaios, passamos a viajar juntos. Ficamos amigos, ainda nesse trajeto, de um chileno que trabalhava para Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe]. E eu tendo todas aquelas publicações apreendidas, eu falei: “Essas ditaduras são assim mesmo”. Eu corri uns riscos. Só fui ver o risco que eu corri, depois. “Essas ditaduras são assim mesmo”. Querendo peitar. Imagina, eu sozinho, viajando sozinho. Enfim, continuei o meu périplo com planos de voltar pelo Amazonas. Mas, desse grupo de uruguaios, eu me apaixonei por uma delas, a Maria Clara. Mas era uma relação meio estranha, que não podia ter dado certo. Eles permaneceram no Chile, eu fui para Reñaca, Concon, Zapallar, e depois atravessei o Atacama para Arica. Ali que eu peguei um trem para La Paz, que fazia uma baldeação em um lugar na cordilheira, já a 3 mil metros de altitude, alguma coisa assim, chamado La Charaña. Nesse momento, você saía do trem, do trem chileno, tinha que andar uns 200 ou 300 metros para pegar o trem boliviano. Foi o único momento em que eu senti o peso da altitude, porque a minha mochila ficou pesando uma tonelada. E aí eu abandonei o projeto de voltar para o Brasil via Amazonas, porque eu queria rever a Maria Clara. Fui para La Paz, de La Paz para Santa Cruz de La Sierra, onde eu comprei uma passagem de avião para Asunción, porque para atravessar de Santa Cruz para o Paraguai era temeroso. De Asunción, peguei ônibus para Montevidéu.
00:59:44
P/1 - Atrás de Maria Clara.
R - Reencontrei Maria Clara e descobrimos que não ia dar certo mesmo, por conta da distância, dos planos, das histórias. E de lá para Porto Alegre, de Porto Alegre para São Paulo, e fim do périplo latino-americano. Foi o meu banho de Latinoamérica.
01:00:12
P/1 - Durou quanto tempo isso, Luiz?
R - Durou um mês e... Durou cinco semanas. Cinco para seis semanas. Na rodoviária de São Paulo, eu compro um jornal chamado Versus, que tinha um foco latino-americano que me encantou. “O que é isso? Que jornal é esse?”. Eu já tinha acertado uma viagem pela universidade para um campus avançado da Universidade Federal de Juiz de Fora, em Tefé, no Amazonas. Me lembro que a gente viajava com mapa, porque não tinha Google Maps. Desse grupo de uruguaios do qual fazia parte Maria Clara, fiquei muito amigo do Manolo, Manolo Baruch. Então, eu dizia para o Manolo onde é que eu ia. Com o mapa aberto, olhando o Uruguai, eu ia para o Tefé, lá no alto do mapa. Dava a dimensão do Brasil comparado com o Uruguai, tadinho. Mas o fato é que em São Paulo eu conheci o Versus. Comprei o número 2, eu acho. O 3. Comprei na rodoviária de São Paulo, que era um jornal com foco latino-americano, um jornal, depois eu fui elaborar isso melhor, que fazia resistência à ditadura, resistência cultural à ditadura, e focado na Latino-América, continente para o qual a gente só dava as costas, porque só olhava o litoral. Tive a mesma sensação de encantamento que tive ao assistir “A Morta”, em Ouro Preto, e fazer teatro por conta disso. Falei: “Quero vir para cá quando me formar”. Tinha feito um estágio no Jornal do Brasil, no “Caderno B”, onde assinei minhas primeiras matérias sob a égide de Humberto Vasconcelos e Mário Pontes, no “Caderno B”. Indo para Tefé... Fiquei 45 dias em Tefé. Descobri umas... – descobri, não, que a história já existia, eu é que não sabia, não conhecia –, dos soldados da borracha. É uma história que me fascinou. Eu conheci um senhor em Nogueira. Tefé fica na beira de um lago; o Solimões passa, tem um lago grande, na frente tem uma cidade chamada Nogueira. Conheci um sobrevivente do primeiro ciclo da borracha. Fiz uma entrevista com ele e aquela história me chamou a atenção. Enquanto estive lá, procurei tudo que pude reunir a respeito dos soldados da borracha. Voltando, escrevi um texto longo. Lembro que em laudas do Jornal do Brasil, que eu tinha pego laudas em branco, porque eu estava lá desde o tempo do meu estágio, laudas verdes. Me formei em julho de 1976 e vim para São Paulo. Na viagem [pela América], numa fila de troca de travelers checks, conheci algumas pessoas que ficaram amigas minhas pelo resto da vida. A Lourdes Pimentel e o João Coentro, que era um desenhista, e o Ricardo Lins e a Gina. O Rico Lins hoje está na área, um grande artista gráfico. O João Coentro foi a primeira perda que eu tive na minha vida pela AIDS. Éramos amigos e morreu de AIDS, num momento em que não tinha cura, não tinha... Cura não, não tinha medicação para isso. Contando essa história com eles, o Rico me falou: “Procura em São Paulo o Alcy [Linares] ou o Chico Caruso, no jornal Movimento”. Eu queria chegar ao Versus, e eu não sabia. O Versus ficava na Capote Valente, em Pinheiros – naquele momento, todos os jornais de esquerda estavam em Pinheiros: Em Tempo, Movimento, Versus. Então, eu fui à redação do Movimento procurar o Alcy. Ele não estava, [mas estava] o Chico Caruso: falei com ele e me convidou para encontrá-lo no dia seguinte, na casa dele. Ele morava na Teodoro Sampaio com a Capote Valente, numa vilinha que tinha ali. Almocei na casa dele, me lembro que era um bife milanesa, e ele me levou ao Versus, que ficava na Capote Valente, 376, antes da Artur Azevedo, um pouquinho. Batemos na porta, atendeu o Antônio Tadeu Afonso, que trabalhava no Estadão. Todos os grandes jornalistas do Versus trabalhavam na [grande] imprensa. O Versus foi feito, o primeiro número foi feito com o 13º salário do Marcos Faerman, o Marcão, com quem eu tive o supremo prazer de conviver. Fomos muito amigos. E eu cheguei com a minha materinha debaixo do braço. Matéria com 35 laudas, um catatau, que aos meus olhos de editor hoje, não diria impublicável, mas eu transformaria aquilo em um terço. Evidentemente, ela não entrou na pauta imediata do jornal. O fato é que comecei a frequentar o jornal. No dia seguinte, eu já estava na Cidade Universitária [da USP] pregando o cartaz do número 6 do jornal, nos pontos de ônibus, e fui acolhido pelo jornal: o Marcão, o Matico (Omar de Barros Filho, que é meu amigo até hoje, mora em Porto Alegre), Toninho Mendes, diretor de arte, Carlos Clémen, com quem fiz uma dupla, um diretor de arte. Vitor Vieira... Comecei a trabalhar no jornal. Um trabalho voluntário, na verdade, porque trabalhávamos pela causa. Era um tempo mais risonho, do ponto de vista da sobrevivência.
01:08:42
P/1 - Nessa época, você conseguia sobreviver como?
R - Meu pai me dava uma grana. Até o momento que eu ganhei o meu primeiro dinheiro. E quando eu disse para ele que eu não queria mais receber, ele não acreditou. Na verdade, todo esse período em que eu estudei, eu não trabalhei profissionalmente. A grana que meu pai me dava se resumia às necessidades básicas. E comecei a “freelar”, a fazer coisas. Me lembro que o primeiro pagamento que eu tive no Versus foi uma máquina de escrever portátil [Olivetti], daquelas verdinhas – Lettera 32, se não me engano. Era [o administrador] financeiro de jornal um cara que até hoje é meu amigo: Paulo de Tarso Venceslau, o PT. Grande figura! E o jornal foi a minha pós-graduação em jornalismo, porque convivi com grandes jornalistas, grandes repórteres. E o jornal era um jornal muito legal. Acho que apareço no expediente, como último colaborador, no número 6. Dali a três ou quatro meses, eu já era editor assistente e fiquei como um dos editores até eu sair do jornal, em 1979. Aí eu começo a escrever para o [suplemento] “Folhetim”, da Folha de S.Paulo. E aí houve uma grande virada na minha vida. Em 1978, eu namorava uma fotógrafa do jornal Versus, a Rosa Gauditano, com quem acabei me casando. Tenho a minha primogênita com ela. Somos amigos. E ela morava na rua Frei Caneca. Eu me lembro que houve um incêndio no Conjunto Nacional. Incêndio de pequenas proporções, mas um incêndio, e a gente foi ver. Estava um monte de gente na avenida Paulista ali vendo. Nisso eu encontro com uma menina chamada Cecília Flosi, de quem eu perdi totalmente contato. Mas eu a conheci no Versus. No porão do Versus funcionava um jornal chamado Nós Mulheres, era um jornal feminino. Depois que Nós Mulheres saiu, o porão virou um porão habitável onde ficavam os encalhes do jornal. E a gente começou a encadernar e vender as edições encadernadas para fazer um caixa. Mas, enfim, voltando ao incêndio, a Cecília Flosi assim: “Estão acontecendo umas reuniões na PUC porque estão montando um curso de jornalismo. Por que você não vai lá ver o que acontece?”. Eu fui. Era um grupo de pessoas, jornalistas, outros não, mas, enfim, acadêmicos. Me lembro de Júlio Plaza, me lembro de Carlos Gardin, Evaldo Sintoni, conversando sobre o que seria o núcleo profissionalizante de um curso recém-criado na PUC. E eu me dediquei a construir um projeto de uma disciplina de jornalismo comparado. Enfim, houve discussões, não me lembro com detalhe do que tanto nós falávamos, mas eu participei desse grupo. Até o momento que eu recebo um telefonema. Em janeiro, final de dezembro, início de janeiro de 1979, eu recebo um telefonema na casa onde eu morava. Morava na casa da família de um amigo meu, na Vila Mariana, me chamando, pelo telefone, a Samira Chalhoub, que já faleceu, professora do Departamento de Arte, me chamando para dar aulas no curso de jornalismo. Aí, “uau!, vou poder ter alguma estabilidade”. E, de fato, aí resolvi casar com a Rosa, pudemos ter filhos e tudo mais, e começou uma trajetória na PUC que durou 27 anos. Meio por acaso, porque se eu não tivesse encontrado com a Cecília Flosi, se eu não tivesse sabido dessas reuniões preparatórias, a coisa não andava. Da mesma forma como se eu não tivesse assistido “A morta", no Teatro Municipal de Ouro Preto, e me encantado com aquele carnaval que o Zé Luiz montou, curtindo com a cara da TFP. Enfim, foram momentos da minha vida que acabaram determinando os rumos que tomei na sequência. Quando fazia teatro, me lembro que... Imaginei ser possível uma opção radical pelo teatro. “O que você vai fazer na vida? Eu não vou fazer isso. Eu não quero trabalhar no jornal, eu quero fazer teatro”. Mas eu dizia isso para o meu grupo, só eu que estava a fim de fazer isso, os outros, não. “Eu sozinho não vou”. Um pouco de covardia também, cá entre nós. Não sei se eu seria um ator profissional, embora eu gostasse demais da máquina teatral. Mas mergulhei no jornalismo, não no Rio, mas em São Paulo, onde as oportunidades eram maiores.
01:16:20
P/1 - Luiz, então a gente parou, deu uma pausa aqui, onde você acaba entrando no curso para dar aula na PUC, tem filho, primeiro casamento, e aí, enquanto isso, todo esse momento, esse ciclo, se realiza, foi acontecendo alguma outra coisa paralelamente a isso, ou essa foi sua principal dedicação? Como é que ficou esse momento? A gente está falando do fim dos anos 70, anos 80.
R - 1979, 80, né? Nesse momento, eu me divido entre uma nascente vida acadêmica, mas esqueci de dizer: quando eu vim para São Paulo de volta, depois de formado, eu vim com a intenção de fazer uma pós-graduação, um mestrado. E sondei na ECA, Eduardo Peñuela Cañizal, professor. Eu tentei engrenar alguma coisa e não consegui. Eram muito... frágeis os meus argumentos. Eu não tinha uma vida acadêmica que subsidiasse um projeto de mestrado robusto. Então, eu passei a me dedicar ao jornalismo, a fazer jornalismo. Quando entrei na PUC, eu retomei o projeto de fazer o mestrado, mas, primeiro, tomei pé da situação dos primeiros momentos do curso. Eu passei a dar aulas e, ao mesmo tempo, colaborava com o “Folhetim”, da Folha de S.Paulo, que era um jornal tabloide semanal que circulava nas edições de domingo. Aliás, acho que foi por conta da minha participação no “Folhetim” que fui chamado para a PUC, porque eu assinava muitas matérias, grandes entrevistas.
01:18:49
P/1 - Você pensou em retomar o mestrado e estava começando esse curso de jornalismo comparado, pelo que entendi, e também fazendo todo um trabalho no “Folhetim”. Acho que isso era o seu momento de vida, né?
R - Isso. Até o momento em que o meu editor no “Folhetim” [Nelson Merlin] foi demitido. Eu saí junto. Pelo menos junto com o Joca Pereira, que era o diretor de arte. Saímos juntos. E nesse meio tempo acontece, em abril de 1979, a greve dos jornalistas. Uma greve que mobilizou a categoria em São Paulo. Mas a greve foi feita para interromper a produção, e não se conseguiu interromper a edição dos jornais. Os jornais em São Paulo eram feitos com material vindo das sucursais, sobretudo do Rio e Brasília. Eram edições menores, mas o jornal não deixou de circular. A greve terminou e houve demissões a rodo. E eu não cheguei a ser demitido porque eu não era empregado da Folha, eu era um free fixo – stringer, como se diz. Mas depois da greve eu falei: “Opa, então é a universidade que é o caminho”. E passei a me dedicar mais intensamente à PUC, pensando em um projeto de pesquisa que subsidiasse um mestrado em história que eu queria fazer. O projeto de mestrado ocorreu em 1981. Estou pulando alguma coisa que é importante. Eu queria alguma coisa vinculada ao jornalismo.
01:21:35
P/1 - Não queria ficar só na vida acadêmica?
R - Sim, mesmo na vida acadêmica, tanto que o meu projeto de pesquisa foi em cima de jornais operários. Eu escrevi uma dissertação chamada “Imprensa e indústria da consciência – A informação e a contrainformação militante”. Um, chamado Jornal dos Jornais, que era uma colagem de notícias sobre o movimento sindical, mimeografado à tinta, em que fazia-se uma seleção de notas que tivessem a ver com o movimento sindical. Era feito pela Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo. Tinha a Folha Bancária, feita pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo; a Folha Metalúrgica, do ABC. Esse trabalho me fez ter contato com um autor chamado Hans Magnus Enzensberger, do qual [primeiramente] eu li Elementos para una teoría de los medios de comunicación. Era um livretinho, um opúsculo, edição de 1972, da Anagrama, de Barcelona, onde eu pesquei esse conceito de indústria da consciência. Por que indústria? Porque é produzido em escala. A mídia voltada para criar uma consciência no público leitor tinha a ver com essa ideia massificada... um pouco reducionista, digamos, do que eu tinha à época: a imprensa burguesa que quer fundar os seus valores, quer espargir os seus valores em escala industrial. E daí a contrainformação militante aparecia como uma forma de desconstruir esse discurso, por aí vai. Eu construí a dissertação em torno disso, mas esse cara, Hans Magnus Enzensberger, que eu não conheci pessoalmente, mas assisti a uma conferência dele no Instituto Goethe, aqui em São Paulo, no ano 1983, 84, foi a única vez que ele veio ao Brasil. Não sei se está vivo ainda. Eu me encantei com um trabalho dele chamado El corto verano de la anarquía – Vida y muerte de Buenaventura Durruti. Buenaventura Durruti foi um líder sindical catalão que morreu na guerra civil espanhola. A CNT, Confederación Nacional del Trabajo, era uma organização anarquista que levava ao pé da letra os postulados anarquistas e tudo mais. Mas o que me chamou a atenção nesse livro? A forma como ele conta a história do Buenaventura Durruti. Originalmente, a pesquisa primária dele era para um programa de rádio, mas ele começou a recolher testemunhos tanto de pessoas quanto de documentos, sobre o Durruti. Ele conta a história do Durruti pela boca dos outros. O único critério que ele utilizava, inegociável, digamos assim, era que os documentos ou os personagens tivessem tido contato com Durruti. Ele pontua o livro com comentários que, na verdade, se tirados do contexto do livro, é uma história, um apanhado sobre a guerra civil espanhola. Primeiro comentário, segundo comentário, terceiro comentário, assim que ele nomeia esses comentários, recheados com testemunhos sobre o Durruti. Você conhece o Durruti, conhece o ambiente do Durruti, sem ouvir o Durruti falar. Ele repete a mesma técnica num outro trabalho dele chamado Conversaciones con Marx e Engels, em dois volumes, também da Anagrama. O primeiro recorte é uma carta da mãe do Marx para a irmã dela, dizendo que estava grávida, e o último recorte, lá no fim do segundo volume, é uma nota de falecimento, um obituário do Engels. Eu achei aquela história muito interessante porque a pesquisa tinha um sentido de construir uma narrativa sem necessariamente um autor construir uma narrativa única; são vários autores. Isso eu guardei num escaninho da minha cabeça. Gostei dessa ideia. Até que, em 1996, até então vinha dando aulas na PUC e “freelando”. Fiz vários trabalhos, viajei. Vivi da profissão, sempre contando com a PUC, que era uma forma de eu organizar tudo isso. Até o momento em que eu editava uma revista da Aberje – Comunicação Empresarial, o nome da revista. E, no início de 1996, o Paulo Nassar (que hoje acho que é diretor-presidente ou diretor-presidente-executivo, continua na Aberje), com quem eu fazia a revista, eu batia bola com ele, me sugere uma pauta sobre uma entidade que estava nascendo, chamada Museu da Pessoa. E eu tinha uma repórter que trabalhava lá comigo, mas essa história me interessou: “Eu vou apurar a matéria. Ela foi publicada, em 1996: “A história em bits” era o título. Foi quando eu conheci o Museu. E foi quando começaram as peças a se encaixar na minha cabeça. Eu não queria a vida acadêmica clássica, mas eu poderia construir histórias como Hans Magnus Enzensberger construiu as dele. Apurei a matéria, escrevi a matéria, ela não está assinada. Publicou-se a matéria e eu comecei a conversar com o Museu, sobretudo com Karen e com José Santos. E dali pintou uma sinergia. Até o momento em que Márcio Polidoro, que era o executivo da Odebrecht, resolve conhecer o Museu da Pessoa, sugerindo que o Museu da Pessoa podia organizar o Centro de Memória Odebrecht. E aí começa uma outra aventura, onde eu consegui enxergar um caminho no qual eu pudesse aplicar aquilo que eu vinha trabalhando na universidade, juntar o escopo e a alma da minha pesquisa de mestrado, sem me prender aos cânones acadêmicos, sem precisar de muita nota de rodapé. E aí começa uma trajetória no Museu marcada por algum voluntarismo, marcada por projetos muito interessantes, muito bem pensados. E foi onde eu consegui juntar o que eu fazia na universidade com o que eu pensava de jornalismo, agregando um elemento novo que eu não tinha até então, que era uma ideia mágica, um museu de histórias de vida. E eu descobri que ter histórias de vida ajuda ou possibilita que você crie narrativas pela boca dos outros da mesma forma como eu tinha me encantado com o Enzensberger anteriormente. E assim foi. A primeira experiência que eu tive foi num livreto sobre os 25 anos do serviço de psicologia do Hospital das Clínicas. Eu percebi: “Olha como a coisa funciona”.
01:33:46
P/1 - É o INCOR, né?
R - O INCOR, dentro do Hospital das Clínicas. Depois, engatamos o Memórias do trabalho – Histórias de profissões em extinção. E este, para mim, foi um marco, porque me lembro que a gente imprimia todas as histórias de vida, etiquetava, eu botava no chão do meu escritório para administrar os trechos que eu havia selecionado. Enfim, o livro saiu. É um livro muito bonito. Ele se inseria num projeto da Confederação Nacional dos Metalúrgicos chamado Projeto Integrar, se não me engano. Que era um curso de requalificação profissional que a Confederação Nacional dos Metalúrgicos aplicava no país inteiro. E ali eu tive uma experiência que foi quase uma epifania porque o livro ficou pronto, foi distribuído para as unidades do Integrar. Um belo dia, alguém, não me lembro quem, me mostra um exemplo de como o livro foi replicado em outras praças, em outras unidades do Projeto Integrar. Uns eram praticamente uma cópia da estrutura que foi feita no livro original, outros (eram quatro ou cinco exemplares) com uma criação muito maior em cima do projeto original. Eu fiquei imaginando aquilo. “Olha como é que pode, como é que isso se replica?”. E nós estamos falando de um produto impresso, não se tinha uma infraestrutura de conectividade como temos hoje, mas ver aquele livro ser replicado de uma forma tão criativa, já não é mais meu, são mais vozes falando. Aí eu comecei a entender a dimensão que a história de vida pode ter, tanto do ponto de vista do registro, propriamente dito, ou apenas do registro, como da utilização desse registro de uma forma editada, direcionada, pensada, por quaisquer aspectos. Como a história de vida, quando bem apurada, quando bem registrada, como ela suporta recortes possíveis. Você pode fazer uma história sobre brincadeiras de infância, você pode fazer uma história sobre migração, você pode construir uma história sobre o movimento político, tudo a partir de uma base que é um documento único, indivisível, que é a história de vida. Eu não apenas me encantei, comecei a me dedicar também uma parte do meu tempo ao projeto do Museu, onde eu me sentia bem, me sentia em casa, sentia... estando num lugar onde era possível aplicar muitas das coisas que eu pensava, e vendo o resultado, vendo aquilo funcionar de algum jeito, que transcendia o registro apenas. Era muito mais do que isso, era uma faceta da indústria da consciência, mas uma faceta benigna. Aí o Museu entra em definitivo na minha vida.
01:38:38
P/1 - Luiz, eu queria falar um pouquinho mais, acho que, daquele projeto que... Você ajudou a estruturar, que foi um projeto, talvez, naquele momento em que a gente tentava se estruturar com esses grandes projetos de empresa. E aí a gente foi conceber o projeto da Odebrecht, e você ajudou a gente depois a fazer as primeiras grandes entrevistas da Odebrecht, pensando que essa é uma memória importante para o museu. O que você lembra disso, desse momento, como a gente concebeu e como a gente acabou executando? A gente pensou num projeto muito grande, executou um pedaço. Como você lembra essa história?
01:39:26
R - Nós fizemos a lição de casa. A construtora, o grupo empresarial, era norteado por uma filosofia chamada...
01:39:44
P/1 - Tecnologia Empresarial Odebrecht.
R - TEO, Tecnologia Empresarial Odebrecht. Eram dois livros escritos pelo Norberto Odebrecht. Um, aquele texto árido de engenheiro, mas que tinha muita coisa que chamava a atenção, coisas com as quais a gente concordava. Não estou entrando no mérito depois do que veio acontecer com a Odebrecht, que é uma outra história. Mas a gente se identificou muito com alguns dos postulados da tecnologia empresarial da Odebrecht. Lemos o livro inteiro, os dois volumes. Acho que ler, cavoucamos, porque é uma linguagem árida. Mas, enfim, foi importante. Chegou o momento em que nós nos fechamos: eu, Karen e José Santos fomos para a minha casa, em São Luiz do Paraitinga, onde fizemos um seminário interno sobre a TEO. E nos preparamos para apresentar um projeto, para ter o que dizer. E começamos a trabalhar em cima dele. Até o momento em que eles descontinuaram, isso um ano depois, o projeto, a gente já tinha registrado algumas entrevistas, e uma delas emblemática, com Norberto Odebrecht, num momento muito delicado, em que ele estava deixando as funções executivas na construtora, passando apenas para o conselho, e ele estava muito incomodado com isso. Foi uma entrevista talvez das mais tensas que eu já fiz, porque, por conta de toda essa situação e também a tecnologia que a gente usava, tinha que trocar fita, de tempos em tempos. Então, para manter a situação sob controle e dar tempo dos assuntos, mudar as fitas, eu desenvolvi uma técnica que depois eu passei a aplicar. Olhar nos olhos da pessoa e não tirar os olhos da pessoa. Acabou que a entrevista ocorreu, foi bem-sucedida, ele ficou satisfeito. Mas, enfim, foi um momento de muita tensão, por conta de toda a circunstância que cercava aquela data, aquele momento em que nós estávamos ali em Salvador. José Santos andava por trás dele para me sinalizar que estava próximo o momento de trocar a fita. Ele reparou isso e disse: “Vai me matar?”. “Não, doutor Norberto, não tem nada a ver, ele só está me fazendo um sinal”. Mas enfim, foi um aprendizado. Um aprendizado que a gente acabou aplicando em outros projetos. É uma pena, porque a história da Odebrecht, a história que a gente não conhecia da Odebrecht, é muito bem explicada num livro da Malu Gaspar, chamado “A Organização”. Jamais suspeitávamos que pudesse ter tido aquela dimensão que teve os pagamentos ilegais da construtora, do grupo, enfim, não da construtora. A minha leitura daquela situação tem a ver com o fato de que o grupo inteiro tinha como cliente, fundamentalmente, o Estado. Como a construtora, o grupo cresceu, nos anos da ditadura, quem mandava era o cliente. Isso é um mantra que a Odebrecht tinha: “O cliente manda”. E o cliente não era transparente. Se o cliente não era transparente, o grupo empresarial também não precisa ser transparente. Me lembro que houve um momento no governo Collor, era o ministro do trabalho Antônio Rogério Magri, e houve uma denúncia de corrupção no Canal da Maternidade, em Rio Branco, no Acre, pelo qual teriam sido pagos 30 mil dólares, ou 10 mil dólares, nessa ordem de grandeza, ao Magri, por ter intermediado o negócio. Os caras da Odebrecht não entendiam o que tinha acontecido, porque a imprensa começou a pipocar muito sobre esse assunto. Daí eles contrataram, pela primeira vez, um diretor de comunicação, que foi Antonio Alberto Prado, que foi presidente da ABERJE, onde eu o conheci, onde eu editava a revista Comunicação Empresarial. Até então, a Odebrecht não tinha nenhum canal, digamos, aberto com a sociedade. Suas ações eram muito fechadas em si mesmas e na relação com o cliente – fundamentalmente, o Estado. Foi aí que ela começa a promover publicações históricas, começa a criar produtos e ações com algum sentido social, com algum caráter, digamos, mais abrangente do que aquele seco técnico, papo de engenheiro. Publicaram livros sensacionais e o Museu da Pessoa entrou um pouco nesse caudal, porque também era uma forma de construir um Centro de Memória Odebrecht, em que os seus valores pudessem ser replicados. Isso terminou num fim de ano, não sei precisar exatamente, 1998.
01:48:00
P/1 - Acho que 98.
R - 98.
P/1 - Dramático.
R - Um almoço em São Paulo, num restaurante japonês, onde nós iríamos discutir os próximos passos. Tínhamos dois interlocutores, o Márcio Polidoro e o…
P/1 - Zé Henrique, não?
R - José Henrique [Barreiro]. Até que, em algum momento, os dois pedem licença para ir ao toalete e voltam com a notícia. “Encerrou o projeto aqui”. Dividimos a conta e falamos: “Vamos partir para outra”. Eu falei “dividimos a conta” porque no início de todo esse trajeto, nós fomos tratados a “pão de ló”. Tinha carro esperando no aeroporto, tinha... água de coco, restaurantes excelentes.
P/1 - Em Salvador.
R - Em Salvador. Mas, enfim, foi uma bela ideia que não continuou, mas nos ensinou muito. Desde a forma de gestão das ações até o fato de que todo o quiproquó que rolou com a organização depois, mostra que sem transparência não tem muita solução. Foi um capítulo importante.
01:50:25
P/1 - Acho que depois disso, Luiz, a gente... Não sei diretamente em qual projeto você participou, mas eu acho que foi o da CTBC, pode ter sido. Foi um projeto longo e muito...
R - Foi logo depois.
P/1 - Acho que a gente podia falar um pouco desse projeto. Na verdade, a gente desenvolveu muitas metodologias ali, não foi?
R – A [então] CTBC Telecom é uma empresa telefônica do Triângulo Mineiro, pega uma parte de São Paulo, uma parte de Goiás também, do Brasil Central. Foi um projeto no qual a gente aplicou muitas das lições aprendidas com a Odebrecht. Qual era a história? Uma companhia telefônica de ponta, tecnologicamente de ponta, que subsistia como uma das poucas companhias privadas no momento em que a telefonia era toda estatal no Brasil. O que acontecia? Existia uma entidade chamada Telebrás, que tinha uma política de tarifas que era aplicada em todas as [companhias], Telesp, Telerj, cada uma das companhias estaduais. E essa área do Triângulo Mineiro era uma área que não tinha muito interesse das grandes companhias, da companhia Telemig, digamos assim, entrar. Então, era uma empresa pequena que atendia bem com o seguinte detalhe. Quando havia aumento de tarifa, esse aumento era isonômico. Todas as companhias aplicavam o mesmo tipo de reajuste. Ora, como a CTBC Telecom, Companhia Telefônica do Brasil Central, era enxuta, utilizava os melhores critérios de gestão, aquilo que era importante para a companhia estadual, ineficiente, para a CTBC era uma dádiva. Eles começaram a fazer caixa e melhorar os serviços, porque com a tarifa isonômica, eles ganharam muito dinheiro com tudo isso, e aplicavam isso em serviços. Foi a segunda cidade no país, Uberlândia, a ter telefonia celular. Só não foi a primeira porque o Ministério das Comunicações queria que fosse Brasília a primeira. Então, eles pararam o projeto esperando Brasília lançar a telefonia celular. E aí, sim, eles soltaram o seu serviço de celular, que eram uns tijolões enormes, dois mil dólares. Foram pioneiros em fibra óptica. Enfim, eles tinham uma tecnologia de ponta na área da telefonia e queriam que essa história fosse contada. Tudo começou nas mãos de um português visionário chamado Alexandrino Garcia, que, na época, era diretor da Associação Comercial de Uberlândia, e Uberlândia estava num ponto estratégico no momento da construção de Brasília e precisava de comunicação. E a companhia particular que existia em Uberlândia não conseguia dar conta. Então, ele cria o movimento para encampar a companhia e construir um parque de ligações telefônicas minimamente eficiente. E assim o fez. Construiu uma companhia enxuta que respondeu às necessidades imediatas – e cresceu, como cresceu, porque tinha caixa suficiente para investir em tecnologia. Fomos contar a história da CTBC Telecom. Se não me engano, começa o nosso trabalho em 1999 com ele. 98, 99. Final de 1998, 1999.
01:55:58
P/1 - Eu queria perguntar um pouco sobre a CTBC, a gente explorar um pouco isso. A gente fez muitas entrevistas e, como você lembra, como a gente compunha quem ia dar a entrevista, quem não ia, essa ideia de muitas vozes, como a gente foi aplicando isso. O que você acha que foi específico desse projeto?
R - Uma coisa muito importante foi a aquiescência, a cumplicidade e a importância que a direção da companhia dava ao projeto. Um grande entusiasta foi o Luiz Alberto Garcia, presidente da companhia.
P/1 - Dono também, né?
R - Dono, é. Desempenhava as altas funções de dono. Isso foi determinante. Fizemos uma primeira peneira com personagens históricos da companhia, gravamos. O projeto inteiro tem 110 entrevistas. E ele transcorreu três anos de sequência.
P/1 - Acho que mais, talvez não, mas talvez.
R - Talvez mais. Produzimos dois livros, três livros, com o perfil do Alexandrino Garcia. Na verdade, todos centrados. Eu lembro de dois ou três livros. Dois, com certeza. Duas exposições. Exposições bárbaras montadas pelo Renato Theobaldo. Produzimos muito material para eles como produção de conhecimento. Eu me lembro de entrevistas premonitórias, às vezes. Tinha um diretor, era um gerente, um diretor da área de tecnologia, que, em uma das tantas entrevistas que fizemos, ele ficava pegando um celular na mão e dizendo: “Isso aqui um dia vai virar um computador de mão. A gente, além de falar, vai transmitir mensagens e tudo mais”. Eu ficava do outro lado da câmera, pensando nisso. “Será que não é delírio desse cara, não?”. Demorou um pouquinho, mas voltou. Hoje, o celular é a coisa que você menos faz é falar ao telefone. Ele tem tudo ali. Esse era o fascínio pelo projeto. Eles tinham uma compulsão pela inovação muito grande. Eles criaram muitos serviços. Hoje, tem serviço de nicho. No início era uma rede de fibra óptica grande, mas no momento em que a telefonia estava começando a se modernizar no Brasil, eles já estavam alguns passos na frente. E tudo isso está registrado nesse conjunto enorme de histórias de vida que subsidiaram ações bem bacanas, como os livros que fizemos, as exposições, sobretudo. Foram três exposições.
01:59:48
P/1 - CD-ROM também.
R - CD-ROM. Enfim, ali foi uma gestão madura do Museu sobre esse projeto, porque ele transcorreu de forma muito fluída durante todo esse tempo, porque a gente contava com a cumplicidade do dono. E os resultados foram muito bons. Acabaram aparecendo e sendo muito úteis para eles.
02:00:28
P/1 - Luiz, ainda sobre esse projeto, desculpa te interromper, eu queria que a gente conversasse um pouquinho sobre as técnicas que naquela época a gente usava para, vamos dizer, indexar os depoimentos, criar uma... Além dos produtos, a gente já naquele momento construiu uma base de dados, não sei se você lembra.
R - Sim.
P/1 - Técnicas de como criar uma relação entre os depoimentos. A gente pensava assim. E você foi quem tratou praticamente todos os depoimentos naquele momento.
R - Foi.
02:01:02
P/1 - Então, acho que é legal falar um pouco sobre esse pensamento desse tratamento, por que a gente tratava, o que a gente identificava?
R - Primeiro, a organização do material, organizando por códigos, identificando cada personagem com as fotos dele, com o depoimento dele, com os documentos dele. E, segundo, a ideia de que, embora um roteiro de entrevistas não precisasse ser uma coisa engessada, até porque os personagens são distintos, mas tem que ter uma espinha dorsal que crie áreas comuns entre os tantos depoimentos que são registrados. Isso facilita a utilização posterior da história de vida. Isso acabou norteando a construção dos roteiros seguintes. Embora cada entrevistado tivesse uma especificidade, eles têm vários pontos em comum. A apuração das entrevistas possibilita vários pontos comuns e isso facilita no momento da edição. Quando vejo o roteiro que a gente usa atualmente no Museu da Pessoa, vem muito desse momento da criação de um critério de roteiro, de uma forma de conduzir as entrevistas, respeitando a particularidade de cada um dos entrevistados, mas tendo algumas zonas de convergência que possibilitam a construção de fluxos narrativos posteriores. Não é a entrevista pela entrevista. A entrevista sendo registrada com um critério que facilita a sua utilização posterior.
02:03:33
P/1 - Seria legal se você falasse um processo que depois você veio a fazer muito pelo Museu, que são os processos de edição.
R - Sim.
P/1 - Você até acabou criando uma metodologia nessa edição.
R - Sim. A matéria-prima é a história de vida. Eu nunca me esqueci de um aprendizado no Museu. Acho que foi Karen, muito provavelmente foi ela: “História de vida é documento”. Dar foros de documento à história de vida. Portanto, ela é um elemento fundamental em todo o processo, em todo o processamento, em todo o processo que redunda em algum produto cultural, algum produto, enfim. Como tratar a história de vida? A palavra dita, é diferente da palavra escrita. Se eu transcrever pura e simplesmente uma entrevista e publicar essa transcrição, ela vai estar eivada dos vícios de linguagem que o entrevistado tem, aquelas pausas inoportunas, aquele vai e vem, penso aqui e volto ao que eu disse cinco minutos antes, eu tenho que dar um trato, tenho que mexer no texto do cara, da pessoa. Mas como é que eu mexo no texto da pessoa sem alterar a sua oralidade? Isso é um mantra do Museu também. Eu preciso respeitar a oralidade do personagem. Então, comecei a praticar no Museu algumas lições que o jornalismo me trouxe na edição de entrevistas. Eu não ponho nada na boca do entrevistado. Eu pontuo o que o entrevistado diz. Ponho vírgulas, pontos, dois pontos, travessão. Eu posso subverter a ordem do que o entrevistado está falando em nome da inteligibilidade do texto. Então, ele contou um episódio aqui, 20 minutos depois ele retoma o episódio. Eu me sinto autorizado em recortar esse trecho aqui, juntar com o texto anterior e dar um novo sentido, dar um sentido reforçado à mesma ideia que ele tinha expressado. Enfim, limpar o texto de forma a fazer com que o leitor compreenda exatamente o que o entrevistado quis dizer, o que os entrevistados quiseram dizer, mexendo no texto, mexendo na estrutura do que foi registrado na entrevista, mas com o critério de respeitar a oralidade do sujeito. Isso acaba gerando uma possibilidade narrativa em que você costura os nexos, em que você junta os cacos e dá um sentido de uma narrativa mais coerente do que aquela que seria transcrição pura e simples – que seria, em última análise, alguma coisa ilegível, porque sem edição não há solução. Você tem que capturar a leitura, capturar o leitor, oferecendo a ele algum fascínio na leitura. E mesmo mexendo no texto, mesmo mexendo na tradução do pensamento daquele personagem, você não está subvertendo o que ele disse. Eu não ponho nada na boca do entrevistado que ele não disse. Mas eu me dou o direito de reconstruir a narrativa que ele nos deu em nome da inteligibilidade do texto. Continua sendo uma relação respeitosa com o documento gerado pela história de vida, tanto que até agora nunca ninguém reclamou.
02:09:22
P/1 - Luiz, em algum dado momento, que eu até me lembro e você até ajudou, apresentou o advogado, você participou da criação da Associação do Instituto Museu da Pessoa, não é?
R - Sim.
P/1 - Você lembra que, até então, a gente era uma produtora, uma empresa, não é? E aí a gente foi lá e construiu isso lá pelos anos 2000. O que você lembra desse momento?
R - Eu me lembro que... Se não me engano, foi no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, quando se instituiu a chamada OSCIP, Organização de Sociedade Civil de Interesse Público, que constituía legalmente a possibilidade de uma empresa ter um... não sendo necessariamente uma empresa privada, nem pública, mas uma empresa de interesse público. O Museu se adaptava muito bem aos critérios estabelecidos, então. Talvez tenha sido o primeiro grande desafio institucional do Museu, em constituir-se como um OSCIP, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público. Começou um processo, então, de discussão com advogados para montar um estatuto que desse suporte ao trabalho que o Museu fazia, sob a luz dessa nova configuração institucional como OSCIP. E assim foi feito durante todo o ano 2000, com idas e vindas, com reuniões com advogados, até que chegamos a um esqueleto de estatuto, quando criou-se de fato o Instituto Museu da Pessoa, em 2001. A ata fundadora, não sei precisar o mês, mas foi em meados de 2001. Mas, enfim, do ponto de vista institucional, o Museu achou o seu lugar com essa caracterização de OSCIP. Conseguiu levar adiante o seu projeto, agora já sob um novo caráter, não uma empresa privada clássica, mas uma empresa de interesse público. Como existe até hoje.
02:12:44
P/1 - O que você acha... Isso tudo hoje faz mais de 20, 23 anos, essa história. Você veio a participar de muitos projetos depois, depois se quiser destacar algum, mas o que você acha que se transformou no Museu da Pessoa em si depois que houve esse momento, a partir dos anos 2000? É uma pergunta imensa, mas só uma perspectiva sua disso.
R - Acho que o Museu construiu o chão e o norte para crescer. Livrou-se das amarras de uma empresa privada e criou condições de transcender a ideia da produtora que o Museu era, para um Museu que pensasse a sociedade, a sua forma de incidência sobre a sociedade, a sua forma de tradução do que a sociedade faz, a sua vocação ao registro de histórias de vida como elementos transformadores. O Museu criou, como eu disse, o chão, a sua base, e um norte para crescer. E eu vejo essa trajetória como uma trajetória de constante inovação. O Museu nunca se acomodou. Já passou por perrengues inomináveis, mas nunca deixou de manter o foco adiante, no futuro, sempre buscando mais. E tudo teve início com a base que foi construída, com a ideia da OSCIP, e passou a ser aplicado no desenvolvimento institucional do Museu. Eu vejo essa trajetória muito claramente comprometida com uma função social que o Museu se obriga a ter. E pela história que ele tem, pelas ações que empreendeu e pelos resultados que obteve, fica claro que o Museu é maior do que ele próprio. Ele tem criado condições de registros fantásticos da história social brasileira, que transcendem a ideia mecânica de apenas guardar histórias, mas disseminar essas histórias e fazer com que essas histórias funcionem como estimuladores da transformação social. Esse tem sido, para mim, a marca do desenvolvimento do Museu. O que vem sustentando o seu crescimento e a sua sobrevivência. O que vem possibilitando, inclusive, a pensar de forma mais audaciosa na sua longevidade, na sua perpetuidade.
02:17:26
P/1 - Luiz, o que foi, na sua vida, dentro dessa trajetória toda, o Museu?
R - Foi o lugar onde eu me encontrei. Eu só lamento na minha relação com o Museu – a palavra não é “lamento”, fica sendo, por enquanto, entre aspas – foi o fato de eu não ter uma ligação orgânica cotidiana com o Museu. Eu sempre tive outras atividades paralelas ao Museu. Embora em tudo o que eu fiz no Museu tenha me dedicado muito, eu sempre gostava, sempre pensava como seria legal se eu vivesse com o Museu da Pessoa, no Museu da Pessoa, de tanto que eu gosto e admiro a ideia. Teve um processo, em paralelo, que é importante na minha vida, que é o Observatório da Imprensa. O Observatório da Imprensa foi muito responsável pelo fato de eu não poder me dedicar organicamente ao cotidiano do Museu, ser parte dessa estrutura diária de operação e concepção de projetos e ações. O Observatório, eu trabalhei nele... a primeira matéria que eu publiquei no Observatório foi em 1997. No final de 1997, eu me encarreguei das edições impressas do Observatório. E, a partir de [março de] 1999, assumi a direção de redação: redator-chefe, era o meu posto no Observatório. O Observatório foi um projeto no qual eu fiquei até 2016, que já aplicava essa ideia de home office tão em voga ultimamente. A gente começou isso... Nossa redação era uma redação virtual. E o Observatório, pelo volume de trabalho, tomava boa parte do meu tempo. Isso me fez desistir de acalentar aquele sonho de ter uma ligação cotidiana com o Museu da Pessoa, mas sempre mantive um vínculo em projetos específicos. E, evidentemente, participando de algumas decisões internas, mais em nível de colaborador qualificado do que exatamente como parte integrante da formulação, embora tenha ajudado em alguma formulação, mas aquele do dia a dia do Museu. O que talvez tenha sido bom, porque me possibilitou o desenvolvimento de um trabalho importante com o qual o Museu manteve parceria muito estreita, que é o Observatório da Imprensa, e possibilitou a convivência com um jornalista que ficou meu amigo, meu mestre, o Alberto Dines. E, ao mesmo tempo, não deixei de manter meu vínculo com o Museu, embora não com aquela assiduidade com a qual eu havia sonhado o momento da minha vida, mas eu suportava tranquilamente pelo fato de a gente ter uma relação muito próxima com o Observatório-Museu e, junto ao Museu, ter desenvolvido projetos muitíssimo interessantes, prazerosos até, embora todos eles muito trabalhosos, porque na maioria deles a gente trabalhava com prazos inexequíveis. Mas a gente conseguiu dar conta de todos. Enfim, o Museu, para mim, me sinto um pouco em casa. Me sinto parte das coisas que o Museu faz. O fato de eu sentir que tive alguma participação nisso me conforta muito, porque, de fato, o Museu, para mim, me faz retomar aquela primeira sensação lá do momento em que eu apurei a matéria em que eu publiquei isso. Esse negócio é interessante. Pode ter um caminho interessante aí. Muito mais do que um caminho interessante, tem um caminho de verdade. Um rumo que dignifica o trabalho de reunião de histórias de vida e fazer com que isso se transforme em agente de transformação. Se transforme em agente, deixa eu editar melhor isso, que suscite a transformação. Eu passei a dar valor à história de vida com o mesmo critério, aquele que eu aprendi lá atrás, ainda no escritório da Rua Cardeal Arcoverde. História de vida é documento. Precisa ser tratado como tal e com respeito. Espero que tenha sido assim. Respondi a sua pergunta?
02:24:29
P/1 - Maravilhosamente. Eu queria, um, te agradecer muito pela entrevista e fazer um reconhecimento aqui nessa entrevista formal de que você foi uma parte, e é, fundante de toda essa trajetória do Museu. Apesar desses momentos no cotidiano, a gente teve momentos que estavam muito no cotidiano, momentos em que se afastou na época do Observatório, mas acho que a gente sempre teve muito junto nessa...
R - Eu preciso confessar que eu tenho orgulho disso.
P/1 - Eu também.
R - O orgulho é um sentimento que eu só aplico para as boas causas. Me sinto muito confortado e orgulhoso em ter uma parte da história do Museu comigo. É uma das coisas que eu admiro na minha vida: o fato de ter trabalhado aqui. Eu espero continuar contribuindo da forma como eu puder. Mesmo sabendo de todas as limitações que começam a acontecer na vida das pessoas. Afinal de contas, nós somos septuagenários. Não disponho da energia que tinha para fazer todas as coisas que fizemos em prazos tão curtos. Começam a surgir as primeiras limitações físicas, que nos obrigam a conviver e reprogramar as tarefas, agora num modo mais lento, um pouco mais lento, mas não por isso menos rigoroso. Mas tem que adaptar o trabalho agora às limitações naturais que vão surgindo. Eu estou disposto a continuar assim.
P/1 - Amém.
R - Onde me couber.
Parte 2
Entrevistado por: Renata Pante (P/2)
São Paulo, 24 de julho de 2024
Código da entrevista: MUPE_HV007
Revisão: Nataniel Torres
00:02:27:29
P/2 - Luiz, na última parte da entrevista, você estava contando um pouco sobre aquele acaso que aconteceu na sua vida de encontrar uma amiga e parar na PUC. E você mencionou, nesse momento, que você era casado. Como você conheceu a sua primeira esposa? Como foi esse momento?
R - Eu trabalhei num jornal chamado Versus. Fui para São Paulo por conta desse jornal, me encantei com a proposta editorial, enfim, lá eu conheci a Rosa Gauditano, que era fotógrafa do jornal. Trabalhamos juntos durante um bom tempo e começamos a namorar. Encontrei a Rosa na redação da Rua Capote Valente, 376, na redação do Versus. A Rosa morava na Rua Frei Caneca, perto do Círculo Italiano. E, como eu relatei da outra vez, nós fomos assistir a um incêndio no Conjunto Nacional, quando eu encontrei Cecília Flosi, que me sugeriu participar de um grupo de trabalho na PUC, que estava preparando o currículo para um curso de jornalismo, então, a ser implantado. Eu participei desse grupo, acabei sendo convidado a integrar a equipe do curso de jornalismo que estava sendo implantado, chamado Núcleo 3. Núcleo 1 de linguagens, Núcleo 2 de estética e política, e Núcleo 3, seria o Núcleo profissionalizante. Ao ser contratado pela PUC, eu comecei a ousar algumas decisões pessoais, entre elas a de me casar com a Rosa. Eu tinha um trabalho fixo, podia arcar com o aluguel, enfim. Trabalhava como freela fixo na Folha de S.Paulo, no suplemento “Folhetim”, um suplemento semanal, um tabloide que saía encartado nos jornais de domingo. E me casei com a Rosa, enfim, em maio de 1979. Em novembro de 1979, nasceu nossa primeira filha. Camila. Nós morávamos na Rua Penaforte Mendes, que é uma rua que fica entre a Frei Caneca e a Barata Ribeiro, nos limites da Bela Vista. Era uma casa de chão de tábua corrida, uma casa antiga, bem conservada, um banheiro com banheira, tinha um porão. No fundo, a Rosa tinha um laboratório de fotografia e na frente nós vivíamos. Vivemos juntos felizes durante um bom tempo, até que a relação se esgarçou.
02:33:12
P/2 - Luiz, você lembra como foi o nascimento da Camila?
R - Lembro. Nós morávamos, como eu disse, na Penaforte Mendes, e na Frei Caneca, mais para perto da Paulista, existia um grande hospital chamado Maternidade São Paulo. Era basicamente uma maternidade enorme. A Camila nasceu ali, à distância de um, dois, três, três ou quatro quarteirões da nossa casa. Eu me lembro que ela nasceu à noite, e quando ela passou na minha frente, eu falei: “Oi, Camila”. Quando a enfermeira trouxe. Foi uma menina muito querida. Alegrou nossa vida, enfim. Mas a nossa ideia de constituição de família foi comprometida pelo esgarçamento da relação com a Rosa. Olhando na distância do tempo, eu julgo que foi uma decisão acertada, até porque nós nos tornamos grandes amigos. Em todo o processo, acabamos constituindo uma família de nova qualidade, porque eu sou amigo dos maridos que a Rosa teve depois de mim. Ela é amiga da minha mulher atual. A Camila tem, nos dois filhos do meu segundo casamento, Pedro e Joana, irmãos. São de fato irmãos.
02:36:08
P/2 - E como foi virar pai? Qual foi a sensação? O que mudou na tua vida?
R - Eu vou dizer, brincando, que como pai eu fui uma excelente mãe. Porque a gente viajava bastante. A Camila, com um pouco mais de um mês de idade, já fomos para Porto Seguro. Tínhamos amigos em Porto Seguro. Passamos o verão de 1979, 1980, 1981, 82. Passávamos meses em Porto Seguro. Aproveitando as férias escolares, eu conseguia manter o pagamento de aluguel em São Paulo e passava meses em Porto Seguro, pelo menos dois meses por ano. E eu ia bastante ao Rio. O trabalho que eu fazia para a Folha, eu era muito centrado em cima de grandes entrevistas. Então, eu ia buscar essas pautas no Rio: Antônio Callado, Jô Soares, Ferreira Gullar, Tom Jobim. Eu ia ao Rio com alguma frequência e, com muita frequência, levava a Camila junto comigo. Eu relatei uma amizade muito sólida que eu construí com Lourdes Pimentel. Nós nos conhecemos numa viagem que eu fiz pela América. Nós nos conhecemos em uma fila de trocar dinheiro em Cuzco. Eu ficava direto na casa da Lourdes e a Camila ia comigo. Viajávamos. Não tinha muito receio de sair com uma criança pequena. Era até muito divertido. Eu achava aquilo uma delícia. E foi assim durante todo o tempo. Quando eu me separei da Rosa, foi uma separação consensual, tivemos muito claro que, se estávamos nos separando, era para melhorar, e não para piorar a vida, a nossa vida. Então, não tinha aquela coisa de visita, de dia certo, de semana para estar com o filho, era totalmente aberto e sempre que queria, sempre que pudesse ou precisasse, estaríamos juntos. Sequer negociamos uma pensão. A única coisa que eu fiz questão absoluta foi dizer que da educação dela cuido eu até ela se tornar adulta. E assim foi. Eu tinha um amigo, tenho um amigo, meu compadre, Evaldo Amaro Vieira, o nome dele. O pai do Evaldo era amigo do meu pai desde a adolescência. Ambos trabalharam na Estrada de Ferro Central do Brasil. O Evaldo tem um sítio, uma fazendola, em São Luiz do Paraitinga. E quando eu estava no meu processo de separação com a Rosa, eu estava ao mesmo tempo tentando construir, buscando construir, um projeto de pesquisa para um mestrado que eu iria tentar na PUC, onde eu já estava lecionando. Então, eu pedi para o Evaldo para que eu pudesse frequentar o sítio dele e ali passar um tempo estudando, lendo, escrevendo. Eu conhecia a São Luiz desde 1977. Nesse tempo, eu trabalhando no jornal Versus e namorando a Rosa, nós participávamos de um grupo chamado Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro, que era uma ONG, nós não sabíamos que era uma ONG, não era comum essa terminologia. A Sociedade de Defesa do Litoral Brasileiro trabalhava em defesa dos trindadeiros, uma comunidade de pescadores existente em Trindade, que é perto da divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro, no litoral. O trabalho dessa instituição, digamos assim, era de defesa dos trindadeiros contra o assédio de uma multinacional, denominada Adela, que queria transformar aquele recanto paradisíaco do litoral norte no que conseguiram fazer em Laranjeiras, que é um condomínio bem próximo de Trindade, um condomínio de altíssimo luxo, no qual os pescadores, os ocupantes originários daquele território, quando muito são empregados das mansões. E queriam fazer a mesma coisa em Trindade. Não conseguiram, por conta da resistência dos trindadeiros. Depois o assunto degringolou. O fato é que nós íamos com frequência à Trindade. Íamos numa Kombi dirigida pelo Fausto Pires de Campos, que era o líder dessa movimentação toda. O caminho que fazíamos era o caminho via Dutra até Taubaté, Taubaté para Ubatuba, Ubatuba para Trindade. Nesse trajeto, passávamos por São Luiz do Paraitinga, onde fazíamos algumas compras básicas para levar para a praia: sal, arroz, feijão, alguma fruta, eventualmente uma garrafa de pinga. Enfim, passávamos por São Luiz e me chamou a atenção uma cidadezinha pequena, bonita, com casario original, muito bonito. E, de vez em quando, passando por São Luiz, uma festa, uma música tocando, uma procissão. Enfim, aquilo ficou na minha cabeça. Tempos depois – estou falando em 1982, no processo de separação com a Rosa, 1981, 82 – eu lembrei de São Luiz, lembrei do sítio do Evaldo. Ele me autorizou. E eu vinha para São Luiz de ônibus, contratava um táxi para me levar da cidade até o sítio, que são oito quilômetros, e deixava combinado que o táxi fosse me buscar na segunda-feira. Eu chegava na sexta-feira e saía na segunda de manhã. E assim foi. Foi um bom período de reflexão, esse tempo que eu passei sozinho no sítio. E quando eu chegava, eu almoçava num lugar chamado Pensão Central, bem na esquina da praça, antes de pegar o carro do Seu Zarto: era um senhor [dono de] um Fusca bege claro, que me levava para o sítio. Até que chegou um momento em que meu projeto foi aceito, eu consegui ingressar no mestrado de História da PUC de São Paulo. E a coisa evoluiu ao ponto que eu cheguei de, “bom, está na hora de escrever a dissertação”. E eu pensei em escrever a dissertação no sítio. Ocorre que, nesse processo de sentar para escrever, eu me dei conta que eu precisaria de uma banca de jornal perto de mim, que eu precisaria de um posto telefônico para fazer algumas ligações. Eu não precisaria de um isolamento físico no sítio, mas eu precisaria de alguma proximidade com agência de correio para mandar uma carta, receber material etc. Então, ao invés de ir para o sítio, eu conversei com o dono da pensão onde eu parava para almoçar. Ele tinha alguns quartos divididos por compensados – Seu Osmar é o nome dele, Dona Teresa é a mulher dele. “Seu Osmar, eu estou precisando de um quarto. Arruma um quarto para mim?” Mas eu queria... Eu precisava de uma mesa. Uma mesa e uma cadeira, porque eu tenho uma máquina de escrever, preciso escrever. Ele conseguiu mesa e cadeira para mim. Pedi um armário para guardar minhas coisas, meus livros, minhas roupas. Ele colocou um armário para mim. Quando eu pedi um ponto de luz, um abajur, ele conseguiu para mim, fez a extensão e tudo. É aqui que eu vou ficar. Eu cheguei no dia 26, e lembro que foi logo depois do Natal, dia 26 de dezembro [de 1982], e fiquei até março de 1983, acho que é isso, para poder escrever. E foi uma decisão acertada, porque eu consegui organizar meu tempo, consegui escrever a dissertação no tempo que eu havia proposto, mantive contato com o mundo, o mundo real, e conheci um local que acabou determinando os próximos passos da minha vida, os passos seguintes da minha vida. Nesse tempo em que eu fiquei hospedado na Pensão Central, escrevendo e vivendo o cotidiano de São Luiz, eu me apaixonei pela cidade, por um lado, e encontrei uma nova paixão, que foi a Parê, minha atual mulher, que eu conheci nesse momento. Aquela decisão mudou minha vida a tal ponto que, anos mais tarde, eu me mudei definitivamente para São Luiz.
02:54:06
P/2 - Nessa época que você estava fazendo mestrado, você seguia como professor da PUC?
R - Sim. Era o meu trabalho. Eu continuava dando aula, e trabalhando tanto quanto eu podia na imprensa. Como eu disse, eu tinha uma relação de frila fixo com a Folha de S.Paulo. E isso perdurou até o momento em que o meu editor foi demitido, Nelson Merlin, então editor do “Folhetim”, e a equipe próxima dele saiu junto. E a coisa complicou mais ainda a partir de 1984, em maio, se não me engano, quando houve uma greve de jornalistas. Essa greve determinou algumas diretrizes que os jornais, o patronato dos jornais, passaram a seguir. Ora, uma greve decretada para interromper a produção. A greve dos jornalistas não interrompeu a produção de jornais. Os jornais de São Paulo ficaram mais esquálidos, poucas páginas, mas continuavam a sair. A solidariedade patronal foi grande. Os jornais do Rio abasteciam de notícias, de análises e de matérias, em geral, os jornais de São Paulo. A greve existiu, mas os jornais não deixaram de sair. E ficaram difíceis as condições de trabalho, especialmente para quem não tinha um contrato fixo, que era o meu caso. Eu tinha uma alternativa que era a universidade e ali eu mergulhei.
02:57:49
P/2 - E além da Folha, você trabalhou em outros jornais depois disso?
R - Durante um período grande, eu trabalhei como freelancer e participei de uma agência chamada Taeta. Comecei a prestar atenção no chamado jornalismo institucional, não jornalismo de hard news, mas jornais feitos para empresas, jornais corporativos. E eu descobri ali um filão, onde podia praticar jornalismo desvinculado das grandes redações, não por isso menos legítimo. Quando eu me aproximei da ABERJE, Associação Brasileira de Comunicação Empresarial, e passei a editar a revista Comunicação Empresarial da ABERJE. Antes disso, eu fui convidado pelo Gabriel Priolli, que então dirigia a redação de uma revista recém-criada chamada Imprensa. Ele era diretor de redação e me convidou para ser editor executivo da revista. Isso eu já estou falando em fins de 1988, 1989. Eu fiquei um período bom na revista Imprensa, até que em 1990, 1991, eu fui convidado para ser repórter especial do jornal O Estado de S. Paulo, onde eu fiquei um ano. Aconteceu uma coisa muito engraçada. Eu sempre dei muito valor ao trabalho da reportagem. A reportagem é a espinha dorsal do jornalismo. E sempre quis me dedicar à reportagem. Fiz muita reportagem na minha vida, mas especialize-me, digamos assim, mais na função de editor. E no Estadão eu fui com ganas de ser repórter, de trabalhar mais intensivamente com reportagens, como de fato ocorreu. Mas chegou um belo dia, o meu ex-patrão da revista Imprensa, Dante Mattiussi, me telefonou e disse: “Você não quer assumir a redação da revista como diretor de redação?” “Ô, Dante, meu plano é outro, eu estou querendo ir para rua, gastar sola de sapato. O meu negócio é reportagem, eu quero me dedicar a isso”. Mas ele insistiu e eu resolvi abrir o jogo com o meu editor no jornal, Nilson Camargo. E disse: “Nilson, é o seguinte, estou sendo cantado para sair do jornal. Eu estou disposto a trabalhar mais intensamente com reportagens. Tudo bem, se acha que tem espaço para mim, eu posso insistir nesse plano, nesse objetivo?” “Não, claro, estou satisfeito com o seu trabalho, acho que fica bom que você fique por perto”, qualquer coisa parecida com isso. O fato é que menos de 10 dias depois eu estava demitido [do jornal]. Houve um corte linear de 10% na redação e a notícia me foi dada pelo Nilson da forma mais constrangida do mundo. Ele estava seguindo ordens, na verdade. Não foi por vontade dele que eu saí, mas houve um corte linear, como eu disse, de 10% da folha de salário. Tinha que demitir. Demitiram preferencialmente as pessoas que estavam com o contrato mais recente. Eu tinha um ano de jornal. Eram outros tempos. Peguei o telefone e liguei para o Dante. “Dante, aconteceu isso. Aquele convite ainda está de pé?” “Não, não está de pé, porque nomeei Gerson Sintoni (um ex-aluno meu) para tomar conta da redação. Mas você vem,se você quiser trabalhar, como o segundo do Gerson”. Eu topei. Não foi pelo orgulho que eu fiquei desempregado por muito tempo. Achei absolutamente natural participar de uma redação em que, hierarquicamente, eu estaria submetido a um ex-aluno meu. Eu achei isso normal, não fiquei constrangido com isso de forma alguma, a ponto de termos batido uma ótima bola, Gerson e eu. Voltei para a revista Imprensa como editor adjunto, depois como editor contribuinte. Mas continuava com a revista, e trabalhando em jornalismo. Entre os colunistas da revista tinha um sujeito chamado Wilson Moherdaui, que tinha uma coluna “Informatiquês”. Ainda não havia internet no Brasil, mas ao editar as colunas do Wilson sobre informática, eu descobri algumas coisas singelas e importantes, entre as quais o fato de que a existência de um computador só faz sentido quando ele tem conexão com outro computador. Começava-se a desenhar esse sistema de redes. E eu comecei a prestar atenção no que se convencionou então chamar de teletrabalho. É possível trabalhar a distância e colaborativamente, sem necessariamente ser obrigado a dividir o mesmo espaço físico. O fato é que eu comecei a sonhar com um momento em que eu podia estar fora de São Paulo, trabalhando em São Paulo. Isso não demorou muito a ocorrer. Com o dinheiro da indenização do Estadão, eu comprei um [então] poderoso computador 286, monitor de fósforo branco, uma bala, custou 2.400 dólares. Era uma fortuna. Comecei a testar e experimentar ligações via modem, via linha telefônica. A coisa funcionava. Nesse ínterim, eu sempre tive vontade de ter uma casa própria em São Paulo e eu não conseguia juntar dinheiro suficiente para embarcar numa aventura dessas, mas eu consegui comprar um terreno em São Luiz do Paraitinga, e consegui construir uma casa. O terreno foi comprado em 1985. A casa começou a ser construída em 1986, a partir do Plano Cruzado. Eu peguei todo o dinheiro que eu tinha, eram na época 23 milhões de cruzeiros, levantei uma casa, cobri, fechei, dei um tempo, comprei material de acabamento e finalizei. Comecei em 1986, terminei em 1989. Minha segunda mulher, Parê, viveu comigo em São Paulo um tempo e depois, como o nosso apartamento era pequeno, a opção era vir para São Luiz e eu ia todo fim de semana para São Luiz. Até que, em julho de 1993, eu me mudei em definitivo para São Luiz do Paraitinga. Mudei o endereço formal: o endereço para a Receita Federal passou a ser o de São Luiz do Paraitinga, embora mantivesse o vínculo com a PUC e passasse dois, três dias por semana em São Paulo, mas vivendo em São Luís. De lá, ainda mantinha vínculo com a revista Imprensa, eu editava as colunas da revista e transmitia os textos via modem para a redação. Era uma operação maluca, porque para transmitir 300 kb, 400 kb, demorava 20 minutos. As conexões eram preferencialmente feitas muito cedo ou na madrugada, quando as linhas telefônicas eram mais desocupadas. Era um sufoco, mas funcionava. Até que vivendo em São Luiz e mantendo o vínculo com a PUC, trabalhando nos frilas que eu conseguia, acho que já estava na revista Comunicação Empresarial nessa época, enfim, em dezembro de 1993, me lembro, era um sábado, eu estava no balcão de um bar lendo a Folha de S.Paulo, no tempo em que o jornal impresso era imprescindível, e vejo um anúncio, um tijolinho de um anúncio da Embratel, abrindo inscrições para contas de internet no Brasil – então começava a ser implantada a internet comercial no Brasil. Até então, internet aqui era uma rede que conectava universidades, ou a Alternex, que era a rede do IBASE, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas. O IBASE é aquela entidade fundada pelo Betinho, o irmão do Henfil. A Embratel estava lançando a primeira internet comercial, efetivamente, no Brasil. E nesse anúncio que eu vi na Folha: faça Telnet, que era uma ligação via modem, para tal número e inscreva-se. Eu imediatamente saí, vim para a minha casa, liguei o computador, conectei o modem e fiz o Telnet. Me inscrevi. Foi novembro, dezembro de 1993. E, em fim de março de 1994, chegou a minha correspondência da Embratel, com disquetes para instalação de um programa e da documentação em geral. Eu entrei e conectei-me à internet desde então. Olha que loucura! Custava 55 reais por 10 horas mensais de acesso, 1 real e 50 centavos por hora adicional. Não existia web, a internet tosca, à lenha. Mas aquilo mudou de figura a relação com o teletrabalho, aquele com que eu havia me encantado anteriormente. Se eu tenho alguma coisa para me orgulhar em São Luiz, é que a primeira conexão de internet na cidade foi minha. E eu mantive essa conta Embratel, arroba embratel.com.br, até o momento em que começou o processo de privatização da telefonia no Brasil. [...] No processo de privatização, certamente houve uma due diligence, um pente fino nas contas da Embratel. O fato é que um belo dia me chega uma conta telefônica monstruosa, a preços de agora, digamos, algo como R$ 800, R$ 900. Eu não entendi por que e fui reclamar na Telesp, em Taubaté, que é o grande centro aqui perto, até que me dei conta do seguinte: durante todo o período, até então, eu discava a internet para um número 0700 da Embratel e, por algum motivo, eles não tarifavam esse custo, essas ligações. Eu descobri que durante todo o período em que eu discava Embratel, eu não era tarifado, o que para mim era normal, porque no circuito Rio-São Paulo-Belo Horizonte era um circuito que por mim não haveria tarifação mesmo. Como a discagem era feita pela Telesp, a Telesp houve por bem cobrar. Não cobrou retroativamente, mas cobrou do mês. Bom, imediatamente eu desisti da Embratel, porque na época o UOL já estava oferecendo serviço de acesso em cidades médias, São José dos Campos, Taubaté, Campinas, Ribeirão Preto etc. Então, eu comecei a assinar o UOL. Continuava com ligação, com conexão discada. Essa conexão discada, eu discava para Taubaté que era uma tarifa regional, então dava para suportar. Ocorre que quanto mais você usa, mais você quer. Eu ficava muito tempo conectado e esse muito tempo começou a reverter numa conta alta de telefonia, ou mais alta do que o que seria razoável. A tal ponto chegou o custo, que eu descobri que seria vantajoso eu ter uma conexão por satélite, porque o custo era praticamente o mesmo, que eu estava tendo, permanecendo conectado numa ligação regional, o custo era praticamente o mesmo cobrado pela Star One, que era uma subsidiária da Embratel, que oferecia serviço de conexão por satélite. Foi a primeira banda larga que eu tive. Uma banda larga que não tinha uma largura de banda tão grande assim, mas pelo menos não caía. Comecei a trabalhar com mais vontade. Nesse tempo já havia web, já havia interface gráfica na internet, tal qual a conhecemos. Enfim, eu comecei a me aparelhar de forma mais consistente para poder contemplar o ideal de teletrabalho que havia me fascinado anos antes.
03:26:04
P/2 - Luiz, eu vou querer voltar um pouquinho, porque você já citou a Parê várias vezes, mas eu ainda não perguntei como vocês se conheceram. Onde foi? Como foi?
R - Foi em São Luiz. No tempo em que eu estava instalado na Pensão Central para escrever a minha dissertação, uma coisa que me chamava a atenção na cidade é que eu sempre me considerei um sujeito bem informado sobre a cena musical. Eu sempre fui muito ligado em música popular brasileira, sobretudo, e em São Luiz eu escutava música que eu jamais tinha escutado na minha vida. O que se trata? O que é isso? Um sábado, acho que foi um sábado, eu estava sentado num bar na praça, no bar do Sérgio, e tinha um cara sentado do outro lado, do oposto ao meu, tocando violão, e eu fiz esse comentário: “Que música é essa? De onde é que surgiu isso?” “Não, são músicas nossas aqui, são músicas daqui”. Comecei a conversar com o Galvão e junto a ele estava a Parê. E ali eu a conheci e começamos a conversar. Na passagem do ano de 1982 para 83, eu fui à casa dela, meio de “entrão” – eu queria conhecer a mãe dela, uma figura exponencial na cidade, Cinira Pereira dos Santos, já falecida, a Vó Nira, uma figura queridíssima. Enfim, conheci a Parê ali, e começamos a nos encontrar com uma frequência maior do que seria comum. Falei “deve ter alguma coisa aí”. O fato é que ela fazia parte, fez parte, de um grupo de música importante chamado “Paranga”, fez muito sucesso na vanguarda paulistana, especialmente na Praça Benedito Calixto, me fugiu o nome… era um pequeno teatro na Praça Benedito Calixto, nos baixos da escadaria... Lira Paulistana! O Paranga fez boas temporadas no Lira Paulistana. Então, nos encontrávamos em São Paulo também, e a partir daí veio a chama. Não sei quem se apaixonou primeiro, mas o fato é que nós nos amamos. Eu fiquei muito feliz em saber que eu conseguia me apaixonar outra vez. Depois do tanto que eu tinha gostado da Rosa, eu não imaginava que eu pudesse gostar tanto de alguém outra vez. E, de fato, estamos juntos até hoje, eu e a Parê.
03:32:16
P/2 - E vocês tiveram dois filhos, né?
R - Tivemos dois filhos, a Joana e o Pedro. Nos casamos. Chegamos a nos casar na igreja. Foi uma feliz circunstância. Com a Rosa, eu casei no civil apenas. E com a Parê, ficava difícil esconder o namoro. Tem essa coisa, esse mistério da cidade pequena. Eu tinha que, de algum modo, contemplar a vontade e a cultura, digamos assim, da Dona Cinira. Não era simplesmente pegar a filha dela e morar junto. Como eu não havia me casado na igreja, nós nos casamos na igreja na matriz de Ubatuba. Um casamento bonito, porque estávamos eu, a Camila e a Parê, a Camila criança ainda. Tivemos a Joana e tivemos o Pedro. Duas pessoas, três pessoas. A Camila, embora de outra mãe, é muito irmã do Pedro e da Joana. E Joana e Pedro são pessoas excepcionais, queridos, assim como Camila é.
03:34:51
P/2 - E essa nova paternidade foi diferente da outra? Ou você continuou levando os filhos para cima e para baixo, levando para entrevista, viajando? Como é que foi?
R - Nós continuamos viajando, sim. O Pedro foi determinante numa coisa: com a Joana e Camila, eu convivi por mais tempo; o Pedro, quando nasceu, eu ainda estava passando semana em São Paulo e fim de semana apenas em São Luiz. E o Pedro foi determinante para que eu decidisse pela mudança de São Paulo para São Luiz. Por que? Ele, bebezinho, foi crescendo, começou a andar. “Vem cá com o papai, filhinho, vem cá”. Ele olhava para mim com a cara de “quem é esse sujeito?”. Eu só aparecia final de semana aqui, eu falei: “Opa, isso não pode estar certo”. Isso foi, digamos, o empurrãozinho que faltava para eu, em definitivo, passar a morar em São Luiz do Paraitinga. Embora viajando com frequência, saindo muito, o meu lugar para voltar era São Luiz do Paraitinga. Eu voltava para minha casa aqui. Então, os filhos me ajudaram nisso também, a me fixar no espaço que eu construí e onde eu pude continuar trabalhando de acordo com o velho sonho do teletrabalho que eu tive lá atrás. Nesse ínterim, ocorreu a emergência, a chegada, do Observatório da Imprensa, que foi uma conjunção de circunstâncias muito risonha, à qual eu dediquei 20 anos. Quando eu editava a revista Imprensa, eu editei uma longa entrevista com o Alberto Dines, que então morava em Portugal. E ele preparava a sua volta para o Brasil. E ele tornou-se, por um breve espaço de tempo, colunista da revista Imprensa. Foi um breve espaço de tempo porque se desentendeu com os donos da revista e não continuou a colaboração. Mas eu me lembro que o primeiro texto que eu editei dele, eu me encantei com uma expressão: “O circo da notícia”. Eu queria dar no chapéu da coluna dele, como retranca fixa, “O circo da notícia”. E ele não queria “Circo da notícia” [mas] “Observatório”. Eu não entendia por que “Observatório”. Eu achava o “Circo da notícia” um nome muito mais forte. Mas mal sabia eu que ele estava preparando o terreno para o lançamento no Brasil do Observatório da Imprensa. que era um media watcher, uma instância de crítica de mídia que ele criou em Portugal, ajudou a criar em Portugal, e veio para o Brasil com o plano de criar aqui, o que de fato ocorreu em parceria com a Unicamp. Ele construiu o Observatório a partir do trabalho que ele desenvolveu no LabJor, Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Unicamp, muito inspirado pelo então reitor da Unicamp, Carlos Vogt. E a partir de seminários promovidos pelo Labjor, em 1994, 1995, ele finalmente colocou em pé um site na internet chamado Observatório da Imprensa, em abril de 1996. Eu acompanhei tudo isso à distância, eu não participava da operação. A história que eu conheço é que a ideia era construir um veículo jornalístico cuja pauta primordial é a crítica dos meios, a crítica de mídia. Para botar essa ideia em pé, a primeira coisa que se buscou foi o espaço físico para que isso pudesse ser produzido. Claro, pensando com cabeça de papel, precisaríamos de uma redação, de telefones, de computadores, instalações físicas, enfim. Mas não havia recursos para fazer isso. A história que eu conheço é que um dos pesquisadores do LabJor, Mauro Malin, soltou a ideia luminosa. “Está surgindo aí uma coisa nova chamada internet. Então, vamos fazer uma redação virtual. não precisa ter uma redação física e mobilizar recursos para poder construir um ambiente de trabalho”. E daí surgiu o Observatório da Imprensa na internet, em 96, abril de 1996. No final do ano de 96, início de 1997, o Dines me chama para tomar conta de uma edição impressa do Observatório. A partir do seu lançamento, o Observatório tinha periodicidade mensal. Ainda no mesmo 1996, ano do seu lançamento, essa periodicidade passou a ser quinzenal. As edições subiam para a internet todo dia 5 e todo dia 20 de cada mês. E a ideia da edição impressa, ainda pensando com cabeça de papel, a ideia da edição impressa era construir mensalmente um resumo das duas edições quinzenais. O Dines me convidou para editar esse veículo. Eu topei, claro. Fiz. Isso durou até 2000. Fiz junto com Fernanda Leonardo, a direção de arte dela. Até que em março de 1999, eu assumo também a edição online do Observatório. E, dali em diante, todo o trabalho se deu de forma remota. Fazemos home office desde 1999. Foi um trabalho que me possibilitou a convivência prazerosa e absolutamente inspiradora com essa figura chamada Alberto Dines, que era um jornalista único pela sua capacidade de compreensão do mundo, o seu humanismo, a sua competência técnica e, sobretudo, um ser intelectual, um erudito sem polainas, digamos assim. Um erudito que falava o que todo mundo entendia.
03:39:00
P/2 - E você ficou no Observatório até quando?
R - Fiquei até julho de 2016. Fechou-se o ciclo. Foi um período riquíssimo.
P/2 - E na PUC também você deu aula até quando, mais ou menos?
R - Na PUC eu fiquei até 2006. A PUC passou por uma crise gravíssima. Eu já não vivia mais em São Paulo, embora passasse dois, três dias por semana em São Paulo. No meio daquela crise toda, eu me senti constrangido em não poder participar full time das tentativas de buscar soluções para a crise, sobretudo aquela instalada no nosso Departamento de Jornalismo. Eu achei que não seria justo, da minha parte, estar na PUC apenas para dar aula e não me envolver na grande discussão que então se implantava sobre os caminhos que a universidade deveria tomar, enfim, sobre as soluções que deveriam ser construídas para a superação daquela crise. Vivendo esse drama, assim que saiu o primeiro PDV, Programa de Demissão Voluntária, eu me inscrevi. Achei que depois de 27 anos a minha missão estava, se não cumprida, pelo menos muito bem encaminhada. Eu não gostaria de ter na PUC apenas um local para dar aula. Eu queria viver a vida acadêmica de forma mais intensa e não podia fazê-lo por conta dos meus compromissos profissionais, meus outros compromissos profissionais. Então, eu decidi deixar a PUC, o que eu fiz numa boa hora, porque no ano seguinte, e nos anos posteriores, afora todo o meu trabalho, no meu trabalho profissional, eu tive que enfrentar um câncer e que eu consegui superar exatamente porque eu não estava em São Paulo, acredito. Fiz todos os procedimentos em Taubaté, próximo da família, durante duas cirurgias no espaço de 12 meses. Tudo correu bem, foi bem sucedido pelo fato de eu estar aqui e não em São Paulo, suponho. Suponho não, tenho certeza. Nessas horas, conta muito ter o menor nível possível de estresse. E foi o que ocorreu. Continuei trabalhando à distância e vivendo.
03:55:01
P/2 - Luiz, agora pensando um pouco nessas muitas reportagens e matérias que você já fez na vida, tem alguma que foi mais marcante, que ficou na memória, que foi uma entrevista que você teve que viajar, que você conheceu uma pessoa muito interessante?
R - Tem várias. Tem uma que eu gosto muito. Havia uma revista em São Paulo chamada Revista Goodyear, era uma revista da fábrica de pneus, uma revista quadrimestral, editada pelo Geraldo Mayrink. Uma revista de grandes reportagens. Num certo sentido, uma revista luxuosa, um padrão gráfico de excelente qualidade. Enfim, para essa revista, eu fiz uma reportagem chamada “Beneditos caipiras”, que é uma matéria de que eu gosto bastante, onde eu percorri toda essa região onde está São Luiz, desde São Luiz até Bananal, traçando um painel do que seria o último reduto caipira do estado de São Paulo, onde há vários, muitíssimos “beneditos”. Esses “beneditos caipiras” renderam uma matéria de capa na Revista Goodyear, com fotografias do Ed Viggiani, uma matéria de que eu gosto bastante. Tem uma entrevista sensacional, duas entrevistas sensacionais, modestamente, uma com Vinícius de Moraes e outra com Tom Jobim, em momentos diferentes. Foram duas matérias das quais eu gosto muito. O problema do jornalismo é que aquela matéria que você gosta, em que você aposta nela como uma matéria de fato marcante, ela só será marcante até o momento em que vier a outra: o que vale é a que vem. Uma boa matéria jornalística sempre vai ser pior do que a melhor que vem adiante.
03:59:19
P/2 - Luiz, agora para começar a encerrar, eu queria saber como é a sua rotina hoje. Você trabalhou tanto, foi tão ativo em tantos jornais, tantas áreas da profissão do jornalismo, e aí eu queria saber hoje, você continua ativo, você tá também fazendo seus freelance fixos, como é que tá?
R - Eu continuo trabalhando, buscando trabalho, querendo trabalhar. Mas, ao mesmo tempo, eu me dou conta de que a energia que eu tenho já não é aquela que eu tinha 20 anos atrás, o que é natural. Enfim, tem um bloco [de carnaval] aqui em São Luiz chamado Juca Teles do Sertão das Cotias. O estandarte de Juca Teles tem uma frase assim: “Como viver sentindo a passagem do tempo?”. O tempo vai passando. Hoje, eu já estou na faixa de 70, eu sou um septuagenário. Eu não tenho mais a rapidez e a energia que eu tinha, o que é natural que seja assim. O tempo passa, a gente sente o tempo passar, mas não perdi a vontade de trabalhar. Agora, eu não tenho mais vontade de sair buscando trabalho como um garoto de 30 anos. Eu estou mais à disposição do que correndo atrás. Ultimamente, eu tenho trabalhado praticamente apenas com o Museu da Pessoa. Fiz, nesse meio-tempo, dois grandes projetos. Tinha a ver com jornalismo, mas também tinha a ver com consultoria. Um em 2016, na Venezuela, e outro em 2020, nas eleições bolivianas. Fora isso, os projetos dos quais eu participei [foram] no Museu da Pessoa. E, além do Museu, eu não tenho nenhuma perspectiva mais segura de trabalho, pelo menos à primeira vista. Minha rotina tem sido uma rotina de leitura, curtir os netos, cuidar da saúde. O tempo vai passando e os cuidados vão se intensificando. E construindo metodicamente tanto o que eu puder fazer em nome da felicidade. A felicidade, enfim, há de ser a nossa vingança.
04:04:27
P/2 - Luiz, você não tinha falado dos netos. Quantos são? Quais são os nomes?
R - Ambos filhos da Camila, minha primogênita: o Martim e a Lis. O Martim com 12 anos, a Lis com 8. São duas crianças adoráveis. Muito queridas, carinhosas, inteligentes. Meus amores, enfim.
04:05:14
P/2 - Luiz, eu sei que sempre, numa entrevista, muita coisa acaba ficando de fora, mas tem alguma coisa que você gostaria de ter falado que a gente acabou não comentando?
R - Acho que não. O que me chamou a atenção, um pouco, foi o meu ritmo de fala meio titubeante, os silêncios com que eu pontuei a narrativa. Achei estranho. Devo estar com a energia baixa hoje. Mas espero que tenha sido um complemento válido naquilo que já havia feito. Mas me chamou a atenção um pouco esse meu vacilo, esses meus vacilos. Tem uma coisa que me incomoda um pouco, e é recente: são essas determinações que, às vezes, você é obrigado a conviver com elas. Eu fiz uma cirurgia de catarata há dois anos, correu tudo bem, enxergo bem, não uso mais óculos, mas eu herdei uma fotofobia um pouco incômoda. Agora, por exemplo, eu estou sentindo lacrimejar. Isso incomoda um pouco. Não sei o quanto isso pode resultar em impacto na forma de pensar as coisas, mas, de fato, acaba incomodando um pouco. Eu não sei se isso interfere ou interferiu o suficiente na minha conversa de hoje. Mas que incomoda. São certas irreversibilidades que a idade vai trazendo, né? Eu estou me preparando para me tornar um idoso, se é que eu já não sou. Mas aprender a conviver com tudo isso, aprender a conviver com essas limitações, é uma arte, é um desafio. Eu estou disposto a encarar. Já que é assim, que assim seja.
04:08:49
P/2 - E a pergunta, para finalizar, Luiz, o que você achou de contar a sua história, tanto a primeira parte como essa parte de agora? Como foi esse processo, ainda mais para uma pessoa que já entrevistou tantas pessoas?
R - Pois é. Desde a primeira sessão, eu fiz questão de chegar absolutamente limpo. Isto é, eu não preparei nada, não quis fazer roteiro, não quis montar uma colinha, definir o que eu gostaria de dizer. Enfim, tanto que eu senti falta de alguns tópicos só depois de terminar a primeira sessão. Eu me senti bem, porque eu vim franco e aberto para contar a minha história. Mas, um pouco na primeira vez e um pouco na segunda, e mais na segunda hoje, me chamou a atenção esses vacilos, esses silêncios involuntários que eu tive durante o transcorrer da conversa. Acho que pode ser normal, talvez reflexo de estar incomodado com a fotofobia, de estar incomodado com o fato de eu lacrimejar. Mas eu espero que tenha sido útil essa minha conversa. Eu me senti bem em falar de mim, me senti melhor ainda em poder dizer tudo de forma aberta e franca, sem estar preso a roteiros, a uma narrativa prévia, previamente construída. Gostei, foi um belo exercício para mim, funcionou bastante bem.
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