Projeto Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista de Vitória Silveira
Entrevistada por Luiza Gallo
Alvorada, Rio Grande do Sul, 07 de julho de 2025
Entrevista: PCSH_HV1486
Revisão: Nataniel Torres
P - Primeiro eu quero te agradecer demais por topar conversar com a gente, por estar aqui com a gente nesse lugar, na CUFA, e eu queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Me chamo Vitória Silveira, eu nasci em Guaíba no dia 09 de fevereiro de 2000.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Sim. A minha mãe, ela me teve num... Ela conta que foi um sábado muito chuvoso. Então, a minha avó, ela estava no hospital. Minha avó teve câncer no útero. Minha avó tava no hospital e minha mãe tava quase se parindo. Então, só tinha o meu tio ali pra ajudar ela. Meu pai não se fez presente nesse momento. E aí, a gente mora numa cidade que... A gente tava morando um pouco longe do hospital. Então, tava chovendo muito. Aquela função não existia Uber na época. E aí, eu sei que eles pediram um carro para um vizinho, conseguiram e foram para o hospital. E aí, ela sempre conta. Às oito em ponto, eu não esperei um minuto, nem a mais nem a menos, queria nascer redondinho. Eu nasci e ela sempre fala que está chovia muito, que isso marcou muito ela, mas que foi a primeira filha dela e deu muito orgulho assim para ela.
P - Vocês são em quantos filhos?
R - Somos quatro, é o total, eu sou a mais velha.
P - E como é? Quem são seus irmãos? Como é sua relação com eles?
R - É o Brian, a Isadora e o Bruno. O Bruno veio depois de mim, veio um ano e seis meses também depois de mim, do mesmo pai. E aí seis anos depois nasceu o Brian. Filho do meio. E por último, com 10 anos de diferença entre eu e ela, a Isadora, que é o meu xodozinho, duas irmãs. E a gente sempre se cuidou muito. Então, eu acabei assumindo um pouco de responsabilidade com eles também......
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Entrevista de Vitória Silveira
Entrevistada por Luiza Gallo
Alvorada, Rio Grande do Sul, 07 de julho de 2025
Entrevista: PCSH_HV1486
Revisão: Nataniel Torres
P - Primeiro eu quero te agradecer demais por topar conversar com a gente, por estar aqui com a gente nesse lugar, na CUFA, e eu queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Me chamo Vitória Silveira, eu nasci em Guaíba no dia 09 de fevereiro de 2000.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Sim. A minha mãe, ela me teve num... Ela conta que foi um sábado muito chuvoso. Então, a minha avó, ela estava no hospital. Minha avó teve câncer no útero. Minha avó tava no hospital e minha mãe tava quase se parindo. Então, só tinha o meu tio ali pra ajudar ela. Meu pai não se fez presente nesse momento. E aí, a gente mora numa cidade que... A gente tava morando um pouco longe do hospital. Então, tava chovendo muito. Aquela função não existia Uber na época. E aí, eu sei que eles pediram um carro para um vizinho, conseguiram e foram para o hospital. E aí, ela sempre conta. Às oito em ponto, eu não esperei um minuto, nem a mais nem a menos, queria nascer redondinho. Eu nasci e ela sempre fala que está chovia muito, que isso marcou muito ela, mas que foi a primeira filha dela e deu muito orgulho assim para ela.
P - Vocês são em quantos filhos?
R - Somos quatro, é o total, eu sou a mais velha.
P - E como é? Quem são seus irmãos? Como é sua relação com eles?
R - É o Brian, a Isadora e o Bruno. O Bruno veio depois de mim, veio um ano e seis meses também depois de mim, do mesmo pai. E aí seis anos depois nasceu o Brian. Filho do meio. E por último, com 10 anos de diferença entre eu e ela, a Isadora, que é o meu xodozinho, duas irmãs. E a gente sempre se cuidou muito. Então, eu acabei assumindo um pouco de responsabilidade com eles também... Quando a minha mãe... Quando eu assumi uma idade, a partir dos 11, 12 anos, minha mãe precisava sempre ir trabalhar, então eu cuidava deles e cuidava da casa. E aí eu... Então eu tenho... Eu sou muito... Com eles eu sou muito coruja, assim, sabe? É bem legal. E a Isa é a minha parceirinha, então desde pequenininha era embalando ela e olhando desenho com ela, e aí depois mais velha eu acompanho muito, até um dos motivos que ainda não saí de casa é pra acompanhar esse crescimento dela, agora ela tá adolescente, fez 15 anos esse ano, então a gente tá sempre juntas.
P - E como você descreveria sua mãe?
R - Ela é uma pessoa incrível, ela é muito guerreira, eu acho que ela nunca desistiu de nada. Ela é muito, muito guerreira mesmo. Ela é uma mulher negra, uma mulher muito sonhadora. Ela sempre fala: “Meus filhos são tudo para mim”. É uma inspiração para mim. A minha vida toda.
P - Você sabe como é, quando você chega nessa família, assim, como que tava, como sua mãe tava, qual era esse ambiente?
R - Minha mãe era uma menina sonhadora. A gente veio de uma realidade muito, muito humilde mesmo. Então, aconteceu ali que ela era mais nova, ela era o contrário, ela também era mais nova de quatro. Ela já não estava estudando mais, mas estava ali sonhando e acabou se apaixonando e engravidou de mim muito nova. E aí tem todo aquele desespero, né? Mãe solteira, não sabe o que fazer. Mas a família era bem unida na época, porque tinha minha avó que juntava todo mundo. Então, esses tios, meus tios todos eram juntos. Era muito legal. Minha mãe conta as histórias. Uma família grande. E aí acabou que minha avó foi diagnosticada com câncer no colo do útero. E aí ela conseguiu fazer o tratamento, mas nove meses depois que eu nasci, acabou partindo. E aí ficou minha mãe, e minhas outras duas tias são mais distantes, então ficou minha mãe e meu tio. O meu tio André, que também assumiu essa responsabilidade de pai na minha vida. Ele ajudou muito a gente crescer. Eu brinco que ele formou a minha personalidade também. Ele que me apresentou às bandas, ele que falava de faculdade pra mim. Ele veio depois a falecer também de câncer na minha família, então também que foi uma perda. Eu acho que isso fala muito sobre a minha mãe. Ela não desistia, sabe? Ela sempre tomava fôlego, ela sempre ajudou a família, mas não foi nada fácil. Era uma menina nova que acabou tendo muitos filhos, então logo depois veio a segunda. Aí todo mundo falava que ela julgava muito ela, né? “Olha aí de novo tanto filho”. Aí ela conheceu o pai dos meus irmãos, eles ficaram aí acho que uns cinco anos juntos, mas ele tinha problema com álcool. E aí ela teve mais dois filhos, então, se encheu de filho, todo mundo acabava julgando muito ela. O que não é verdade. Ela sempre fez tudo por todo mundo, sempre cuidou de todo mundo, então... E aí, com esse marido, ele cuidou bastante da gente, mas ele também tinha um problema de álcool, ele ajudava financeiramente, que era muito bom. Mas aí, com meus, acho que eu tinha 12 anos, eles se separaram, ela achou melhor se separar, porque eu estava crescendo, as crianças também. Eu chamo eles de criança, mas eles já têm o do meio, o mais novo, ele é maior que eu. E a Isa também, é super grande. E aí eles se separaram e a nossa vida começou uma batida muito intensa. A mãe saiu pra rua e ela começou a trabalhar em rede hoteleira como cozinheira. Primeiro foi camareira, depois cozinheira. E aí é seis por um, né? E trabalhando em Porto Alegre, como eu falei, eu moro do outro lado do rio, então é quase uma hora de distância, dependendo da ponte, do trânsito. E aí a gente ficava tudo junto. Então eu ia pra escola, aí o Bruno ficava com a Isa, aí depois eu arrumava a Isa, levava pra creche, e assim a gente ia se ajudando. Aí a gente começou a dividir as tarefas de casa, que até hoje é assim, os mais novos, uma louça de um, e assim por diante. E a gente foi crescendo junto, sabe? Sempre se ajudando. Claro, tô com muito apoio de tias, do pessoal da comunidade, a gente fez... A gente foi beneficiária do Bolsa Família por muito tempo, que ajudou muito. A gente recebia cesta básica de igreja, então eu acho que é uma coisa que eu sempre ressalto quando me informo aí também, eu acho que, a gente não... As mães, elas precisam ser olhadas, né? Sobretudo as mães solteiras precisam ser olhadas, porque hoje em dia, claro, uma cesta básica às vezes a gente não dá valor, mas naquela época, um quilinho que chegasse ou qualquer proteína que chegasse já era algo que salvaria. Então eu sempre ressalto, essas comunidades ou ONGs como a CUFA, sempre, é muito importante isso, sabe? Continuarem olhando para as mães, para as mães solteiras e acho que é isso, me alonguei um pouquinho.
P - Imagina, é isso? Vai que vai. Você conhece alguma história dessa sua avó?
R - Sim, sim. Ela era uma... A minha mãe sempre conta que ela era meio turrona, sabe? Eu queria muito ter conhecido ela. Ela era meio turrona e meio braba. A minha mãe não teve muito esse negócio de carinho. A nossa família não tinha isso. Hoje eu brinco que depois de 20, eu tenho 25, depois de 25 anos que ela consegue dar abraço, que ela é mais flexível. Mas a minha avó era meio turrona assim, só que ela abraçava a família toda, sabe? Então ela juntava todo mundo, isso que eu quis dizer. Juntava todo mundo, sempre fazia churrasco, sempre juntava a família, trazia os primos do interior. E ela sempre, o meu nome Vitória é porque a gente, elas falavam: “Eu vou vencer esse câncer e vou criar minha neta, vou ajudar”. Felizmente não foi, mas depois a gente teve outra vitória. E é isso, que eu sei era outra mulher muito guerreira. Então eu venho de mulheres muito guerreiras. É isso.
P - E seu tio André?
R - Ah, meu tio era tudo assim pra mim. Eu acho que ele... Todo mundo chama ele de negão, chamava de negão. Ele foi um solteiro a vida toda, e uma pessoa boêmia, com cultura mesmo da onde a gente vem. E parceiro da minha mãe, sabe? Tipo aquele irmão que não saía de perto. Ele trazia alegria em tempos difíceis, quando a minha mãe estava muito estressada, preocupada com as contas, preocupada com as coisas de casa, com a gente incomodando. Ele vinha e fazia bagunça junto e cuidava da gente junto. E foi criando a gente, também trazendo... Ele trabalhava em construção, então às vezes ele ficava uns 15 dias fora, um mês fora. E aí falava: “Olha aqui, eu fui numa cidade que se chama Estrela”. E aí ele trazia uma estrelinha pra mim. E assim foi indo, então. Me passou livros, foi me incentivando. Acho que uma coisa... Essa parte eu acabei não dando a minha mãe, porque minha mãe sempre foi uma mulher forte. E ele veio com a leveza da família. E sempre do lado dela, e sempre ajudando ela. E ele também trazia essa leveza para ela. E aí eu fui crescendo. Aquela parte da adolescência é muito difícil. E aí ele foi trazendo a parte de banda, também de ensinamento de política, para entender direitinho como é a questão social do nosso país. O que é certo... Não tem certo e errado, mas assim... Ele me deu muito um pouco essa percepção, sabe? E aí, em 2016, ele foi diagnosticado com câncer também. Ele tinha um problema com bebida, mas nada... Bebia e ficava feliz, só que ele acabou... Com a morte da minha avó, ele começou a beber muito. Ele teve um câncer na laringe, se não me engano. E aí minha mãe cuidou dele. Daí ele ficou... Foi quase um ano aí na luta. Infelizmente, se foi também. E aí, a partir disso, minha mãe caiu em depressão. Então, aí era eu cuidando de todo mundo. Imagina, perdeu a mãe, perdeu o irmão, que era, tudo pra ela. E a gente ali naquela situação. A gente sempre morou de aluguel, a gente ainda não tem casa própria. E aí ela foi indo assim. Mas acho que ela foi cansando com o tempo, de ver que a vida não estava sendo fácil com ela, não estava sendo justa. O meu pai, por exemplo, é uma pessoa que eu não conheço. Eu sei quem ele é, a gente até... A minha mãe botou ele na justiça algumas vezes, a gente sabe onde ele mora. Mas ele é uma pessoa que ela sempre fala: “Ele é uma pessoa muito ruim, mas tá aí vivo. E o teu tio, que era um doce de pessoa que... Enfim... Sempre ajudou todo mundo, sempre criou vocês, acabou se indo também de câncer”. E aí ela teve essa depressão. Até hoje ela se trata com isso. Com os anos foi ficando mais difícil. E eu fui assumindo toda a família. Então com o tempo eu fui assumindo as contas. Depois eu fui assumindo a escola dos meus irmãos. Passamos por uma época um pouco difícil. Quase um ano, exatamente um ano antes da enchente, foi o período mais difícil. Porque ela não saía do quarto, não se levantava. E aí era tudo casa. E eu sempre tentando, sabe? Acho que foi isso, sim, mas do meu tio acho que fez muita falta nela e eu até hoje. Ele era André Natalino Casemiro Silveira, nasceu dia 25 de dezembro e aí os natais era aniversário-natal e aí era uma festança E aí com a partida dele ficou tudo muito triste, muito vazio. Porque a família foi meio que diminuindo e se desgrudando Então, até hoje os natais são muito difíceis. O que eu tento, ela gosta muito de praia. Eu junto o dinheiro, eu levo ela pra praia pra ela não ficar trancada no quarto, essas coisas. Então, eu vou criando estratégias dentro da... Porque eu acho que ela me ensinou a ser forte e é isso que eu tento ser até hoje. Agora com o tratamento, eu já consigo pagar um tratamento melhor pra ela, um acompanhamento. Ela já tá melhorando, então acho que as coisas estão fluindo. É isso.
P - Eu queria te perguntar, na infância ainda, como era o seu bairro? Como era a sua casa? Que recordações você tem? Pequenininha ainda.
R - Então, eu me mudava muito. Eu não tenho muita lembrança de lugares fixos, mas a gente morava num bairro um pouco mais afastado lá da minha cidade e sempre foi muito legal. Eu sempre fiquei muito na rua também, brincava muito na rua, sempre fiz amizades. Eu sempre fui faladora, as vizinhas sempre me conheciam, eu estava na casa da fulana, na casa da ciclana, com meus irmãos também, puxando eles para a rua, porque naquela época era TV e deu, não tinha muito como se distrair. E era um bairro muito bonito. Então, até hoje... Ano passado, eu levei minha mãe pra gente voltar naquele bairro. E aí a gente vê que tem coisas que continuam iguais. Então, é bem... Foi uma infância muito legal. Apesar de tudo, a gente se divertia demais.
P - E você tinha brincadeiras? Você gostava?
R - Sim. É, a gente... Acho que essa questão era os meninos jogando bola e eu sempre aprontando na rua, então eu não lembro de fato de uma brincadeira que era recorrente. Mas eu tava sempre na rua, conversando, brincando. Eu sempre gostei muito de bicicleta, então tava sempre andando de bicicleta na volta. E foi isso.
P - E você, pensando nos costumes familiares, você falou que o Natal era algo bastante importante. Tem mais algum evento ou alguma comida que lembra muito sua família?
R - Sim.
P - Ou, não sei.
R - Os domingos sempre foram muito especiais, que era quando a mãe, acho que a mãe conseguia encaixar as folgas dela. E aí ela sempre fazia, por muito tempo, era uma galinha na panela com açúcar queimado e hoje, até hoje, isso me lembra, sabe? Era meio caramelizado. E maionese, domingo sempre foi muito especial pra mim, até hoje eu gosto muito, porque a gente sempre se reunia, pelo menos os filhos e a mãe, e na época o tio também, e compartilhava desse momento da comida, e brigava um pouquinho, e conversava. Então sempre, acho que os domingos e os aniversários, né? A mãe sempre foi muito criteriosa com aniversário. Ela sempre fazia um bolinho, fazia uns docinhos, comprava um refri e a gente sempre, até hoje, a gente tira uma foto todos juntos atrás da mesa. Não importa, tem anos que a mesa tá mais cheia e tinha anos que a mesa tava um pouco mais vazia. E aí, meus irmãos agora estão mais velhos, aí eles: “Ah, quero fazer pagode com meus amigos”. E a mãe diz: “Não, o dia comigo”. Não tem erro. A gente sempre faz.
P - E lembranças da escola?
R - Então, eu sempre fui conversadeira. Eu ficava entre o pessoal do fundão e o pessoal da frente. Eu sempre tirei nota boa, a mãe nunca precisou se preocupar comigo assim na escola, mas ela sempre escutava: “A Vitória é boa, mas conversa é demais”. Depois fui para a área da comunicação, estava explicado. E eu passei por algumas escolas também. Sempre foi isso. Depois fui entender que eram Humanas, então sempre grudava nos professores de História. Matemática passava ali. E fui curtindo muito. Com o tempo, depois, fiquei na escola que foi o Narcio. E aí é aquilo, a gente vai crescendo, as professoras vão nos acompanhando e até hoje elas me encontram, fico muito feliz. E aquilo, o professor de história sempre me marcou. E aí depois eu fui para o ensino médio, que era uma escola no centro, então a gente tinha... Também tinha isso, o deslocamento até as escolas, então a gente sempre... E isso era uma prioridade. A educação, minha mãe sempre frisou muito. Ela não estudou, ela não teve a oportunidade de estudar. Depois eu vou chegar na parte que ela voltou a estudar agora, mas... A gente era... Tipo, a escola não tem como faltar. Só no máximo chuva, frio, mas que nem estava esses dias. E eu fui estudar no centro, fiz ensino médio lá. E aí eu comecei a pensar muito nisso, né? Como é que eu vou fazer pra mudar de vida? Porque legal não tá, vamos ser sinceros. E aí eu comecei a pesquisar. Meu tio, ele falava muito da faculdade de jornalismo, porque ele queria que eu fosse jornalista. E aí eu: “Tá, mas como é que entra? Como é que faz?” E a mãe não tinha muito essa instrução. Então eu comecei a pesquisar, descobri que tinha algumas bolsas. Sabia que entrar na UFRGS, que é a federal daqui, ia ser bem mais difícil. Porque eu já trabalhava em lancheria como garçonete. Então eu fui vendo opções de como talvez eu pudesse entrar, mas eu tinha uma coisa muito certa na cabeça: "Se e eu não fizesse isso no superior, eu não ia ter uma vida diferente". Eu acho que eu precisava ter um emprego que pagasse mais. E aí com 16 anos eu tomei esse peso pra mim. Eu acho que a morte do meu tio, tudo mudou de alguma forma. E pra mim foi tentar, mesmo com as bobice ali da adolescência, tentar entender que alguma coisa tinha que mudar dali pra frente, porque era só nós dali pra frente. E aí foi isso, aí eu fui no ensino médico, continuei estudando muito. Eu tinha o sonho de ser professora de história, mas também botei na cabeça: “Não vai dar dinheiro porque vou ter que fazer estágio. Estágio paga mil e pouco, eu preciso de mais”. Então, eu pensei assim: “Eu vou fazer uma faculdade de dê dinheiro e depois eu vou fazer história quando eu tiver mais velha”. Eu ainda tenho isso. Talvez algum dia eu faça para virar professora. Que era o meu sonho ser professora porque eu sempre fui muito grudada nas minhas professoras. E aí no ensino médio eu fiz o terceiro, no segundo ano eu fiz o ENEM para treinar, sabia que o ENEM talvez seria a minha virada de chave. Fiz o ENEM como treineira, tirei uma nota boa, via onde eu tinha que melhorar e no último ano eu fiz, e aí consegui. Passei na bolsa. Não entrei na UFRGS, como eu já imaginava, mas ganhei PROUNI 100%. E aí entrei. Primeiro eu fiz administração, não sabia o que eu queria, sabia o que eu queria é história. E aí a minha nota deu numa tal de faculdade de publicidade. Eu nem sabia o que era, mas achava que era mais legal que administração. E aí eu fui pra faculdade, me apaixonei por comunicação, vi que eu caí ali onde precisava. Aí foram quatro anos e meio mais ou menos, histórias difíceis porque eu estudava na zona sul de Porto Alegre, morava em Guaíba e trabalhava no centro de Porto Alegre já. Então, aquele dia, cidade dormitório, só chegava em casa para dormir e aí a gente sempre se apanhando. Minha mãe sempre que dava… Ela saiu da hotelaria, começou a trabalhar num comércio local lá em Guaíba, então ela já tinha mais tempo, cozinhava, eu chegava em casa, comia, fazia marmita e saía no outro dia. Mas foi muito legal. A parte da faculdade foi onde eu me encontrei. Também tirando essa parte de família, eu comecei a namorar, comecei a ir pra festa, comecei a curtir um pouco mais na faculdade. E da parte de ensino é isso, basicamente. Aí eu me formei ano passado, foi bem legal também. Todo mundo se juntou, aí eu juntei os primos, a gente fez uma festa, foi bem legal.
P - Então vou voltar só um pouquinho, tá? Tem algum professor de história muito marcante, professora?
R - Sim. Teve o professor Genesmar, ele lembra de mim eu acho ainda, mas ele era ele era meio loucão assim, isso sempre me chamou muita atenção e ele sempre falava muito de história. E depois enquanto eu estudava pro ENEM, cada vez mais isso ia me puxando, mas o professor Genesmar lá do ensino fundamental me marcou muito, muito mesmo. E depois as professoras do ensino médio, claro também, mas ele em específico.
P - E como que você se encanta por comunicação? O que que te atrai, assim? Você fala: “Ah, agora eu tô no lugar que faz sentido pra mim”?.
R - Então, eu acho que é o poder de como vocês estão fazendo aqui, sabe? Mostrar as narrativas, mostrar histórias, e aí depois a gente vai ter um encontro com a CUFA que aí mais pra frente eu vou falar, mas eu acho que é isso, é evidenciar, é falar, é puxar o que está escondido e daqui a pouco dá… E a publicidade é muito capitalista, mas eu consegui ver e achar formas de voltar para a minha realidade e comunicar. Eu acho que é isso, não deixar escondido e falar o que tem que ser falado.
P - E pensando nesse dia-a-dia da faculdade, você falou que era muito corrido. Como que era? Você lembra dos sons do seu dia, desses deslocamentos, do que te interessava no seu dia-a-dia? Os cheiros eram diferentes nos bairros? Você consegue buscar isso?
R - Sim, eu sempre fui uma guria muito... Eu gosto de aproveitar o agora, então eu sempre fui muito deslumbrada. Então toda vez que eu entrava na faculdade, não todos os dias, mas assim, começou o semestre eu entrava e pensava: “Nossa, esse lugar é muito legal”. Então eu aproveitei muito a faculdade, eu pegava e me inscrevia onde dava, nas aulas extras que davam, era muito legal e eu sempre fiz muito amigo. O pessoal de Porto Alegre, eles foram me apresentando a capital. Então, eu curtia muito, assim. Era muito esse negócio ali. A partir das 5h30 eu já estava fechando a minha mochila no serviço, trabalhava ali no centro. E ia em direção à Parada, pegar o Orphan, todo mundo chama. Que é um ônibus muito lotado, só de estudante, que vai pra Zona Sul. E a gente ia e ia. Às vezes nem passava catraca, mas sempre era muito divertido, porque era só jovem dentro do ônibus. E aí a gente ficava ali uns 30 minutos dentro do ônibus e descia na faculdade e aí, graças a Deus, a faculdade, a parada era na frente da faculdade, então não passei nenhum perrengue em encaminhar muito, mas sempre me diverti muito. E era uma faculdade particular, então tinha estrutura muito legal e a gente... Aí tinha o barzinho ali que a gente ia beber cerveja. Também precisava fazer alguma oficina extra ali, fazer fotografia. Eu fiz algumas cadeiras, depois eu fiz um estágio lá dentro também. Então, eu consegui aproveitar muito, todas as nuances da faculdade. Claro, me estressei muito, não aguentava mais, queria me formar logo, mas foi bem legal.
P - E foi nessa época que você, não sei se você ainda namora, mas que você começou a namorar?
R - Sim, sim, foi. Foi nessa época que eu comecei a namorar, comecei a sair com o pessoal lá de Porto Alegre. Depois comecei a namorar, eu fiquei 4, 5 anos namorando com ele, que foi um grande parceiro. Ontem eu acabei vendo ele também, mas ele foi muito apoiador. A gente acabou terminando porque eu tinha visões diferentes, mas sempre me apoiou. Ele foi meu amigo por muito tempo, ele estava no dia que eu fiz o ENEM, eu sempre brinco com ele, e no dia da minha formatura. Mas também eu curti a noite ali, ia pra CB, que todo mundo chama de Cidade Baixa, e foi isso.
P - E o dia dessa formatura?
R - Ah, esses dias me perguntaram se eu pudesse viver algum dia? Eu sempre falo que eu viveria um dia da vida do meu tio, de novo, pra curtir um pouquinho com ele. E se desse dois dias, o segundo era minha formatura. Foi incrível. Fiquei gripada na sexta e sábado era a minha formatura, mas eu consegui aproveitar muito. E é aquilo, eu tento, tipo, “se liga que isso aqui vai passar rápido”, então aproveita cada momento. Eu lembro que foi muito legal. Saí cedo de Guaíba, fui no meu primeiro cabeleireiro, fiz o cabelo, fiz a maquiagem. Minha mãe nos nervos que só. Eu não ia fazer festa. Eu disse: “Mãe, festa é muito caro. Eu não vou fazer”. E ela é muito orgulhosa, ela se enchia de orgulho de eu ter chegado nessa fase. E aí começou a chover, eu só ia num restaurante com a minha família, aluguei uma decoraçãozinha só para formando, só que começou a chover. E aí eu fiz muitos amigos nessa trajetória da faculdade e da vida em si, e aí eu agarrei, falei: “Gente, não vai ter comemoração, eu vou colar grau e vou sair e outro dia a gente vê”. Um… Ele era amigo do meu tio, disse: “Não senhora, tu vai fazer festa”. Aí alugou o salão, aí a gente mudou a decoração. Do nada, do nada, em três dias se formou uma festa com um buffet de pizza e eu acho que é isso. A minha vida toda nunca foi sozinha, sempre com muitas pessoas ajudando. Então a tia do meu ex agarrou e fez toda a decoração. Foi cedo, enquanto eu tava me preocupada lá, ele foi cedo. A gente acabou esquecendo várias coisas no final. Mas foi muito legal, a gente aproveitou muito aquela festa. Minha mãe tomou um porre, disse que não queria ir embora, porque era até às quatro da manhã o salão. Ela não queria ir embora de jeito nenhum, “porque a filha dela tava formando, não tem essa coisa de horário”. E foi muito legal. E a colação foi muito especial. Então, teve a parte de homenagens que a gente pode fazer, que eu botei a foto dela, botei a foto do meu tio. Ela disse que quase desmaiou na hora... E teve a colação em si, que eu tava lá no palco. As luzes estavam, que nem agora, viradas pra mim, pra todo mundo. Teve as professoras da minha faculdade, que eu levo até hoje na minha vida. Então, elas estavam na mesa. Até hoje eu lembro disso. O momento que eu entrei foi um dos dias mais especiais da minha vida.
P - E seu tio te mostrou bandas? Você comentou?
R - Sim. Eu vivo... Música é meu combustível. Tô sempre com fonezinho. Mas logo ali na adolescência, com uns 12, 13 anos, ele me apresentou os clássicos ali: Legião, Renato Russo, Capital Inicial. E aí eu passei um tempo meio rockeira. E eu lia muito também, então, toda essa parte… Cazuza. Eu sempre fiquei muito apaixonada por essa parte mais alternativa, e aí ele trazia... Aí ele me apresentou umas bandas internacionais também: Led Zeppelin, Red Hot. Aí depois de uns anos eu conseguia... Eu fui no show do Red quando eles vieram aqui. Então, sempre me acompanhou muito. Com o tempo foi mudando o gosto. Teve uma banda, não sei se vocês já ouviram falar? Fresno. Eu sempre fui enlouquecida por Fresno, era bem na época da minha adolescência. Até hoje eu acompanho eles, acabei indo no show deles depois de mais velha. Mas eu adorava eles também, meio emo, meio sofrido, mas curtia muito. E é isso, mas até hoje, assim. Aí com o tempo foi mudando um pouco o gosto musical. Hoje escuto bastante Black Alien, Don L, mas tô sempre com o fonezinho. E foi minha companhia na faculdade. Porque é muito tempo de transporte público, então sem fone era o dia perdido.
P - E pensando, você falou que com 11 anos você começou a cuidar da casa e dos seus irmãos. Você consegue contar pra gente quando você entendeu que tinha que ter responsabilidade, que tinha que ajudar? Ou sempre foi assim?
R - Ah, eu acho que sempre foi... Eu não levei a vida com muito peso, acho que depois de mais velha fui cansando, mas sempre foi muito natural, eu não sabia que tinha outras... Claro, às vezes eu queria ter coisas que as minhas amigas tinham e isso acabava... E aí eu tive uma fase meio chatinha na adolescência, que eu queria que minha mãe me desse atenção, queria que a vida fosse um pouquinho mais fácil. Mas eu não via, nunca vi, meus irmãos como um fardo. Então a gente sempre levou a vida de forma leve, corriqueira, claro. Não dei muito valor, às vezes, para algumas coisas, mas a gente se ajudava, não... Como que eu posso te dizer, assim? Eu não tive... Ah! Um dia que me botei um peso e “agora eu preciso cuidar da casa”. Eu acho que isso veio com mais... Quando eu fui mais velha, minha mãe foi cansando. Acho que aí eu fui percebendo que não ia para frente se a gente não... Mas enquanto ela estava muito bem ali, as coisas eram com leveza.
P - E você se lembra de algo que foi difícil e vocês conseguiram levar com leveza? Ou algum caos engraçado no seu dia a dia com a sua família? Ou algum momento gostoso ou difícil, mas que tava todo mundo junto? Assim, uma passagem, uma história.
R - Eu tenho um negócio, eu até queria investigar um pouco, porque eu não tenho muitas lembranças claras. Minha mãe disse que é porque a gente, eu acabei deletando para seguir a vida. Mas eu lembro que teve um dia que eu acho que minha mãe e o meu padrasto estavam brigando muito, e aí aquela situação, as crianças estavam muito impressionadas. Então eu liguei a TV, eu lembro que a gente conseguiu transformar aquele ambiente. E aí a gente tinha uma coisa muito chique, a gente teve por um tempo TV a cabo, e aí “gatonet”, mas a gente não precisa falar isso, TV a cabo. Então eu achei o máximo que estava passando desenho de madrugada. E aí a gente ficou olhando o desenho e foi um momento muito legal. Mas assim, o que eu sempre digo: “Minha mãe parece turrona, mas ela sempre também levava o dia a dia com muita leveza”. Então a gente sempre aproveitava junto, sabe?
P - E de onde vem esse jeito de levar a vida aqui e agora, pensando no presente?
R - Ah, eu acho que é... Não sei muito bem de onde vem. Como eu digo: “Eu sempre fui assim”. Claro, fui conseguindo melhorar e tentando sempre melhorar. Acho que tem muito o que melhorar, mas... Eu acho que é pra não cair o peso do... Eu sou uma pessoa muito ansiosa, então eu já fui muito de não olhar pro agora e ficar olhando pro que eu não tenho, ou pro que eu preciso adquirir ainda. Então foi uma estratégia de pensar, “olha, a gente tem um pouco mais do que a gente tinha antes e tá muito legal assim. Olhar pra agora pra não se apavorar” Acho que foi uma estratégia inconsciente de ir seguindo.
P - Quando você se forma?
R - Me formei no dia... Acho que foi dia 8 de março do ano passado.
P - Do ano passado?
R - É.
P - E como foi a pandemia pra você, pra sua família?
R - Foi... Ah, pois é, né? Foi uma época meio difícil. Eu tava fazendo faculdade, aí tudo ficou online. Mas eu trabalhava em um hotel. Minha mãe conseguiu me botar na época em hotelaria. Então eu fiquei um mês... O hotel fechou. E aí eu fui pra casa, e eu “não vou ficar parada, né gente? Vou botar uma máscara e ir trabalhar”. Aí comecei a trabalhar numa padaria. E aí foi um mês que eu fiquei fazendo meio que dois serviços, assim, atendia um pouco as demandas no celular e trabalhava na padaria. E aí o hotel, em seguidinha, já deram jeito, a gente voltou a trabalhar com máscara, com as EPIs. E aí foi uma época meio cansativa, porque eu tinha que correr pra casa. E aí é mais fácil, estando em Porto Alegre, fazer as coisas em Porto Alegre do que pra Guaíba. Então eu saía do serviço, tinha que ir pra casa. Aí em casa eu sempre chegava atrasada pras aulas, porque a aula antes era presencial e aí virou por vídeo. E foi uma época muito, muito, muito cansativa. E eu sempre tive muita preocupação com a saúde da minha mãe. Foi uma coisa que sempre me perseguiu, assim. Então eu acabei pegando o Covid, porque como eu saía muito, eu acho melhor ficar na casa do meu, na época, namorado. Então eu fiquei por muito tempo lá, e aí eu lembro que eu ligava para as crianças, que não são crianças, para tentar acompanhar a aula, e eles adoram, porque eles estavam com muita dificuldade. Para nós, imagina, para mim na faculdade já estava difícil, para eles de escola pública é quase impossível estudar. Então, esses dias que eu estava olhando, eu tenho prints das nossas chamadas de vídeo dessa época que eu peguei Covid, mas eu preferi ficar um tempo afastada deles e da minha mãe com medo de levar, porque eles conseguiram ficar em casa. Mas eu não precisava sair, então foram algumas escolhas.
P - E nesse momento de depressão da sua mãe, quando você entende que ela estava precisando de ajuda, o que você podia fazer, teve algum momento que você falou “ferrou”?
R - Teve um dia, engraçado, um ano antes da enchente, que eu percebi que eu não ia conseguir mais fazer nada, que eu precisava de ajuda, aí liguei pra uma tia minha, tia dela, na verdade, que eu disse: “Gente, eu preciso de ajuda. Vai acontecer alguma merda, eu não sei mais o que fazer”. Ela queria me botar pra fora de casa, então foi um momento muito difícil. Eu não queria que ela visse essas partes que eu falo da depressão dela, porque eu não quero que ela se sinta culpada, mas foi muito, muito difícil mesmo. E aí foi, eu acho que gradativamente ela foi piorando e gradativamente fui pegando as responsas, sabe? Então ela foi, parou de olhar, as notas da Isadora caíram. E aí ela não dava muita atenção, aí eu fui lá e comecei a puxar, começava a olhar as notas da Isadora, os cadernos todo dia. E os guri, graças a Deus, muito parceiro sempre. Aí eu falava: “Gente, é nós, a mãe tá cansada”.
P - Você conversava com eles?
R - Sim, sim. E o meu irmão, depois de mim, ele é mais fechadão. Mas eles sempre, os dois, todos eles. Só que a Isa é mais nova, então eles sempre foram meus parceiros. Aí depois eu consegui um trabalho de home office, que graças a Deus foi muito importante nessa época. “Gente, eu tô numa reunião, hoje eu vou até tarde”, e eles iam lá e faziam comida. Então, é a nossa família muito unida. A nossa casa ali, eles sempre nos ajudaram muito, assim, são dois homens de orgulho, que se criaram. E eu sempre tive medo. Tá, pra mim fazia falta ter um pai, eu acho que justamente porque eu sabia que se tivesse um pai seria mais fácil. Mas eu tinha medo de como que é pra homem não ter pai, não ter referência masculina. Eu tinha muito medo, eu ficava assim: “Bah, mas se esses guris forem para algum caminho que eu não vou conseguir ir…” Controladora, sempre fui controladora, então sempre acompanhando muito eles, mas não assim, sabe? Eu acho que a minha mãe nos criou muito bem. São dois homens lindos hoje, os dois trabalham, os dois são o mais... Depois de mim agora vai se formar também, PROUNI também. Mas se não fossem eles, com certeza não teria conseguido e a gente sempre se ajudando. E aí, nesse dia que eu precisei ligar pra minha tia, que eu vi que seria o dia mais difícil. Minha mãe estava muito, muito, muito mal mesmo. Eu não queria fazer estardalhaço, tipo, ter que ligar pra SAMU, essas coisas, mas estava complicado. Meu irmão acabou achando uma faca debaixo do travesseiro.... Foi muito difícil, gente. Muito difícil mesmo. E aí liguei pra minha tia e falei: “Eu preciso de ajuda, eu não vou conseguir. A minha mãe vai se matar, eu não sei o que eu vou fazer” Aí ela disse: “Não, a minha família tem terreira”. E aí ela falou: “Traz pra cá pra conversar com o pai André” E aí foi ali dentro da... Eu não acompanhava nada, fui da igreja por um tempo. Mas foi dentro da terreira que eu consegui ajuda, consegui gente pra ajudar ela. Minha mãe sempre foi muito espiritual, ela tinha largado isso, então a gente começou a entender o que estava acontecendo, ela começou a acompanhar lá, então imagina, uma menina que foi sempre criada dentro da igreja, eu comecei a entrar dentro de terreiros e disse: “Que se foda, sabe? Quem é que está ajudando minha mãe? É eles. Então vamos lá”. E aí a gente... Eles ajudaram ela, com o tempo foi melhorando. Aí eu consegui, na época eu não tinha muita grana, então consegui, pelo postinho de saúde o tratamento psicológico, ela começou a tomar remédio. E aí as coisas foram estabilizando. Tem épocas que caem, assim, que é mais difícil. E aí eu vejo que talvez seja o remédio, aí volto com... Aí pago o psiquiatra, aí ela vai e troca o remédio às vezes, mas essa foi a época mais difícil, assim.
P - O que é fé pra você?
R - Então, eu fui criada... Criada, não. Tive muito tempo... Como a igreja nos ajudava, eu ia na igreja. E eu acho que eu não consigo ser uma pessoa que não acredita em nada. Eu sempre tô ligada em alguma coisa. E é... Como é que eu posso te dizer? Eu não consigo seguir, mas é uma coisa muito importante pra mim. Como é que eu posso te explicar? Tá sempre ali comigo. E é isso, sabe? E com o tempo, às vezes, eu tô mais próxima. Teve muito a questão da culpa, de achar que eu tava indo pra um lado errado quando eu saí da igreja. Mas hoje eu tenho muita paz de entender o que é Deus, o que Ele quer da gente. Aí agora, na Umbanda também, eu acho que eu busco a parte leve das coisas. Então, é isso também, dentro da Umbanda, o que eles fazem pra gente de bom. Essa parte deles ter nos ajudado, acho que fez eu entender a leveza e a importância de tudo isso. E a parte da história sempre volta, então eu pesquiso muito. Aí pesquisei um pouco mais sobre o humano, entendi a história dos Orixás, de tudo. Acho que dentro da religião não é uma parte muito grande na minha vida, mas tá sempre ali.
P - E você tem rituais assim, quando você tá muito sobrecarregada, você se conecta de alguma forma, e aí não talvez com a fé, como você descarrega tudo isso, você escuta a música, você toma um banho, sei lá?
R - Então, eu tenho esse negócio com organização. Então eu preciso... Às vezes eu vejo que tá tudo dando errado, o serviço não tá fácil, aí eu paro, eu tomo banho, tipo aqueles banhos, sabe? A gente brinca de banho premium, mas que é pra dar uma, sabe? E aí eu vou organizando tudo, eu vou organizando as gavetas, organizo a mochila, organizo o quarto. Vejo onde eu posso melhorar pra... Isso realmente clareia a minha vida, assim E aí eu ponho uma música e foco. E aí eu dou tudo de mim pra tirar o que tá da frente, porque é muita correria. Hoje em dia eu trabalho muito dentro da CUFA, mas é o meu ritual ter que estar com tudo organizado pra conseguir seguir. E a música sempre acompanhando. Então, quando tá difícil, que eu vejo que tô muito estressada pra não descontar nos outros, põe um fonezinho, foco. E é isso. Mas assim, eu tô sempre de segurança, sempre tô ligada ali porque eu sinto que eu tô... Eu preciso estar protegida. Preciso estar com alguém me... Acho que eu não posso me sentir sozinha, de certa forma. Então, antes era muito Deus, hoje os Orixás junto comigo, então eu sinto isso. Se eu não tô com alguma coisa que me mostre que eu não tô sozinha, que é muito difícil também, eu sou uma pessoa muito nova e alguns passei por serviços muito... Como é que eu posso dizer? Muito difíceis também, sendo nova e aí botando a cara a tapa desse jeito que eu sou, então... É o jeito que eu consigo me sentir um pouquinho maior ou na altura deles, quando eu tô com eles perto.
P - E o momento da enchente no ano passado, queria te perguntar assim, desde o comecinho, quando começou a chover, era uma chuva normal, e aí vocês foram vendo que a coisa foi aumentando, como que foi esse momento na vida de vocês?
R - Então, a enchente foi bem... Um período muito... Primeiro bateu a enchente de 2023, e aí a gente... “Poxa, era uma coisa que estava tocando todo mundo, mas ainda não estava perto da nossa realidade”. As regiões ribeirinhas foram atingidas.
P - No final do ano?
R - Isso, em 2023 foi acho que setembro, se não me engano. Mas não foi uma realidade que adentrou. Em 2024, eu trabalhava de home office numa agência de publicidade, que até hoje tem o meu coração, a Bistrô, mas eu estava home office e a gente estava muito preocupado com nossos colegas do Vale do Taquari, justamente porque eles tinham passado. Só que foi aumentando a proporção e, do nada, estava para cá. Só que, assim, nunca achei que ia chegar no meu bairro. Meu bairro é muito afastado do rio, muito afastado mesmo. Ele é um bairro que era uma arrozal, então ele é um bairro totalmente plano, é uma COHAB. Então é muito tranquilo lá nessa questão de não ter rio na volta. Não tinha como chegar. Eu sempre falava: “Gente, eu tô tranquila”. E a gente recebeu uma galera lá em casa. A namorada do meu irmão, na época, foi morar lá em casa quase um mês, porque ela morava num bairro perto da água, então encheu. A gente recebeu, fomos recebendo pessoas, mas lá em casa nunca tinha chegado água. E aí numa sexta-feira eu terminei o serviço, mas eu tava preocupada muito com a falta de luz, porque tava começando a ficar punk o negócio. Porto Alegre já tava um caos, a ponte já não ia funcionar mais E aí eu lembro que eu enchi a casa de vela, comprei uns vários pacotes de vela e lanterna. Isso numa sexta-feira. Aí quando eu tô em casa, assim, quando eu não saio com meus amigos, eu sempre assisto a um filme com a Isadora. E a gente sentou, olhou um filme de adolescente, assim, e eu deitei pra dormir. No outro dia, eu acordo oito e pouco da manhã, meu namorado me ligando. E aí ele falando assim: “Arruma as coisas, que vai vir água”. Eu disse: “Não vai vir água. Vai dormir que é sábado, porque não vai vir água”, bem tranquilo. Disse que não vai vir. Ele falou: “Tá, mas tá entrando a Maia, e a Maia mora no início do bairro”. Eu disse: “Tá, mas tá vindo por onde?” Ele disse: “Veio pelo Valão”. E eu: “Tá, então vamos buscar a Maia. A Maia almoça aqui com a gente”, isso às oito da manhã.
P - Quem é a Maia?
R - A nossa amiga na época. E ela mora no início do bairro. “A Maia almoça aqui com a gente, vamos lá buscar ela”. E ele falou: “Tu não tá entendendo, tá vindo muita água”. E aí que eu comecei a olhar as redes sociais e ver que realmente estava vindo. E a água veio do contrário do rio. Ela passou a Dourado. Então, a Dourado é uma cidade ribeirinha. Encheu a Dourado mais de três metros e não tinha por onde ir a água. E aí ela veio por toda a BR e entrou dentro do meu bairro. Eu queria poder mostrar o mapa porque o meu bairro é o contrário do rio, ele é muito longe. E aí ele foi entrando, foi entrando. Só que, gente, não… Até tu olhar a água, tu não entende o que que tá acontecendo. Porque no meu bairro foram abertos abrigos. E uma, na noite anterior, a prefeitura botou: “Não tem risco. Não tem risco de alagar a COHAB Santa Rita”. E aí, foram abertos três abrigos, assim, pra atender quem tava. Só que no meu bairro moram mais de 30 mil pessoas. Gente, eu não sei explicar a rapidez daquela água. 9 horas começou a encher, 11 horas estava no portão. E aí, aquele desespero, né? Todo mundo em choque. Eu estava em choque. E aí eu: “Gente, documento e roupa. Documento e roupa”. Todo mundo, cada um fez sua mochilinha. A mãe estava muito apavorada e os guris levantando as coisas. A gente subiu geladeira, subiu o que dava. Meu irmão tem um “Uninho 2001” e a gente botou as coisas no Uninho e aí saímos. Não sei se vocês viram, em Porto Alegre tem um valão, a Avenida Ipiranga. O meu bairro tem vários desses. E aí começou a vir dos dois lados, sabe? Muita água. E aí a gente saiu, botou as coisas. A água já estava forte, então não deu pra trancar o portão, só encostamos. E uma loucura, assim. Aí o carro dele afogou dentro d'água. Gente, era um cenário de apocalipse. Eu não consigo explicar pra vocês a loucura que é aquilo. Parece que o mundo tá acabando, as pessoas tão saindo. Ele bateu o carro. Parece filmes de terror, sabe? De terror de fim de mundo, quando as pessoas tão correndo. Ele bateu o carro num carro de uma mulher e a mulher: “Só segue e vai”. Uma coisa muito louca. E a gente não sabia pra onde ir, já tava espelho d'água, né? Então a gente não sabia o que era valão, o que era rua. Mas o carro dele afogou e com muita loucura. Eu desci pra bater a porta, também passou uma parte do meu pé na parte do carro e o pé na água, gente. Uma loucura, assim. Aí a gente conseguiu empurrar até a outra rua, que era onde meu namorado morava, e a gente subiu em cima de um caminhão, que foi como a gente conseguiu sair do bairro.
P - Em cima do caminhão? A água tomou conta de tudo?
R - É, a água tava... O carro dele não funcionava, os carros conseguiam passar, mas como era muita gente tentando sair do bairro e esse meu ex-cunhado tinha um caminhão... Ele subiu os vizinhos na parte de trás do caminhão e a gente também. Então eu subi a mãe, a gente subiu os animais, todo mundo. E assim, gente é muito, muito caótico. E aí ele tinha a bisa. A bisa dele tem 84 anos. E aí imagina, do nada ter que abandonar a casa, sabe? É muito doloroso o que a gente passou assim. A gente subiu: “Tá aí, pra onde vamos ir?” Porque a minha tia e avó, que é quem a gente tem de família, ela já tava com a casa cheia de primo, que também tinha sido alagado. Nosso bairro não ia alagar, era isso que ficava: “Por que isso tá acontecendo?” E aí eu passei, assim, ficamos incomunicável, né? Então eu não sabia se a Maia tinha conseguido se salvar, porque o ponto foi quase dois metros, lá onde ela tava. Meus amigos não sabiam onde estavam, porque todos os meus amigos são de lá. E as minhas primas também moram lá. Então é muito louco, porque tu pensa em ti, tu pensa que a tua casa tá enchendo d'água. E a segurança? O que vai acontecer com essas pessoas? Aí a gente foi pra Terreira. Minha mãe disse: “Não vamos pra obrigo de jeito nenhum. Na casa da tua avó não tem onde deitar, de tanta gente que tá deitada lá”. Que eu chamo ela de vó, mas ela é minha tia-avó. “Vamos lá pra terreira” E aí lá na terreira a gente ficou, e aí eles nos receberam, estavam lá já com o colchão. Ficamos lá 15, 20 dias. Mas assim, uma loucura. Eu entrei num estado de choque, porque eu pensei assim: “Não, eu não tô precisando, tá tudo certo. Eu vou lá no abrigo ajudar quem tá precisando”. E aí foi muito louco batendo assim, aí eu fui como voluntária, tá todo mundo sendo voluntária, eu vou lá ajudar no domingo isso já.
P - Mas você já tava na terreira?
R - A gente ficou o primeiro dia lá e aí todo mundo consternado, por que que isso aconteceu? Daí é muito louco não ter notícias das pessoas, isso eu acho que é muito aterrorizante. Então aí eu consegui me conectar com essa minha amiga minha que eu acabei citando aqui. Aí ela estava bem, ela conseguiu, foi resgatada de barco. E aí com os outros amigos, teve ainda um amigo que ficou desaparecido dois dias, mas aí a gente descobriu que ele não quis sair de casa. Ficou no segundo piso. Mas é muito isso. E aí a gente ficou na terreira por muito tempo ali, por 15 dias. Eu, no início, queria ser voluntária porque eu não entendia que estava faltando coisa. Eu fui lá pra ser voluntária, mas é muito domingo de manhã isso. Fui pro abrigo, fui voluntária e as pessoas lá, uma loucura. É muito... Eu friso isso de novo: as pessoas não sabiam onde estavam os seus familiares. Eles chegavam lá... “A minha filha tá aqui porque eu não sei onde…” Ah, gente é isso, sabe? Tipo, eles pegavam... No meu bairro teve umas horas que eles pegavam pessoas prioritárias: crianças e idosos. E quem podia ficar, ficava. E aí as crianças foram jogadas, os idosos também. E aí tinha fila de gente procurando, não tinha internet. É uma situação muito de terror. Só que aí no final do dia eu comecei a pensar, eu ajudando eles ali, eu pensei: “Vou pra casa”. E aí eu comecei a me ligar: “Gente, eu também não tenho nada, eu não tenho casa” Eu não tinha caído a ficha, essa é a verdade, do peso que é perder tudo. Então eu peguei, eu tava dobrando... Gente, é muito louco isso que eu fiz. Eu tava agindo como se eu não tivesse sido atingida, eu tava ajudando outras pessoas. E eu tava dobrando roupa e pensei: “Tá, e o que a gente vai vestir amanhã? Será que vai ter roupa?” Porque eu peguei legs e calças, eu não peguei nada pra parte de cima, de tão atordoada que eu tava. E aí eu saí daquele, foi a primeira vez, porque tava todo mundo chorando ontem, que era sábado, todo mundo tava chorando muito e eu tava em choque. E aí eu sentei na frente desse abrigo, eu chorei tanto, porque eu entendi que eu tinha perdido tudo, que eu também não tava, eu não tinha nada. E o que me pegou foi muito meus irmãos. Então a gente se separou, porque a avó dos meus irmãos, ela é muito presente na vida deles, então minha irmã foi pra... E aí eu pensei: “Poxa, tá todo mundo separado. Eles foram…” Aí o Brian foi pra casa da namorada e ficou eu, a mãe e o Bruno na terreira. E aí ela diz que remeteu muito quando a gente era pequeno. Era só nós três ali e passando dificuldade. E aí a gente ficou ali nessa terreira. E aí foi quando caiu a ficha. E eu trabalhava nessa empresa e eles fizeram de tudo pra se conectar comigo. A gente conseguiu, logo depois voltou a internet. E aí eles disseram: “Vitória, olha, o que tu tá precisando? Porque eu tenho uma conhecida aí, não sei o quê” E aí eles ajudaram, trouxeram uma sacolada de roupa pra minha irmã. Foi quando eu consegui me acalmar, sabe? De tipo: “Não, agora eles estão tendo... E o fato de... Eu lembro que minha irmã é muito vaidosa. Ela tem os cabelos cacheados, lindos. E aí, tipo, ela tava sem a sopinha dela. Nem calcinha, gente. A gente conseguiu pegar direito. E aí, quando eles vêm, assim, pra ajudar... E aí, eu fui abrir, tinha a toalha da Princesinha Sofia. Tinha todo um cuidado. Acho que, de novo, as pessoas ajudando, foi muito importante. Então a gente passou 15 dias nessa terreira, se ajudando. Aí logo depois, a gente tava muito... A primeira parte da enchente é aquilo: “Entrou água, não sabemos o que fazer, onde vamos ficar?” A segunda parte da enchente é: “A água tá baixando e agora a nossa casa? Não tem ninguém lá”. E aí, todas as casas tinham homens de família, pais de família. E a nossa... Eu não queria deixar os guris voltar pra casa pra cuidar de casa. Não tinha como, sabe? Eu não deixei eles voltarem. E aí a única coisa que a gente pensava: “Precisamos passar um cadeado naquele portão pra ficar mais uns dias aqui porque a água não baixou totalmente”. Daí o Bruno entrou dentro d'água. E é aquilo, porque tu não sabe se é valão. Ele entrou dentro d'água, passou a corrente e a gente voltou. Aí depois baixou. E eu não deixei minha mãe ver a casa. A gente entrou lá, limpamos tudo, tiramos tudo. E é muito louco, gente. Tu toca numa coisa e ela se desmancha, assim. Sobraram só os eletrodomésticos e as camas a gente conseguiu higienizar e aí deu certo. Mas foi muito, muito ruim. Aí teve esse período de limpeza, limpa tudo. Aí, as lembranças, né? Aquela roupa que tu gostava muito, talvez não saia essa mancha de enchente. O teu guarda-roupa, que tu parcelou em 30 mil vezes, virou... Sabe? Não consegue mais utilizar.
P - Você lembra de você voltando pra sua casa, essa imagem?
R - Essa parte da gente ficou muito marcante, sabe? Eu acho que aí a gente abriu, a água já tinha secado, né? E o cheiro, gente. O cheiro era... Até hoje é um cheiro muito bizarro. Não existe nenhum cheiro na vida que nem aquele que tava quando a gente abriu a casa. O Bruno foi o primeiro a abrir, ele entrou, viu se não tinha... Porque também teve essa questão de animal, né? Os animais fugiram pra dentro das casas. E aí a gente... O cheiro assim era horripilante. Aí tu vê que as coisas estavam... O porta-retrato cheio de lama. Aí depois a gente ficava rindo. “Gente, como é que veio parar esse negócio? Tava lá no quarto, até aqui na cozinha?” Porque ficou boiando, claro, com o movimento da água. E aí eu tinha feito rancho, fui no estoque, que é um atacadão, e fiz rancho, as comidas todas. Os armários estavam lotados, que é um orgulho que eu tenho. Todo primeiro sábado do mês eu faço rancho, fiz esse sábado, e encho os armários. E aí eu tenho ritual, eu fecho os armários e agradeço a Deus porque tá tudo cheio. E tava cheio, mas cheio de lama também, então a gente perdeu comida, perdemos... Tudo assim. E aí é aquele negócio, né? A mãe já estava louca pra vir pra casa, a gente com o tempo… Porque a gente ficou na terreira e mais uma família ficou. Que hoje eu tô namorando esse menino. A gente ficou com outra família ali. Então não foi uma situação de abrigo, de estar com 300 famílias em situação de insegurança. Mas a gente estava com outra família, estava todo mundo louco para voltar para suas casas. E aí a gente começou a fazer “isso joga fora, isso dá para aproveitar”. Por um mês talvez. A mesa estava totalmente inchada, mas a gente aproveitou. Limpamos ela, tentamos tirar o cheiro, porque precisava ter uma mesa para botar as coisas em cima. E aí tu começa a selecionar as coisas e tirar. Mas é um processo de uns 4 dias até deixar a casa… Porque aí tu tira toda a lama, tira todos os móveis de dentro, ela fica dando eco… Mas o cheiro não sai. O cheiro não sai e aí tipo: “Não, a gente não vai voltar por causa da umidade e por causa do cheiro. Amanhã a gente volta e tenta limpar mais uma vez a areja” E aí, volta de vez. A gente conseguiu só as camas e a mesa e a geladeira funcionando. De resto, não tinha mais nada dentro de casa. Mas é aquilo, né? Criatividade. A gente botava duas caixas em cima, já fazia, já conseguimos colocar a TV e assim foi indo. E aí, todo mundo se apoiando muito. Então, essa minha empresa me deixou um mês fora de casa. Fora do trabalho, né? E mandaram muita doação pra mim. Daqui a pouco as empresas começaram a mandar doar móveis. A gente conseguiu um sofá de alguém lá. E assim foi indo, a gente foi montando a casa aos pouquinhos. Mas tem uma coisa que é muito marcante, deixo isso pra todo mundo é o cheiro. O cheiro que as casas ficaram e aquilo aí e começa a lavar roupa. E aí a gente conseguiu um tanquinho emprestado e lava a roupa, “mas essa não vai dar” E eu tive um negócio que era: “Gente, vamos jogar tudo fora” Então eu acabei jogando coisas importantes fora porque eu só queria entrar logo pra minha casa. Eu tava com pressa, eu tinha muita pressa pra tirar aquela situação. Mas, graças a Deus, minha mãe voltou e já estava tudo limpinho, só não tinha os móveis, mas a gente conseguiu. E aí teve os auxílios do governo. E aí a gente foi conseguindo. Com 5 mil que veio, a gente comprou a cozinha. Depois eu consegui comprar os... Eu ganhei 2 mil a mais da minha empresa no salário e comprei os guarda-roupas. E aí, nessa situação, eu não precisava trabalhar e eu pensei assim: “O que eu vou fazer? Eu preciso de doação. E preciso fazer alguma coisa no meu dia, não consigo ficar parada” Aí eu fiquei sabendo, uma amiga minha disse: “Olha, eu preciso que tu me ajude com as redes sociais da CUFA”. E eu: “CUFA aqui? Lá do Rio?” Ela: “Não, eles abriram ali no CIEP, que era uma escola que… E eu: “Tá, vamos lá, vocês precisam fazer uns vídeos? Eu abri um Instagram, eu consigo. Aí eu fui lá e entrei nesse mundo, assim, que era a CUFA. Eles começaram: “Ah, tu foi atingida, então pega. Pega primeiro, vem cá”. Aí peguei cesta básica, roupa, gente, assim, graças a Deus, eu... É uma coisa que... E tava muito frio, né? Então é uma coisa que a gente conseguiu muito nas doações da CUFA, nas doações da Prefeitura também. E eu comecei ajudando ali, sendo voluntária. E aí eu fui fazendo muita amizade lá na CUFA também. E aos poucos, aí eu conheci o Júnior. Num dia eu disse: “Quer saber, eu vou fazer, eu vou ajudar eles, porque eles estão me ajudando muito e eu quero retribuir esse carinho pra eles”. E aí eu fui fazendo, eu tenho um mailing de jornal também, fui fazendo releases sobre a situação do Rio Grande do Sul, me reuni com o Júnior e a gente começou a falar da campanha. Ele: “Ah, tu é publicitária? Vamos entender direitinho que isso aqui tá caótico, a gente precisa…” Ah, CUFA Brasil já tava conectado. E aí que eu comecei a trabalhar, sabe, junto com a CUFA.
P - Isso quando?
R - Isso foi um mês depois da enchente. Meio mês, meio mês. 15 dias depois. Eu não consigo ficar parada, gente. Se eu ficasse parada, eu ia enlouquecer. Então eu comecei a trabalhar. Literalmente, a gente começou a trabalhar. E nessa ainda, claro, reconstruindo a casa. Foi muito importante a ajuda que eu ganhei da CUFA. Eles foram lá na minha casa, a Clenir e a coordenadora lá de Guaíba foram lá na minha casa. “Tá aqui o colchão pra vocês, porque a gente sabe que esses colchões não secaram muito bem” E sempre com uma leveza, eu acho que as mulheres da CUFA, incrivelmente fodas ajudaram muito e é isso. Eu basicamente ficava um turno em casa ali ajudando toda a questão e de tarde eu ia pra CUFA, porque... Sabe o que é achar felicidade no meio de tudo isso? Era muito louco. A gente ia pra lá e eu chamei uma amiga minha que também tinha perdido tudo, que também é mãe solteira. Chegou lá, ela não tinha onde deixar a Catarina. E a Catarina ficou com…
P - Catarina era?
R - A filha dela. Ficava com a gente lá no centro de distribuição, separando doação. E a gente começou a achar felicidade nesse caos. Então, a gente começou a encontrar os amigos e eu chamava todo mundo pra lá. Porque, imagina, chegavam carretas de doação. E aí, “tem que fazer corrente humana”. E aí: “Pessoal, quem consegue estar lá no CIEP meio-dia?” E foi onde eu comecei a encontrar a leveza de novo, encontrar os amigos, fazer amigos novos, porque a CUFA me trouxe muita amizade. E aí a gente foi se conectando, as pontes se liberaram, eu consegui sair da minha cidade e conheci o Júnior, conheci a equipe da CUFA e aí comecei a trabalhar de fato nessa campanha, que foi uma campanha extremamente importante. Com o tempo a gente perde informação também. Então eu não sabia mais o impacto que tinha sido aqui na região metropolitana, que estava no Vale Taquari, que estava lá no sul do estado. E aí eu comecei a entender direitinho, gente, que foi literalmente a questão de vida… Em Canoas, que é uma cidade aqui próxima, foi... As pessoas estavam em situação crítica, porque o que estourou e a rapidez que estourou lá no meu bairro de manhã. Em Canoas foi de madrugada, então estava uma situação horrível. E as pessoas que estavam ajudando lá era a CUFA, que estavam lá em Canoas na madrugada. Porque é isso, a CUFA está dentro das comunidades, dentro das favelas. Então, estourou ali, é eles que vão conseguir estar na ponta, realizar resgates. Foi uma cidade muito... Depois, se vocês puderem pesquisar sobre o que aconteceu em Canoas... De madrugada, sabe? As pessoas entrando água, e como é que resgata? Porque cai a energia no breu. Como é que resgata as pessoas? Como é que vai salvar as crianças? Então teve muito... Os pescadores foram muito importantes. Até na CUFA a gente tem, lá em Rio Grande, trabalha em colônias de pescador também. E foi isso, sabe? Aí eu consegui sair da região metropolitana, consegui sair de Guaíba e entender o cenário. E aí a gente começou a planejar essa campanha, que foi uma das maiores campanhas do país em termos de arrecadação. A CUFA se descobriu uma força de logística. Porque eles conseguiram organizar, é fantástico. Foi aberto o UCD em Esteio, que foi um lugar que não foi água estrategicamente, e eram carretas chegando dia e noite, todos voluntários, gente. Ninguém estava ganhando um real, e as pessoas trabalhando dia e noite. Essas mulheres aqui também trabalhando dia e noite nas suas cidades, e era aquilo. Eu era uma pessoa que tinha sido atingida e estava trabalhando dia e noite, pela reconstrução. Então, a gente não parava. E aí aquilo vai te dando uma ânsia, quando tu vai entendendo a proporção e o descaso que estava acontecendo, vai te dando uma ânsia, uma vontade de, “não, eu consigo ajudar de alguma forma”. E aí a gente fez essa campanha. Então, a minha parte de comunicação foi voltada. Eu saio de uma... Eu saio do... Fiquei uns bons anos trabalhando no mercado publicitário, meio sem... É muito marqueteira, muito capitalista. E aí, do nada, eu vejo que o meu trabalho pode fazer diferença. Porque aí eu me conectei com o pessoal do Brasil, eu fazia vídeos, eu enviava, a gente começou a comunicar pro mundo que não é só baixar água e tá tudo bem, vocês não tem noção do que aconteceu aqui. E aí a comunicação foi muito importante. Foi uma campanha que a gente fez também com os artistas. A CUFA Brasil conseguiu conectar com diversos artistas, todos globais. A gente conseguiu doações internacionais, veio doação do Canadá. Por isso que hoje eu mergulho muito da minha profissão, porque uma época eu estava muito vazia, capitalista. Hoje eu entendo a força que tem. E a força da CUFA, é bizarro o quanto esses caras entendem de logística, o quanto eles conseguem dialogar e entrar dentro d'água. Claro que com o tempo a gente conseguiu adquirir EPI, mas onde é que comprava EPI sendo que não tinha nem luz nem água? Eles entraram com o corpo dentro d'água. E muita gente não tinha, podia ficar dentro de casa compartilhando o post na rede social, mas não, eles saíram de dentro de casa, os meninos dormiam no UCD, porque não tinha como estar indo para Porto Alegre, para Santa Maria, para as outras cidades. E aí foi se criando uma família. Voluntários com sangue nos olhos de ajudar. E dia e noite: “Vamos, descarrega e vai que tá chegando mais e vamos compartilhar mais porque as pessoas precisam ver o que tá acontecendo”. E aí foi se fazendo trabalho. Foram mais de 4 mil toneladas arrecadadas e distribuídas em todo o estado. E aí a gente começa a perceber, não foi só a favela que foi atingida, foram muitos lugares que inclusive tinham condições de renda, mas que as pessoas agora não tem nada. Então a CUFA era muito isso: “Enche o caminhão, vamos distribuir lá”, e era o que as pessoas comiam no dia, sabe? A campanha SOS RS da CUFA, ela mobilizou mais de 4 mil toneladas de doação e foram abertas mais de 100, que era o que eu estava falando, mais de 100 cozinhas comunitárias em todo o estado. Porque é isso, tu volta pra casa e o teu fogão está entupido de lama, tu não tem como comer, gente. “Ah, vai ficar ganhando quilo de doação” “Vai ser muito bem-vindo, muito obrigada, mas no momento não tem como comer”. As cozinhas comunitárias foram muito bem-vindas, feitas por essas mulheres aqui também, que botavam o mano na massa, traziam os filhos junto, tudo na volta e faziam comida e isso foi muito importante. Aí fazia comida, começava cedo da manhã descascar coisa, fazia comida e distribuía nos abrigos, distribuía na rua para as pessoas que estavam voltando a casa. E é muito exaustivo limpar a casa de enchente, é muito exaustivo. “Meu Deus, o que eu vou comer?” Então a CUFA foi uma que chegou, a moça chegou lá, eles entraram na minha rua e isso eu nem conhecia o que a CUFA fazia ainda. Eles entraram na minha rua e saíram distribuindo marmita. Aí o Bruno viu, foi lá, buscou marmita. E é o que tu come, reabastece as energias e volta a limpar aquela lama. Então, assim, teve uma preocupação com cada detalhe. E eu acho que essa questão da comida é muito importante. Porque aí tu vai fazer o quê? Tu não tem dinheiro pra comprar pão pra comer, enfim. E aí isso a gente foi ganhando. Então teve uma preocupação primeiro com a parte de alimento, mas aí depois as pessoas estavam voltando, a maioria das máquinas estragadas, vamos abrir lavanderia comunitária. “Como se abre lavanderia comunitária?” Foi bem assim a reunião, “como é que se abre?” “Que parceiros a gente precisa?” “Para quem a gente precisa pedir?” “Vamos”. E a CUFA é isso, a CUFA põe a cara a tapa. E aí eles conseguiram viabilizar diversas, foram mais de 15 lavanderias comunitárias.
P - E você participando dessas reuniões?
R - Tudo, tudo. A gente foi do nada, uma loucura, do nada. Eu nem sabia a capacidade, o que era CUFA direito, sabia a importância da culpa dentro do Brasil, mas não sabia que no Rio Grande do Sul, é isso. Aí a gente foi abrindo essas lavanderias, e aí filas, gente, filas de pessoas pra lavar suas roupas, e a gente, a lava seca e é produto bom, então, é aquilo. No inverno, o inverno que é muito úmido, então as roupas não secam, e tudo isso foi, eram reuniões, que era , “qual que é a necessidade de hoje? A necessidade de ontem a gente atendeu, e hoje? Hoje a lavanderia, amanhã o quê? Tá, as pessoas voltaram para as suas casas, tem alimento, mas as crianças não têm material escolar”. E aí lá vai a CUFA atrás de parceria para material escolar e a gente arrecadou muito material escolar, gente. Eu lembro que eu fui cobrir uma vez que a gente fez as mochilas, né? Então as mochilas com material. E eram várias mulheres, homens também, montando as mochilas e a gente botava em caixas, enchia no caminhão e ia para as comunidades dar para as crianças. E aí é os detalhes que às vezes as pessoas esqueciam. Imagina tu voltar para a escola e não ter onde escrever. E as escolas atingidas também. Então a gente teve esse trabalho de doar material escolar, foi muito importante também. Logo depois a gente recebeu de um parceiro também os livros. Então a gente conseguiu abastecer bibliotecas de várias escolas. Foi muito importante. Aqui a gente estava lotada de livros. E a gente conseguiu distribuir também para as escolas, para as bibliotecas da região que foram perdidas. Mas assim, como eu disse, a CUFA dia e noite procurava... Dava um check-in e procurava pra sanar a necessidade e quais pessoas precisariam. E aí, com a água baixou, as pessoas estão em casa, a gente conseguiu apoiar. “O que precisa agora?” “A gente precisa…” Muita gente perdeu... Aqui tem muito potencial empreendedor. Então, muitas pessoas não tinham mais como empreender, perderam equipamento. Então, a gente começou com os cursos de geração de renda, que era o que eu estava falando para vocês, que são cursos onde é totalmente gratuito, as pessoas aprendem e saem com esse conhecimento. Então, a gente teve curso de gastronomia, teve curso de diversas áreas. Teve também a questão que a gente conseguiu de mapear direitinho esses empreendedores e teve também, em certo momento, a gente pensou: “Tá, e os comércios do bairro, eles vão fechar, né? Quem sabe em vez de agora dar a cesta básica, vamos continuar dando o que a gente está recebendo, a gente vai continuar dando, mas vamos tentar viabilizar cartões para movimentar a economia”. Então foram mais de 21 mil cartões Vale-Refeição doados em todo o Rio Grande do Sul e aí esses cartões, era o comércio local rodando. Então a gente conseguiu... E também tem a questão de necessidade especial, né? Muitas mães precisavam de um leite especial. Ou a gente tem que ser cesta básica e não tem proteína. Como é que vai comprar proteína? E aí com o cartão da CUFA foram... Foi muito importante. E é aquele foco sempre em mulheres. Então a gente distribuiu para as mães de família. E o cartão tinha algumas restrições. Não podia comprar bebida alcoólica, por exemplo. E foi uma coisa muito importante. Então, o tiozinho ali da esquina, que tinha um mercadinho, já começou a movimentar. Teve um mercado, se eu não me engano, em Santa Maria, que fica mais para o meio do estado, que o mercado deu recordes de venda, deu fila das pessoas vendendo. É muito louco a gente pensar que numa reunião boa... E se a gente fazer isso? O impacto que tem lá. E essa rede de apoio da CUFA, essa rede de pessoas da CUFA, sem elas, sem esse potencial, a gente não teria conseguido tudo isso. Então, até hoje, isso. E aí a gente começou a personalizar programas agora, vão ter mais cursos. É uma campanha que não para. Depois eu fui entender direitinho como que a CUFA estava trabalhando. Foram três anos. Na primeira enchente, eles foram para o Vale do Taquari. Eles estavam lá. Eu não sabia, mas eles estavam lá e ajudando e do lado das pessoas. E aí eles conseguiram várias doações. Em 2024 foi tudo isso que eu falei pra vocês, mais de 4 mil toneladas de doação. E aí as coisas foram acalmando, mas a CUFA não foi parando. Sempre com curso, com as lavanderias abertas. A gente não conseguiu fechar nenhuma lavanderia, gente. É incrível, assim. E aí, de novo esse ano. Começou a chover muito. De novo, e a gente naquele negócio: “Será que vai vir aí?” “O que a gente faz?” E aí, de novo, as enchentes, graças a Deus não chegou, não foi na proporção do ano passado, então não chegou no meu bairro, mas semana passada eu tava dentro d'água ali, a gente tava fazendo ação de entrega de doação. Tem lugares que as pessoas realmente ficam ilhadas. Sem ter o que comer de novo pelo terceiro ano consecutivo. E graças a Deus a gente tá conseguindo sempre se mobilizar, a CUFA tá sempre nesse terceiro ano consecutivo ao lado. E é muito, muito bizarro, que essas coisas continuam acontecendo. E aí, dentro dessas reuniões que eu falei pra ti, teve essa questão: “Tá gente? Essas enchentes vão sempre continuar? O que a gente pode fazer?” E aí foi criado o Escritório de Resiliência Climática, que o Júnior anunciou, o Júnior Presidente da CUFA anunciou lá na COP 29, que é um escritório onde busca soluções. A gente pode fazer mais do que a gente está fazendo, que é procurar soluções de como isso não acontecer mais. Ou mitigar a questão climática. E esse escritório de resiliência climática começou isso em fevereiro, gente, muito bizarro. Desse ano, a gente fez uma pesquisa entrando em várias comunidades que foram atingidas pelos enchentes e perguntando. O questionário tinha várias perguntas, mas perguntas como: “Se acontecer de novo, você sabe o que fazer? Tem rota de fuga? O que foi feito?” Essa pesquisa está disponibilizada no nosso site, mas a gente entendeu que mais de 90% das pessoas não sabia nem para onde ir se a água batesse de novo e nem o que fazer. E aí, dois meses depois dessa pesquisa, bate água de novo. E as pessoas continuam não sabendo pra onde ir e nem o que fazer. Então, a CUFA tem tentado dar voz pra isso. A situação de “é uma realidade”. Não foi um evento isolado. 2023 não foi isolado, a gente achou que seria. 2024 foi bizarro e não foi isolado. E aí 2023 acontece de novo, numa proporção menor, mas acontece. E se acontecer de novo naquela... Se mais vidas esse ano, se eu não me engano, 5 ou 6 pessoas faleceram em decorrência das enchentes. É, não foram eventos isolados, continua acontecendo e as pessoas continuam não sabendo o que fazer. Gente, não tem como sair dessas casas. Eu sou uma que penso muito assim: “Eu preciso me mudar. Eu não posso ficar nessa área porque era um bairro muito bom, mas a gente precisa se mudar”. Mas não é fácil, não é fácil se mudar. Eu acho que o Brasil talvez deva assistir, algumas pessoas devem assistir. “Por que eles estão sendo alagados?” Não tem como simplesmente mudar 34 mil pessoas que moram no meu bairro para outros lugares. Então, como é que a gente faz para essas pessoas saberem o que está acontecendo? Dar tempo de se salvar, dar tempo de salvar seus pertences. E a CUFA tem trabalhado sem parar para isso. O Escritório de Resiliência Climática foi contratado a estatística, a gente está aprimorando a equipe para trazer soluções, exatamente, para viabilizar soluções e parcerias para que a gente não fique só dando doação, para que seja mais que isso. Então é um projeto que ele continua em andamento. Depois a gente fez um lançamento no South Summit de um relatório que também foi feito com as comunidades em parceria com a SICT e com o Regenera, que a gente entregou nas mãos do governador, um relatório que mostrava a realidade dessas comunidades. Então, a gente continua fazendo e o que der, para aparecer, o que tiver de ideia, que a gente possa viabilizar, a CUFA vai continuar fazendo.
P - Eu só queria te perguntar, voltando algumas coisinhas, quando vocês vão para Terreira, você logo vai para o abrigo fazer voluntário?
R - Isso.
P - Como era o seu dia a dia? Você voltava para sua família, como que era o dia a dia lá com essa outra família que virou agora sua família também, estendida. Enfim, como foi essa convivência com outras dinâmicas familiares?
R - Eu fiquei dois dias sendo voluntária. Depois voltei a ser voluntária na CUFA. Porque dois dias, que foi o quanto eu esperei a ficha cair, mas tu entrar dentro, sempre, infelizmente, vão ter pessoas em situações mais difíceis que a tua. Então, tu vê as crianças dando jeito de brincar com o que tem, os pais preocupados, pessoas acamadas, gente, é muito triste ver isso. É um ginásio... Toda vez que eu deitava no colchão e olhava pro teto da terreira, eu agradecia por não estar olhando pro teto do ginásio. Porque é muito triste isso. O barulho, tu não tem mais privacidade. As meninas ali. A CUFA abriu o abrigo somente para mulheres. Porque a gente começou a ter registro de assédio, de abusos. Então, é uma insegurança gigante para quem estava dentro dos abrigos municipais. Graças a Deus eu tive o privilégio de não estar em abrigo, eu estava entre famílias. A terreira, como eu te falei, acolheu minha mãe um ano antes, era também da minha família. E aí teve essa segunda família que eram filhos deles também, então a gente estava muito próximo e, graças a Deus, confortáveis. Então é engraçado que a parte logística, depois eu comecei a entender isso na CUFA, mas as coisas começaram a faltar nos mercados. Então eu lembro que uma vez a gente brincou: “Essa vai ser a nossa última salada, não tem mais batata para comprar no mercado”. A gente se ajudando, mas rindo, a gente fez isso rindo, sabe? “Essa é a nossa última salada, a partir de amanhã é arroz e feijão”. É isso, sabe? O Guaíba ficou isolado, as pontes estavam totalmente viabilizadas. Mas assim, sempre com leveza, que era a situação ali com a outra família, sempre com leveza. A gente fez amizade e esse menino não tinha a minha idade, então graças a Deus... Aí a gente saía... Aí no dia já não aguentava mais ficar lá e nessa situação. “Vamos comprar um latão?” Aí a gente foi numa esquina comprar um latão e foi nisso, sabe? De novo, a minha história toda nunca foi sozinha. Eu fui sempre com pessoas pra ajudar a deixar mais leve a situação, mas sempre com aquilo em mente. Infelizmente, a gente tava separada, daí depois eu consegui trazer minha irmã pra passar uma tarde comigo, mas aí o que eu fiz também? Eu peguei, minha empresa mandou dinheiro, eu fui no mercado e comprei esmalte e mandei pra ela. Eu disse: “Mano, vai pintar tuas unhas. Para com isso, vai pintar tuas unhas” Aí depois eu liguei pra uma amiguinha dela: “Lari, tu não consegue… Por que não faz uma festa de pijama aí com a Isa?” Porque ela não foi atendida pra enchente. Então, estratégia. Acho que o povo que vende de favela, de periferia, de comunidade é estrategista, a gente consegue tirar... É preocupante não ter mais salada, mas a gente tava tudo rindo. E o que dá, a gente faz, sabe? Isso foi muito importante. Mas a situação dos abrigos, e isso continua sendo uma ‘preocupância’, sabe? É muito difícil pra quem tava lá, as pessoas estavam... E é aquilo, talvez as primeiras noites as pessoas dormiram separadas, filho separado dos pais, e chovendo muito, gente, é muito bizarro, assim, é triste.
P - Hoje você trabalha, então, com esse projeto todo que segue pós-enchente?
R - Não para, faz três anos. A CUFA não parou de trabalhar todos os dias. Claro, quando bate enchente é dia e noite, mas todos os dias a gente trabalha em função das enchentes. Como vocês podem ver aqui, os lugares que faziam oficinas de balé também, ali no cantinho a gente vai deixar um pouco de doação, porque mais tarde a gente vai entregar para o pessoal da comunidade. Então, a gente realmente não parou em nenhum momento. Acho que em novembro e dezembro as coisas ficaram mais leves, a gente começou a olhar para outros projetos, como a Expo Favela, que foi um projeto que é uma feira de empreendedorismo, mas sempre, sem esquecer das enchentes, sempre falando e voltando para a discussão que isso aconteceu. E será que vai acontecer de novo? E aconteceu de novo. E a preocupação é esse chover, mas que vem de novo. O que se faz, gente? Será que é minha prefeitura? Porque... E aí eu fiquei fissurada em entender o que estava acontecendo. Então, quantos metros é preocupante que o rio vai atravessar uma cidade e outra? A gente precisa de dados. E a CUFA está preocupada com isso, mas a gente precisa de mais dados, precisa entender a situação do nosso estado. É um estado que virou... Um dos primeiros estados que eu acho que tá sofrendo com recorrência com a crise climática, mas infelizmente isso vai ser o planeta inteiro, né?
P - Vocês hoje, você que tá na comunicação e consegue conversar com muitas pessoas, inclusive na ponta, vocês conseguiram... Quando a coisa ficou um pouco mais tranquila, ou ficou mais tranquilo? Deu pra voltar pra alguma normalidade, entre muitas aspas?
R - Eu acho que sim. Quando tu passa por um trauma, ele tá sempre ali. Acho que dá pra ver no fundo dos olhos das pessoas que tá ali a preocupação. Tu não olha pro rio da mesma forma. Rio era muito legal, eu achava um máximo que aqui a gente não... A gente sempre era banhado por rio. Ninguém olha mais pro rio da mesma forma. Tu não olha mais pra parede da tua casa da mesma forma. Ontem minha mãe tava procurando uma coisa que a gente perdeu na enchente. E aí a memória, sabe... “Ah, e aquela concha de pegar feijão?” “Não, mãe, essa gente chegou fora”. Tu vê no dia-a-dia das pessoas isso, então não tem como descolar essa tragédia da realidade. Se fez um novo normal, isso se fez. Acho que quando as chuvas passam, o calor vem, a gente consegue pensar em projetos novos, a gente consegue olhar um pouco pra frente, mas não dá pra dizer que voltou à normalidade. Se faz um novo normal... Acho que a favela consegue criar novos normais sempre e tirar a potência das situações, mas lá no fundo a gente entende que aquilo foi perdido ou que tem mais três parcelas do meu guarda-roupa, talvez, para pagar. Então, nas nuances que a enchente, que a tragédia continua, mas com muita criatividade o nosso povo segue tentando sobreviver.
P - E o namoro, você quer falar desse?
R - Eu não sei se a gente vai pra frente, não sei, mas eu fiquei um tempo solteira, né? Depois eu pensei assim: “Vou ter que aproveitar a juventude, né?” Fiquei um pouco aí, aproveitei bastante, e aí a gente voltou, a gente ficou um tempo sem se falar, porque eu tava namorando na época da enchente. E na época da enchente a gente não teve nada. A gente só foi amigo, mas no fundinho tinha aquele interesse. E aí eu nunca mais falei com ele, eu falava com a mãe dele. Falava: “E aí, conseguiram comprar as coisas pra casa?, porque ele foi atingido. Aí depois eu terminei meu relacionamento no final do ano e aí fiquei um tempo solteira e aí: “Ah, eu vou seguir esse menino”. Aí eu segui ele e a gente começou a sair e é aquele negócio, saía no final de semana e no outro queria sair de novo. E agora a gente tá no início de namoro aí, eu mostrei a foto pra elas. E a gente tá se conhecendo. Se curtindo ainda. É muito engraçado pensar, eu brinco com ele: “Eu te vi todo molhado de enchente pela primeira vez e com colete” porque ele saiu muito tarde da casa dele, eles ficaram até de noite tentando salvar as coisas e eles tiveram que ser resgatados. Ele acabou mergulhando dentro da água de enchente e aí eu sempre brinco com ele: “A primeira vez que eu te vi, tu tava encharcado de água de enchente e a gente limpou” Então virou uma família, e aí a partir daí surgiu uma amizade e depois agora a gente tá namorando, vamos ver onde vai, né? Mas é isso.
P - Mas tá feliz?
R - Tô feliz, né? Tô curtindo bastante.
P - E aí você quer, não sei, você quer falar mais de alguns projetos aqui da CUFA? Você estava me contando daqui da Alvorada também.
R - Sim.
P - Mas onde você trabalha, como é seu dia-a-dia, se você sempre está cobrindo eventos ou não? Se você puder contar um pouquinho.
R - A CUFA é incrivelmente grande. A gente tem muitos projetos, muita coisa acontecendo. A CUFA está situada em 200 cidades do Rio Grande do Sul. É uma abrangência bem boa, entendendo o tamanho do território. E aí acontece muita coisa. Quando fui adentrando, eu trabalhei como freela da CUFA por muito tempo. Primeiro fui voluntária e eu pensava “não posso perder meu serviço”, que é o home office naquela agência que eu te contei. E aí trabalhava de dia pra agência e de noite pra CUFA. De dia pra agência e de noite pra CUFA. E aí a gente fez a Expo Favela e o Júnior: “Tá, e aí? Quando é que tu vai pedir demissão e ficar 100% com a gente?” “Não sei!” Aí ele fez a proposta pra mim, aí eu fiquei com aquilo no coração, porque na CUFA eu achei o propósito da minha profissão, que é ajudar pessoas. Logo quando eu voltei pra rotina da agência, eu tava discutindo sobre flyer com uma gerente de marketing lá de São Paulo, enquanto a minha casa não tinha coisas. Então eu ficava assim... “Cara, isso aqui é muito vazio. Eu não sei mais se eu... Acabei de me formar”, foi um mês depois da minha... A gente foi um mês depois da minha formatura. “Acabei de me formar e não tenho um propósito” E aí, a CUFA veio, foi uma coisa de Deus. A CUFA veio pra trazer o fôlego que eu precisava pra... A paixão pela minha profissão. Então, eu comecei a ver que tinham formas, mas eu entrei e aí eu com... “Peraí, eu preciso conhecer essa gente”. Então eu chamei todos os líderes, fui entendendo o tamanho. E no dia a dia a gente não para, a gente trabalha bastante pra fazer diferença. Eu trabalho ali no centro de Porto Alegre, que é um escritório que é mais próximo da minha casa, mas eu vou dizer que eu viajo bastante. Agora eu tô tirando a minha carteira porque sexta eu tava em Sapucaia, no outro dia eu tava na Restinga e hoje eu tô em Alvorada, a gente não para, sabe? É um centro logístico, claro, do coração ali de Porto Alegre. Aí tem um evento lá em Frederico Westphalen, o pessoal fica quatro horas e tudo em prol da comunidade. Eu não trabalho mais com coisas vazias. Todo mínimo projeto que cai na minha mesa tem um propósito gigante e é muito incrível. A gente fez a Taça das Favelas, que é um campeonato esportivo para as favelas e é muito incrível. Foi exaustivo, gente, é muito louco. A gente foi para o estádio cedíssimo e eu sem comer nada, porque eu me dedico muito, mas no final do dia, quando eu vi o guri lá da Bonja, que é uma comunidade de Porto Alegre, levantando o troféu e a mãe chorando junto com ele. Gente, eu faria tudo de novo. E aí eu comecei a ter esse negócio da profissão, porque eu curto muito. Eu adoro quando eu venho aqui na formatura das gurias da Alvorada e tá a filha tirando foto da mãe e as gurias fazendo homenagem pra professora de culinária, a professora do boxe também recebendo homenagem e a gente assistindo ela. É uma família, sabe? E aí ver o meu trabalho, que às vezes é muito estressante, às vezes estressa, mas ver que faz diferença ali e chegar aqui e ver a história, ver que eles estão fazendo inscrição num curso que a gente pensou lá e daqui a pouco esse curso... E a gente faz inscrição e agora vai lançar, por exemplo, teve um curso que são 2.200 vagas, teve mais de 21 mil pessoas inscritas. Então, demanda tem. Por isso que a gente não para. A CUFA não pára, assim, a gente tem duas mil vagas, então mais de 18 mil pessoas estão querendo fazer curso, vamos correr e vamos criar o próximo, qual que é a fase 2? Então a gente segue. É muito, muito importante e são muitos projetos, assim, eu fiz o nosso portfólio há um tempo atrás e é muita coisa, gente. Tem a Expo Favela que eu falei, que é de empreendedorismo, que é incrível também, que a gente levou 10 empreendedores para São Paulo, eles andaram de avião pela primeira vez, um inventor negro aqui do Rio Grande do Sul, que fez um drone para salvar na enchente, foi para São Paulo, participou do “É de Casa”, então é ver o impacto. Ele fez um drone na garagem de casa, ele é um engenheiro formado... Construiu um drone. E esse drone, ele é feito agora, quando ele tiver investido, vai ser pra salvar e levar doação. E aí a gente, a Expo Favela é pra isso, a gente procura empreendedores que não vão conseguir, gente, nos meios do mercado, startup, essas coisas. Então a gente procura empreendedores, traz para a ponta aqui, conecta com o asfalto, conecta com investidores. E aí esse foi um que se destacou muito. Então eu consegui, eu fiz o trabalho de assessoria de imprensa junto com o pessoal da CUFA Brasil. A gente conseguiu botar ele no Jornal Hoje, conseguimos botar ele em voga. E aí depois levamos eles pra São Paulo, pra Expo Favela Nacional. E lá ele ficou entre o top 10 do Brasil, sabe? E aí depois participou de casa, então... São trabalhos... Se eu ficar aqui, eles tinham que reservar dois dias pra eu começar a falar dos cases, assim, porque é muita gente. Esse empreendedor é um case, o menino lá que levantou a taça é outro, e assim por diante, sabe? Mas a gente tem muito projeto mesmo. Tem projeto no interior do estado também, que é muito importante. Porque tem comunidade que não tem nada, que não chega. Algumas políticas públicas não chegam no interior do estado e a CUFA tá lá. Então a gente faz oficina sociocultural também no interior do estado. E tem, por exemplo, um menininho que tava lá e começou a fazer aula de judô e daqui a pouco participou de competição. Tem muito case assim. O meu maior sonho aqui pra CUFA é que tudo isso cresça, porque o nosso trabalho atinge muitas pessoas, mas tem muitas pessoas precisando ainda, sabe? É isso.
P - Você comentou rapidamente que sua mãe voltou para os estudos, você vai falar disso?
R - Ah, sim! Então, dentro desse processo de tratamento de depressão, eu comecei a pensar junto com ela, conversando: “O que a gente perdeu aí? Os filhos estão criados, tá aí, todos eles, menos a Isa, namorando e agora? E tu?” Eu levava ela muito no salão: “Olha pra essa mulher, o que que falta?” E aí ela teve que parar de estudar porque não tinha passagem na época e não finalizou o ensino médio. E aí eu pensei: “Tá mãe, e profissão? O que que tu quer fazer?” E ela disse: “Vitória, nossa família adoeceu. Eu sempre cuidei de todo mundo. Eu quero fazer enfermagem. Eu cuidei da tua avó doente, cuidei do teu tio doente. Eu já cuidei de uma tia tua doente”. E eu: “Tá, então vamos fazer”. Aí a gente descobriu um curso em Porto Alegre, que ele é o EJA com o técnico de enfermagem, e agora ela tá fazendo. Eu até postei uma foto semana passada dela com o jaleco, que veio com o nome dela. E ela tá muito feliz. É difícil. Eu sempre falo: “Mãe, é normal ter dificuldade depois de 20 anos sem estudar. Muito tranquilo”, mas ela tá muito realizada E é isso que eu sempre falo: “Uma hora tu vai ter que olhar pra ti, tu vai ter que olhar pra ti porque... Volta a namorar, quem sabe? Os homens não são todos ruins, tem muito homem ruim aí, e tu tem um dedo podre, mas vamos mudar isso” E aí é isso, agora ela tá estudando. Claro, como eu sempre digo, “tem dias melhores e dias piores”, mas ela tá bem melhor.
P - E você tá na casa... Você mora com ela?
R - Sim, eu moro com ela. Pretendo, daqui a um tempo... Eu quero muito realizar o sonho de comprar a casa própria. Porque morar de aluguel é bem difícil, gente. Mas eu quero dar a casa pra ela. Então, depois que eu der a casa pra ela, eu vou seguir o meu sonho. Eu falo: "Mãe, eu sou passarinho, eu tô aqui contigo agora, a Isadora vai crescer um pouquinho, eu quero sair daqui, eu quero conhecer o mundo, eu quero conhecer o resto do Brasil, né?” A CUFA é gigante, quem sabe eu não vá conhecer outras CUFAS também, mas assim, eu tô com ela agora e as coisas estão melhorando, graças a Deus, e eu acho que eu sempre falo, é muito importante recurso, né? Hoje, graças a Deus, com o recurso que eu tenho, eu consigo pagar o tratamento ideal pra ela, que ela tem pago o curso dela também em Porto Alegre. Então, assim, sem nada disso, se eu não tivesse estudado lá, feito o primeiro Enem, conseguido... Nada disso seria possível, então é mentira quem fala que dinheiro não traz felicidade, graças a Deus tá trazendo leveza pra minha família, a gente se preocupa menos com o que tem que comer e consegue... Eu levo eles no cinema, a gente aproveita a vida e agora ela tá bem melhor também. Mas é isso.
P - Vou aproveitar e perguntar dos seus sonhos?
R - Nossa, eu tenho muitos sonhos. Eu quero mais, assim, eu quero mais da vida, então eu quero viver com leveza. Eu sou 220, então eu quero daqui a um tempo dar uma acalmada quem sabe morar na praia, mas antes disso eu quero fazer meu passaporte, eu decidi também fazer meu passaporte, quero viajar para fora, os meus sonhos para mim. Quero começar a dar aula, então eu penso em fazer mestrado e dar aula em ensino superior também, e talvez escola. Aí a CUFA, é muito engraçado, eu tava com o Júnior uns meses atrás, lá em Frederico, e ele disse: “Tu vai dar uma oficina”. Eu disse: “Não, por quê?” “Tu vai dar oficina, tu vai dar essa oficina aí pra essas crianças”. E gente, eu parecia pinto (no lixo), eu não achei que eu ia dar aula tão cedo na minha vida. Eu dei oficina lá de comunicação para umas crianças, eu estava muito feliz. E do nada me atravessa uma coisa que eu sonhava lá quando era pequena, me atravessa aqui, e é isso que eu falo de Deus, dos caminhos, porque parece que... Não esqueci, eu não joguei fora esse sonho de dar aula, ele vai ser reconhecido ainda, e eu… Aí agora há pouco ele falou: “Te prepara que tu vai dar aula agora duas vezes por semana em Alvorada, em São Leopoldo”. Eu disse: “Meu Deus do céu, vai acontecer” Uma coisa que eu nem imaginava como. Eu abdiquei disso em prol de outras pessoas, mas eu vou conseguir cuidar. E claro, depois disso, depois de dar check em algumas coisinhas, em viajar, eu quero viver a vida com calma, cuidar de mim, quem sabe casar, ou não sei. Eu tinha um sonho de fazer um documentário com mulheres na América Latina. Talvez eu tire um dia da gaveta isso também.
P - E você gostaria de contar algo mais, alguma passagem, uma pessoa, algum momento que eu não tenha te perguntado, mas que você queira deixar registrado?
R - Ah, eu acho que eu falei tudo, mas eu gosto de frisar novamente a força das mulheres, a força das mulheres que me criaram, que aí eram as tias da igreja, mas também a minha mãe, muito, muito, muito incrível. Quando eu falei pra ela, mãe, eu vou registrar a nossa história, ela ficou muito ansiosa. Mas as mulheres da CUFA também, que me acolheram. Às vezes eu tô muito cansada, gente, muito cansada mesmo. E elas vêm com uma bolachinha na taça das favelas, que eu tava sem comer, e extremamente nervosa, porque eu queria entregar o melhor do... É muito louco isso. Agora eu quero entregar o melhor porque não é sobre mim. Não é sobre bater meta, kpi e nem nada. É sobre... Eu quero entregar porque isso vai fazer diferença. E elas estão sempre comigo. Então, se tem uma coisa que eu quero reforçar, que é as mulheres da CUFA. Elas são incríveis, elas movem fronteiras. Agora a gente estava aplicando uma pesquisa e, gente, não tem frio, não tem fome que pare essas mulheres, elas são inspirações pra mim. E a gente se cuida.É muito louco. Às vezes eu esqueço que eu também preciso de cuidado, então elas vêm e cuidam da gente também. A gente não para, a gente tá sempre junto. Se tem uma coisa que eu quero deixar no mundo é a força das mulheres e quanto elas movimentam tudo isso que eu falei assim de projeto sempre tem um dedinho de uma mulher, sempre tem alguém levando e cuidando e ajudando, e é isso.
P - E como foi pra você contar um pouco dessa história pra gente, lembrar algumas passagens, estar aqui hoje?
R - Ah, é muito louco parar, né? E tentar lembrar, e acho que é muito importante. Eu acho que... Eu venho de uma família... Eu não sei muito sobre meu passado, assim, não sei... A gente tem poucas fotos, eu não tenho muito... Como eu venho de família afrodescendente, tem essa questão do apagamento. Minha mãe casou com um alemão, por isso que eu venho branca. Mas ele... Não tem muita história. Tem muita gente que faz essa questão de cidadania. A gente não tem muita história, então eu fico muito feliz de poder registrar a minha história e aí a partir de mim, não sei se eu vou ter filhos, talvez não, mas a partir de mim vai ser registrado, entendeu? E aí eles vão saber da minha mãe, da Adriana, que foi uma mulher muito forte, vão saber de quem veio antes de mim. Eu quero que isso, que é a história, ela seja perpetuada, certo?
P - Querida, que delícia! Obrigada, obrigada por dividir tudo isso, essa vida toda grande. Foi um prazer te conhecer.
R - Obrigada, gente.
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