Francis Bacon, a arte do sublime
Por Angelo Brás Fernandes Callou
\\\"Viemos ao mundo com um grito
E muitas vezes também morremos com um grito.
Talvez o grito seja o símbolo mais direto da condição humana.\\\" (Francis Bacon)
Pela primeira vez, Francis Bacon aterrissa no Brasil para uma exposição individual. As carnes humanas de sua pintura estão dependuradas nas paredes do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em Francis Bacon: A Beleza da Carne, sob a organização de Adriano Pedrosa e Laura Cosendey.
Ao observar, de perto e a distância, os quadros de grandes proporções pintados por Francis Bacon (1909-1992), experimentei, involuntariamente, uma espécie de mergulho acelerado na memória, não condizente com os passos lentos que me levavam ao longo da sala da exposição.
Tudo o que havia visto com meus próprios olhos dos órgãos internos dos animais (dos humanos apenas ousei vê-los, por meio da exposição O Fantástico Corpo Humano, de 2014, com corpos reais plastificados), veio à baila durante a exposição: as carnes bovinas dependuradas em grandes ganchos no Talho Municipal de Pesqueira, na infância; ainda lá, a cena do sangue jorrando pela jugular de um boi sacrificado, colhido pelas mãos de uma mãe, que oferece uma porção ao filho, para fortificá-lo; as vísceras das galinhas abatidas em casa e, mais adiante, os peixes eviscerados por mim mesmo para estudo, quando aluno do curso de Engenharia de Pesca. Nunca mais quero ver essas cenas. Foram em demasia!
Mas nada disso foi suficiente para enfrentar A Beleza da Carne de Francis Bacon. As vísceras humanas, nas telas do pintor irlandês, arrisco dizer, só podem ser vistas pela arte ou, numa outra perspectiva, pela palavra, na psicanálise.
Bacon nos oferece com sua pintura uma espécie de lupa, ou melhor, um olhar sensível, capaz de enxergar, não as vísceras humanas propriamente ditas, essas por demais conhecidas nos compêndios de Biologia, mas os corpos sob...
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Francis Bacon, a arte do sublime
Por Angelo Brás Fernandes Callou
\\\"Viemos ao mundo com um grito
E muitas vezes também morremos com um grito.
Talvez o grito seja o símbolo mais direto da condição humana.\\\" (Francis Bacon)
Pela primeira vez, Francis Bacon aterrissa no Brasil para uma exposição individual. As carnes humanas de sua pintura estão dependuradas nas paredes do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em Francis Bacon: A Beleza da Carne, sob a organização de Adriano Pedrosa e Laura Cosendey.
Ao observar, de perto e a distância, os quadros de grandes proporções pintados por Francis Bacon (1909-1992), experimentei, involuntariamente, uma espécie de mergulho acelerado na memória, não condizente com os passos lentos que me levavam ao longo da sala da exposição.
Tudo o que havia visto com meus próprios olhos dos órgãos internos dos animais (dos humanos apenas ousei vê-los, por meio da exposição O Fantástico Corpo Humano, de 2014, com corpos reais plastificados), veio à baila durante a exposição: as carnes bovinas dependuradas em grandes ganchos no Talho Municipal de Pesqueira, na infância; ainda lá, a cena do sangue jorrando pela jugular de um boi sacrificado, colhido pelas mãos de uma mãe, que oferece uma porção ao filho, para fortificá-lo; as vísceras das galinhas abatidas em casa e, mais adiante, os peixes eviscerados por mim mesmo para estudo, quando aluno do curso de Engenharia de Pesca. Nunca mais quero ver essas cenas. Foram em demasia!
Mas nada disso foi suficiente para enfrentar A Beleza da Carne de Francis Bacon. As vísceras humanas, nas telas do pintor irlandês, arrisco dizer, só podem ser vistas pela arte ou, numa outra perspectiva, pela palavra, na psicanálise.
Bacon nos oferece com sua pintura uma espécie de lupa, ou melhor, um olhar sensível, capaz de enxergar, não as vísceras humanas propriamente ditas, essas por demais conhecidas nos compêndios de Biologia, mas os corpos sob a pele, em movimentos diversos de deformação, pela dor. Não uma dor orgânica, decorrente de uma perturbação ou alteração de um órgão, mas aquela imposta pela sociedade, pelo outro, ou pelo excesso do outro em nós.
Por algum motivo, diante dos corpos de Francis Bacon, veio à mente a exposição Corpos e Rostos, realizada no Masp em 2014, com as pinturas de Lucian Freud (sim, o neto de Sigmund Freud). O que ficou em mim da arte de Freud foi a solidão humana. Essa que vemos sem desfaçatez nos corpos e rostos que o poder público abandonou nas ruas do Recife, na Av. Paulista, nas portas do metrô, nas prisões subumanas, nos rostos das crianças em Gaza, sob bombas genocidas.
São desses corpos solitários ultrajados que decorrem as deformações que constituem e nos interpela a arte de Francis Bacon. Não pela beleza artística, sempre tão próxima dos códigos do observador, mas pela dimensão do sublime na obra de arte, contrário do belo, como se refere Kant. Isto é, o espanto e a admiração, simultâneos, a perturbação estética, um certo soco no estômago daqueles que buscam sempre o belo no objeto artístico. A arte de Francis Bacon não é bela, porém é a mais sublime.
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