Projeto CSP
Depoimento Antônio Wellington de Paulo Barbosa
Entrevistado por Luiz Gustavo Lima
São Gonçalo do Amarante, Ceará, 01/06/2014
CSP_HV_014_ Antônio Wellington de Paulo Barbosa
Realização Museu da Pessoa
P/1 – Primeiro, queríamos agradecê-lo por nos receber aqui na sua casa para essa conversa. Para começar, eu queria que você falasse o seu nome completo.
R – Antônio Wellington de Paulo Barbosa.
P/1 – Onde e quando você nasceu?
R – Eu sou nativo do Pecém e no dia 8 de novembro de 1976.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Maria Mercedes de Paulo Barbosa e José Wando Barbosa.
P/1 – Qual era a profissão deles?
R – Ele era pescador. Na época em que ele pescava ainda não tinha o porto, mas já estavam pesquisando - faziam a pesquisa e paravam por um tempo. Depois, voltavam de novo, e ficavam pesquisando. Eu trabalhei na pesquisa com esses caras por um tempo. Isso foi há uns nove, dez anos. Ele ficava lá no navio da Marinha. Eles fizeram uma torre e ficavam se comunicando para saber onde iriam lançar as bases de onde iria ser feito o porto. A perfuratriz ia furando. Veio uma da Alemanha para fazer a perfuratriz...
P/1 – Já vamos chegar nessa parte mas, antes, vamos nos concentrar na sua casa. O que a sua mãe fazia?
R – A minha mãe era dona de casa. Às vezes, o pessoal dava roupa para ela lavar e ganhar um dinheiro para ajudar na renda familiar. O meu pai saía para pescar de madrugada, três horas e só chegava final de tarde, às três ou quatro horas. Se tivesse o rango, comíamos. Se não tivesse, era só na hora que ele chegasse. O seu trabalho era pescar. Aqui não tinha construção. É uma coisa do terceiro mundo. Como hoje tem o hotel, naquela época não tinha isso para se trabalhar. Tinha o mar ou a plantação de roça. Não tínhamos serviços como temos hoje.
P/1 – É isso aí que queremos falar. Como era a vida nessa época, na sua primeira infância? Você falou que o seu pai saía de manhã.
R – Às três horas da madrugada para pescar.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Sim.
P/1 – Quantas pessoas eram na sua casa?
R – Na minha casa éramos em quatro irmãos.
P/1 – Poderia dizer o nome deles?
R – Um deles é o Antônio Manuel de Paulo Barbosa; a outra é a Antônia Vanessa de Paulo Barbosa e a Antônia Kelvin de Paulo Barbosa.
P/1 – Como é que era a vida de vocês quatro com a mãe e o pai?
R – O meu pai pescou por um tempo aqui e, depois, a jangada dele encalhou em outra localidade, chamada Paracuru, e por lá mesmo ele ficava pescando e trazendo o dinheiro e os mantimentos. Comíamos com o dinheiro que ele trazia com a rotina de trabalho. Estudávamos. A minha mãe lavava para ajudar no estabelecimento familiar. E, aqui, o resto era só estudar. Num certo tempo, o meu pai ficou para lá. Separou-se da minha mãe e não veio mais para cá. Aí ficou mais difícil. Abandonei a aula e fui pescar para poder trazer o meio de sobrevivência para dentro de casa, porque era difícil. Certos dias não tínhamos nada para comer. Muitos têm e não dão valor. Era muito difícil. Eu tinha nove, dez anos de idade.
P/1 – Como eram as brincadeiras de quando você era bem pequeno?
R – As brincadeiras eram a bila - jogava aquelas bolinhas de gude. Dava a maior araca, porque o cara não queria pagar a bila e saía. Era a maior confusão. Depois veio o pião. As brincadeiras foram essas.
P/1 – E já tinha brincadeira ligada à praia, ao mar?
R – Tinha sim. Eram a maioria. Quando não estava nessas brincadeiras, eu ia para a praia, com uma tabuinha desse tamanho, tomando banho. Sempre fui fascinado pelo mar. É difícil um nativo que mora na beira da praia... Se ele não cair no mar é porque não gosta de mar mesmo. Você sente, é outra vida, uma história. O mar é um meio de sobrevivência que você arruma. Qualquer hora que for você pega um peixe para comer. O cara coloca um negocinho desse e pega um quilo e meio ou, como já aconteceu comigo, pega dez quilos. Ontem um cara pegou oito quilos. Eu fui agora e peguei de um quilo e meio a dois quilos, só de manhã.
P/1 – E você lembra um pouquinho da origem da sua família? Como é que o seu pai conheceu a sua mãe? Você escutou alguma história dessas ou não?
R – Eles se conheceram na época em que eu tinha uns nove anos. Tinha os forrós. A maioria dos pescadores pescava até sexta feira e, no sábado, tinha esses forrós que era a diversão deles. O meu pai a conheceu lá no forró. Lá tem um contato, uma conversa, começa a dançar e tudo mais.
P/1 – E depois, eles se casaram?
R – Nessa época não existia casamento. Eles se ajuntaram. Conversaram e decidiram se juntar. Casamento era uma coisa muito compromissada. Naquela época, eles se ajuntavam e, se tivesse algum atrito, não tinha o problema com juiz, testemunha. Não deu certo, vai embora. Eu vou para o meu lado e você para o seu. Era uma coisa individual. Se for para arrumar testemunha o cara não vai (risos). Ele não quer se meter em problema de ninguém.
P/1 – E você falou que desde muito pequeno já tinha uma tábua que ia...
R – Uma tábua de madeirite.
P/1 – Como você conseguiu essa tábua?
R – Nas construções. De um período para cá, 1991, 1992, começou a ter construções. Aí, eu falei para um senhor: “Poderia me arranjar um pedaço da madeira?”. Ele perguntou: “Para que você quer essa madeira?”, “Muitos têm prancha, eu não tenho. Eu quero fabricar uma prancha de tábua”. Conhece esses tambores grossos de produtos químicos? Eu fazia o formato de uma quilha, furava o buraco e colocava duas quilha de plástico.
P/1 – Foi você mesmo que fez?
R – Sim. E esse negócio que passa aqui em cima, chamado parafina, ninguém colocava. Comprávamos uma vela e pingava na madeira. É porque a vela gruda. Saia pingando para não escorregar – esse era o segredo para não escorregar. E o pé pregava assim.
P/1 – Você se lembra da primeira vez que você viu alguém surfando e que te chamou atenção?
R – Já. Era um amigo meu chamado Toinho, que era tio desse cara que veio. Ele tinha uma prancha e era um cara um pouco preguiçoso. Ele combinava comigo: “Você coloca 40 baldes d’água”, porque na época tinha um olho d’água. Pra você ver: o que não se faz na adolescência para poder conseguir um brinquedo. “Você vai e coloca 20 baldes d’água ao meio dia e, à tarde, coloca mais 20”. Buscava no local e trazia a água para ele. Eram 40 baldes d’água durante o dia para ele liberar a prancha (risos). Olha como ele era aproveitador! Não podia emprestar: “Vai lá, a prancha é sua”. Ele não emprestava. Só se o cara trabalhasse e desse duro. Eu comecei a me habituar com a prancha e já senti uma sensação melhor do que a tábua, que é um pouco pesada e encharca. Passei a surfar. Eu tenho dois apelidos: a negada me chama de Metrô e Onça, porque, no mar, viu, sou fora de série. Dou o melhor de mim.
P/1 – Você falou que estudou. Como era essa escola?
R – Era uma escola, assim...
P/1 – Você lembra o nome da escola?
R – Não. Logo no começo, contratava uma senhora que dava aula para dez, 15 meninos. Depois, foi evoluindo e teve a escola. Tínhamos que ir e, às vezes, eu não queria ir porque era meio problemático, dava confusão. Era aquela coisa. O cara se afastava. Mas a professora vinha e tinha que voltar. Hoje não se pode ficar sem estudar. O que eu perdi lá atrás está fazendo a diferença hoje. Meu estudo foi muito pouco. Quando o meu pai se separou da minha mãe, tinha que ter uma pessoa para manter a casa. Eu fui essa pessoa para manter a casa.
P/1 – Queria que você contasse melhor essa história da separação dos seus pais e você tendo que parar de estudar. Quando que foi isso, qual a sua idade e como foi lidar com essa situação?
R – Foi uma situação constrangedora. Ele se afastou e ficou lá em Paracuru. Foi uma briga entre o casal. Não deu mais certo. Ela arrumou esse cara que vive até hoje e meu pai viveu um tempo lá, com o tempo se envolveu com uma mulher lá, o cara foi e matou ele. O cara matou ele por causa de ciúme, né, que a mulher tinha se separado do cara, ele foi, se envolveu com ela, o cara foi e matou ele. A separação foi por causa de desavença dentro de casa. Porque o cara tem que ter a responsabilidade. Às vezes, ele saía para beber, para a curtição e aparecia dois, três dias depois lá em casa. Um cara desse não está certo. O meu próprio pai fazia isso. Que Deus o tenha onde ele estiver, mas a realidade tem que ser dita.
P/1 – E como foi segurar essa questão? Você é dos filhos mais velhos?
R – Eu sou o mais velho, tenho 36 anos.
P/1 – E como é que foi ajudar a sua mãe naquela época? O que você fazia para ajudar?
R – Pescando mesmo. Eu acordava às duas ou três horas da madrugada e enfrentava o batente.
P/1 – Esse peixe que você pegava, você o comercializava ou era todo para o consumo próprio?
R – Uma parte. Os menores. Por exemplo: eram quatro pescadores. Se tivesse dez quilos de peixe, eram dois e meio para cada pescador. Os maiores, como a cavala de quatro, cinco quilos; o galo de dez quilos, era para comercializar. Nós não éramos donos do barco, que era outra pessoa. Ele nos emprestava o barco. Se a pescaria desses 500 reais, 250 era do dono da jangada e os outros 250 era repartido para esses os quatro pescadores. Quer dizer, dava 50 e poucos reais para cada um. Era nessa faixa.
P/1 – Isso depois de um dia inteiro de trabalho?
R – Um dia inteiro pescando.
P/1 – E quando chegava em casa?
R – Chegava às quatro, cinco horas. Era cansativo.
P/1 – Chegava com o dinheiro e entregava para a sua mãe?
R – Já comprava a maioria da comida. Não era feijão, nem arroz. Era o peixe, a farinha e só. Era muito difícil comer feijão. Hoje em dia está tão desenvolvido que vai até feijão para o mato.
P/1 – E você lembra a idade que você tinha quando tinha que fazer essa jornada de acordar de madrugada e passar no mercado e comprar as coisas?
R – Desde os 12 ou 13 anos. Comecei a pescar com 11 anos. De 11 anos até 13 anos era essa rotina: pescando direto. Mas com 30 anos eu já comecei a me afastar.
P/1 – E quem lhe ensinou a pescar? Como é que você aprendeu a pescar?
R – Eu aprendi a pescar com o meu avô, que era um grande pescador. Ele já faleceu, mas ele foi a minha luz que me fez caminhar.
P/1 – Então vamos conversar um pouquinho sobre seu avô, pode ser?
R – Pode ser.
P/1 – Como que era o nome dele?
R – O nome dele era José de Iracema da Costa Barbosa. Ele era considerado um dos melhores pescadores daqui. Ele afundia na pescaria. Porque a pescaria lá para dentro não tinha GPS (Global Positioning System ou Sistema de Posicionamento Global) para marcar. Ele afundia a serra, que vai indo e faz um encaixe, uma na outra. Quando chega, vem e encaixa uma serra na outra, que vem lá de dentro e afundia a âncora. Não tem GPS. Com GPS é bem fácil: você marca a seta e aponta. Está feito. Lá era naturalmente. Ele era um dos melhores pescadores. Ele chegava aqui com 80, 100 quilos de peixe por dia. Só, que, nessa época, o comércio de peixe não era muito bom. A cavala chegava a cinco reais o quilo. Hoje a cavala está 14 reais o quilo. Vendemos a 14 reais para o atravessador, que vende a 18 reais para a freguesia.
P/1 – O que você lembra das pescarias com o seu avô?
R – Eu morei junto com ele por um tempo e fazia companhia quando ele ia pescar. Teve um dia que eu estava tão nervoso que me amarraram no barco, para eu aguentar o tranco. A ondulação é muito grande, não é a mesma daqui. Tanto que uma vela de 15 metros de jangaítaba, um barco grande, some nessa descida.
P/1 – E você ficava nervoso?
R – Ficava nervoso porque eu via a ondulação muito grande. Aí, dizia: “Meu avô, vai quebrar?” “Não vai quebrar”. A intensidade é tão grande que o cara pensa que vai quebrar. Ele desce assim e sobe de novo. E o combustível da vela, na água, é a água. O cara molha a vela, a vela fica encharcada e o vento não passa. O vento não passa.
P/1 – Mas e aí, como foi o desenrolar desse medo?
R – Foi um pouco meio traumatizante. Com o tempo eu fui me adaptando e perdendo o medo. Eu perguntei a ele: “Meu avô, e se essa jangada virar? O que acontece?”. Ele disse: “Se virar, desviramos e continuamos. Ninguém morre”. Porque dentro dela tem isopor e não afunda. Agora, tem umas que afunda, porque é ocada. Se ela virar, pode acontecer de afundar. Como a tecnologia melhorou, essas de hoje não afundam. É justamente essa que eu vou construir. Já construí dois e com esse será a terceira. No mês que vem eu começo a construir.
P/1 – E como é que foi participar da pescaria? O que mais que tinha?
R – A primeira vez foi uma sensação boa. Na metade do caminho eu já fui perdendo o medo. Quando chegou lá, num ponto X, eu perdi o medo. Mas quando ela começava a andar, já aumentava o medo de novo. É a adrenalina. Eles não estava nem aí e eu na primeira vez. Eu disse assim: “Meu irmão, se isso virar, o que vai acontecer comigo?”, eu com a minha imaginação. A curiosidade fez eu perguntar a ele: “E se acontecer isso?” “Não, não morre, não. Ajeita e vai embora pescar de novo”. Vai embora só a quimanga, que é a bolacha, a rapadura, um peixe frito - que torramos pela noite para levar para comer. Se isso molhar, não come. Passamos o dia sem comer. A pescaria é muito puxada. Tem que usar um chapéu, uma camisa de manga longa para o sol não maltratar muito.
P/1 – E já chegou a virar alguma vez?
R – Já. Eu mesmo virei, porque, de um certo período, eu vou sozinho com os meus barcos. Não vou para longe, só aqui do lado do porto. Vou e volto. Aconteceu de virar, mas eu a desvirei e fui embora de novo, sozinho. Certa vez em que virou, o cara do prático foi quem me ajudou a desvirar. Se ela virar na água parada é complicado de desvirar. Ela não desvira. Mas com o balanço do mar ela desvira.
P/1 – E como é a sensação de estar lá dentro de um barco e...
R – Nervoso. É aquela sensação de nervosismo, sobre o que pode acontecer. Você está com as pernas dentro d’água, e imagina logo um peixe grande, um tubarão, essas coisas. O cara não pensa e m coisa boa, não (risos).
P/1 – Você falou que começou a ajudar em casa e falou do seu avô. Esse avô é o paterno?
R – Pai do meu pai.
P/1 – O pai da sua mãe você não conheceu?
R – O pai da minha mexe com agricultura.
P/1 – Até hoje?
R – Sim. Ele cria gado, planta manilha para fazer a farinhada, mandioca e aquelas coisas.
P/1 – Mas com essa parte você nunca se envolveu?
R – Já me envolvi e trabalhei por um tempo. Eu ajudava a apanhar mandioca para fazer a farinha.
P/1 – E não quis continuar?
R – Não. Era muito sofrido. Você planta a manilha, que dá a mandioca e passam nove meses, quase um ano para poder ela se desenvolver e poder fazer a farinha. Eu acho que é um ano, não sei. Todo esse tempo para poder fazer uma farinhada. Isso custa muito. Se você depender da farinha para comer... É mais fácil arriar uma linha, comprar um camarãozinho e você vai pegar peixe do tamanho que imaginar. O mar é um viveiro que já tinha muito peixe só que, agora, com o desenvolvimento do porto, ficou com mais peixe.
P/1 – Como assim?
R – Virou um viveiro.
P/1 – Como assim virou um viveiro?
R – Por exemplo, os peixes estão lá fora. Eles veem, porque é cheio de sardinha, que fica aí. Ele vê a sardinha, porque lá fora é mais difícil para ele pegar a isca para comer. Então, assim fica mais fácil para ele se alimentar.
P/1 – Então ele vem?
R – Ele vem e fica aí porque é cheio de luz e ele fica na luz pegando a cadeia alimentar dele. Eu passo ao redor do píer nadando e tem tanta sardinha. Não são duas, três ou quatro mil sardinhas. São milhões de sardinha e o que você imaginar. Tem de toda qualidade.
P/1 – E, aí, passando por todos esses aprendizados, você passou pela escola, ficou pouco tempo na escola, não quis dar sequência? Por quê?
R – Eu não dei sequência na escola porque ela tinha que batalhar para trazer o rango para casa e foi essa rotina. Abandonei. Mas eu vou voltar quando terminar essas férias. Vou voltar a estudar de novo no SESC [Serviço Social do Comércio], e para desenvolver mais espiritualmente, na bíblia.
P/1 – A sua juventude foi toda por aqui também?
R – Sim.
P/1 – E como era a diversão naquela época?
R – Era forró, bebedeira, surfe e adrenalina a zero grau (risos).
P/1 – Explica melhor o que é isso.
R – Zero grau é mulher, curtição, igual às baladas, só que era um pouco diferenciado. Não eram aquelas músicas dançantes, mas era o forró. O cara pegava uma nega ali, começava a dançar, dialogava. Se desse certo tudo, bem. Se não desse certo, partia para outra. Eu não ficava quieto, era meio traquina (risos) e não ficava parado. Hoje em dia, com essa rotina, eu dei um tempo, me separei da esposa e da minha filha. Mulher é bom e tudo, mas tem hora que o cara não entende.
P/1 – E quando é que você conheceu a sua ex-mulher?
R – Eu a conheci há dez anos atrás. Ela é minha prima e veio fazer um passeio aqui. Aí, como dizem as meninas da faculdade: “Rolou aquela química”. Deu certo, eu vivi com ela por cinco anos e gerou esse tesouro que é a Luana. Ela mora com a mãe dela, eu pago a pensão. Mas, às vezes, três horas da madrugada, ela me liga: “Eu quero isso, quero aquilo”. Tem paciência, que é a ciência da paz. Não é assim. Tem bufo. Trabalho para ganhar, mas tem que ter paciência também”. Eu sou assalariado. Se uma pessoa quer uma coisa e você não tem, ela tem que ter paciência para poder aguentar até chegar o dia de ganhar. Antigamente, pra você ganhar uma bola ou qualquer coisa que fosse, um brinquedo, você tinha que estudar, tinha que ralar e fazer a sua parte. Hoje em dia o menino tem bola, brinquedo e não está nem aí. Ele rasgar que é para o outro dia querer outra. Antigamente, o pai logo dizia assim: “Vai ganhar essa bola hoje, mas amanhã não tem outra, não”. Aí, ele ia dar valor àquele brinquedo. Hoje, o menino ganha um brinquedo de 200, 300 reais, que nem aqueles carrozinho de controle remoto e, se for possível, ele quebra hoje mesmo, para amanhã o pai lhe dar outro. Mas antigamente não tinha isso.
P/1 – Você falou que ficou casado cinco anos?
R – Sim, por cinco anos. Tivemos uma desavença e não deu mais certo. Ela foi para o lado dela e eu fui para o meu. Nos separamos.
P/1 – Mas como é que foi? Você vivia com a sua mãe?
R – Não casei. Foi aquele negócio de se ajuntar. Porque casar, aquela parte que tem juiz, testemunha, aquele negócio todo... É complicado.
P/1 – Você trouxe ela para morar na casa da sua mãe? Como é que foi?
R – Não, eu aluguei um estabelecimento. Pagava com a pescaria, porque não tinha trabalho, era mais dificultoso. Tinha o trabalho só para o peixada. O cara chegava assim: “Você conhece o Fulano de Tal? Vou colocar Fulano”. O cara não fazia nem entrevista e já caía lá. Estava dentro e pronto. Não tinha esse negócio de fazer entrevista.
P/1 – E a tua ex-mulher fazia o quê?
R – Ela era dona de casa: lavava, engomava, passava. Só dentro de casa mesmo e focada em frente da televisão, em novela - é difícil uma mulher não gostar de novela (risos).
P/1 – Acabou que vocês não deram certo?
R – Nos separamos e ela foi para o lado dela. Eu fui para o meu.
P/1 – Ela está lá em Fortaleza, é isso?
R – Ela mora em Fortaleza.
P/1 – Você lembra como é que vocês faziam quando alguém ficava doente aqui?
R – Quando ficava doente, a maioria era em São Gonçalo, mas era muito difícil o acesso de transporte. Usava mais o remédio caseiro. Eu conhecia uma senhora que sabia fazer o remédio caseiro.
P/1 – Você lembra quem era essa senhora e onde ela morava?
R – Ela mora lá do outro, mas só que já faleceu. Dona Chiquinha da Lagoa, que era como um pajé de uma aldeia. Ela tinha os mantimentos, os remédios para quando os seus índios ficavam doentes.
P/1 – E você recorreu a ela algumas vezes?
R – O meu pai teve que recorrer a ela para poder ficar bom. Teve uma época que ele ficou muito doente. Tem um peixe desse tamanho chamado peixe agulha, que tem um bico desse tamanho. Ele o furou abaixo do umbigo dele, que passou uns três meses doente, com esse bico que quebrou aqui. Se batesse em cima do umbigo, o doutor disse que ele teria morrido. Porque os dentes dele tem muitas bactérias. Quando eu estava de férias, pescando – fiquei 25 dias pescando com as minhas seis redes para lagosta. Peguei uns 35 quilos. Peguei muita arraia na rede. Essa raia furou a minha mão. Passei uma semana doente. Era no período de férias e não afetou o trabalho. Ainda tenho o furo. Está alto ainda. Ela tem uma toxina no ferrão que se pegar num canto mortal, mata. Eu fui para a UPA [Unidade de Pronto Atendimento] chorando. Eu clamei o nome do Senhor e fiquei bom. Que eu acho que quanto mais remédio dava a mim, mais o remédio doía. Clamei o nome dele e eu acho que fiquei bom. Quem me curou foi Jesus. E a mulher ainda dizia assim: “Deixa de ser mole, macho. Ô macho mole”. Aí eu disse: “Se fosse na senhora, eu queria vê-la dizer quem era mole.” Ela tem uma toxina que é inexplicável.
P/1 – Como foi o desenrolar da vida? Você continuou pescando e trabalhando?
R – Continuei pescando...
P/1 – E a questão do surfe? Como é que se mistura a pesca e o surfe?
R – Eu ia para o mar às três, quatro horas da manhã. Às 11 horas o mar ficava ressaqueado, que é quando ele aumenta. Tem dois, três metros de onda. Eu chegava, botava o barco para cima, almoçava, dava um tempo e, depois, ficava três horas e meia surfando. Porque o surfe é bom no período das ressacas, quando sobe as grandes ondulações grande e a gente cai no mar. Quando o mar sobre, todo mundo fica doido para cair no mar. Agora não. Trabalhando, eu só posso cair no final de semana - na parte da tarde do sábado ou no domingo. Hoje, se o mar tivesse subido, eu não estava aqui, mas na Taíba, ou nos ‘picos’ que tem para surfar, pegando onda. Coloco a prancha na capa, pego o cambão e vou surfar.
P/1 – Você se lembra da primeira prancha que você adquiriu?
R – Lembro. A primeira prancha que eu comecei a surfar eu comprei de um amigo chamado Mani. Essa prancha eu comprei por cinco cruzeiros - o dinheiro ainda era o cruzeiro. Você vê essa ondulação de onda? Não tinha essa parte aí. Ela era quebrada. Não tinha essa parte. Eu comprei por esse dinheiro, porque quando ela se quebra, perde o valor.
P/1 – E o que acontece para ela quebrar aí na ponta?
R – O impacto da onda.
P/1 – Na água mesmo?
R – Na água. Se ela quebrar aí ela faz isso. Vai para o fundo e quebra. E se o cabra embicar, que pega no chão. É raro quebrar.
P/1 – Se quebra a prancha não é perigoso também para o surfista?
R – Sim, porque pode se cortar. Se a onda quebrar aqui, mesmo em cima, no meio, a prancha quebra. O impacto de uma onda de dois metros chega até a 300 quilos. Quando ela faz assim no cara lá embaixo, parece que está amassando um sanduíche. O cara não pode subir. Uma onda de dois metros é o equivalente ao peso de uns 300 quilos.
P/1 – E, aí, o machucado é maior?
R – É maior. Mas eu sempre eu me dei de bem em ondas grandes, que quanto maior melhor de surfar, que o cara vai dar umas batidas, os cut back, tubo. Já as menores, já tem que acelerar, por isso que botaram esse apelido em mim, de Metrô, que quando eu pego a onda eu vou embora mesmo, não saio de lá, sai do meio porque eu vou embora.
P/1 – E qual que é a sensação de pegar uma onda? Você lembra da primeira vez que você falou: “Agora eu estou surfando mesmo”?
R – Essa do cara, da água, que eu colocava os 40 baldes d’água para ele. A prancha dele era um material de caiaque, uma prancha resistente. Comecei a surfar, desci numa onda de mais ou menos uns dois metros. Já estava pegando a prática. Eu finalizei ela até o seco, mas não fazia manobras. Quando você desce na onda e não faz manobras se chama alisar. Quando você faz manobras já se torna um pré-profissional.
P/1 – E você dá manobra?
R – Faço 360, tubo, cut back, rock and roll. No bodyboard eu planto até bananeira de cabeça para baixo. Uma das manobras mais preferidas minhas, que eu acho, é o aéreo - você decola da onda e volta. Essa é uma das melhores. Em segundo é o tubo.
P/1 – Já se machucou pegando onda?
R – Sim.
P/1 – Você lembra da situação?
R – Eu saí fora e comecei a provocar. Foi o maior ‘sué’ que rolou aí na colônia. Tem um local aqui que a onda estava gigante, estávamos tubando em pé. Eu peguei uma onda que quebrou aqui, há um metro, e eu estava na frente. Ela deu um salseiro em mim, lá embaixo, que eu quase não subo. Quando eu subi, saí tonto para fora. Parei ali por uma meia hora. Encostaram os caras - eu sou conhecido e sempre vão os parceiros. Eles falam uns com os outros: “E aí, meu, passou mal?” “Levei um caldo que ainda estou vendo estrelinhas”. Ficou embaçado de estrelinhas. Eu saí, dei uma pausa, mas não desisti. Acredita? Levei esse caldo, mas se fosse um cara fraco, não tinha voltado para onda. O cara disse: “Vamos meter mais um aí, bom?” Talvez, outro cara que não tivesse isso, mas quando o cara é fanático por onda, ele volta. Não tem como não voltar.
P/1 – Vamos dar sequência na questão do porto. Você falou que conheceu a época que não tinha essa construção do porto.
R – Não tinha.
P/1 – E como é que foi a chegada desse porto para a comunidade e para a sua vida aqui no Pecém?
R – Para comunidade foi um benefício: emprego, desenvolvimento, renda para o município, que não tinha. A renda de peixe era muito baixa e, aí, veio o desenvolvimento mercantil, dos estabelecimentos de comida; vieram os caixas, porque aqui não tinha. Para tirar um dinheiro eu tinha que me locomover para São Gonçalo. Tinha que pegar um transporte e ir para lá para poder pegar o dinheiro do trabalho. Não tinha isso aqui. Foi chegando balsa, máquinas da Alemanha para poder fazer a perfuração no solo, da rocha. Eu trabalhei nessa construção.
P/1 – Como foi isso?
R – Para mim, foi um grande desenvolvimento, um bom aprendizado. Foi uma rotina de trabalho que eu não sabia. Aprendi a ter medo de máquinas grandes, porque quando o ‘cabra’ entra para trabalhar ele vê um negócio meio sinistro: imagina um guindaste que levanta uma peça de 300 toneladas? Você vê aquilo e pensa: “Meu irmão, isso aí vai levantar isso? Uma peça gigante!”. Vem uma perfuratriz da Alemanha, o nome era Vitz, uma broca grande que, a cada dez metros, eles encaixam uma na outra. Ela ia descendo no poço para comer a rocha. A empresa comprou por tantos milhões de dólares, que eu nem quanto foi, para poder construir essa obra, porque se ela não comprasse essa Vitz da Alemanha não tinha construído a obra. As daqui quebravam direto. Tinha um martelete que tinha um uma camisa metálica que pesava 35 toneladas e o diâmetro dela é 35 metros. Tem um negócio que dá uma compactada assim, ‘pô, pô’, para ela bater, para poder atingir o solo da lama. Quando ela bate na rocha, ela para. Aí vem, justamente, a Vitz da Alemanha para poder comer isso daí. Quando eu comecei, trabalhava embarcado numa balsa. A minha área sempre foi essa: trabalhar embarcado, como um marinheiro, mas só que eu não tenho os documentos. Mas eu pretendia fazer uns cursos para poder... Por isso que eu quero estudar, para ter um bom estabelecimento. Se o cara conseguir fazer esse curso ele ganha bem - uns três barões. Para quem ganha 1 mil e 150 nesse trabalho que eu faço. Mas foi um aprendizado, foi bom. Foi bom o desenvolvimento para o município e os vários pescadores estão trabalhando também. No final de semana vão trabalhar. Mas, como vem as coisas boas, vem as coisas más. Infelizmente, vem a prostituição, as drogas, assaltos frequentes. Onde tem a demanda de dinheiro sempre tem aquele atrito. Já roubaram carros fortes por várias vezes. Já levaram dinheiro no dia da Semana Santa. A polícia não chegou nem perto dos caras com fuzis. Pra você ver: o desenvolvimento é bom, mas tem um impacto.
P/1 – Você foi afetado de alguma maneira por essas coisas boas e ruins?
R – Sim. Onde tem o desenvolvimento, tem um calço do mal: droga, prostituição, as coisas ficam bem banalizadas e mais fáceis. Em cada esquina que você imaginar tem droga. O desenvolvimento afeta a população que vai atrás daquilo. A tendência é se prejudicar porquê, se você comprar a dinheiro, você se saí bem disso, mas se dever o cara e não pagar, você morre. Se ficar pagando frequentemente, você se vicia, pode até ficar viciado e ficar frequentemente comprando lá. Mas se deixar de comprar lá e for para outro local e o cara da boca souber, ele é capaz de te matar por causa disso. Eu comparo o traficante como um mensageiro do diabo. Ele suga as energias de um trabalhador, que se vicia naquilo para manter um ego - ele pensa que vai preencher, mas ele está se afundando na laguna, na própria lágrima que vai cair nos seus olhos. É ou não é? É a realidade. Aí eu me envolvi com isso aqui e foi aquilo que eu lhe contei. Fui pegar uma história, um baseado, na ‘boca’ do cara. Quando eu cheguei, a polícia deu uma batida, levou quatro caras presos. Passei três meses e 20 dias. Me afastei, já tinha saído do trabalho, mas fumava frequentemente. O cara iludiu para eu ir morar e ficar com ele lá na sede. Tinha acesso a tudo. Tornei-me um viciado, um trabalhador deles. Se eu me sinto uma pessoa foi porque Deus me deu uma nova oportunidade. Eu vivia lá dentro. Os caras, com uns pedaços de droga desse tamanho, pesado e tudo. Dinheiro, festa, mulher, tudo do bom e do melhor, mas faltava uma coisa em mim. E era o que? Felicidade. Era só depressão. Aquela alegria, fingia que era alegria, mas não era alegria, era só depressão. Parei para a realidade. Quando eu saí de lá, que eu fui preso, eu parei para pensar: “O que eu estou fazendo aqui, meu irmão?”. Eu era evangélico, só que eu estava desviado. Quando você se desvia do caminho do Senhor, a tribulação vem no metro e não é pouco. O cara dizia: “Isso aí é balela”. Mas eu sou a realidade viva. Eu saí e sou um vencedor, porque Deus mesmo tinha um propósito na minha vida. É raro sair do meio do tráfico e não morrer. Os caras mandam matar. E quando eu saí de lá eu estava devendo 700 reais de droga. Voltei para a Igreja, comecei a ganhar dinheiro, comecei a fazer as coisas certas e com Deus. Mas eu sinto que eu ainda sou falho com Ele. Tem uma coisa que eu ainda sou falho com Ele. Eu peço a Ele que eu ainda vou consertar isso e eu vou me sair. Não é droga, não é coisa... É coisa mesmo dentro do cara, de ter a paciência com você mesmo e com os outros. Porque você trabalha e é difícil trabalhar um dia e não ter um stress. Um dia, Fulano diz: “Porque é crente, é assim”. Aí, vem aquele negócio: “Você não era assim, agora quer ser o santo?”, “Eu não quero ser santo, mas eu mudei de vida para melhor. Eu quero ser melhor. Eu quero caminhar assim”. Sempre tem aquelas chacotinhas, aquelas coisas, mas eu começo a reverenciar o nome Dele. Eu saio de perto, não dou aquele elo para o cara dizer, e ele se sente sozinho. Não dou atenção e, num instante, o cara se esquece de mim. Acabou-se. Lá dentro, eu comecei a jejuar por uma semana. Começava a comer perto das onze horas da manhã, mas até lá eu não comia nada.
P/1 – Por quê?
R – Um propósito que eu fiz com Deus.
P/1 – Isso na cadeia?
R – Sim.
P/1 – Então, conta melhor como que foi esse tempo. Você ficou três meses, como é que foi isso? O que você sentiu, como é que foi? O que tinha de diferente lá?
R – Rapaz, é uma coisa que eu não aconselho para ninguém. É droga, uma caatinga de enxofre e desavenças. O diabo opera dentro de cadeia, cara. Só tem gente boa: assassino, matador, assaltante de banco - só gente boa. Nessa cela que eu estava tinha quatro caras, um tinha matado uma tia, o outro tinha matado um cara por uma dívida e outro tinha matado não sei quem. E eu reverenciava o nome de Jesus, não pra eles ouvir, cá comigo, só comigo mesmo. Eles diziam: “Ó, tu não vai comer a merenda, aí, mano, tu vai passar mal, mano” “Não, vocês podem comer aí, vocês comam à vontade que a minha comida aqui é espiritual”. Todo dia eu pedia, orava, pra Ele me tirar de lá que eu ia seguir o caminho Dele e ia morrer para o mundo e viver para Cristo. Eu tenho que atingir isso. Ainda sou falho, ninguém é perfeito, só Ele foi perfeito. Esses três meses e 20 dias, pra mim, parece que eu passei três anos. Eu, hoje em dia, eu não tenho inimigos, mas se eu tivesse um inimigo, não aconselhava ele a ir pra lá, não, viu? Porque lá o cara come o pão que o diabo amassou” e come mesmo. Come e é amargoso, viu, é amargo porque não é brincadeira.
P/1 – De onde que vem esse aconselhamento sobre o jejum? Quem te ensinou essas coisas?
R – Eu aprendi dentro da Igreja.
P/1 – Qual é a ideia do jejum?
R – A referência que ele faz é que você se sente mais próximo de Deus. É isso que aprendi dentro da Igreja. E, com certeza, é isso mesmo. Quando você está jejuando, você não se lembra de comida. Comida não vale nada. Tudo muda. O pessoal pensa que isso é balela, que isso é brincadeira, mas essas coisas de Deus são inexplicáveis. Tire por isso: o mar é uma linha d’água que ninguém sabe medir. Não tem uma referência da linha d’água em todo território do mundo? Quem é que sabe explicar isso? Quantos metros tem essa linha d’água? Só Ele. Eu não sei explicar isso e acho que nem os biólogos marinhos sabem.
P/1 – E você saiu?
R – Saí. Quando o cara dessa bocada em que eu fui pego fugiu, ele jogou uma droga. Eu fui processado por associação ao tráfico e os outros cinco foram processado. Ele teve consciência de pagar 11 mil reais para os cinco para sair. Eu tinha saído do emprego há pouco tempo e tinha dinheiro para receber. Eu ainda dei mais 500 reais para o advogado. Os cinco eram para dar mais dois mil e 500 reais. Eu fiz a minha parte, dei mais 500 - cada um dava 500 reais. Não iria querer problema com advogado. Eu queria era sair de lá.
P/1 –Onde é que ficava a penitenciária?
R – Em São Gonçalo do Amarante.
P/1 – E você poderia dizer que tipo de drogas se comercializava lá quando a polícia chegou?
R – Na bocada? Maconha, pedra, cocaína. Só que isso não foi pego. Só 50 gramas de crack. O cara jogou a bolsa, mas não foi pego comigo nem com outro cara, nem com ninguém. O cara jogou e a polícia viu, foi lá buscar. O policial deu três tiros no cara, que foi correndo com uma bolsa. Você acredita que a bala pegou no celular e o cara escapou? A bala não atravessou o celular, mas parou. Esse cara tem pacto com o diabo (risos), porque a bala pegar e não atravessar? Deus me livre.
P/1 – E você saiu da cadeia e teve que retomar a sua vida. Como é que foi retomar a vida, o que você foi fazer?
R – Foi difícil, porque quando tu cai numa rotina dessa, a sociedade lhe vê com outro olhar. Um olhar de tristeza, desprezo, não quer conversa. Quando o cara vai passando, já vem o outro e diz: “Ah, Fulano foi preso. Se afaste dele que é uma má pessoa, uma má influência”. Só no olhar eu sabia que ele estava falando de mim. Era aquele olhar de desprezo, em que o ‘cabra’ fica lá embaixo. Para eu ser aceito na sociedade, Jesus fez a diferença. Frequentei a igreja e o irmão foi lá em casa: “Metrô, volte para Igreja, não desista. A nossa caminhada é difícil, mas a vitória lá na frente é maior”. Ele abriu o jogo comigo e foi sincero: “Vergonha é chegar lá na praça e cheirar uma carreira de cocaína; vergonha é colocar três litros de whisky para os amigos, que dizem que é amigo mas não são. Quando acaba o seu dinheiro: “Vai, otário”, infelizmente essa é a realidade. Já teve dias de eu ter mil e 500, dois mil contos no bolso. Trabalhei junto com os caras e não faltava dinheiro. Tinha dinheiro no meio da canelas, mas era um dinheiro amaldiçoado. O sujeito vinha embora e era amaldiçoado. Esse dinheiro que eu trabalho hoje, que eu ganho, tudo é para um determinado local. É bem investido. Pago o meu dízimo direitinho. Se eu ganhar dois mil, o meu dízimo é certo. Eu posso ter os meus defeitos, posso ter as minhas diferenças e tudo, mas o meu compromisso que eu decidi, eu faço as coisas certas. Quando você passa a ser cristão, não está dando o dízimo. Você já está devendo. A cruz que Ele levou é pesada. O pastor diz: “Você tem que carregar a sua cruz, porque eu não posso carregar a sua cruz”. Pois Jesus fez a diferença na minha vida. Não me envolvo com pessoas que dizem ser amigos: “Eu estou avexado, vou ali fazer um negócio”. Porque na bíblia diz: “Te afaste de um mal que eu te reverenciarei”. E tem que se afastar do mal, mas sempre tem, somos falhos. Mas dessas coisas do mundo eu estou liberto. Falta uma coisa, que eu lhe disse, eu fazer a diferença pra Deus. Ele não quer artista, não quer super-homem, quer só um reverenciador para ele. Por isso que eu consegui sair do vício. Bebida fede nas minhas ventas. Se o cara chega fumando um cigarro... Eu fumava cigarro direto e, hoje, quando o cigarro chega perto de mim, eu sinto um nojo tão grande, que se eu pudesse pediria para o cara ir fumar bem longe. Quem foi que fez isso na minha vida? Clínica não tira ninguém das drogas. Clínica faz estimular o cara a fumar mais drogas. Por exemplo, o cara passa três meses na clínica. Ele passou os três meses e, quando ele sair de lá, está pronto para o mundo de novo, mas ele tem que se afastar dos amigos, tem que se afastar das más amizades e ocupar a mente com coisas boas. Se ele estiver com o mesmo foco de amizades, ele cai de novo. Quando eu saí da cadeia eu ainda caí, tive uns três desequilíbrios e fumei. Aí bateu aquele arrependimento, porque eu tinha me reconciliado com Deus, mas eu tinha traído a confiança dele. Eu me senti mal, de ficar triste: “Fiz mal a Deus, o renunciei.” Quando você faz as coisas erradas, renuncia a ele. “Renunciei”. E o Espírito Santo, que é Jesus, ele se entristece porque ele dá o seu melhor para nós. Só que erramos. Só uma suposição: o cara vai para a igreja e se reconcilia no domingo. No outro dia ele vai e peca. Ele está fazendo a coisa certa? Não! Por isso, para ser cristão é difícil. Vem um choro para o amanhã, mas lá na frente a vitória é maior. Eu estou para ver se o cara for evangélico e for para a igreja pedir o perdão a Deus agora. Se ele for lá na frente e o Espírito Santo tocá-lo e ele não chorar, ele não é humano. Esse cara não é humano. Porque Ele faz a diferença.
P/1 – O que você faz hoje? Qual que é o seu trabalho?
R – Meu trabalho hoje é numa empresa chamada Refrabrás. Trabalhei um mês avulso para ela, para passar num teste, quebrando uma laje de pó de pedra com concreto para passar umas valas e fazer um lavador de contêiner. Eles me contrataram como terceirizado. O prazo de experiência foi de 90 dias. Eu venci essa experiência e trabalhei por mais três meses. Tudo isso foi na faixa de uns nove meses. Aí, eles me contrataram como efetivo e eu estou até hoje. Hoje o supervisor diz pra mim que eu saio de lá quando eu quiser. É difícil um trabalho que não tenha stress ou uma desavença, mas estou sempre clamando o nome d’Ele, para que Ele me dê força para eu caminhar. Porque, às vezes, não é a empresa que é ruim, mas tem uns funcionários que são fora de série. Se você não clamar o nome dele, você sai fora bem ligeirinho ou arruma confusão. Eu não quero isso para mim, justamente porque eu fui preso, então, evito ficar discutindo com os outros, não procuro confusão com ninguém. Eu quero que estar na Igreja e nos caminhos de Jesus porque é o melhor. Não tem como ser o melhor. Já aprendi a ter amor pelas pessoas, a fazer a diferença e ajudar. Antes eu não ajudava nem uma esperança. Ela estava aqui, mas eu a matava. Hoje, se eu vejo a esperança, eu dou a mão. A vida com Jesus você faz isso: ajuda e sempre tenta ajudar.
P/1 – Qual é a frequência que você vai na igreja? Onde é essa igreja?
R – A Assembleia de Deus. Aqui foi feito um novo templo. Vou quinta-feira, sexta-feira e domingo, porque tem a rotina de trabalho e, às vezes, estou cansado. Mas não posso deixar de ir à igreja por causa do cansaço. Às vezes eu não vou, por conta do cansaço. Eu fico esgotado. Peço perdão a eles por não ir, mas sempre sou frequente. Na quinta-feira é de doutrina, que é um aprendizado para desenvolver a paciência – o pastor explica como se faz para ter paciência e desenvolvimento.
P/1 – E aos finais de semana?
R – Pesco. Dou uma pescadinha, vou pegar um peixe para ‘rangar’. É como hoje: se eu quiser fazer um assado de peixe eu não compro. Se eu for comprar peixe de dois quilos são 20 reais. Economizo os 20 contos e compro material. Faço o orçamento: o material deu tanto...
P/1 – Que material?
R – É chamado caçueira, galão. Você arreia e pega o peixe. Para você fazer um galão desse são 150 reais. Compra chumbo, a boia, paga o cara para entalhar, que são 30 reais. E você vai pegando o peixe. Você não colocou nenhum um peixe lá. Deus lhe deu um marzão desse aí, maravilhoso, para você pegar o peixe e você não vai agradecer a Ele? Porque o que sai no dia-a-dia desse mar de peixe, não é brincadeira! E ainda nem é tão explorado, porque o pessoal de Fortaleza não vem muito. Mas quando estou dando um mergulho, o máximo que sai por dia é uma tonelada de peixe. Um pega cem, outro pega 40, outro pega 20 – entre os mergulhadores e pescadores.
P/1 – Escutando você falar e vendo o seu dia-a-dia aí, dá pra ver que o mar é muito importante na sua vida.
R – Sim, porque sou descendente de pescadores. O meu pai era pescador, meu avô também. Aquela rotina veio se habituando. Não tem como fugir dela. Tenho que contar isso porque faz parte da minha vida pessoal.
P/1 – Você teria como definir a importância desse ambiente para a sua vida?
R – É porque o amor é difícil de explicar. Deus deu isso. Tem o pescado. Você vende, dá para alguém comer, porque tem uns caras lá que me ajudam a empurrar o barquinho para cima, então, dou dois, três quilos de peixe para ele, que sai muito satisfeito. Dou camarão também, lagosta, cavala e vários peixes. Eu não coloquei nada lá. Deus nos deu tudo isso, mas tem gente que ainda diz que Deus não existe. Eu tive que ver um pescador dizer uma vez que o pessoal estava conversando sobre o dízimo e as ofertas da igreja. Ele estava dizendo que isso aí é uma balela, que o pessoal estava querendo se beneficiar disso. Quando deu uma semana ele morreu. Ele bebia muito. Acho que morreu de cirrose. Esse habitat natural que eles tem ali na boca, a língua, é uma coisa inexplicável. Às vezes, você tira a referência para falar muitas coisas do mal. Tem gente que usa para o bem, mas tem gente que faz para amaldiçoar. Se não souber usa, um pedaço de língua é muito cruel.
P/1 – Wellington, estamos chegando na parte final da entrevista. Você nos contou muitas histórias e foi muito legal. Eu queria saber o que você espera da vida, desse ambiente, da cidade daqui para frente?
R – Sobre indústria, aqui no estado do Ceará e no Pecém, na localidade de São Gonçalo do Amarante - até 2016 aqui vai ser o maior polo industrial do Brasil. Vêm muitos benefícios. Mas a poluição vai ser dobrada. Não é poluente, mas é uma coisa arriscada, que é o gasoduto. Ele é lançado num navio. Trabalhei nessa linha que vai para as localidades e é distribuído. Isso é uma bomba atômica. Se chegar isso a explodir, acaba o Pecém. Já era. Para colocar isso aqui ele foi analisado em várias localidades que não aceitaram, mas aceitaram aqui, porque eu acho que o dinheiro não compra a tua felicidade, nem a minha, nem a dele, mas corrompe o coração do homem. Não corrompe o coração de Deus, mas do homem... Só uma suposição: eu sou o dono desse gasoduto e lhe dou 300 milhões de dólares. O outro diz: “Não pode, não.” Mas o cara lhe dá 500 milhões: “Cala a tua boca”, e corrompe o cara. Infelizmente essa é a realidade. Os caras falam: “Dinheiro não compra felicidade”, mas resolve. E resolve mesmo porque “faz diferença na vida”, dos outros. Eu era tão fascinado por dinheiro, mas hoje eu não sou fascinado por dinheiro. É só para resolver as coisas, mas não pode deixar esse negócio entrar na sua cabeça, porque senão, você fica doente.
P/1 – E hoje, pelo que você é fascinado?
R – De seguir a Jesus, é ele que me dá a alegria que eu tenho. Seguindo ele, eu sinto que estou fazendo a coisa certa. Chamam-me de Metrô, eu estou indo no trilho, porque se sair do trilho, é a atribulação. E é a atribulação, mesmo. Eu não quero fazer isso. A poluição foi feita - uma hidrelétrica, carvão mineral - isso é o poluente. Eu passei do lado do píer e lá tem uma máquina que suga carvão mineral ao redor do píer - quando eu for lá, vou trazer pra mostrar essa imagem para uma pessoa do meio ambiente, para mostrar o que estão fazendo. Agora não, mas num certo tempo, vai poluir os peixes. O negócio dessa hidrelétrica também: o carvão mineral vai poluir. Ele vem para o benefício. A globalização evolui, mas também maltrata a natureza. O porto foi uma das referências que acabou com um pico de surfe, dos melhores que tínhamos, chamado Caldeiras. Quando colocaram as pedras, as correntes marinhas mudaram. Tem os corais que dão a vibração para a onda subir. E eles destroem isso e a corrente marinha vai embora. Ela não vai ficar mais ali. Ela se muda. O porto foi feito mas tem uma praia que está destruída. Tem o benefício mas afeta o meio global também. Qualquer canto que você vai passa uma máquina pesada e vai fazer uma esteira – matam as árvores para beneficiar os poderosos. Infelizmente, essa é a realidade.
P/1 – Você tem algum sonho?
R – Tenho sim. Viver bem e ver a minha família toda na Igreja. Esse é o meu sonho. Tem três que são evangélicos, faltam mais três. Levei-os para seguir a Cristo. O resto é resto. Dinheiro, casa, terreno, isso aí não influi em nada. Eu sonho em viver bem. Por exemplo: vivendo bem, tem um tesouro aqui na terra, que não é o ouro, nem a prata, mas tem o tesouro da alegria de ser feliz. Ser feliz faz bem. Faz bem para a sua alma, para o seu coração. Se você só acanhado, triste, isso aí faz mal para o próprio coração. E, nesse sonho, eu vou incluir uma escolinha de surfe para ensinar, sem ser pago, mas um serviço social. Eu queria passar para alguém aprender também. Já tem gente ganhando com isso, mas eu me sentirei bem e completo se eu fizer isso. Não é por dinheiro, porque o dinheiro corrompe o coração do homem, corrompe a mente e o cabra fica sujo com ele. Tem gente que, se não tiver dinheiro na vida, não vai para frente. Mas a saúde, a felicidade faz você caminhar para frente sem dinheiro. Eu não tinha esse sorriso como eu tenho não hoje. O cara reflete para vida e reflete para viver.
P/1 – Tomara que você consiga se organizar e consiga essa escola.
R – Vou conseguir porque Ele é maior. Eu já estou pensando em comprar umas pranchas, um long board e falar: “Negada, vou fazer uma escolinha. Se quiser aprender, me siga”. Aí eu me sentirei completo. Mas é um programa social, sem negócio de dinheiro. Quero fazer uma meta com a criançada: “Para aprender, tem que estar bem na escola”. A mãe pode até acompanhar, porque tem um programa social prestativo. O pai ou a mãe estarão dentro para sentir que a criança vai se sentir também e ver aquela alegria e compartilhar com ele também. É isso que eu chamo de programa social. Se o pai e a mãe não estão no meio, acompanhando, não é programa social. Porque ele estará sentindo aquela emoção do filho. Se o pai não estiver, o que a criança vai dizer a ele? “Pai, consegui isso”, ele vai vibrar de alegria.
P/1 – Quantos anos tem a sua filha? Onde ela vive?
R – Ela vive no bairro Quintino Cunha. Ela já veio passar férias aqui, dei uma aula a ela e mais três amiguinhas. Tem um amigo meu que tem uma esposa que tem três filhos e eu dei umas aulas a ela também, mas não foi em pé, era só descendo na prancha. Se você visse o brilho no olhar dessas crianças com essa aula, é algo inexplicável. É bonito de ver alguém sorrindo quando você faz o seu melhor. Eu me senti um vencedor em ajudar. Quem segue o Cristo e estiver falando o nome dele para três ou quatro pessoas reunidas, já está ajudando o Pai.
P/1 – Eu queria saber o que você achou de estar aqui nos contando a sua história para o Museu da Pessoa?
R – Eu acho que alguém vai ver a minha história e pode se comover e ser uma pessoa melhor. Eu falei da referência ao Jesus que eu sirvo. Isso pode estimular mais pessoas a seguirem esse Jesus e ser pessoas melhores e, assim, fazer uma diferença, porque ninguém é perfeito. Tento seguir, ser um discípulo dele, porque os discípulos que estavam perto dele o traíram. Isso aí é a anomalia do mal, é uma coisa tão grande que os caras perto de Jesus o renegaram e mentiram. E ele fazia a diferença para todos. Eu tento ajudar as pessoas. Quando alguém me fala: “Metrô, vamos juntos, tem vários meninos que querem ir”, eu me sinto uma pessoa vencedora e fazendo alguém feliz.
P/1 – Metrô, eu queria agradecê-lo por ter aberto as portas e nos recebido. Acho que a sua história nos ajuda muito a contar a história das pessoas da localidade.
R – Tem uma parte sombria, mas tem uma alegria.
P/1 – E tem uma superação muito interessante, com muita força.
R – O que precisar, estamos aí. Quando quiser vir aqui, fazer uma filmagem sobre algum pescador, vamos lá e reunimos o povo.
P/1 – Se quisermos filmar também você pegando uma onda também pode?
R – Sim.
P/2 – Volto para filmar a escolinha.
R – Da hora.
P/1 – Muito obrigado.
R – De nada.
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