P/1 – Henrique, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Primeiro, eu gostaria de agradecer de você ter aceitado o convite para essa entrevista.
R – O prazer é meu.
P/1 – E pra gente começar, eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Henrique Sérgio Macedo Ramos. Eu nasci em Fortaleza, no Ceará, em oito de junho de 1975.
P/1 – Henrique, fala pra gente o nome dos seus pais.
R – Antônio Tarcísio Ramos e Antônia Macedo Ramos. Antônio e Antônia.
P/1 – E fala pra gente da origem da sua família. O que você sabe dos seus avôs? Fala um pouquinho da história deles.
R – Certo. Vou falar mais especificamente, talvez, do meu avô paterno que eu acho que tem uma ligação com o que eu vim a fazer depois. Meu avô paterno foi marinheiro da Marinha Mercante e viajou muitos países do mundo por essa profissão. Ele voltou para o lugar de origem, que era Fortaleza, quando ele já tinha 40 anos e foi quando ele casou com a minha avó, que era bem mais nova, 19 ou 20 anos. E eles eram primos, não sei se de primeiro ou segundo grau, mas eles tinham um parentesco. Eu sempre me recordo do meu pai falando sobre algumas das histórias do meu avô quando ele andou pelo mundo. Ele passou isso pros filhos e chegou até a minha geração. Era pequeno comerciante depois que ele deixou de ser marinheiro. Por parte de mãe, meus avós maternos tinham fazenda próximo a Fortaleza. E aí depois os filhos cresceram e tinham que estudar, eles venderam a fazenda e também abriram um pequeno negócio em Fortaleza, então ambos têm essa atividade comercial como atividade principal.
P/1 – E conta qual foi uma das histórias que você conheceu do seu avô, dessas viagens pelo mundo. Conta uma delas ou uma que te marque, que você goste.
R – Uma que eu lembro muito e que meu pai repete muitas vezes é que meu avô sempre ficava impressionado com a alimentação nos diversos países. Ele falava sobre o que cada lugar comia, mas uma especificamente era em relação à alimentação dos animais, que ele dizia que ele viu na Holanda os animais receberem cerveja ou produtos da cerveja pra alimentação na época do inverno. Isso é uma coisa que sempre que a gente está em família tomando uma cerveja o meu pai fala sobre essa história, então eu já ouvi essa história várias vezes. Ele sempre tem muitas histórias sobre a Holanda, eu acho que era um lugar que ele gostava muito. Tanto que quando eu visitei a Holanda pela primeira vez eu me lembrei muito do meu avô, prestava atenção nas coisas e nas comidas porque eu algumas dessas pequenas histórias familiares se repetiam.
P/1 – E conta pra gente como é que seus pais se conheceram?
R – Meus pais? Eu não sei dizer exatamente como eles se conheceram, eu sei minha mãe morava num distrito próximo a Fortaleza e meu pai morava em Fortaleza. Eu acho que houve algum deslocamento, eu acho que amigos em comum, imagino que tenha sido isso. Eu sei que eles tiveram um longo namoro, eles namoraram seis anos, pra época era um longo namoro e logo depois que eles casaram, três anos depois, eles mudaram pra Brasília. Meu pai hoje em dia é funcionário público federal já aposentado, mas naquela época logo após o casamento iniciaram um pequeno negócio de comércio, de confecção, mas logo em seguida, eu tinha um ano e pouquinho, eles resolveram mudar pra Brasília, as oportunidades que tinham naquela época de concursos públicos. Minha mãe passou a ser funcionária dos Correios e meu pai do Tribunal de Contas da União. Eu só nasci em Fortaleza, com um ano e pouquinho, menos de um ano e meio, eu estava morando em Brasília.
P/1 – E conta pra gente dessa sua infância em Brasília, o que você se lembra, quais são essas primeiras lembranças de pequeno?
R – Uma lembrança que eu tenho é o tanto que a gente gostava de férias pra ir pra Fortaleza, pra praia. Férias escolares era sempre motivo de alegria porque você vai visitar os primos. A minha geração que passou infância e início da adolescência em Brasília não tem muito essa lembrança de casa de avô, casa de avó, primos, todo mundo dependia muito dos amigos, dos laços que iam fazendo. Eu lembro disso: de que minha família tinha muitos amigos e que eu tinha muitos amigos. As relações que se formavam com os amigos eram um pouco de substituição das famílias que não estavam lá presentes, porque todo mundo era de algum lugar, isso final dos anos [19]70, início dos anos [19]80, ainda estava no início de Brasília, apesar de Brasília ser dos anos 60. Hoje em dia, não, eu vejo que já existem gerações, duas ou três gerações que vivem em Brasília que já existe avô, já existe primo. Meus pais voltaram a morar em Brasília. A gente mudou depois pra Natal, mas eles voltaram a morar em Brasília e meus irmãos mais novos é uma geração brasiliense atual, eu vejo isso neles, que os amigos deles têm tudo isso, tem tio, primo, avô, as coisas que eu não tinha quando morei lá.
P/1 – Então fala agora dos seus irmãos mais novos. Quantos são, o nome deles.
R – Eu sou o mais velho de quatro. Eu tenho uma irmã que é dois anos mais jovem que eu, Ana Paula. Eu tenho um irmão, Adriano, que é nove anos mais jovem e tenho o irmão Eduardo que é 12 anos mais jovem. Depois que eu tive a minha experiência com o AFS eles também passaram a se interessar mais em relação a experiências internacionais e os dois mais novos, um deles fez intercâmbio pelo AFS, o outro fez um outro intercâmbio pro Canadá, não AFS, mas hoje o mais novo mora na Coreia do Sul fazendo um mestrado.
P/1 – Conta pra gente um pouquinho mais dessa infância. O que você se lembra da sua casa em Brasília, do bairro, como é que era aquele espaço?
R – Brasília, todo mundo mora em apartamento. A coisa do brincar é embaixo do bloco, é na quadra. Eu me lembro muito disso, de que a recreação: você desce do bloco e vai brincar na rua. Eu não sei como é hoje, mas naquela época era tudo muito aberto ainda, não tinha problema, você ia pro parquinho, ou você ia para a praça, que ficava próxima de um conjunto de prédios. Você conhecia os amigos desses vários prédios, não existiam condomínios fechados como existem hoje. Então, você faz amizade com pessoas da escola, mas faz uma série de amizades com pessoas que não necessariamente têm um vínculo de escola com você. Eu lembro muito disso. Pena que eu mudei, quando minha família se mudou de Brasília pra Natal, no Rio Grande do Norte, eu tinha 12 pra 13 anos e naquela época não tinha ainda os recursos de redes sociais e de contatos, nem e-mail existia, então, eu perdi totalmente o contato com esses amigos da infância, não tenho amigos de infância. Meus amigos de infância são os primos que eu ia passar férias em Fortaleza. Mas eu tenho muito boas lembranças, lembranças essas de que as pessoas acabavam ficando muito próximas. Eu lembro que minha casa, as pessoas se visitavam muito porque ainda naquela época tinha poucas coisas pra se fazer em Brasília, não tinha tantas opções de lazer. As pessoas se visitavam, eu lembro de fins de semana de ir pra casa de amigos dos meus pais, desses amigos dos meus pais irem pra minha casa. E eu noto que hoje em dia isso não é mais tão comum, você ir pra passar o dia na casa de alguém, ou almoçar e continuar durante a tarde, isso é mais comum hoje em dia entre familiares, mas entre amigos eu acho que você marca no bar ou no restaurante. Eu tenho muito essa lembrança de casa cheia de amigos.
P/1 – E quando você era pequeno o que você queria ser quando crescesse?
R – Boa pergunta. Eu acho que em algum momento eu pensei em ser arquiteto. Mas não era uma coisa muito consciente, não. Eu lembro que, desde cedo, eu gostava de Geografia e gostava de Língua Portuguesa. Meu pai foi professor de Português e ele sempre instigou muito a gente. A gente era pequeno ele perguntava muito: “Qual é a capital de tal país?”, ou então mostrava o mapa com bandeiras: “Que bandeira é essa, de qual país?”. Ou abria o atlas e mostrava o mapa e perguntava que país era aquele. É interessante que depois de um tempo eu fui começando a juntar todas essas coisas, que eu acho que um pouquinho mais na frente tiveram influência nas escolhas que eu fiz. Língua e Geografia, pra chegar em Arquitetura não é tão difícil assim, né? Arquitetura, apesar de ser uma profissão muito ligada à tecnologia, é uma profissão humana por natureza. Ao se comparar a Arquitetura e a Engenharia, por exemplo, a Arquitetura é bem mais voltada às ciências humanas do que a Engenharia, a Arquitetura se utiliza da Engenharia. Eu lembro que na época do vestibular eu fiquei em dúvida se eu faria Letras, se eu faria História, se eu faria Direito, ou Arquitetura. Como eu estudei numa escola técnica, eu fiz um curso técnico na época do segundo grau e o curso que eu escolhi foi Construção Civil. Foi um caminho natural a Arquitetura nesse caso porque eu saía um pouco da coisa técnica que você vê numa escola técnica federal o curso de Construção Civil é bem mais ligado à Engenharia, é uma mini-Engenharia, mas na hora de escolher o curso superior, eu fiquei no meio do caminho. Escolhi Arquitetura que era essa ponte entre conhecimento técnico e o conhecimento mais humano.
P/1 – Então voltando um pouquinho, eu queria que você falasse das suas brincadeiras favoritas. Do que você gostava de brincar, com quem você brincava? Você falou que era tudo embaixo dos blocos
R – Isso, exato.
P/1 – Mas era o quê?
R – Era jogar futebol, tinha a coisa do carrinho de rolimã que eu lembro bem disso porque assim, depois que eu mudei pro Nordeste, não tem tanto essa cultura do carrinho de rolimã como vocês têm mais no centro-sul, acho que aqui em São Paulo também tem, pelo menos pessoal mais antigo fala de carrinho de rolimã também. Mais brincadeiras mesmo ao ar livre, a gente não ficava preso a videogame, no final da minha infância já começando a aparecer, mas ainda tinha uma coisa muito de brincar na rua. Pra menino, bola é o atrativo principal, né? Hoje em dia eu não tenho muito mais conexão com futebol, mas eu tenho essa lembrança de infância e início da adolescência que o futebol era a principal atividade agregadora de todo mundo.
P/1 – E conta pra gente das suas primeiras lembranças da escola em Brasília, como é que ela era, onde que ficava?
R – A lembrança que eu tenho de escola também tem essa coisa de espaço ao ar livre, de grandes espaços. A escola que eu frequentei eu lembro que tinha dois ou três pavilhões de salas, o resto era um grande gramado. Cada vez parece que está mais raro nas escolas, né? As escolas têm mais salas de aula e acabam tendo menos espaço ao ar livre. Mas é uma lembrança muito boa, uma lembrança doce de professoras. No início, geralmente, eram professoras mulheres, em que eu acho que eu aprendi a gostar, eu sempre gostei da escola, do espaço da escola, a coisa do conhecimento sempre foi algo... Eu nunca fui pra escola achando ruim ir pra escola. Até eu já fui professor de inglês quando eu voltei do intercâmbio, eu tenho essa conexão com a escola. Eu passei 15 anos fora da academia depois que eu terminei o meu curso de graduação e fiquei muito voltado para o meu escritório, para o meu negócio que é uma pequena empresa de Arquitetura. Mas eu resolvi voltar à academia e voltar ao mestrado exatamente por esse fascínio que o ambiente escolar tem pra mim. Eu acho que desde aluno, mas também um pouquinho depois como professor e agora já mais na maturidade eu consigo juntar essas coisas. É um ambiente familiar até hoje.
P/1 – E conta pra gente como é que foi pra você a mudança de Brasília pra Natal.
R – Ah, foi uma festa. Na época, foi uma festa porque a gente tinha aquela ideia de quem passa férias no Nordeste. Quando meu pai colocou na mesa do jantar assim: “Estamos pensando sair de Brasília e ir pra Natal”. Ele tinha uma oportunidade específica e na mesma hora a gente agarrou. Eu e minha irmã na época, os meus irmãos mais novos eram tão pequenininhos que eles não tinham nem como opinar muito, como todos estavam entusiasmados, ele pegou a oportunidade. Pra mim, é interessante quando eu penso nisso hoje, eu tive um certo desprendimento. Eu acho que eu e minha irmã, a gente teve um desprendimento, apesar de ter um círculo de amizade. Como ainda era bem iniciozinho de adolescência ainda foi fácil, acho que o entusiasmo por um novo lugar e um lugar de praia, de sol, teve mais apelo do que ficar preso aos amigos, necessariamente.
P/1 – E como é que foi essa viagem, da mudança, ter uma casa nova, um bairro novo?
R – Foi muito legal, foi muito bom. Eu lembro que a família passou uns dois meses organizando tudo, tinha uma série de coisas pra organizar. Lógico, quando você é criança, meu caso já adolescente, você não tem tantas responsabilidades, então imagina que deva ter sido bem mais penoso para os meus pais terem que organizar tudo. Mas tem a coisa de você chegar num lugar novo, não ter ainda a casa, ainda você fica no hotel ou na casa de amigos por um tempo, até você encontrar o lugar pra chamar de casa. Como era verão e a escola, naquela época, começava final de fevereiro, início de março, a gente mudou em dezembro eu acho, foi meio que dois meses de acampamento e férias, então foi diferente, foi bom.
P/1 – E como foi começar a escola nova?
R – É, essa parte eu lembro muito dos meus pais sempre me perguntando: “Como é que está na escola?”, porque quando você vem numa rotina normal essas perguntas passam até um pouco despercebidas, né? De início era interessante porque você é o novato, você é a pessoa que vem de fora, todo mundo chama a atenção porque você tem um sotaque diferente, que você fala gírias diferentes, tem um momento até de você se sentir bem, um certo protagonismo que você não está muito acostumado, né? Mas depois isso rapidinho se dilui e adolescente quer logo dar um jeito de se integrar. Tanto que sotaque mesmo, minha família sempre diz que eu fui o que peguei mais o sotaque de lá. Hoje em dia, eu sou uma pessoa que não tenho sotaque de lugar nenhum, quando eu estou em Natal as pessoas dizem: “Você não é daqui”, quando eu estou em Brasília ou Fortaleza também dizem que eu não sou de lá, então tem um pouquinho de cada tempero.
P/1 – E conta como foi essa última fase escolar e as matérias, os professores.
R – Na escola que eu comecei a estudar, eu passei acho que três anos porque logo depois houve um exame de admissão para a Escola Técnica Federal e eu lembro que meu pai comentou: “O ensino é muito bom, é um instituto federal de educação, você não tem interesse? E como eu acho que em algum momento eu já tinha comentado sobre Arquitetura eles tinham opção de Construção Civil e um dos meus amigos de turma também resolveu fazer esse exame. Eu fiz totalmente descompromissado, nem estudei muito e passei na primeira turma, que seria a turma do primeiro semestre do ano. Naquela época, você fazia o exame e você podia entrar na turma do segundo semestre. Como eu ja tinha mudado de escola há tão pouco tempo, as novas conexões não eram tão fortes para eu dizer: “Não, não quero mudar de novo”. E aí eu mudei sem pestanejar. E é engraçado que eu acho que isso foi virando meio que um padrão, até mesmo para o intercâmbio depois, eu nunca tive medo de abandonar um grupo de amigos e a experiência na escola técnica foi fantástica: é como um menino de 14 anos entrar na universidade porque é um ambiente universitário. Você é totalmente autônomo, você não tem um bedel olhando no corredor se você está na aula ou não, é sua responsabilidade estar na aula. Pra mim, foi um novo mundo que se abriu muito cedo em termos de autonomia, de maturidade e engraçado que há bem pouco tempo que eu me reconectei com os colegas de turma, por conta das redes sociais, um amigo específico teve o trabalho de sair juntando todo mundo pelo WhatsApp. É interessante que bem recentemente estou revivendo muita coisa das experiências que a gente teve durante essa época de escola técnica por conta desse grupo, né? Foram muitas viagens, por conta do conhecimento tecnológico a gente fazia muitas visitas às indústrias, a canteiros de obra, que isso é uma coisa muito diferente para quem está no Ensino Secundário no Brasil.
P/1 – E como surgiu a ideia do intercâmbio, o contato com o AFS?
R – Eu lembro que desde que eu mudei pra Natal eu estudava na Cultura Inglesa, no turno inverso no curso de inglês. Hoje em dia, as escolas são muito bilingues, as crianças cada vez mais, criança e adolescente, têm o inglês na própria escola. Na minha época, necessariamente, se você tinha interesse de aprender bem a língua, você tinha que fazer um curso fora. Na cidade que eu moro, Natal, a Cultura Inglesa era um lugar de referência, quase como uma pequena embaixada da Grã-Bretanha. Como não existem consulados e embaixadas em Natal, eram pequenas escolas de idiomas que muitas vezes difundiam a cultura do lugar. E o AFS na minha cidade Natal sempre teve a Cultura Inglesa como base, porque sempre foi o curso de idiomas mais ligado com questões culturais, de não só ensinar a língua. Sempre tinha apresentação de teatro, música, se algum grupo britânico estava fazendo algum trabalho cultural pelo Brasil parava por lá. E o AFS, como organização que se preocupa com isso, se conectou com a Cultura Inglesa. Quando eu estava estudando na Cultura Inglesa eu lembro várias vezes das pessoas dizerem: “Pra quem quer fazer intercâmbio, o AFS é a melhor opção”. Eu nem questionei. Quando eu tive interesse de fazer intercâmbio, a primeira vez, eu tinha 16 anos, eu conversei em casa e já foi natural eu procurar o AFS. Naquela época, existia bem menos vagas do que pessoas interessadas, então eu fiz a seleção do AFS duas vezes: na primeira vez, eu não fiquei dentro do grupo selecionado, acho que foram 11 ou 12 pessoas de Natal que viajaram em 92. E eu tomei pra mim como questão de honra no outro ano eu estar dentro do grupo. Existia uma ideia também de priorização em relação à idade. Então, quem já tinha 17 ou 18 anos o AFS dava um pouco de prioridade, pelo o meu Comitê local, porque sabia que era a última oportunidade que tinha pra viajar. E o que me disseram quando eu não fiquei nesse grupo é que: “Você ainda tem oportunidade no próximo ano”. Isso era a senha que eu precisava pra insistir um pouquinho mais. Pra mim, e qualquer pessoa que tem a experiência do AFS, passa a ser um divisor de águas, é uma escolha que você faz às vezes de uma forma tão sem pensar muito, é mais uma diversão pra quem é adolescente: “Vou passar um tempo fora”. Mas a gente é supreendido pelo impacto, tanto que hoje as minhas grandes amizades ainda são minhas amizades do AFS, são minhas amizades dessa época dessas duas seleções, que 50, 60 pessoas da mesma idade participavam durante um ou dois meses de uma série de atividades de seleção e alguns eram selecionados ou não. Eu até hoje tenho amigos que não viajaram pelo AFS mas participaram desse grupo de seleção . São amizades às vezes até mais fortes do que minhas amizades anteriores de escola, de Instituto Federal de Educação, da escola técnica. Eu acho que foi uma época da vida em que você toma algumas decisões que passam a ser marcantes. Essas pessoas, existe aí um gancho.
P/2 – Henrique, o Comitê de Natal já era forte nessa época?
R – Já, já era bem forte. O Comitê de Natal sempre foi bem forte. Existe muito essa consciência quando, os candidatos, as pessoas que participavam da seleção. Existia um grupo de amizade muito grande entre os voluntários. Eu me lembro que isso era uma coisa admirada por quem participava das seleções porque você via naquelas oito, dez pessoas que estavam organizando a seleção, jovens universitários, às vezes, eram três anos mais velhos do que nós candidatos, não existia uma diferença de idade tão grande, mas nessa fase você ter 16 e alguém ter 19 ou 20 faz diferença, né? Quem está no Ensino Secundário e quem já é universitário. A conexão que existia entre esses voluntários era uma coisa que era admirável. Tanto que logo que você era selecionado, parecia que você fazia parte já de um pequeno grupo, do pequeno grupo que descolou dos candidatos que estão lá avulsos e já está mais próximo desse grupo de voluntários que é tão amigo e tão legal. Naquela época, início da década de 90, numa cidade como Natal, uma cidade menor, eram as pessoas que eram conectadas com o que acontecia no mundo, eram as pessoas que conheciam as bandas de rock que faziam sucesso antes de chegar no Brasil, eram pessoas que tinham livro importado, acesso a um filme antes que outras pessoas tinham e tinha um apelo, dependendo da característica pessoal de cada adolescente isso tem um apelo específico. Quem viajava um pouco já tinha esse sentimento: “Quando eu voltar eu vou ser voluntário do AFS”. Eu acho que isso, por muito tempo, alimentou essa força que era o Comitê Natal nessa estrutura do AFS no Brasil. E foi isso que juntou com essa minha vontade de continuar um pouco essa experiência que eu tinha tido, do intercâmbio, e reviver ela um pouquinho nesse contato com esses voluntários. E realmente passaram a ser meus grande amigos, alguns deles.
P/1 – Conta um pouquinho desse processo de seleção, como foi participar do primeiro e das atividades e daí insistir e participar do segundo, o que você sentiu que teve diferente, não só nas atividades, mas, de repente, na sua postura, na sua vontade.
R – Eu não consigo dizer que houve uma mudança grande de postura. Eu sei que eu sempre fui mais falante do que os pares (risos). Eu acho que por ter mudado de cidade e você tem que se impor e tem que fazer novas amizades, tal, e logo depois ter mudado de novo de escola, eu tive que mudar de escola duas vezes em sequência. Talvez, você acaba tendo um pouquinho mais de habilidade de ter um certo protagonismo nessas dinâmicas de grupo. Eu acho que desde a primeira vez que eu participei foi um pouco chocante eu não ter sido selecionado, mas eu entendo, até as pessoas que participaram junto comigo, eu me lembro delas dizerem: “Não entendo como é que você não foi selecionado, você era tão participativo”, os outros viam que você estava dentro daquele grupo. Eu acho que teve um pouquinho de decepção quando eu não fui selecionado a primeira vez mas eu não me abati, não. Talvez hoje eu ficasse mais chateado do que naquela época, acho que a gente vai amadurecendo, em algumas coisas a gente sabe lidar melhor com algumas frustrações e em outras talvez, não. Quer queira, quer não, uma seleção dessa envolve um julgamento intelectual. Hoje em dia, você não ser selecionado para algo que estão te julgando intelectualmente, na minha idade, aos 40 anos, talvez fosse mais frustrante do que foi aos 16. Eu me lembro que a minha primeira seleção foi mais marcante, tanto que os meus bons amigos foram dessa primeira seleção. Eles viajaram e eu fiquei, então, eu vivi um pouco a experiência deles quando eles estavam fora, naquela época ainda por carta. Ou saber pelas famílias, o AFS sempre mantém o contato com as famílias que estão com os filhos fora. Eu me lembro de ter várias festas e eventos organizados pelo Comitê que a gente tinha contato com as famílias dos amigos que estavam fora e aí eles contavam o que estava acontecendo, tal. É interessante que eu acho que eu vivi o intercâmbio quase que por dois anos em vez de um ano só porque através dos meus amigos, das cartas que eu recebia e das notícias que eu recebia eu fui meio que fazendo uma ideia do que era que eles estavam vivendo. A segunda participação, no ano seguinte, eu acho que já não tinha tanta coisa nova, não foi o deslumbramento que eu tive a primeira vez porque realmente no programa de seleção e orientações do AFS, o adolescente se confronta talvez pela primeira vez com uma série de questões que são colocadas pra eles discutirem. E esses debates, eu lembro que eram muito legais você saber a opinião do outro, você discordar, ou tentar chegar a um consenso em relação a determinado assunto. Todas as duas foram muito boas, mas acho que a primeira talvez tenha sido até mais marcante, ter sido mais inédita.
P/1 – E como foi ser selecionado?
R – Ah, foi uma felicidade, muito bom. Muito bom. Naquela época ainda, tinha uma série de suspenses, você ficava num grupo de 20, depois você ficava num grupo de dez (risos). E eu me lembro que eu não pude ser garantido, não sei se ainda existe essa nomenclatura no AFS, mas você era selecionado, ok, você passou, está dentro do grupo que vai viajar. Mas algumas pessoas tinham status garantidos e outros de finalista. Como eu tinha acabado de completar 18 anos, eu já ia viajar com 18 anos aliás, eu não podia mais ser garantido, então eu fiquei esperando pra ver se algum país aceitava o meu perfil, né? E eu lembro que na época você colocava uma lista de preferências de países. Eu coloquei Estados Unidos, acho que era de uma [lista de] sete que você colocava. Eu coloquei Estados Unidos em um desses, mas não era o primeiro, acho que antes vinha Bélgica, Canadá, algum desses outros países, na época, ainda mais diferentes. Mas veio Estados Unidos pra mim. Em nenhum momento eu pensei assim: “Não é o lugar que eu quero ir”. Eu acho que eu estava com o firme propósito, o que aparecesse eu iria. E é interessante porque assim, quer queira, quer não, na América Latina, no Brasil, a gente tem uma série de esteriótipos sobre o que é a vida nos Estados Unidos. Eu me lembro de várias vezes, durante o intercâmbio, de ter consciência de que eu estava desconstruindo algumas desses esteriótipos, aqueles momentos que cai a ficha. “Em Hollywood é assim, mas aqui a vida real não é assim”. A gente vê uma notícia na televisão que o americano médio pensa assim ou age politicamente dessa forma, mas não é necessariamente o que a minha família que está me hospedando, ou a comunidade onde eu estou pensa. Nesse sentido foi bem interessante, quebra de expectativas e paradigmas.
P/1 – E como foi descobrir a nova família, os primeiros contatos, quando você ficou sabendo pra qual cidade você ia, pra qual família, ou em qual família você seria recebido?
R – É uma sequência de pequenos entusiasmos, são pequenas pílulas de entusiasmo que você vai recebendo, não sei se o AFS faz isso de forma consciente, até o dia que chega os formulários. Naquela época, a gente recebia o formulário preenchido pela família, formulário de papel, preenchido a mão, com as fotos coladas da família. Tanto que, selecionando as fotos pra vir pra cá, eu me deparei com o formulário que eu recebi. E é muito interessante, as histórias que você cria ao ver algo escrito e com algumas fotos e depois o que você vivencia na realidade. Eu fiquei bem contente. Era uma família numerosa, era uma família parecida com a minha no sentido que era pai e mãe e quatro filhos e como a minha eram três irmãos e uma irmã, então isso tinha já uma conexão muito grande. Como a minha, tinha dois irmãos mais velhos e dois irmãos mais novos, existia uma diferença de geração, dois grupos de irmãos. E é interessante que eu não sei se isso foi o fato da minha família americana ter me escolhido, né, porque pelo que eu entendi depois, no Comitê local lá em Oxford eles faziam uma reunião com as famílias, eles distribuíam os formulários e as pessoas iam dizendo quem elas queriam hospedar. Talvez essa composição familiar, além do que você escreve nos formulários, tenha sido um dos motivos dessa conexão. Eu senti que foi uma conexão também imediata. Eu não sei se eu estava muito aberto, eu queria tanto que desse certo de qualquer forma, mas eu me lembro que na foto que eu selecionei pra mostrar vocês a família, que foi aquela primeira orientação de três meses, eu nunca me esqueço voltando pra casa, no carro, e a minha mãe americana me dizendo: “É, parece que a gente tirou a sorte grande porque tinha um bocado de gente reclamando e eu fui uma das poucas que disse: ‘Mas tá tudo tão bem’” (risos). Eu lembro dela comentar porque você se comunica, você já tem um certo comando da língua e tem gente que chega falando menos inglês e às vezes é um pouco mais difícil esse iniciozinho, também a coisa de ser parecido, acho que foi bem mais tranquilo do que eu pudesse imaginar. Durante o processo de seleção, eles te preparam para uma série de adversidades, pode ser aconteça isso, pode ser que aconteça isso outro. E essas dificuldades não aconteceram tanto pra mim.
P/1 – Conta como foi a viagem, se despedir aqui do Brasil, terminar de arrumar suas coisas pra chegar lá.
R – Eu lembro que eu não pude ir pra colação de grau da minha turma da escola técnica porque a viagem foi anterior ao evento de colação de grau. Eu me lembro de ter ficado um pouco chateado com isso, não poder participar. Eu lembro que foi corrido. Eu acho que é um turbilhão de emoção tão grande pra quem tem pouca idade que não dá tempo nem de você digerir muito bem, acho que você vai vivendo as coisas conforme elas vão acontecendo. Eu lembro de uma série de despedidas, despedida com familiares, alguns primos que vieram de Fortaleza; como Fortaleza e Natal são relativamente próximos, sabiam que eu ia passar um ano fora, vieram pra poder ter um tempo ali de férias de primos juntos e depois dizer tchau. E uma ou duas semanas assim, que quase todo dia eu tinha que passar o dia resolvendo coisas pra viagem, mas à noite eu tinha algum momento de lazer que era uma despedida, uma despedida com determinado grupo de pessoas. Isso de certa forma te prepara, demonstra que você é querido, que você vai mas quando voltar aquelas pessoas vão estar lá, não foi uma coisa que passou despercebido: “Ah, Henrique vai ali na esquina e volta”. Não. Teve todo um envolvimento de quem era próximo pra dar um tchau, isso é bem legal.
P/1 – E como é que foi a viagem, chegar lá?
R – A viagem. Naquela época, a gente vinha para o Rio de Janeiro. Todo mundo que ia viajar junto para o mesmo país se encontrava no Rio de Janeiro, aí tinha uma sessão de orientação e depois é que embarcava. Eu lembro que foi a primeira vez que eu fui ao Rio, também foi muito legal esse ponto de parada, porque afinal o Rio de Janeiro tem um apelo pra qualquer brasileiro. Eu lembro de ter ido com meu pai, o meu pai foi comigo, a gente passou dois ou três dias no Rio e até hoje a gente tem lembranças dessa viagem, até hoje ele comenta: “Lembra quando a gente esteve no Rio e a gente fez tal e tal coisa juntos?”, foi um momento bem de pai e filho amigos, foi muito bom. Aí você embarcava no Galeão, o avião quase inteiro era de AFSs. Eu acho que a gente até meio que intimidava os outros passageiros porque era tanta gente com a mesma camiseta (risos). E a gente fez uma conexão em Miami, aí logicamente ninguém dormiu, um voo desses com 16, 17, 18 anos, para muitos era a primeira viagem que faziam sozinhos, uma viagem mais longa que faziam. É aquela coisa de saber de onde as pessoas são, de prestar atenção nos diferentes sotaques. Pra muitas pessoas, era a primeira vez que elas tinham mais contato com outras pessoas, com pessoas de outros lugares do Brasil, o que pra mim era algo já bem familiar. Eu acho que até a experiência intercultural já começava ali. Hoje em dia não, acho que hoje em dia o Brasil é bem mais integrado, as pessoas viajam mais. Mas há 22 anos, para um adolescente talvez fosse a primeira vez que ele conhecia gente do outro lado do Brasil. E em Miami a gente se separou, porque em Miami cada um ia para sua região. E a gente foi pra Universidade de Kent, em Ohio, acho que um grupo de oito ou dez pessoas, que iam para o Estado de Ohio. A gente pegou um voo pra Cleveland e ficou nessa cidade que chama Kent, que é uma universidade. E foi uma semana de “acampamento”, nos dormitórios da universidade, com orientações do AFS. E é uma época que também todo mundo lembra muito, sempre em círculos de ex-participantes do AFS todo mundo fala com muito carinho dessa primeira semana porque é muito intensa. E aí quando você conhece os estudantes de vários outros países, até hoje eu tenho conexão com essas pessoas que passaram essa primeira semana juntos. Depois, durante o ano de intercâmbio, algumas delas eu nem vi com tanta frequência porque estavam em cidades diferentes, depois a gente se distribui pra diferentes cidades dentro do Estado, mas essa primeira semana e a semana do retorno são muito fortes. Com a coisa do Facebook depois todo mundo conseguiu se reconectar.
P/1 – E conta do momento das suas primeiras impressões quando viu a família, quando chegou lá na casa deles e viu que de fato estava aí, chegado o momento do intercâmbio, dessa troca cultural, dessa nova família.
R – A primeira lembrança que eu tenho é assim, brasileiro, a gente demonstra muito o nosso sentimento. Você vem tão pilhado, tão entusiasmado, você desce do ônibus, você sai correndo e abraça. Eu lembro deles ficarem assim (risos). Porque pra cultura deles isso talvez fosse uma atitude de reencontro e não de conhecer pela primeira vez, de correr do ônibus e deixar a mala pra trás: “Oi, tudo bom?”, e dar um abraço (risos). Eu tenho impressão que a primeira impressão que eu tive não foi necessariamente de frieza, mas foi de um pouco de indiferença em contraste ao meu entusiasmo. Mas eu acho que isso durou um ou dois dias, logo eu consegui estabelecer uma conexão com cada um da família. Assim, os pequenos, como tinha irmãozinho menorzinho era um pouco diferente, mas a minha irmã de nove anos eu lembro demais, é como se ela tivesse recebido um ET em casa, né? Eram perguntas mil e eu perguntando: “O que ela disse mesmo?”, porque criança falando em inglês eu nunca tinha ouvido (risos). O interessante é que com o meu irmão de idade mais próxima, o Ben, demorou um pouquinho, coisa de dois adolescentes homens, pra ter uma conexão, que eu achava no início que nem ia acontecer. Porque a gente estava em turmas diferentes, ele era Sophomore ou Junior, eu era do último ano do colegial, que eles chamam lá de Senior e ele era um ano antes. E quando você é adolescente isso faz uma diferença grande. Eu fui estabelecendo essas relações com a família como um todo mas também você vai criando laços com cada um individualmente. E eu me lembro que eu não tinha muita expectativa de sermos bons amigos ou de ser o melhor amigo do meu irmão em idade mais próxima, até porque as preparações do AFS te preparam pra isso também: “Não cria essa expectativa”. E como já existia uma diferença de idade, eu acho que a diferença de idade são dois anos de diferença, mas como eu fui já com 18 anos a minha turma era de pessoas entre 17 e 18, então dentro da grade curricular era de um ano para o outro, ele era Junior e eu era Senior. Mas eu me lembro que uma das orientações do AFS. Não foi uma orientação, foi um fim de semana bem de recreação, com dois meses que eu estava lá, que a gente acampou. Foi a primeira vez que eu acampei mesmo, acampar de estar numa barraca de camping. Aqui no Brasil você não consegue, pelo menos onde eu moro acampar, você acorda cinco horas da manhã com 40 graus dentro da barraca. Lá não, já era iniciozinho do outono, foi legal. E eu me lembro da genter ter voltado dessa viagem bem mais amigo. E aí minha mãe disse: “Ah, parece que finalmente vocês estão mais amiguinhos”. E depois disso foi realmente uma relação de irmão. Eu acho que eu como irmão mais velho, o irmão mais velho dele já tinha saído de casa e pra mim ele era a minha referência de mais próximo em idade, de alguém que eu aprendi as gírias com ele, eu aprendi as coisas que adolescente tem que aprender, de como conviver com um grupo da mesma idade mas de culturas diferentes por ele, que me explicava as coisas, tanto que no final da experiência do intercâmbio ele disse que viria para o Brasil. Eu até achei que não ia vir e um ano depois ele veio, passou seis meses na minha casa. Mas realmente foi uma amizade importante naquele momento. Eu acho que a minha integração na escola e na comunidade teve ele como ponte, como a coisa da idade muito próxima, de você aprender a falar com os outros e agir com os outros de acordo com sua idade. Porque quando você vem de uma outra cultura, você estuda o idioma numa escola, ou você convive só no ambiente familiar, você pode ficar um tanto deslocado da sua forma de interagir ou de se comunicar. Quando você cria vínculo com as pessoas da sua idade, vínculos mais fortes, você tem pelo menos a quem ter como referência. Eu, verdadeiramente, ao fim do intercâmbio eu me sentia um adolescente americano, uma coisa engraçada que é até uma coisa difícil pra sua volta. Hoje em dia, o mundo é mais parecido, no mundo globalizado as coisas estão mais parecidas, as pessoas estão mais parecidas em diferentes lugares. Mas naquela época você volta se vestindo completamente diferente, você volta com atitudes muito diferentes e o retorno também é um choque nesse sentido .
P/1 – Como você definiria esse adolescente americano? O que aconteceu com você pra você se sentir desse jeito, como você definiria essa mudança?
R – Eu acredito que passa muito por uma questão de o americano tem muito isso de que ele consegue fazer as coisas, uma ideia de autonomia. Eu acho que eu consegui aprender isso e até dosar um pouco a cultura latinoamericana e brasileira é a cultura coletivista e a cultura anglo-saxã, a cultura americana é um pouco mais individualista, ou bastante individualista, dependendo da personalidade da pessoa. Eu acho que eu consegui absorver um pouco isso, de não me preocupar tanto com os outros ou o que os outros pensam, de tentar se integrar mas também de ter sua própria voz, ter sua própria personalidade. Eu acho que ao voltar isso era perceptível pra muita gente, pros meus amigos, em casa também. Você se sente mais à vontade de falar o que você pensa, sempre com alguma diplomacia, porque eu acho que o AFS também passa um pouco isso, de você colocar o seu ponto de vista, mas não necessariamente você precisa dizer que o seu ponto de vista é melhor ou pior do que o do outro. Eu acho que é a coisa do empreendedorismo. De certa forma, eu aprendi lá também porque apesar do meu avô e dos meus pais no início da vida deles terem trabalhado com comércio, mas toda minha vida eu já os vi como funcionários, funcionários públicos. Quer queira, quer não, isso molda a família, a maneira como você lida com o trabalho, como você lida com as ideias. No caso da minha família americana ambos eram profissionais de iniciativa privada, que tinham muitas ideias e que tinha muita essa coisa na hora do jantar conversar e falar: “Mas isso aí podia ser um bom negócio. Ó, isso aí que você faz, você pode viver disso”. Eram coisas que eu não conversava em casa, não se conversava sobre isso. Quando eu fiz o intercâmbio, eu já tinha feito o vestibular e já tinha feito o primeiro semestre do curso de Arquitetura. Foi uma época bem ocupada porque eu estava me preparando para o intercâmbio no primeiro semestre de 93, estava no último semestre da escola técnica e primeiro semestre de Arquitetura, então tinha aulas pela manhã e à tarde em diferentes instituições de ensino. Só que eu não tinha percebido ainda o tanto que a minha profissão que eu estava escolhendo, no caso Arquitetura, ela dependia da iniciativa privada e do empreendedorismo. Eu acho que eu voltei com muito mais consciência em relação a isso, me fez aproveitar muito mais as ideias criativas no restante do curso, da ideia de que você vai terminar o curso, você não vai fazer um concurso público, você vai arranjar um jeito de exercer a sua profissão. Eu acho que o intercâmbio me ajudou muito nesse sentido, nessa ideia talvez até estereotipada americana, que se você quer, você pode. Eu não necessariamente acredito 100% nisso, tem uma série de outros... E me lembro de lá conversar sobre isso com as pessoas: “Mas você acredita nisso, que é só querer que pode?”, apesar de muita pouca idade eu conseguia ter essa crítica. Mas eu acho que um pouco dessa dose é importante, que não pode simplesmente achar que você depende do contexto, você tem que fazer por onde.
P/1 – E conta pra gente uma história peculiar, diferente, que aconteceu durante o intercâmbio que você lembre com mais facilidade, de repente uma história que aconteceu por conta da comunicação, ou uma história que aconteceu que foi engraçada por causa das diferenças culturais.
R – São muitas histórias assim, de pequenos lapsos. Eu me lembro de mais ainda no iniciozinho, acho que nas primeiras semanas, de estar no supermercado e ser apresentado à vizinha e abraçar e dar dois beijos (risos). Você vê o espanto da pessoa porque assim, para um brasileiro, na hora você fica envergonhado, eu lembro que eu fiz e já pedi desculpa, mas é tão automático. É engraçado ver a reação da pessoa, a pessoa fica absolutamente estática sem entender o que está acontecendo. A coisa da língua... Tiveram vários episódios de lapsos com relação à língua. Eu me lembro que eu tinha muito, e isso meu irmão me chamava muito a atenção, que em inglês uma série de vogais, existem muito mais vogais do que em português. Então, muitas vezes a gente fala uma coisa querendo dizer outra. E esses lapsos muitas vezes são embaraçosos, você pode falar uma palavra que absolutamente não cabe naquilo ali, ou até mesmo é um palavrão. Eu me lembro de logo no início já ficar bem preocupado com isso. Me lembro também de ter de falar em público. O AFS sempre faz com que você vá para algum evento e fale sobre o AFS, fale sobre o seu país, fale sobre a sua cultura. E eu lembro de no início ficar bem ansioso, até meio que mudar o tom de voz, né? E do meio pro fim era um passeio, chamavam pra ir falar no clube da associação, sei lá, dos rotarianos. E pra mim aquilo ali já ser uma coisa bem tranquila. Na escola, eu lembro especificamente de uma brincadeira que meu irmão fez comigo: teve um momento no meio do ano que pediram para todos os intercambistas dar bom dia e as boas vindas no sistema de som da escola. E o meu irmão me convenceu que eu tinha que tirar onda, que eu tinha que dizer algum palavrão, alguma coisa no meio do que eu fosse dizer porque a ideia era que você falasse na sua língua, porque era a oportunidade que eu tinha de ouro pra falar algum palavrão pra escola inteira. E isso não é tanto da minha personalidade, mas eu comprei a ideia e fiz. Ele morreu de rir porque só ele sabia do que eu estava falando. Dei as boas vindas, bom dia a todos. O que a escola queria é que os outros alunos ouvissem as várias línguas. Teve uma semana que todo dia alguém ia lá com microfone e dava as boas vindas. Eu me lembro que esse foi um momento totalmente diferente da minha personalidade, mas eu encarei o desafio. Ele riu um bocado, ninguém nunca soube dessa história na escola (risos).
P/1 – E conta pra gente como é que foi voltar. E voltar pra sua casa, voltar pro cotidiano daqui e a faculdade.
R – Na verdade, você passa o ano sabendo que isso vai acontecer, mas quando chega pertinho é quando realmente cai a ficha, cai a ficha de que você nunca mais ver aquelas pessoas com a mesma frequência, nunca mais vai ser igual, mesmo que você volte pra visitar ou que ela vá te visitar, que você está voltando pra casa e que em casa as coisas continuam. Pra mim foi muito mais difícil sair lá do que sair aqui, porque eu tinha essa consciência, quando eu saí daqui eu sabia que todo mundo ia estar lá quando eu voltasse, as coisas não iam ser iguais um ano depois, mas eu tinha essa segurança de que as pessoas e as coisas estariam lá. Quando eu voltei do intercâmbio, acho que um mês antes, eu já comecei um pouco a sofrer em saber que eu estava me despedindo das pessoas, eu não sabia quando é que eu voltaria a vê-las e se um dia eu voltaria a vê-las. É engraçado porque emocionalmente eu não demonstrava isso, mas eu me lembro que eu fiquei doente fisicamente, teve dois episódios da minha família me levar no hospital porque eu estava todo coberto de mancha vermelha. E o médico disse: “Psicossomático. Você não tem absolutamente nada. É uma reação ao fato de você ir embora daqui a um mês”. E eu me lembro que isso me deixou meio assustado: “Nossa, a mente da gente ou a emoção consegue fazer isso?”, quando você é mais novo você não tem essa consciência, sua cabeça tem um vida própria, autônoma (risos). Mas eu sobrevivi! Não me lembro de ter deprimido, não. Depois que você embarca é bom, depois que você está no avião de volta, você fala: “Ah, vou ver todo mundo. Ah, vou comer aquelas comidas familiares, vou sentir os mesmos cheiros”, aí é uma sensação boa. Mas as semanas de despedidas são muito fortes emocionalmente, muito fortes mesmo. Mesmo para alguém como eu, que já tinha mudado de cidade, já tinha mudado de escolas, que aquilo não era tão novidade assim, mas eu acho que eu tive uma conexão tão forte com a minha família e com alguns amigos e com a cidade, a comunidade, que eu fui surpreendido pelo tanto que foi forte emocionalmente. Depois você supera. Quando você volta lá e você vai visitar, você vê que as coisas mudaram, mas você se sente em casa. E isso é uma sensação boa, que eu tenho, sabe? E que eu sei que não é todo mundo que tem, nem todo mundo continua se sentindo em casa. Pelo fato de eu ter feito intercâmbio nos Estados Unidos e depois as funções que eu exerci no AFS como voluntário, eu tive a oportunidade de voltar aos Estados Unidos várias vezes nos últimos 20 anos. Sempre que eu chegava, eu tinha a mesma sensação: “Estou chegando em casa. Aqui é um lugar que eu sei como as coisas funcionam. Eu sei reclamar se eu tiver que reclamar, se eu tiver que lembrar alguém que eu tenho tal direito”, quando você viaja pra outros lugares, nem sempre isso é tão fácil assim.
P/1 – E a rotina, como é que foi? Antes disso até, se teve o acampamento da chegada, como foi isso? Eu não sei se você chegou a fazer aquela carta de um ano antes de sair, como é que foi ler essa carta, o que tinha de diferente nela, como é que foi tudo isso?
R – Eu acho que teve essa carta sim, agora que você está comentando. Eu não vou lembrar de coisas muito específicas, mas é sempre engraçado, você sempre fantasia coisas que não acontecem na realidade. É engraçado também porque eu acho que a gente é obrigado a escrever sobre coisas muito maduras numa idade muito... Eu já me peguei vendo coisas que eu escrevi na época do intercâmbio e achando graça: “Nossa, eu achava que eu sabia alguma coisa sobre isso” (risos), com 18 anos. Eu lembro que o acampamento de volta era uma outra atmosfera, uma outra vibe, porque está todo mundo voltando, tem aquele peso de tristeza. Enquanto na chegada está todo mundo junto naquele entusiasmo de estar no início do intercâmbio. Eu me lembro demais também das despedidas. Porque a cada duas horas saía um ônibus que ia levar alguém dos nossos amigos para pegar o voo no aeroporto. Foram 48 horas de despedidas. Isso acaba com qualquer um (risos)! Eu lembro de entrar no voo de volta pro Brasil acabado, de dormir e só acordar quando o avião aterrisou. A volta à rotina foi de novo talvez uma ideia de férias, não foi difícil, não. Porque logo a família e os amigos arranjam mil coisas pra fazer, você passa o primeiro mês só falando do que você viveu, aí depois o pessoal esquece (risos).
P/1 – E conta como é que foi o processo de virar voluntário. Por que você foi fazer isso, o que motivou essa movimentação?
R – Foi muito natural. Eu acho que não precisou de nenhum tipo de convencimento, na verdade foi até assim: a volta da convivência com os amigos porque, como eu comentei, eu fiz a seleção duas vezes. Quando eu voltei, meus amigos que tinham passado na primeira seleção já estavam há um ano de volta e já tinham se integrado ao AFS. Se eu quisesse vê-los, eu tinha que ir pras reuniões do AFS, que sempre tinha uma reunião pra resolver alguma coisa que o Comitê tinha que providenciar, a maioria delas é conseguir famílias hospedeiras pra novos estudantes que vão chegar no comitê. Em seguida, sempre tinha uma saída, sempre você vai para um barzinho, vai pra balada. Então, essa integração foi natural. Logo, foram me arranjando responsabilidades. Primeira coisa que você faz quando você volta é ser conselheiro de algum estudante estrangeiro hospedado aqui e é uma coisa legal porque você acabou de vir de uma experiência que você tem amigos do mundo inteiro e aí quando você volta o AFS já te arranja um gringo pra você tomar de conta (risos). É bem isso.
P/1 – E você lembra quem foi o seu primeiro aconselhado ou os primeiros conselhos?
R – Lembro, lembro. Foi um cara chamado James, da Nova Zelândia. Muito engraçado ele, muito engraçado. Ele ia pra minha casa sem ligar. E eu lembro que eu morava numa casa de muro baixo, baixo mesmo, uns 80 centímetros. Ele não tocava a campainha, ele pulava, entrava no jardim e batia na porta (risos). Minha mãe até hoje tem essa lembrança (risos). Era bem meninão, era bem diferente de mim como estudante estrangeiro. Eu lembro de chamar a atenção dele, é engraçado que eu acho que era uma diferença de um ou dois anos, mas parecia que eu era pai. Porque como ele era tão menino eu tinha que chamar a atenção para algumas coisas: “Ó, aqui não se faz isso”. Teve uma vez que a gente combinou com um grupo de amigos de ir pro cinema e quando eu parei na casa dele, ele estava descalço (risos). “Volta e vai colocar sapato” “Não, mas na Nova Zelândia a gente anda sem sapato” “Mas aqui não! Não existe isso você ir prum cinema num shopping descalço”. Na minha experiência, eu era muito mais observador, eu observava antes de fazer. E é interessante ver que cada pessoa age de um jeito.
P/1 – E como foi prosseguindo a sua carreira de voluntário? Como foram chegando outras responsabilidades, outras atividades?
R – A gente sempre falava que no AFS você começa como voluntário, a gente chama de voluntário de base. Quando você chega é igual a um trabalho novo, quando você chega não tem muito espaço, então ficam te arranjando tarefas menores, coisas satélites. Logo, alguém vê que você tem condição de fazer alguma coisa a mais e, um belo dia, chega uma caixa na sua casa: é quando você virou Presidente do Comitê. O presidente anterior chega e diz: “Ó, estou chutando o balde. Está aqui a caixa (risos) com tudo o que tem do Comitê aqui dentro e agora é a tua vez”. E esse dia chegou rapidinho pra mim. Rapidamente, eu tive que exercer esse papel de presidente do Comitê. E é muito engraçado porque o AFS faz isso, a gente não tem consciência, hoje eu tenho consciência, de você ter grandes responsabilidades como se fosse gerente de uma unidade de negócios numa empresa com 20 anos de idade. Porque ou é você ou não é mais ninguém, não tem o que fazer. Você tem que gerir recursos, entra dinheiro na sua conta, você tem que prestar contas daquilo. Logo depois, eu fui ser Diretor Administrativo da região Nordeste, que é quem cuida do dinheiro de todos os comitês daquela região. Hoje em dia, eu nunca exerceria essa função, eu morreria de medo de ter essa função, de ter que abrir uma conta corrente, ter dinheiro colocado numa instituição, de eu ter que prestar contas desse dinheiro. Porque você passa a ter uma consciência de tudo o que pode dar errado, mas quando você é mais jovem alguém diz assim: “Quer fazer isso?”, você faz. Até hoje isso me ajuda, quando eu tenho algum desafio profissional, alguma coisa que me traz algum tipo de ansiedade, eu dou um passo pra trás e tento me lembrar: “Pera aí, quando eu tinha 20 e poucos anos eu fiz tal coisa. Eu consigo, vai dar certo”.
P/1 – E conta pra gente um pouquinho de como é que foi o processo de reformulação do AFS, dos grupos de voluntários, da estruturação.
R – Bom, dentro do AFS eu fui passando aos poucos, de Presidente do Comitê pra Diretor Administrativo, que a gente cuida da parte financeira da região. Eu fui Diretor Regional, que é quem tem obrigações operacionais em relação à região, no caso Região Nordeste eram cinco Estados, foi um caminho natural, os próprios outros voluntários, ou até os funcionários da organização vão dizendo: “A gente precisa de você na Diretoria Nacional”. E a coisa da pouca idade, você tanto toma aquilo como a coisa que te envaidece, como também você vê uma grande oportunidade. Porque o AFS é muito interessante. A gente que é voluntário diz assim: “Eu não sou remunerado pelo AFS, mas eu ganho muito”. O AFS te proporciona muita coisa. Eu entrei nesse grupo da Diretoria Nacional, no final das contas, passou a ser um grupo de amigos de vários lugares do Brasil, não mais aqueles meus amigos lá do Comitê Natal mas um vínculo muito forte entre essas pessoas que até ajuda você a levar a frente os desafios. Foi justamente numa época em que o AFS internacional, que é essa organização que coloca os padrões da rede, coloca os padrões para cada um dos 50 e poucos parceiros em cada país, começou a demandar das organizações nacionais que revissem sua estrutura com o principal propósito de separar as responsabilidades de voluntários das responsabilidades de funcionários. Dentro de uma gestão moderna de uma organização do Terceiro Setor que conta com as duas forças de trabalho, profissional e a voluntária, em muitas organizações do AFS isso estava muito bagunçado, existia uma sobreposição de papéis, muitas vezes os membros da Diretoria Nacional, ao invés de estarem colocando estratégias para a organização estavam apontando o que o funcionário deveria fazer. Ou seja, uma ingerência sobre as responsabilidades dos funcionários. Eu me lembro que a gente teve que estudar pra entender isso, que existe uma teoria por detrás disso, existem trabalhos escritos em relação a isso, como uma organização do Terceiro Setor que tem essas duas forças de trabalho deve separar as coisas. Numa idade ainda muito jovem eu me lembro de pegar os manuais, que são nove manuais em inglês, e ter que dissecar esses manuais. Esse grupo de pessoas com quem eu trabalhei passou a ser responsável, eu acho que a gente passou a ser, na verdade, os grandes vendedores da ideia, porque a gente precisava que a organização, que os voluntários, fossem para uma convenção nacional e votassem no novo estatuto, que comprassem a ideia de que uma nova estrutura, em que os papéis fossem bem definidos seria bom pra organização. E foi muito legal, foi muito desafiador mas foi muito legal. Eu me lembro de viajar quase todo fim de semana para ir em encontros em comitês e regiões pra poder explicar o que era aquele novo estatuto. Eu tinha participado do grupo que tinha refeito o estatuto e tinha que estar com todas as questões na ponta da língua. Eu me lembro muito de me sentir muito testado – muitas vezes, muito testado – por voluntários muito mais antigos do que eu. Até hoje esse grupo ainda é referência dentro do AFS como pessoas que sabem como deve ser a gestão de uma organização do Terceiro Setor. Até hoje, eu sou chamado pra capacitações, quer seja no Brasil ou em organizações parceiras fora do Brasil, pra falar como deve ser o papel do membro do Conselho Diretor, o que o membro do Conselho Diretor faz e o que ele não deve fazer. Isso pra mim foi muito importante, até pra minha vida profissional, a coisa de aprender a delegar, de que você não tem o controle, ninguém nunca tem o controle total, você tem que arranjar formas de garantir que as coisas sejam realizadas, mas sem que você esteja prescrevendo cada um dos passos. É um trabalho que até hoje eu tenho orgulho de ter participado.
P/1 – E como foi entrar na Presidência e estar à frente do grupo de voluntários?
R – Também foi muito natural. Eu nunca me vi muito como uma pessoa ambiciosa por protagonismo, mas a vida sempre me mostrou que ou era eu ou era alguém menos capaz do que eu. Eu tenho essa consciência com um misto de admiração e humildade, mas também entendendo um pouco que é uma responsabilidade que você cria, é uma coisa que você adquire e que você até deve às outras pessoas. Eu tenho muita dificuldade de deixar alguém na mão, ou deixar a empresa na mão, ou a organização na mão. Eu sabia que eu tinha que cumprir aquele papel, foi relativamente natural e não teve muito sofrimento envolvido não, foi prazeroso. Foi prazeroso porque eu acho que foi uma época especificamente do AFS, foi uma época bem harmônica que eu acho que a gente tinha acabado de ter todo um trabalho de convencimento, de mudança de estrutura organizacional. Aquele grupo de pessoas teve que conhecer os voluntários cara a cara nos vários encontros pra poder vender a ideia. Então, eu acho que eu estava a frente de um grupo que tinha um carisma e que tinha um respaldo. Foi até bem mais fácil do que eu pensei que pudesse ser. Ao mesmo tempo, eu cumpri aquele papel, eu sei que eu tive aquele papel naquele momento, já tive algumas conversas com pessoas do tipo: “Ah, você deveria voltar pro Conselho Diretor” “Ah, você deveria se candidatar”. Não foi duas, três vezes, foram mais vezes. Mas eu tenho sempre a sensação que eu cumpri meu papel naquele momento, talvez eu seja bem mais útil fazendo alguma outra coisa. O que eu faço hoje em dia no AFS é treinar outros voluntários ou debater sobre o futuro da organização, pensar a organização de fora ao invés de estar envolvido nos problemas. Hoje em dia eu acho que eu faço mais bem à organização fazendo isso.
P/1 – E conta como é que foi a passagem desse período de Presidência para aí fazer parte do AFS Internacional. Conta a responsabilidade disso, todo esse processo de passagem, como eram as reuniões.
R – Eu acho que, pensando agora, foi o passo que eu fiz que eu precisei mais de convencimento, porque não era uma coisa tão natural. Não era tão natural porque não acontecia com todos que vinham do Conselho Diretor do AFS Brasil ou que tinham sido Presidente do AFS Brasil de se candidatar ao AFS Internacional. E eu também tinha uma outra consciência, de que o que me movia muito trabalhar no AFS, além da missão da organização, mas era também o grupo de trabalho que eu formava. Era muito importante para mim e eu acho que, em geral, é para o trabalho voluntário estabelecer conexões com seus pares, com quem você está dividindo as responsabilidades, isso ajuda, isso faz com que você realize as atividades não só pela missão, mas pra não deixar ninguém na mão, não deixar seu amigo na mão. Eu sabia que o Conselho Diretor do AFS Internacional, que a gente chama de Board of Trustees, era um conselho muito maior, são pelo menos 18 pessoas, pessoas de várias partes do mundo, pessoas de diferentes idades, realmente uma ideia de conselho diverso, de muita diversidade. Aquilo de certa forma me amedrontava um pouco. E o tempo mínimo que é de três anos parece muito mas são três ou quatro reuniões por ano. E fora isso você não tem mais tanto contato. Me convenceram, me convenceram que eu tinha a exposição internacional necessária e que se não fosse eu o Brasil ainda ia passar mais algum tempo sem ter ninguém no conseldiretor internacional. E já fazia muitos anos que o Brasil não tinha. E o AFS Brasil tinha uma posição importante na rede naquele momento. A minha trajetória dentro do AFS Brasil desde que eu comecei como voluntário coincidiu com uma linha ascendente dos comitês, das regiões. O Comitê Natal quando eu era presidente foi o melhor Comitê do Brasil. A região Nordeste cresceu muito, então é a prova de que voluntários compromissados realmente fazem a diferença. E o AFS Brasil passou a ser admirado internacionalmente. Porque na década de 80, com toda dificuldade que a gente tinha, econômica, inflação, era muito difícil gerir essa organização. Uma organização que depende de receitas em dólar. E a partir da estabilização econômica do início dos anos 90, o AFS Brasil também se beneficiou dessa estabilidade e pôde planejar melhor, então logo passou a ter um destaque internacional. Só que a gente não tinha nenhuma representatividade nesse conselho internacional. E me convenceram por isso, que eu era a pessoa porque, como presidente da organização nos dois anos anteriores e como membro do Conselho Diretor por sete anos, eu já tinha exposição internacional conectada com essa trajetória positiva do AFS Brasil. Eles estavam certos porque eu fui eleito e diz a boca miúda que eu fui mais bem votado. Meus pares nesse conselho que pelo menos sete ou oito anos a mais do que eu, os mais jovens. A maioria já estava na faixa dos 60 pra lá. Tem pessoas aposentadas, tem pessoas que já foram presidentes de grandes organizações. Isso pra mim foi assustador porque eu tive uma dificuldade em lidar com isso no início. E também uma pressão que esse conselho sofre porque são 50 e poucos países, com 50 e poucos problemas diferentes que estão constantemente perguntando por que o problema deles não é resolvido. Mas foi muito importante pra mim, eu realmente agradeço que tenham insistido, mas ao final de três anos eu disse: “Não, pra mim chegou. Eu acho que eu cumpri essa parte também”. Porque no AFS Internacional você pode se candidatar quantas vezes você quiser, não existe limite de candidatura; no conselho do AFS Brasil não, existe um limite de duas reeleições. Hoje em dia, eu estou bem confortável com a minha posição de trabalhar com educação, com educação de voluntários, capacitação de voluntários. Até que alguma outra coisa surja.
P/1 – Conta pra gente dos congressos mundiais, de ter ido pro congresso mundial de Berlim que você estava falando, pra apresentar sua proposta.
R – Faz parte das exposições que o AFS exige. Exposições pessoais. Você tem que demonstrar, é muito diferente de política partidária, mas é política. Você não vai para um evento desse como candidato a uma posição eletiva pra lançar uma plataforma, seria até feio se você fizesse assim porque a ideia é que você vai participar de um grupo de pessoas e como qualquer conselho você deva exercer a política pra que o grupo tenha uma opinião única. É tanto que se evita muito votar nessas reuniões. Sempre, essas exposições são difíceis porque você tem que encontrar o ponto certo entre ser compreensivo, diplomático, saber ouvir, mas também de trazer pro grupo contribuições importantes, de em determinados momentos conseguir vender a sua ideia. É um meio termo que às vezes é difícil. A gente está muito acostumado a ver discursos de políticos e política partidária. Quando a gente fala de governança de uma organização do Terceiro Setor, no Brasil, a gente ainda não tem muito essa cultura. Basta ver uma reunião de condomínio pra gente ver como é difícil. Uma reunião de condomínio é um exemplo de governança de uma organização sem fins lucrativos, mas que vira uma bagunça porque cada um só pensa no seu lado, ninguém pensa muito no coletivo. A cultura brasileira tem um pouquinho de dificuldade em relação a isso. Eu sabia que eu estava sendo exposto para um grupo de pessoas de diversas origens nacionais e que eu tinha que encontrar esse ponto certo. Eu me lembro que foi uma das falas mais difíceis que eu fiz no AFS, você tem que se vender como candidato e dizer que você está a altura e tal. Mas no final foi bem sucedido, foi bom. E os congressos internacionais a partir daí você como membro do Board of Trustees, e nem todos vão a todos os eventos porque alguns deles têm até limitações de viagens, porque já são bem maiores de idade, eu lembro que foram três anos muito intensos de viagem, a ponto de eu ficar preocupado com as minhas obrigações com o meu negócio, com a minha empresa. Quando chegou ao final, foi uma saudade aliviada, de ver que: “Ok, consegui fazer com dignidade, sofri pressão mas consegui fazer à altura, mas agora eu tenho que dar um passo pra trás e dar uma olhadinha nas questões pessoais também, nos projetos profissionais.
P/1 – E conta pra gente como é que foi celebrar os 50 anos do AFS Brasil e estar aqui hoje ajudando a gente com esse projeto nos 60 anos.
R – Sesseta anos, pois é, passa rápido, viu? Quando falaram que estava já começando as comemorações dos 60 anos eu tomei um susto. Porque pra mim ainda é muito viva a comemoração dos 50. Tanto que as pessoas que sabem na minha família, que na época eu deixava a ir pra determinados eventos familiares porque eu ia para algum evento dos 50 anos. Quando eu comentei que eu vinha para o de 60 anos todo mundo fez: “Mas já? Um dia desses não foi os 50 anos?” (risos). Foi muito legal participar dos 50 anos porque eu me lembro que naquela época era o iniciozinho das redes sociais ou da era mais digital, não tanto ainda redes sociais, mas foi um momento de resgate. A gente fez dos 50 anos um momento de resgatar o contato com vários voluntários e outros parceiros que a gente sabia que faziam parte da história do AFS mas que tinham se desgarrado. E pelo menos a gente sabe o e-mail dessas pessoas, os novos telefones dessas pessoas. Eu me lembro que teve um trabalho de no site do AFS, de todo mundo que estava conectado com o AFS indicar nomes para que o AFS fosse atrás dessas pessoas. Teve uma campanha de recadastramento e que depois até a ser uma coisa mais comum. Essa experiência foi repetida algumas vezes depois, de reconectar com os antigos participantes. Nos 50 anos, foi a primeira vez que houve um trabalho forte em relação a isso e foi muito legal. Em muitos encontros que a gente tinha com essas pessoas que foram reconectadas, a gratidão delas por terem sido pescadas de volta: “Ah, eu tinha perdido o contato com o AFS, muito obrigado por vocês terem se dado ao trabalho de vir aqui e chamar a gente, tal, e dizer que a gente é importante”. Eu acho que isso foi uma coisa que ficou pra cultura do AFS. Eu até imagino que agora nos 60 anos também, até mesmo esse projeto eu acho que tem muito disso, de manter essas conexões com os depoimentos. Pra mim, foi a coisa que mais marcou, foi esse reencontro e as comemorações dos 50 anos que foram no Rio de Janeiro, isso foi muito forte, um jantar de gala que a gente sempre tem nas convenções nacionais, eu lembro que foi um recorde de participação de pessoas e estava todo mundo muito contente com isso, de ter tido esse reconectar.
P/1 – Agora pra encerrar eu queria só perguntar quais são seus sonhos, o que te motiva ainda hoje.
R – Eu acho que eu fui mordido pelo mosquito da interculturalidade do AFS de um jeito que não tem volta. É tão engraçado que eu recentemente voltei pra academia e sou um mestrando em vias de terminar uma dissertação. Quando eu fiz meu plano de trabalho, eu resolvi trabalhar com uma coisa, pesquisar um assunto que eu nem achava que tinha a ver com o AFS. Eu me conectei com um conceito chamado de Urbanidade, na Arquitetura, que faz muita falta hoje na Arquitetura brasileira, que é a conexão dos edifícios com a rua, porque cada vez mais a gente está se isolando, cada vez mais as pessoas moram em condomínios fechados e isso vai tirando o caráter de Urbanidade. Logo no início da minha pesquisa, eu me deparei com os conceitos mais recentes de urbanidade que todos eles valorizam a diversidade de pessoas. Parece que, mesmo quando eu não quero, eu acabo entrando no mesmo assunto do AFS. Diversidade é o que o AFS faz, está no centro do que o AFS, é fazer com que pessoas diferentes convivam e não só, eu acho que já ultrapassou a palavra tolerância, é apreço, é você gostar do diferente. E isto tem tido um impacto no que eu estou escrevendo, no meu trabalho acadêmico agora e, pra mim, é como falar uma língua mãe, é bem natural. O capítulo que eu falo sobre isso, ele fluiu porque é a minha vivência. Foi muito bom ver que eu consigo trazer isso pra minha profissão, trazer isso pro meu interesse acadêmico. Gente e Arquitetura são minhas paixões, eu gosto das duas coisas no mesmo grau.
P/1 – E conta rapidinho pra gente do seu trabalho no AFS de Argentina, como que você está como voluntário atualmente. Você falou das capacitações, mas agora você ainda ultrapassou inclusive a fronteira e está no AFS.
R – Na verdade, eu tenho muitos bons amigos que não me deixam parado (risos). Realmente, no caso do AFS Argentina, foi um trabalho de insistência deles, eu até me sinto mal porque muitas vezes eu tenho que recusar algumas coisas que me propõem e até nesse último ano com a coisa do mestrado eu tive que dar uma parada, mas eu retomei agora. Eles têm uma preocupação muito grande, é uma organização admirável em termos de desenvolvimento organizacional, eles dentro da rede AFS são um dos países que mais investe em formar o voluntário, talvez junto com a Itália, com Estados Unidos. Eles sempre me veem como alguém que está ali próximo, que Brasil e Argentina não são tão distantes assim, mas que trás pra essas capacitações um tom de internacionalidade para o que se está discutindo. Tem as duas coisas, tem a proximidade – hoje eu me sinto muito próximo deles, eu me sinto em casa também quando eu participo dos eventos lá, eu já falei isso várias vezes pra eles. Mas eles, além do trabalho específico de formar novos voluntários, a ideia é formar líderes, voluntários que possam liderar a organização, então, é sempre pensando em voluntários que vão exercer a função de membro de conselho diretor, que vão estar à frente das estratégias da organização, pra eles também tem essa função de conexão externa, eu sempre sou o gringo que está lá no grupo de capacitadores. É muito bom, é muito bom perceber que algo que você construiu ao longo do tempo e que mesmo que você não tenha mais o mesmo pique ou a mesma vontade pra estar em funções eletivas que são naturalmente desgastantes, que têm pressão, que te cobram, mas que você exerceu com alguma tranquilidade, alguma dignidade e que os frutos ficam e que as pessoas se lembram de você e te convidam pra realizar projetos legais, projetos sempre desafiadores. A minha conexão hoje com o AFS é cada dia mais difícil de eu comprometer tempo pro AFS, porque eu sei que eu já comprometi muito e eu tenho essa consciência de que eu tenho que equilibrar o que eu faço fora do AFS e o que eu faço no AFS, mas essa insistência dos meus amigos e colegas do AFS, na verdade, é em meu benefício porque elas não me deixam largar de algo que eu gosto muito.
P/1 – Henrique, eu acho que com isso a gente vai encerrar e agradece em nome do Museu da Pessoa e também do AFS a sua entrevista, muito obrigada.
R – Fernanda e Isla, eu que agradeço, foi um prazer. Foi muito mais rico do que eu pensei que pudesse ser. É sempre bom. Eu entendo agora a função. Eu comecei perguntando qual era a função do projeto e qual era o propósito do Museu da Pessoa e tal. Mas agora eu estou mais consciente do valor e da fortuna que é essa narrativa, que são esses contos. Eu espero que o projeto ao unir 40 narradores, contadores de histórias, possa enriquecer a história do AFS. Tenho certeza que já enriqueceu. Então, parabéns a vocês pelo trabalho e obrigado pela oportunidade.
P/1 – A gente é que agradece.
P/2 – A gente agradece, obrigada.
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