Entrevista de José Balbino dos Santos Filho
Entrevistado por Ana Paula e Elias Mello
Maceió, 25 de junho de 2025.
Projeto Memórias Que Não Afundam
Entrevista número NOS_HV011
Transcrita por Monica Alves
00:00: 26
P/1 - Professor, muito obrigada por participar desse projeto! E para começar eu queria que o senhor dissesse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento, por favor.
R - Certo. Meu nome é José Balbino, sou professor, moro aqui em Maceió desde que nasci e sou de 63.
00:00:54
P/1 - Certo. Qual o nome dos seus pais?
R - Minha mãe é pernambucana, Severina Gomes dos Santos e o meu pai é José Balbino. Eu sou o Filho, sou José Balbino dos Santos Filho.
00:00:49
P/1 - Com o que eles trabalhavam?
R - Meu pai era militar, da polícia militar do Estado de Alagoas. Minha mãe era da educação.
00:01:15
P/1 - Como é que o senhor descreveria os seus pais?
R - Trabalhadores. O meu pai era delegado, então ele passava um final de semana em casa e um mês fora. Minha mãe era da educação e trabalhava muito! Saía de manhã e chegava à noite. Mas, assim, pais exemplares que me deram a educação como trabalhadores. Nesse país eu tive o privilégio de ter essa educação até um tanto refinada. Eles se esforçavam muito e eu também retribuía com isso, como: estudar piano, estudar inglês, porque na época era muito difícil, né. Não havia o evento da internet das mídias. Meus pais eram perfeitos, perfeitos!
00:02:11
P/1 - E irmãos o senhor tem?
R1: Tenho um irmão. É da polícia militar também, ele é do corpo de bombeiros de Arapiraca. Inclusive hoje, ele está completando 61 anos. Sou um ano mais velho do que ele. E tem a minha sobrinha que eu criei, ela tem 19 anos, é filha dele. É isso.
00:02:38
P/1 - Como é a sua relação com a família? A sobrinha, o irmão?
R - É muito boa, muito boa! Na minha relação eu sou muito acolhedor. Na realidade eu sou cuidador, porque eu cuidei do meu avô até 99 anos, cuidei da minha avó, cuido de uma tia de 84 e cuido da minha mãe que tem 90. E durmo pouco, durmo pouco! É muito corrido, porque eu tenho que eu tenho que conciliar isso com sala de aula e com uma vida normal dentro de casa. Comecei a dirigir aos 12 anos, fazer feira aos 12 anos, ir para o banco aos 12 anos, pela ausência do meu pai, mas meu pai era muito bom!
00:03:16
P/1 - Entendi. O senhor sabe a origem da sua família? A história dos seus avós?
R - Meu avô, pai da minha mãe, era de Pernambuco, ele tinha uma fazenda em Pernambuco, era um homem do campo. Minha avó era filha de portugueses. A minha origem por parte de mãe tem essa ramificação portuguesa. A minha avó era filha de português. O meu avô era caboclo indígena lá do Estado de Pernambuco, nasceu em Limoeiro, em Pernambuco. Em 1952 a família veio para Maceió. E da parte do meu pai, era uma família… meu avô, que é pai do meu pai, que eu conheci, ele era pescador, ele morava ali em Coqueiro Seco. E os primos, os tios… e o meu pai foi o único que estudou, com muita dificuldade. Passaram muitas necessidades, as coisas eram muito difíceis, mas com muito esforço ele foi para o exército, do exército ele saiu para a polícia militar. E a origem da nossa família, Balbino, que é o sobrenome, ela é ramificada em Pilar, em Palmeira dos Índios. E tem aquela coisa, são duas vertentes, né, são dois ramos da árvore genealógica, porque uma parte é mais rica, essa a gente não tem muita relação. E a parte que a gente mais teve relação é a parte do meu avô mesmo, a parte do meu pai.
00:04:51
P/1 - E os principais costumes da família? Se reuniam nos feriados, datas importantes? Como era?
R - Sim. Como o meu avô tinha uma casa grande, quando ele saiu de Pernambuco, ele comprou uma propriedade em Bebedouro e essa propriedade era enorme, então o meu avô plantava, tinha muitas árvores frutíferas e tudo mais. Então todas as festas alusivas, Natal por exemplo, era na casa da minha avó, sabe? Os aniversários eram na casa da minha avó. Então tudo permeava a família em torno dos meus avós, na casa dos meus avós. E a gente se reunia muito! Minha mãe teve muitos irmãos, eram 14, hoje restam quatro, mas, assim, eu tenho uma gama de primos, enfim. E todos nós somos assim nessa linha, porque a minha família é de formação evangélica, sabe? Minha mãe tem 82 anos e ainda hoje é da igreja evangélica. Então nós tivemos essa formação evangélica. Minha família não é católica, minha família é evangélica e nós tivemos essa formação da igreja. Então estudou, minhas tias estudaram, tem umas que são fisioterapeutas, outras são enfermeiras, outras são… enfim.
00:06:16
P/1 - Professor, sobre o dia do seu nascimento, já falaram para o senhor como foi a escolha de te dar o nome do seu pai?
R - Sim, sim. Eu nasci numa quinta-feira, na maternidade Sampaio Marques, que é na Santa Casa. Ainda hoje existe essa maternidade. A minha mãe queria colocar meu nome, quando eu nasci, de Jefferson, mas os pais naquela época, os homens, o povo patriarcal, aí não, o primeiro filho tinha que ter o nome do pai. Então o nome do meu pai era José Balbino dos Santos, então o meu nome é José Balbino dos Santos Filho. E o meu avô era José Balbino dos Santos. E todos os meus tios mantiveram o sobrenome.
00:07:08
P/1 - Agora na sua infância, professor, o senhor lembra da casa e da rua onde passou a infância? Qual era o bairro?
R - Sim. Eu nasci em Bebedouro e foi a infância mais feliz do mundo, porque hoje é terrivelmente deprimente para mim ir em Bebedouro e descer em Bebedouro, porque ali foi a minha formação. Eu nasci nessa propriedade, entendeu? E essa propriedade tinha tudo, tinha piscina natural, tinham várias nascentes, tinham muitos pés de coqueiro, tinham pés de manga, tinha laranja, tinha tudo o que você imaginar. A gente não comprava verduras, porque o meu avô fornecia, foi assim que ele sobreviveu quando veio de Pernambuco. Ele vendia todos os tipos de leguminosas. O meu avô plantava e vendia. Nós fomos nascidos e criados dentro desse ambiente. E a infância foi a mais feliz do mundo! Porque eu, como toda criança, peralta, então eu me largava ali dentro com os meus primos, com as primas, brincava e tomava banho de rio, enfim, era uma coisa assim, que hoje a gente não tem. Mas foram apagadas muitas coisas infelizmente. Mas assim, eu tenho muita saudade da minha infância, porque a gente brincava na rua de barro e nós construíamos os nossos próprios brinquedos, porque os pais não compravam muitos brinquedos. Então muito cedo a gente aprendeu a reciclar, eu acho que por isso que eu me tornei biólogo, porque o meu pai fazia tudo. O meu pai me levava muito lá onde é o Parque Municipal hoje, eu vivia ali dentro, porque era pertinho da minha casa, na mesma rua. Então o meu pai me ensinou o que era erva daninha, o que podia comer, no caso, se eu me perdesse, assim, em uma floresta, aí ele me ensinava as raízes que podia comer, as folhas que eu podia me alimentar, de onde eu poderia tirar água. Então o meu pai me instruiu e a gente teve essa infância. O meu pai muito cedo gostava de pescar, então a gente ia para Lagoa Mundaú. Ele ensinou a gente a tirar sururu, me ensinou a gente a pescar, meu pai fazia as próprias redes de pesca. Ele era assim, muito facetado o meu pai. Eu me pareço muito com ele, porque eu também sou assim, eu sou múltiplo. Eu costuro, eu toco piano, toco acordeom, toco violão, sou professor de biologia, eu sou formado em turismo, entendeu? E eu faço tudo dentro de casa. Eu cuido da mamãe, eu não quero, eu não admito cuidador, não, eu cuido da minha mãe, sou eu que faço tudo. Inclusive, algumas tias sempre que precisam chamam o Del, me chamam de Del, carinhosamente a família me chama de Del: “Chame o Del.” “Ah, vai brigar?”. “Chame ele. É aonde? É ministério público, Federal, Estadual, Defensoria Pública? Ele briga bem.” E assim, falo muito, por isso que eu sou professor (risos)
00:10:25
P/1 - Desde essa época, o senhor já queria ser professor ou queria ser outra coisa? Quando crescesse, tinha um sonho de profissão?
R - O meu sonho era ser médico. Sabe? O meu sonho era ser médico. E eu fui me apaixonando. Mas eu me apaixonei muito cedo pela música, porque a minha família é muito musical. A minha tia tocava piano. E a minha família toda canta, são da igreja. Então, eles cantam. Eu comecei a cantar aos dois, três anos de idade, eu já cantava. E eu fui estudar. Comecei a estudar piano muito cedo. E assim, foi sempre o que me fascinou. Então, quando eu terminei, em 82, o ensino médio, eu já era apaixonado, porque eu era da igreja batista. Então, a igreja batista americana, norte-americana, ela é muito musical, tem muita musicalidade. Aí eu fui para o conservatório. Eu deixei o sonho do médico pela música. Eu queria ser regente e pianista. Mas, devido à própria vida, em 85, eu voltei do conservatório para ajudar em casa. Então, foi quando eu tive meu primeiro emprego. E a música não foi mais. Aí eu fiz outra coisa que eu gostava, que além da Medicina, era a Biologia. Mas aí, então, me formei e me tornei professor.
(00:11:54)
P/1 - Sobre a educação escolar, onde é que o senhor estudou? Como é que foi essa experiência escolar?
R - A melhor do mundo, porque eu estudei... O colégio, derrubaram, destruíram, né, que era lá na praça. Esse ano, passaram a máquina por cima, a Braskem.
00:12:10
P/1 - O nome do colégio?
R - Alberto Torres. Colégio Alberto Torres, na praça. Foi ali que eu estudei. O educandário que eu estudei, o primeiro, ficava em frente à Casa de Saúde Miguel Couto. Era o educandário da professora Cordélia, onde eu comecei aos três anos, onde minha mãe me colocou. Um sobrado antigo, estilo colonial. Então, foi lá. E, de lá, eu fui para onde minha mãe trabalhava. Minha mãe trabalhou no Alberto Torres. Minha mãe trabalhou no Rosalvo Ribeiro. Então, de lá, eu fui para o Rosalvo Ribeiro, ali, na praça, perto da praça, ali onde era o Mercado Público. E, de lá, eu fui para o Alberto Torres. Do Alberto Torres, em 78, aí eu fui para o Colégio Batista Alagoano, que também destruíram, que era lá na Aristéia de Andrade, em frente à TV Gazeta. Eu terminei meus estudos lá no Colégio Batista Alagoano.
00:13:15
P/1 - Certo, professor. E quais foram as pessoas mais marcantes na sua vida escolar? Tinha algum professor?
R - Teve. A professora que mais me marcava era a mais carrasca que tinha. Chamava-se... Era professora de Geografia, chamada Eneida Cox. Uma mulher de um metro e noventa, corpulenta, né? E ela era muito séria. Por exemplo, você tinha que ter um atlas na aula dela, você tinha que ter um atlas geográfico. Eu aprendi Geografia, até hoje tudo que eu sei de Geografia, eu devo a ela. Então, se você esquecesse o atlas... Eu estudava tarde, nessa época, com ela. Verão, né? Tipo, assim, era março, estava muito quente, e uma das vezes eu esqueci o atlas e o meu irmão tinha o atlas. Só que ele estudava em uma série a menos do que eu, porque ele era um ano mais novo. Mas ela não admitia, era um atlas para cada um. E eu esqueci, nesse dia, o atlas, ela me fez ir em casa, pingo do sol mesmo, na hora do sol mais quente. E não ia dar tempo de ir em casa, porque eu ia caminhando, eram os três quilômetros. Aí eu fui em casa, pegar o atlas e ela disse: “Quando você chegar, à aula já terminou e você já levou falta. Agora, onde eu estiver, você vai apresentar o atlas a mim, na turma que eu estiver.” E era assim. E foi a professora que mais me marcou. Uma dessas que mais me marcou foi a Dona Eneida Cox. Eu gosto muito dela. Já faleceu.
00:14:53
P/1 - E o senhor se sentiu acolhido na experiência escolar ou sofreu algum tipo de preconceito?
R - Olha, porque naquela época não existia, né, todo mundo apelidava todo mundo. Por exemplo, a Dona Eneida chamava, na classe: "Boa tarde, macacada." Quer dizer, todo mundo era macaco. Chamava a gente de malandro, de ladrão do pai. "Vocês não querem estudar? Estão aqui fazendo o quê? Bota um balaio de pão na cabeça e vai vender na feira? Bota um balaio de sururu na cabeça e vai vender na feira. É isso que você quer?". Então, era desse tipo e ninguém ficava com trauma e ninguém fazia nada. Os pais bem assim: "Bota ele de castigo? Pode botar ele de castigo, pode puxar a orelha." Sabe? Então quer dizer, eu nasci em uma época de pessoas muito fortes. Eu, como professor, sou 300% diferente do que era antes para hoje. Entendeu? E a coisa mais interessante é que nós nos divertíamos muito, brincávamos muito e todos os meus amigos daquela época, muitos já faleceram, mas os que estão vivos. Eu tenho amigos que são padres, padre Aloysio, muito conhecido, Aloysio Júnior, que estudou na minha sala de aula, é meu amigo até hoje. Tem Marilene, que é uma empresária hoje. Todos eles. E a gente às vezes se encontra assim, a gente pergunta assim: “A gente devia marcar um encontro.” Mas é muito difícil devido às atribuições de todo mundo.
Mas uma das coisas que eu pergunto é: "Você tem algum trauma da época de colégio?" Nenhuma delas. Nenhuma delas. Nem eu tenho. Eu só tenho saudade. Entendeu? Porque nós fomos criados assim. Nós fomos criados na época da ditadura militar. Eu não podia escrever, por exemplo, de vermelho, porque eu era castigado pelo meu pai, como militar. Eu não podia vestir nenhuma roupa com nenhum traço vermelho, porque isso aí remetia ao comunismo. E a ditadura militar, todo mundo sabe que era a ditadura militar. E nós vivíamos bem, mesmo assim. Músicas, a gente não cantava todas as músicas. E como eu sou musical, eu sempre gostei de Caetano, de Maria Betânia, de Raul Gil, que foram exilados, eu apanhei mais. Mas tudo bem. Aos 14 anos eu já tocava violão e cantava pelas calçadas lá em Bebedouro.
00:17:32
P/1 - O senhor lembra de alguma amizade muito importante ou alguma história muito importante que o senhor queira compartilhar?
R - São tantas, sabe? Mas o que mais me marcou nas fases, a primeira foi a minha babá. A minha mãe trabalhava, a gente ainda não estudava, era muito pequeno. E a minha babá ainda hoje é viva, eu amo, eu sempre vou lá visitá-la. Ela ainda mora lá numa rua de Bebedouro. Então ela me marcava muito, porque ela estudava no Colégio Bom Conselho e ela me levava antes do meu pai chegar, porque os encontros não batiam os horários, do meu pai e da minha mãe, quando minha mãe estava trabalhando, meu pai chegava à tarde e quando a minha mãe ia trabalhar, meu pai saía e ela também saía. E eu fui criado, ela me levava para a casa dela, que era um sítio também. Aí me deixava com a vozinha, que era a mãe dela. E assim, aquelas pessoas me marcaram a vida até hoje. E como adolescente, eu comecei a tocar, muito novo, violão, a gente tocava na Praça Santo Antônio. E ali foi onde a gente teve os primeiros namoros, ali foi onde a gente começou a fazer as traquinagens que um adolescente faz, mas tudo assim, comedido. O adolescente tem muita energia. Então a gente não podia também liberar essa energia muito, porque tinha aquela repressão para determinadas coisas. E depois, quando acabou tudo de ditadura, eu já estava adulto, depois dos 18, depois dos 20 anos. Eu tomei a primeira cerveja aos 22. E assim, daí foi aquele período de estar fazendo as coisas que o jovem gosta, mas também, sempre comedido com aquela criação que me foi dada. Com essa criação que me foi dada.
00:19:31
P/1 - Na sua juventude, quando o senhor passou a sair sozinho ou com os amigos, o que é que mais gostava de fazer, as lembranças mais marcantes da sua adolescência?
R - O que eu gostava mais de fazer, por exemplo, eu tinha um diferencial, que a maioria dos meus amigos não curtiam. Meus amigos curtiam beber, ir para shows, eu também gostava de shows, mas dependendo do cantor, eu sempre fui muito celetista nesse parâmetro. Porque, por exemplo, eu não perdia um recital de piano, então eu ia para o Instituto Histórico para assistir as pianistas que vinham para Maceió. Eu vinha muito para a Sala Eca Tavares, lá no Teatro Deodoro. E um dos orgulhos que eu tenho foi que eu conheci ainda, nesses lugares, já com quase 100 anos, mas ela não perdia, foi a professora Linda Mascarenhas. Muitas vezes eu segurava os bracinhos dela, fino de chale, naquele rigor do traje. E muitas vezes, ela de bengala e eu auxiliava ela para chegar até a Sala Eca Tavares, que não tinha elevador, então tinha que subir um lance na entrada do Teatro Deodoro, à esquerda, a Sala Eca Tavares. E ela não perdia um recital de piano. E também peças teatrais, tanto que eu me tornei depois ator amador. Eu fiz várias peças e uma coisa que eu gosto muito é de atuar. Entendeu? Então são essas coisas que mais me marcaram. Meus amigos diziam: "Vai ter uma festa, não sei aonde, um assalto". Naquele tempo se chamava assalto. Aí eu: "Não vou não, porque tem a Eudóxia de Barros que está vindo para Maceió e eu vou assistir." Mas era o que eu gostava. Tanto que eu sempre tive piano em casa, eu sempre tive instrumentos musicais. Pena que a minha filha não quis tocar piano e a minha neta tem nove anos, está dormindo aí. Ela chega no piano e eu digo: "Vou botar você na escola." Ela diz: "Agora não, vou fazer judô". Entendeu?
00:21:46
P/2 - Professor José Balbino, na sua juventude, como eram os relacionamentos amorosos? O senhor teve algum relacionamento que marcou? O senhor poderia contar essa experiência?
R - Sim, sim. Os relacionamentos amorosos eram mais rigorosos, porque, por exemplo, para você namorar uma menina, você tinha que ficar ali com o pai dela de lado e o pai ficava o tempo todo ali e você não tinha liberdade nenhuma, o casal. Quando terminava a questão da hora determinada, no máximo, estourando, no final de semana, nove horas. Aí entra e você... Era isso aí. Então, era mais complicado. Eu tive muitos amigos homossexuais, eu convivi muito com eles. Então, essa era a pior... Eu vejo que só mudou a época, mas o preconceito, a repressão em relação a isso aí, continua. Porque a perseguição lá, naquela época, era maior, porque o pai, se descobrisse que um filho era homossexual, literalmente as coisas dele eram jogadas na rua junto com ele. Não tinha perdão. No início da década, meados da década de 70 para 80, era isso. Entendeu? Então, era complicado. E tinha a questão ainda do fator do sobrenome. Eu, por exemplo, fui noivo de Lenia Eustáquio Gomes de Melo. Ela era filha de Luís Eustáquio Gomes de Melo, usineiro, filha única. E eu, pobre de Bebedouro. Entendeu? Então, aquela coisa, a minha tia vai oferecer um jantar. "Quem é a sua tia?". "Tereza Tenório". "Quem é Tereza Tenório?". Era esposa de José Tenório, dona da Sococo. Entendeu? E ia para as fazendas. Eu nunca me senti bem com ostentação, eu sou uma pessoa altamente simples, eu posso ter o que eu tiver na vida, eu digo em termos materiais que eu não vou ter, também não pretendo, nunca quis, mas assim, tipo: "Quem é seu pai? Qual é a sua família de onde? Qual o sobrenome?". Isso era muito pejorativo. Isso era assim, sabe? E a família se sentia no direito de intervir: "Não, esse não é pra ela." Era tipo assim: “Não, a classe financeira não é pra você ter que procurar uma pessoa do nosso meio.” Justamente isso era o que mais acontecia. Era o que mais acontecia. A gente vê muito isso em ficção, ainda hoje, eles reproduzem isso na ficção, nas telenovelas você vê isso, assim, nitidamente, mas isso aí é remanescente, é o que nós vivemos naquela época. É o que nós vivemos. E eu fui uma pessoa que sofri mais, porque, eu sempre fui muito contestador, fui muito indagador, sempre fui muito de interrogar as coisas. E as pessoas não gostavam. Entendeu? Então, eu me tornei na família, na minha família, eu me tornei uma pessoa assim, meio reacionário. Eles diziam: “Não, mas você é muito…” “Não, eu não sou reacionário. Eu não aceito!”. Então as pessoas, até hoje, eu estou um pouquinho pior por conta da idade. 62 anos e não vou mudar. Eu nunca fiz nada pra agradar ninguém. Primeiro a mim. O respeito primeiro. Eu acho que é essencial o respeito. Mas não me venha dizer... Nunca aceitei isso. A minha mãe ficava assim... Uma das coisas que eu mais sofri é porque, como meu pai é militar, daquela época, eram dois filhos homens que ele tinha, então ele chegava na barbearia e dizia ao barbeiro: "Cabelo militar." Aí, eu odiava aquilo. Eu, aos 10 anos, eu odiava aquilo. Isso foi até os 13, 14 anos quase. Até os 13, foi quando eu dei o grito de liberdade. Aí chegava na loja e dizia: "Duas calças daquela, dois sapatos daquele e duas camisas daquela." Eu ficava pra morrer. E meu pai era severo demais. Um certo dia, a gente foi numa loja, era perto do Natal e quando ele fazia isso, a gente não podia…. Meu pai só olhava, se ele não gostasse de uma coisa, em casa você apanhava. Mas eu amava meu pai. E foi nesse dia que a gente saiu para o comércio de Maceió, eu, meu irmão, minha mãe e ele, e lá, eu querendo escolher a cor da camisa que eu queria, a roupa que eu queria, o sapato que eu queria. E minha mãe tinha aquela coisa, obedecia, porque naquela época a mulher era… o homem era daquele sistema meio patriarcal. Aí quando ele disse: “Aquela camisa ali tá boa, não tá?”. Eu olhei pra ele e disse: “É hoje!”. Eu deveria ter 11 anos. Aí ele disse: “Olha, me vê duas calças número tal, daquela ali. Duas camisas daquela e vamos olhar os sapatos.” Eu fiz: “Não! A senhora pega uma daquela cor ali. E eu quero aquela calça ali que eu já tinha olhado." Ele olhou pra mim assim. Meu pai era bem corpulento. Ficou vermelho, sabe? Aí a mamãe ficou branca. E o que aconteceu é que a minha mãe disse... Ele só não tirou o cinto e bateu ali em mim, porque ia deixar pra casa, né? Aí ele fez: " Não, eu quero as duas calças." Eu disse: "Não, aquela e aquela." Aí a minha mãe disse: "Meu filho!" E eu disse: "Mamãe, olha, eu quero aquela camisa, daquela cor. Eu não quero ser igual ao meu irmão. Eu não sou gêmeo, mesmo se fosse. E eu quero aquela ali. E aquele outro sapato que eu já escolhi." Aí então foi, né? E a minha mãe em casa, quando chegou, ele não concordou. A minha mãe convenceu. Foi a primeira roupa que eu comprei diferente do meu irmão. Aí quando chegou em casa, que ele ia bater em mim, a mamãe disse: "Não." Aí eu disse: "Por que você quer que eu seja igual? Ele tem uma cabeça. Se eu morrer, o senhor vai pedir pra ele morrer ou se suicidar para ir comigo?”. Eu sou assim, eu sou meio radical. Pronto, desse dia pra cá foi a minha liberdade. Aí eu já comprava o que eu queria, o corte de cabelo era o que eu queria, eu usei cabelo grande, quando eu tinha cabelo, na época. Usei cabelo grande, amarrei. Agora, quando o homem começou a usar brinco, eu queria muito usar brinco, mas eu só fui furar minha orelha com 30 anos e mesmo assim… não, com 26 anos. Aí eu, com medo, né? Porque se o filho dele usasse brinco, ele cortava a orelha com brinco e tudo. Mas ele não podia fazer mais isso, porque eu já tinha meu carro, eu já trabalhava. Eu comprei meu carro aos 21 anos. Meu primeiro emprego foi no Banco Itaú. Eu inaugurei aquela agência da Rua do Sol. Eu sou da primeira turma daquela agência, em 85. E por aí foi.
00:29:20
P/1 - Ok, professor. Agora, seguindo com a sua formação, né? Quais foram os motivos que levaram o senhor a escolher essas áreas, tantas formações de biologia, turismo?
R - Assim, eu sempre gostei muito da área de saúde e a área do meio ambiente, que elas se entrelaçam, não é isso? Na biologia você ensina a anatomia, você ensina o corpo humano, e você ensina o espaço Sideral e você ensina principalmente a natureza, o meio ambiente. Então, aí casou. Sabe? Assim, não fiz Medicina, que eu até hoje gosto muito de Medicina, adoro, né? Estudo muito sobre Medicina também. Eu cuido da minha mãe, cuido de avô, cuidei durante tantos anos, e eu mudo os remédios também na cara do médico. E assim, então, tinha muito a ver comigo. E quando eu comecei a observar a destruição da própria propriedade do vovô, né? Por invasões e tudo mais lá em Bebedouro, isso me levou à questão do lixo, que eu odeio lixo. Até mesmo quando eu comprei... Estou morando oito meses aqui, eu comprei essa casa e reformei. Aí na frente era lixo, o pessoal jogava lixo aí nesse muro, nesse terreno aí, baldio. E eu, antes de vir pra cá, já comecei a modificá-lo, limpei tudo e fiz um jardim, já plantei. E assim, eu luto muito pela sustentabilidade do nosso planeta que está morrendo. Então, pra mim, hoje, uma das bandeiras que eu levanto e luto é sobre a preservação do que resta do nosso planeta. Sobre a questão do plástico, sobre a questão do lixo, das pessoas, da falta de educação das pessoas em colocar lixo, em jogar lixo no chão. E o desmatamento. O que essa empresa mineradora fez, dos últimos sete anos que eu tenho mais lutado. A minha bandeira de luta é justamente pela destruição do impacto causado pela mineradora.
P/1 - E aí, sobre o desenrolar da sua trajetória profissional, você se formou em Biologia, foi dar aula?
R - Primeiro, eu me formei em Turismo e fiquei, 24 anos, paralelo a isso eu já tinha feito Biologia, mas eu não queria ir para a sala de aula, porque eu queria estar andando, eu queria estar falando, mostrando o meu Estado, porque eu sou guia regional, toda a parte geográfica, a parte histórica, das cidades históricas do nosso Estado. Então, foi muito importante essa formação para mim. E, em determinado momento da minha vida, eu conciliava, eu trabalhava de dia e ensinava à noite. E, de um determinado tempo, eu assumi de vez, de 2010 em diante, eu já ensinava antes, mas aí o horário era alternado. Então, de 2010 em diante, eu assumi de vez, deixei o Turismo, e assumi integralmente a escola, a formação. Eu acho muito importante a questão assim, eu tenho cursos de pós-graduação em docência do ensino superior, mas, assim, eu queria e eu sempre quis, porque é muito difícil você transformar a cabeça do adulto, é muito difícil você tirar os costumes e os vícios de uma pessoa que foi criada naquilo ali, ou que não teve a formação que alguém proibisse de fazer aquilo que era proibido. Então, para mim, era mais fácil ensinar da criança, até a formação da entrada da universidade, e, no caso, o segundo grau, o nível médio. Então, eu comecei a ensinar a criança de 11 aos 20 anos. E depois, as que não tiveram oportunidade, passei a ensinar a EJA [Educação de Jovens e Adultos] também. Então, eu saía de casa às 6h30 da manhã e só chegava às 22h, porque eu passava integralmente o dia dentro da escola, entendeu? E, dentro da escola, o que não funcionava, eu falava com a coordenação pedagógica. Por exemplo, a última escola em que eu trabalhei foi Maria das Graças, que era lá em frente ao Artemísia, lá no Feitosa. Entendeu? Ali eu ensinei até 2021. Então, ali tinham instrumentos musicais de uma fanfarra. Eu ativei a fanfarra, entendeu? E para os meninos de 6º e 7º anos, eu fiz uma horta para eles produzirem o próprio alimento. Então a gente plantava pimentão, tomate, coentro, cenoura, entendeu? Para eles terem ideia de como era produzir o alimento e como isso era importante isso aí. Eu nunca fiquei como professor só numa sala de aula, eu sempre fui extra sala de aula, com projetos de ciências e sempre incentivei muito. Agora sim, eu sou um pouco bairrista. Todos os meus alunos, principalmente do primeiro ano do nível médio ao terceiro ano, eu sempre o incentivei, um espelho do que eu não fui, para fazer Medicina. Quem tinha tendência, que eu via que tinha essa, principalmente, eu me esmerava muito nas aulas de anatomia, parte anatômica do corpo humano, e eu via o interesse. Eu dizia: "Por que você não estuda? Você pode fazer Medicina." Muitas fizeram Enfermagem e tem alguns que até fizeram Medicina. Entendeu?
00:35:41
P/1 - Professor, você tem uma carreira diversa, mas você tem hoje planos, projetos futuros? Tem algum projeto?
R - Tenho. Como eu não quero mais voltar para a sala de aula, é muito difícil. Eu estou operado no coração, faz um ano e oito meses, eu fiz quatro pontes de safena, foram dez horas de cirurgia. Mas como eu quebro protocolo em tudo que é lugar, mesmo nos hospitais, o povo já me conhece, de UTI, de tudo. Aí eles ficam assim, dizendo: "Eu não sei de que matéria esse professor é feito." Então, eu não quero mais voltar para a sala de aula. Eu pretendo fazer algo para mim. Não quero me aposentar ainda, porque você defasa o seu salário e você tem que manter as coisas, no Brasil a parte econômica é muito difícil. O salário que você ganha não acompanha. E hoje a gente sabe que os serviços públicos são deficitários, você tem que pagar plano de saúde e o plano de saúde não é barato. Eu, por exemplo, pago muito caro o plano de saúde meu, da minha filha, da minha neta, da minha mãe. Não é barato. E para acompanhar, uma das coisas, eu gosto muito de festa, eu sempre faço, eu estou sempre reunindo a família. Tem a questão que o pessoal sempre diz, que eu vou para todos os enterros também, não perco um. Quando é de amigos e de quem eu gosto. Quem eu não gosto… É muito difícil eu não gostar. Eu tenho amigas irmãs que dizem assim: "Eu nunca vi você dizer que não gostava de alguém." Realmente. Mas é aquela coisa, eu gosto de pessoas, por quê? Porque eu nunca fiz nada em minha vida, não fiz outra coisa em minha vida, a não ser trabalhar com pessoas. Desde os 20 anos. E quando eu era adolescente, eu já era voluntário, de Luísa de Marilac, no abrigo de senhoras. Enfim, eu sempre trabalhei com pessoas. Eu não sei trabalhar com outra coisa. Então eu pretendo fazer um empreendimento depois para a minha renda, para acrescentar um pouco da minha renda. E eu estou com planos aqui, no meu terreno ao lado da minha casa. Não sei se eu faço um salão de festa. Eu gosto muito de festa. E é assim.
00:38:03
P/1 - Para você atualmente, como é o seu dia-a-dia?
R - Corrido. Muito corrido. Meu dia-a-dia é muito corrido. Por quê? Primeiro eu cuido da minha mãe, que vai fazer 90 anos agora. E isso aí já requer muito cuidado. Mas eu tenho que fazer todas as outras coisas. Eu tenho que resolver tudo de uma casa e ainda mais da família também. Porque o que eles não conseguem resolver, eles mandam para eu resolver. E eu não dizer não. Entendeu? Então eu durmo pouco. Eu durmo no máximo 3 horas, no máximo 3 horas por noite quando eu consigo. E corro muito, porque eu tenho que dirigir, eu tenho que fazer feira e eu tenho uma vida normal como as pessoas. E chamam: "Olha, está acontecendo isso aqui.” Aí eu chamo minha prima: “Fica com a mamãe que eu vou." "Olha, vão fechar a rua tal.” Estou indo para lá." “A Braskem está fazendo….” Vou para lá agora. E é assim. E nos últimos 4 anos eu abracei só o cemitério. Mas há sete anos que eu venho lutando em prol das vítimas da mineradora.
00:39:20
P/1 - E nos momentos de lazer, o que o senhor gosta de fazer?
R - Olha, como eu não saio muito mais, eu faço aquilo que eu mais gosto de fazer. Eu, sempre, de 15 em 15 dias reúno minhas amigas que têm essa faixa de 40, 45 anos de amizade, são as mesmas e elas gostam de tomar cerveja, eu também gosto e aqui a gente faz karaokê, quando não, eu vou para o interior. Por exemplo, terminando o aniversário da mamãe, eu vou para Joaquim Gomes, elas vão fazer uma festa para mim, porque eu completei ano no dia seis. Aí eu vou, mas no domingo eu volto. Eu não me ausento mais. O que eu mais gostava de fazer era viajar. Eu nunca planejei muito a viagem, se eu ligava a televisão e via algo em Brasília, eu dizia: "Eu vou em Brasília." Já ligava para minha amiga: "Olha, marca uma passagem para Brasília." Quando eu saía do meu quarto, a mala já estava pronta. "Onde é que você vai?". Eu dizia: "Eu vou a Brasília." "Fazer o que em Brasília?". "Ah, tem acontecimento que eu quero ver." Entendeu? Quando não era isso, era: "Ah, estou com saudade de São Paulo. Vou ver minha família em São Paulo." E era assim: "Marca aí uma passagem para mim. Qual é o próximo vôo?”. “Tal hora.” “Tá, eu estou indo." Uma das coisas que eu mais gostava era viajar para o exterior, eu passava um mês na Europa, Estados Unidos eu não gosto muito, agora, Europa, para mim, é uma aula. Eu adoro Roma, gosto muito de Portugal, gosto de Paris, eu gosto da história. E como eu sou muito ligado à música, eu faço questão de visitar os cemitérios, Pere- Lachaise, por exemplo, onde está Chopin, onde está Proust, Édith Piaf que eu amo. Eu gosto disso. Essas coisas me satisfazem. O pessoal fala assim: "Mas você passa por tantas coisas, nos últimos 12 meses, para comprar essa casa, foi um processo longo. A proprietária faleceu.” Eu tive que passar por muitas coisas, mas eu não desisto. Dizem: "Você não tem depressão?". “Não tenho tempo. De jeito nenhum. Até porque quem tem que fazer as coisas, sou eu mesmo.” Outro hobby que eu tenho é a marcenaria. Adoro fazer coisas. Na pandemia, eu não costurava, e a gente ficou no lockdown, e eu comprei uma máquina de costura eletrônica e fui aprender costura pelo YouTube. Mas eu já gostava de fazer tudo. A ornamentação daqui quem vai fazer sou eu. Todos os aniversários, quem faz sou eu. São João, meu aniversário, eu fiz toda a ornamentação, inclusive fui para a máquina fazer as coisas que eu queria, cortina, toalha… Então, adoro trabalhar. Eu sou muito manual. Gosto de fazer as coisas e desafio, eu gosto de desafio. Eu não tenho hora para comer, não tenho hora para dormir. Quando eu quero fazer uma coisa, eu tenho que conseguir fazer aquilo. Durante a pandemia, eu complementei essas coisas. Só que eu já tinha tudo, eu já tinha serra elétrica, eu já tinha serra tico-tico, já tinha todo o material de marcenaria. Eu gosto de fazer tudo. Porque eu olho assim e digo: "Eu quero aquilo ali." Eu não compro, eu vou e faço. Eu sou muito parecido com a Lúcia Veríssimo, eu vejo uma coisa assim: "O povo jogou essa cadeira." Eu já olho assim: "Isso aí vai ficar lindo. Vou transformar numa peça chiquérrima." E assim eu faço.
00:43:12
P/1 - Professor, você é um homem muito dedicado à família, né?
R - Sim, sou.
00:43:17
P/1 - O que representa para você o papel de filho, pai, avô?
R - Para mim é tudo. A família para mim é o alicerce. É a base de tudo. A família é a base de tudo. Eu sempre costumo dizer para meus alunos o seguinte: "Você só é alguém se você tiver uma base familiar." Porque o sistema destruiu, na minha época, nós tínhamos duas disciplinas, hoje não pode mais chamar, porque é pejorativo, é componente curricular, como Matemática, Geografia, nós tínhamos dias que acabaram na década de 80, que era OSPB, Organização Social Política Brasileira, onde você aprendia a escolher seu representante. E a outra era Moral e Cívica. Eu acho que você não alcançou mais essa disciplina Moral e Cívica. E o que era Moral e Cívica? Era um componente curricular normal, igual Matemática, Geografia, História, Português, Inglês. E ela ensinava o quê? Ensinava justamente a ter formação moral e cívica. O respeito, onde começava essa base, né? Eu achava muito interessante Moral e Cívica porque, como eu já disse, a primeira escola é dentro da sua casa, é aquilo que seu pai vai passar. Na escola você vai aprimorar, vai ganhar técnicas, mas a base, a primeira educação é dentro da sua casa, é o que foi passado. Então os meus avós, apesar de minha avó ser analfabeta, mas a minha avó era uma mulher sábia. Meu avô era de uma inteligência, ele escrevia bem, apesar de ter estudado só até, acho, o primário, mas o meu avô escrevia bem. Ele leu a Bíblia mais de 10 vezes de capa a capa, ele entendia, ele pregava e discutia. Minha mãe não teve oportunidade de estudar, porque ela é a primeira filha de 1935, os pais não deixavam estudar, mas a minha mãe conseguiu estudar um pouco e com o pouco que ela estudou, escrevia sempre muito bem. Minha mãe foi professora da escola dominical. Foi essa educação que foi passada. E meu pai, como militar, passou a questão do respeito, de como você se comportar diante na sociedade. Então foi assim, primordial para ter esse alicerce que tenho hoje e esse amor que eu tenho à minha família. Eu digo a minha família e às pessoas, porque não só é minha família, tenho pessoas que não são da minha família de sangue, mas eu considero como se fossem.
P/2 - Professor, sobre o tremor de terra que aconteceu no dia 03 de março de 2018, onde o senhor estava nesse momento e quais lembranças tem desse acontecimento?
R - Olha, nesse momento que houve o tremor, em 2018, foi a primeira subsidência que houve, que ocasionou esse tremor sísmico lá no bairro do Pinheiro, eu estava na sala de aula. E como eu falei, entrava às 07h, eu pegava a primeira aula, começava às 07h da manhã, tinha 01h hora só para almoço na escola mesmo e só saía à noite. Então na realidade eu só soube do tremor dentro da escola, quando a mídia começou a divulgar. No intervalo disseram: "Olha, teve tremor de terra no Pinheiro." E eu estava na sala de aula. Depois que eu saí, que eu fui tomar conhecimento através dos meus amigos e tal e fui saber o que tinha acontecido. Foi daí que começou tudo.
00:47:40
P/2 - O senhor lembra da movimentação ao redor? O senhor não sentiu nenhum impacto?
R - Não, porque esse tremor aconteceu no bairro do Pinheiro, né? E eu estava no Feitosa. Então, no Feitosa não houve nenhum acidente relacionado a isso. Não teve, sabe? A gente não teve esse problema, como não tem ainda, né? Ainda não tem.
00:48:09
P/2 - Mas quando o senhor chegou, o que é que o senhor encontrou assim, né? O que é que o pessoal falava?
R - Bem, era algo muito assim, que ninguém sabia ainda. Na realidade, ninguém sabia o que tinha acontecido, porque até então não tinha sido divulgado nada. Então foi aquela coisa, né? Os órgãos ambientais e tal. Mas ninguém sabia o que tinha acontecido. Ninguém sabia. Então, a Braskem, calada. Até aí ela não tinha se pronunciado. Eu fui até o Pinheiro, fui olhar a casa, que teve o tremor, tudo. Realmente estava lá, rachada, estava o piso, o portão troncho e tal, torto. Mas até então, como explicar isso aí? Uma craterazinha aberta, como explicar? Não, ninguém sabia. Porque como Maceió estava inocente, totalmente a respeito, ninguém sabia de nada. Como ainda hoje isso é abafado pela empresa. Ela não diz tudo, né? Ela faz tudo para omitir e esconder da população. Mas hoje mesmo ainda, a gente não sabe o que acontece. Nós não sabemos o que acontece em relação aos acidentes causados pela Braskem, porque ela diz uma coisa, sempre livrando a parte dela. E não chega até a população.
00:49:41
P/1 - O tremor foi um evento marcante em relação ao que aconteceu, mas trazendo para a sua vida antes disso, a sua vivência pessoal no bairro, qual era o seu endereço, a sua localidade?
R - Olha, isso aconteceu no Pinheiro, mas até então Bebedouro estava tranquilo. Eu dizia: “Meu Deus, se aconteceu no Pinheiro, que é 50 metros acima do nível do mar e a Braskem está aqui, ela tem uma indústria, ela tem uma mineração aqui no nosso bairro, no Mutange.” Eu pensava, mas não achava que iria acontecer um evento de maior proporção. E como nós continuávamos a ter uma vida normal, ótimo. E, de repente, do nada, a gente se viu assim: “Sai! Sai!”. Eu já não estava mais em Bebedouro, mas a minha propriedade, a minha casa, está tudo lá. Minha tia mora lá, ainda, na Marquês de Abrantes. E isso foi terrível, porque começaram a impedir as pessoas de ir e de vir. Começaram a colocar proibições. “Não, não passa mais no Mutange.” E aquilo ali, para mim, foi extremamente doloroso, porque eu nasci ali, nós transitávamos ali em qualquer hora, em qualquer momento, não existia proibição, até porque a gente não imaginaria algo de uma proporção da dimensão que foi. Porque ali você tinha casas importantíssimas, como a casa Miguel Couto de tratamento de pessoas com insanidade. E nós tínhamos também a Ulisses Pernambucano, e nós tínhamos aquela casa que era um patrimônio para a gente, era uma obra de arte arquitetônica, que era a casa José Lopes de Mendonça, uma casa de repouso. E os meus amigos todos moravam ali. A minha referência de vida é Bebedouro, não é aqui, não é onde eu morei, na Serraria, não é, a minha referência de vida é Bebedouro. É Bebedouro. Então, até hoje, a gente não aceita o que a Braskem tem feito. Por isso que eu entro, estou sempre no Ministério Público. No Ministério Público eu não vou mais. Mas, assim, a única autarquia que está do nosso lado, que é a Defensoria Pública do Estado, na pessoa do Ricardo Melro e do Doutor Lucas Valença, que abraçou comigo a causa do cemitério há três anos e meio, há quatro anos e meio, desde o fechamento, mas que modificou a vida. E isso me deixa, assim, muito triste, porque eu perdi pessoas muito importantes. Porque a maioria das avós, dos pais, com muita idade, não resistiram. Por quê? Porque eles tinham a casinha deles, tinham o sitiozinho, tinham as frutas, as fruteiras, tinham as rosas, tinham os jardins que aquelas senhoras, elas aguavam, elas regavam aquilo ali, entendeu? Tinha a vizinhança que sentava na porta há quarenta, há sessenta, há setenta anos, ali, morando. E, de repente, essas pessoas, foi tão doloroso terem que tirar, muitas resistiram. E tirar essas pessoas para colocar num apartamento, porque aquilo não era apartamento. Eu, por exemplo, sou uma pessoa espaçosa, eu não consigo, eu não me coloco dentro de um apartamento. Meus primos têm e eu vou e não passo nenhuma hora. "Vamos lá, vai ter almoço lá em casa.“ Eu: “Vamos almoçar na rua?". Eu não gosto, eu sou espaçoso, eu toco piano aqui a qualquer hora, eu toco sanfona aqui qualquer hora, eu canto karaokê aqui até cinco horas da manhã, sem incomodar ninguém. Entendeu? Então, isso aí roubaram. E o que foi que aconteceu com essas pessoas? Morreram. A maioria das mães, idosas, e dos pais, e dos avós, passaram dois meses só fora de Bebedouro. Entraram em depressão, não comiam, hospitalizaram-se e morreram. Fora, mais de 20 suicídios. O último foi de Dona Pureza. Tivemos com ela no sábado, na quinta-feira, e ela disse a nós: "Eu não tenho mais o que viver aqui. Eu não tenho mais nada aqui. Eu não tenho mais para que estar aqui." Eu dizia: “Dona Pureza, vai resolver, a senhora vai sair daqui.” Por quê? Porque Bebedouro e os outros bairros são uma cidade de alumínio. Eles apagaram nossa memória. Eu não sei a casa onde eu nasci. O colégio Alberto Torres, eles demoliram. Demoliram Bebedouro todo. Isso com o aval dos órgãos. Entendeu? Eles tiraram. Quem é que tem o direito de tirar sua vida? Quem tem o direito de tirar você de dentro da sua casa? Ninguém tem esse direito. Agora, a ganância do homem é tanta que eles não têm essa sensibilidade. Dona Pureza, com menos de uma semana que fez isso, fez o mesmo bilhete que disse a gente, a mim e ao doutor Ricardo Melro, e as minhas amigas que fomos visitar, fazer uma visita. Na quinta-feira, ela deu veneno à filha especial, uma moça especial, deu veneno ao gato dela e tomou veneno. E, deitou no sofá e morreu. Quer dizer, e como elas são tantas, como José Osvaldo e tantos outros que tiraram a vida dentro das ruínas da casa que eles construíram. Porque tem uma coisa, aquelas pessoas que moraram ali, como meu avô, eles construíram. Eles não pediram para sair dali. Eles não colocaram placa de venda. Ninguém tem o direito sobre a vida de ninguém. Então, isso eu não aceito. Eu não aceito.
00:56:29
P/1 - Professor, você destacou que a sua referência de moradia de lá é Bebedouro. Você poderia informar para mim o endereço, a localidade desse lugar que, para você, é a sua referência de moradia de lá? Descrever como é que era a rua, a casa?
R - Bem, a referência... Eu nasci em Bebedouro. Eu nasci depois da praça, ali, onde tinha a padaria Citral, mas, em pouquíssimo tempo, o meu avô quis que a mamãe fosse morar lá na chácara, lá perto, que era entrando na Rua Marquês de Abrantes. Então, aos três anos, por aí, a mamãe construiu a casa e a gente foi morar lá na chácara, na Rua Marquês de Abrantes, que é a rua do Parque Municipal, hoje. Como falei para você, foi assim a infância, porque era tudo vizinho, era tudo tio, tio, tio e a casa grande do meu avô. Então, na casa da minha avó, como a mamãe trabalhava, a gente almoçava na casa da vovó, a gente dormia na casa da vovó, a gente vivia na casa dos nossos avós. A mesa do meu avô era uma mesa de três metros e meio, com aqueles bancos, cada banco enorme, cada um de um lado, e, na hora do almoço, todos os filhos e netos estavam lá, naquela casa grande, e todos comiam ali. Então, essa é uma coisa que eu não esqueço. É eu chegando da escola e a vovó sentada na cadeira de balanço dizendo: "Olha, eu guardei um lanchinho para você, está lá no fogão. Olha aquela farofinha, a graxinha da carne que você gosta, guardei para você para comer com cuscuz de noite." Então, essa foi a minha referência. Entendeu? E os meus amigos, e os meus vizinhos, e as pessoas que nasceram junto comigo, que se criaram e cresceram, reproduziram e se projetaram na vida. Então, a minha referência de vida é lá. Todos os dias eu paro assim e começo a pensar como eu era feliz ali. O banho do Né Fragoso, com águas cristalinas, uns 150 metros da minha casa, aos sábados, o jogo, o futebol, e a gente que ainda era muito adolescente, ninguém bebia, mas os tios e todos os que jogavam ali todo sábado saíam, tinha o barzinho ao lado, era sagrado, ali eles iam tomar a cerveja deles, falar sobre jogos, discutir sobre os times, quem era melhor, quem não era. Enquanto isso, a gente pintava e bordava, porque a gente ficava na piscina até oito horas da noite. Aí o Né Fragoso, que era o dono, o seu Né Fragoso Malta, com os netos, as netas e os vizinhos todinhos, ele vinha de lá: "Sai cambada daí! Tá bom, olha a hora!". Porque senão a gente não saía, entendeu? E os pais ficavam tranquilos, por quê? Porque a gente estava guardado ali. Não tinha violência, não tinha essa questão. O que mais me martiriza hoje é a violência. A rua que eu morei hoje é uma rua perigosíssima e principalmente depois que Bebedouro foi evacuado, hoje o tráfico tomou conta, entendeu? Tem mortes, tem tiroteio, tem tudo. A minha casa está fechada, está fechada há quase um ano, entendeu?
00:59:52
P/1 - Você tinha ligação com a Lagoa Mundaú?
R - Demais, demais. Demais, por que? A Lagoa Mundaú era aquela coisa, a gente ia para a escola, aí passava e molhava os pés na Lagoa, que era a principal. E, como eu já lhe disse, o meu pai foi criado por um pescador, meu avô era pescador, meus tios eram pescadores, a minha avó era marisqueira, eu não cheguei a conhecer, ela morreu um ano antes de eu nascer. Então, o meu pai morava numa casa de palha na beira da Lagoa, no Cadois, indo pelo Flexal de cima. Então, o meu pai me ensinou a tirar sururu. O meu pai, quando ele estava de folga, pegava canoa dos primos e a gente ia para Coqueiro Seco e a gente ia para dentro da Lagoa pescar. Meu irmão era mais afoito do que eu na Lagoa. Eu nadava bem, mas não era muito minha praia. O sururu, quando eu tinha que tirá-lo na lama, eu tirava, mas não gostava muito. Eu cortava os dedos e tinha aquela lama e eu nunca fui chegado à lama. Agora sim, adoro a natureza. Dentro do manguezal, eu sempre estava estudando e fazendo. A Lagoa é muito importante para a gente. Muito importante, porque lá a gente ia para a ponte comprar o sururu, comprar o peixe, o pescado. Era tudo ali na ponte Bebedouro, na Lagoa. E ela tinha uma plataforma de cimento onde as canoas ancoravam e a água a cobria. E a gente saía andando. Por cima daquela coisa, a água cobria os pés da gente até o joelho. E depois que a gente ficou adolescente, que a mamãe não levava mais a gente na escola, não precisava, quando a gente saía do colégio a gente arregaçava a calça até o joelho, tirava o sapato. E para onde é que a gente ia? Passava lá, na frente da Lagoa e entrava na Lagoa, para molhar os pés, para molhar o outro.
01:01:59
P/1 - Professor, existem cheiros, barulhos, vozes na sua lembrança daquela localidade?
R - Sim, muito. Primeiro, os cheiros que eu tenho, eu gosto de terra. Quando chovia, a primeira coisa que eu levantava era o cheiro da terra. Mas a época de manga, por exemplo, lá no sítio do meu avô, era muita manga, manga espada, manga rosa, manga comum. Então amadurecia, caía e ficava aquele cheiro. Era o cheiro de manga. E lá tinha muita banana também, a gente tirava a banana no cacho e comia. Outra coisa que eu gosto muito era da casa grande, da minha avó. Porque a minha avó fazia tudo, ela fazia bolo de mandioca, ela mesma era quem fazia massa puba, ela mesma era quem fazia a goma da tapioca. Então os cheiros da casa da minha avó, eu nunca conseguia. Hoje eu não como carne, já há uns 30 anos. Mas a minha avó... Eu nunca vi uma sopa tão gostosa. Então às vezes a minha filha se assemelha a ela, faz uma sopa muito parecida. Então o cheiro da carne que a vovó cozinhava era diferente, o cheiro da sopa era diferente. E eu fico… E tem também aquela questão, tinha uma senhora lá que fazia o picolé, era dona Alzira, o picolé caseiro, nas formas de alumínio. E eu já procurei em vários lugares, assim, que alguém fizesse um picolé daquele. Mas por quê? Era tudo tirado do sítio. Ela fazia o picolé de coco, era retirado do sítio o coco. Ela fazia o picolé de Nescau, na época, com coco, que eu amava. E ela fazia o picolé de abacate. O abacate também era tirado do pé. Então parece que eu estou sentindo o gosto. Entendeu? E tantas outras coisas.
01:03:57
P/1 - Essa casa grande, que é muito viva na sua memória e tal. Você pode descrever como é que era essa casa?
R - Eu acho que ela tinha uns 10 metros. Então tinha a entrada principal, que era uma área com duas pilastras, que a gente sentava em cima daquelas pilastras. Aí tinha as cadeiras de balanço do vovô, da vovó, que era sagrada, e as cadeiras para os netos. Aí vinha a sala. Aí vinha o primeiro quarto da frente, que era o quarto da minha avó e do meu avô, com aqueles móveis antigos, coloniais, aquele guarda-roupa colonial. Aí vinha o segundo quarto, que era o quarto da minha tia. Era o quarto da minha tia, das solteiras. E, nessa época, a mamãe já estava casada, e as outras também. Então ficou só três em casa. Aí tinha uma tia minha que é enfermeira, está aposentada. Ela era mais chatinha, assim. Chatinha, eu digo, era mais organizada, metódica. Então ela tinha outro quarto só para ela. Já as outras duas, minhas tias, não, ficavam. Aí você tinha a cozinha e tinha do lado esquerdo a sala de janta. E a sala de jantar era onde tinha uma janela que dava para um alpendre atrás da casa, e o banheiro ficava do lado de fora, era enorme. E o banheiro ficava já da parte de fora. E ainda tinha o quarto dos homens, do lado esquerdo, era um quarto grande onde ficava, na época já eram os dois homens, era o tio Abadias, que faleceu na pandemia, e o tio Enoch também, que faleceu na pandemia. Eram os dois.
01:05:51
P/1 - Como era a sua vida antes de toda essa questão do afundamento? O que você mais gostava na sua rotina?
R - Eu me mudei de Bebedouro tem 13 anos. Ainda não tinha acontecido isso. Mas o que eu fazia? Eu me mudei por conta da mamãe, que era asmática e lá era frio. Então a mamãe desenvolvia muita crise de asma. Então eu disse: “Eu vou para a parte alta.” Aí consegui uma casa no Feitosa, próximo às lojas Americanas, ali do Feitosa. De lá eu fui para a Serraria. E da Serraria, agora para cá. Daqui eu não saio mais. Mas, assim, era muito importante para mim estar em Bebedouro. Por quê? Porque eu morando nesses lugares, a minha praia, a minha referência era lá. No final de semana eu tinha que estar em Bebedouro com os meus amigos, com os meus amigos de infância, com os meus amigos de adolescência. Eu tinha que estar lá. Porque eu morei em um condomínio, na Serraria. O que aquelas pessoas têm a ver comigo? Nada. Eu morava ali porque eu precisava morar. Mas eu digo assim, de história, de referência, não. Minha referência era Bebedouro, os meus amigos eram de bebedouro. Entendeu? Que hoje, uma das coisas que eu mais sinto é essa. Eu tenho muitos amigos que vivem em depressão, tomando ansiolíticos, antidistônicos, enfim, porque vivem em depressão depois que saíram de lá. Porque eles não queriam sair, porque foi ali que eles conheceram as suas esposas, começaram a namorar ali. Tantos começaram a namorar e casaram com as meninas. Hoje são avós. Todos são avós. Essas pessoas são meus amigos. Muitos até moram em casa boa hoje, mas não era, eles não queriam aquilo, eles queriam a casa que eles construíram. Ali na praça, em frente ao Bom Conselho, entendeu? Porque não é o dinheiro, é a felicidade.
01:08:07
P/1 - Professor, você destacou muito a importância de estar em Bebedouro. E quais os lugares que, para você, são mais marcantes no bairro?
R - A praça. A praça.
01:08:23
P/1 - O nome da praça?
R - Lucena Maranhão. Praça Lucena Maranhão. Por quê? Desde muito pequeno, nos três anos de idade, minha mãe me pegava na escola, no educandário, mas a gente passava na praça, porque tinha brinquedos ali, escorregador, tinha uma estrutura que você pulava, tinha vários níveis. Então a gente se juntava com as outras crianças, aos três anos, crescendo. Alberto Torres, doze anos, chegava na escola, entrava de uma hora. Quando eu estudava de manhã, era sete horas que a gente entrava na escola. Eu estudei em todos os períodos, tanto de manhã como à noite, o matutinho e o vespertino. Então, onde é que a gente ficava? Todo mundo do colégio? Na praça. Ficávamos na praça. Tudo começou na praça. Eu comecei a namorar na praça, eu comecei a tocar violão na praça e a gente ficava horas ali. A gente apanhava também, porque a gente passava do tempo. Daqui a pouco lá vem os pais atrás. E a gente na praça. A gente perdia hora e eles achavam que tinha acontecido alguma coisa. A gente estava na praça. E ali na praça a gente foi ficando adulto, jovem. E ali tem a igreja de Santo Antônio, então a escadaria da igreja era o nosso ponto de ir, aquela com os dez degraus para subir para a igreja. Ali a gente ficava sentado até uma hora, duas horas da madrugada. A gente já adulto, digo assim, já jovem, dezoito, dezenove, vinte anos. Ficávamos sentados ali, coisa que não se pode fazer hoje, tocando violão e cantando. Aí ali ficavam as meninas, os meninos, enfim, era ali. Então, o lugar de bebedouro que mais me marcou, além da minha chácara de onde eu vivi, saindo de lá, é a praça. A praça era tudo para a gente, ali aquela praça.
01:10:34
P/1 - Você destacou a importância da praça, de serem as suas maiores lembranças ali, mas em relação às festas, às celebrações, às tradições que marcaram você? E a comunidade? Você pode falar?
R - Eu ia falar até sobre isso. Quase que eu falava antes de você perguntar. São João. O melhor São João de Maceió era na praça Lucena Maranhão, o carnaval. Eu não ia muito, assim, porque a festa que eu mais gosto… eram as duas festas que marcavam o Bebedouro, até pela tradição do bairro, era São João e Natal. Entendeu? Todo mundo de roupa nova. E no Natal vinham sempre aqueles parques com rodas gigantes, com aqueles barcos, entendeu? Então isso aí é o que não sai da mente da gente. A gente fica assim: “Nossa, o melhor Natal!”. E a gente foi ficando juvenil, adultos e a gente continuou na praça. A gente ficava em casa com a família, aí tinha aquele jantar, aquela ceia de Natal, mas logo que terminava, a gente corria para a praça, porque todo mundo estava na praça. Aí tinha as barraquinhas de churros, tinha as barraquinhas de pastel, tinha barracas de tudo que você imaginar e tinha cervejinha gelada. Então, ali era o nosso point. Ali era o nosso point. E Bebedouro era um bairro de tradição. Aí tinha o Coco de Roda, tinha a Chegança, tinha o Guerreiro, entendeu? Tudo isso. Eu dancei quadrilha na praça. Em São João eu dancei quadrilha muitos anos na praça. Então, ali era maravilhoso.
01:12:25
P/1 - Professor, e qual o sentimento de fazer parte daquela comunidade ali de Bebedouro?
R - Olha, eu não posso nem dimensionar para você o que era aquilo ali para a gente, que marcou e marca a vida. O que é bom marca a vida do ser humano para sempre, tanto coisas boas como coisas ruins. Mas ali a gente não tinha, assim, mesmo já nessa época mais contemporânea, não tinha tanta coisa ruim, até então. Não era mais como antes nessa época da minha adolescência, da minha juventude, mudou muita coisa, a violência aumentou, enfim. Mas dizer para você que a praça fez parte da nossa formação. A praça fez parte da nossa formação.
01:13:19
P/1 - Professor, você destacou muito a praça, mas eu queria agora destacar também em relação à religião, tradição, costume, o cemitério. Qual era a importância do cemitério para o senhor e para a comunidade ali de Bebedouro?
R - Olha, vou lhe contar uma história que, assim, não é macabra, mas eu acho que eu sempre tive a morte como…. Como eu tive medo, eu tinha medo de caixão e de defunto até os dez anos, depois houve uma reviravolta na minha cabeça que eu comecei a gostar. Entendeu? Então, Bebedouro era assim, quando morria alguém, a turma da gente tinha que estar no velório, principalmente quando era para passar à noite. Aí tinha Adail, que é muito importante, é professor de História e é decorador. Ele é quem rezava, todas as rezas para o defunto. E a gente acompanhava. A gente acompanhava o Adail nas decorações e nas rezas dos defuntos. Então, essa proximidade que eu sempre depois aprendi a ter com a morte, assim, me levou a zelar. Fui eu quem construiu os túmulos da minha família, que era jardineiro, tanto da parte da minha mãe como da parte do meu pai, dos meus avós por parte de mãe e por parte de pai foi eu que construí. E, assim, eu sempre tive essa relação com a morte. Eu sempre tive. Desde de 12, 13 anos, eu comecei a ter essa relação, porque eu participava do Luísa de Marilac, que é o abrigo das senhoras, eu sempre fui voluntário, eu tocava violão, eu fazia campanha do sabonete, do papel higiênico, tudo eu fazia, essas coisas, desde muito novo. Então como eram pessoas de muita idade, elas faleciam. Elas me adoravam. E o meu pai disse: “Olha, a dona Mariazinha faleceu.” Eu disse: “Foi?”. “Foi, o coraçãozinho parou.” Eu já estava lá. Aí eu aprendi a enfeitar. Eu aprendi com o Adail, que era o mestre de tudo isso. Eu aprendi a enfeitar as pessoas que faleciam, como é que fazia ornamentação no caixão. Então, tudo isso eu fazia. E assim eu fui crescendo. E a minha relação com o cemitério de Santo Antônio era muito grande, porque minha vozinha estava lá. A minha bisavó eu não conheci, morreu com cem anos, a avó da mamãe. Mas aí a minha vó foi a primeira que foi, eu tinha dezoito. E passou muito tempo para falecer alguém. Faleceu uma prima minha, novinha, depois veio, já em 2004, faleceu meu avô, depois faleceu o primo e aí veio a pandemia. Mas eu sempre tive. E por parte do meu pai, meu pai morreu em 96, mas lá já estava meu avô também, que morreu em 73, minha avó, que morreu em 62. Então, assim, eu sempre cuidei. Eu limpava, eu olhava. E as pessoas do bairro, todas as pessoas do bairro que faleciam, eu ia, de todas as pessoas. Então, é muito importante para mim. Por isso nos últimos quatro anos eu só luto pelo cemitério de Maceió. E transformei o cemitério em memorial, porque não era memorial. Aí hoje ninguém pode mexer. Eu fui na frente deles.
01:16:55
P/1 - Era isso que eu ia perguntar, porque a sua relação já vem de muito tempo, desde a sua juventude, da sua adolescência com o cemitério. E quando começou essa luta?
R - O nosso cemitério, ele foi fechado, foi lacrado no dia 20 de outubro de 2020, foi fechado o cemitério. Então, eu, nas minhas atribuições: “Olha, o cemitério fechou.” E eu fiquei meses sem ir no cemitério. O cemitério estava fechado. Até que um primo meu… Passou quase um ano sem eu ir em Bebedouro, eu não tinha coragem de ir. Aí um primo meu, sobrinho da mamãe, lá de cima do sanatório, olhou para o cemitério, aí não viu mais os jazigos, lixo, muito lixo, porque as pessoas já tinham sido retiradas e todo o lixo que o povo não levou foi jogado dentro do cemitério. Muitos animais mortos e tudo mais. E ele tirou, fez um vídeo e mandou para mim, eu estava dando aula. Quando eu olhei o vídeo, eu disse: "Não, não é o cemitério, não é o cemitério!”. Árvores caídas. E eu disse: “Vou lá hoje.” Aí saí da escola, peguei o carro, desci para Bebedouro. Cheguei lá muito tarde, eram quase cinco horas e não tinha mais ninguém ali naquela região, era perigoso. O cemitério estava fechado na parte da frente, mas eu disse: “Eu vou no último portão, lá atrás.” Não tinha portão, roubaram o portão, os vândalos. E eu entrei no cemitério, eu entrei por trás, mas não conseguia andar dois metros, tinham cobras, muitos animais mortos e muita árvore caída e não tinha condições. Aí eu disse: “Não!”. Foi quando eu comecei. Liguei para um amigo meu, que é do HU [Hospital Universitário], e disse: “Le, quando é que vocês estão de folga?”. E fomos. Eu disse: “Eu quero fazer uma filmagem. Vá de bota e vamos levar facão. Eu quero chegar lá na frente, onde está a entrada do cemitério. A gente entra por trás. A gente vai, leva o facão, vai de bota até o joelho, bota a galocha.” E eu fui, eu fiz isso. “Vamos fazer um vídeo.” Aí comecei a fazer o vídeo. Fiz o vídeo nesse dia e chegamos até lá na frente. E eu fiquei estarrecido, porque tinham muitas, muitas gavetas quebradas e os caixões retirados, muita lata de cachaça e muito resto de drogas, porque quem estava usando ali eram os usuários, entravam para se drogar. Foi quando eu fiz o vídeo. Postei no mesmo dia. Isso foi assim. Aí a mídia foi aquela coisa e viralizou, foram não sei quantas visualizações. Aí pronto, foi quando a prefeitura foi e foi aquela coisa toda. A Braskem era quem tomava conta. Foram limpar o cemitério no outro dia. Aí eu fiquei em cima e foi aqui que começou e não parei mais. Aí com a Nerivane, Nerivane, depois de algum tempo, Nerivane é bióloga também, conheço a Nerivane há muitos anos, lá de Bebedouro também, que ela é de Bebedouro e nós fizemos. Eu disse: “Vamos transformar esse cemitério num memorial?”. Estudamos a Constituinte, todas as leis. Era possível fazer isso, porque o cemitério é um memorial, ninguém pode destruir, ali foram vidas que fazem parte de famílias. Então foi quando nós demos a entrada e eles não tiveram como recusar. Hoje o cemitério é o Memorial Santo Antônio. E eu estou sempre lá, passo o dia lá, Dia de Finados, eu vou às 06 horas da manhã. Os caras ficam assim, os funcionários estão lá: “Dá cinco horas eu vou embora.” “Deixa a chave que eu fecho.” Consegui voltar a energia para lá, que eles deixaram tudo às escuras, a Equatorial. Aí fiz uma denúncia mediante o que eu tinha conseguido. Aí eles colocaram lá uma luzinha. Não funciona. Tentei voltar os sepultamentos para lá, mas o meu inimigo declarado, que é o Abelardo Nobre, ele não… sabe? Eu já desmascarei ele várias vezes.
01:21:34
P/1 - Quais os maiores desafios que você encontrou nessa luta pelo cemitério?
R - Os maiores desafios em relação ao cemitério, que é uma questão humanitária. Eles fecharam o nosso cemitério de Bebedouro, cemitérios com jazigos projetados, de mármore, com gavetas para sepultamentos respeitosos, dignos. E não nos deram opção. Fecharam o cemitério. E aí? O cemitério de Maceió representava 13% dos sepultamentos de Maceió. Porque o cemitério não era de Bebedouro, o cemitério é de Maceió, de pessoas de todos os lugares de Maceió, inclusive de municípios. Tem gente de São Luís do Quitunde, de Flecheiras, quem tem túmulo lá, família. O cemitério é de Bebedouro, porque estava em Bebedouro, mas o cemitério é de Maceió. Ele representava 13% dos sepultamentos da capital. Eles fecharam. E aí, onde é que nós vamos sepultar? O outro cemitério que foi construído em Maceió tem 55 anos. Foi construído para uma comunidade, sim, esse foi, que é o cemitério de Ipioca. Esse ano faz 56 anos. O cemitério tem 114 anos, o cemitério da Piedade, que era o cemitério dos ricos, na época, era o cemitério dos ricos, onde se enterravam os governadores, as famílias de nomes poderosos, se enterravam lá no cemitério da Piedade. Ele é de 1850, aquele cemitério. Então, há 114 anos atrás, já foi expedida uma nota pela administração da igreja, porque, na época, a administração era feita pela Igreja Católica. Em 1956, foi que passou a ser administrado pela prefeitura, pela municipalidade. Então, há 114 anos atrás, o cemitério já expediu uma nota, um comunicado, dizendo que o cemitério da Piedade estava colapsado, não tinha mais como sepultar ninguém, novas sepulturas, só as que já tinham lá. Há 114 anos. Há 55 anos, 56 anos, vai fazer, construíram o cemitério de Ipioca, mas o cemitério de Ipioca é para a comunidade de Ipioca, daquela região do litoral norte. Então, o nosso povo passou a ser sepultado… Não é cova rasa, isso se exacerbou mais depois da pandemia, acabaram-se as vias de entrada do cemitério, as vias de acesso aos jazigos, porque eles tinham que sepultar em todos os lugares que tinham uma brechinha, que tinham um espaço. Então, com a pandemia, isso não teve mais condições, eles começaram a amontoar um caixão em cima do outro. Então, hoje, é deprimente você acompanhar um enterro no cemitério de São José, porque eles não têm como cavar. Então eles colocam 50 centímetros só, o local onde colocam o caixão, e cobre com aquela areia ali, que aquilo ali é um relevo de praia, é uma areia de praia, é um substrato de praia. Então, com três, quatro meses, você entrar ali é terrível. Você vê caixão do lado de fora, o cara em decomposição. Sem falar que é um problema seríssimo de saúde pública por conta do necrochorume, entendeu? Necrochorume, o cara está em decomposição na flor da terra. E a minha briga maior, o meu constrangimento é esse, porque conseguimos, eu, com essa luta, consegui um terreno apropriado aqui na parte alta para a construção do novo cemitério. O terreno custava 7 milhões, isso para a prefeitura era nada. A própria autarquia, que hoje é SUDES (Superintendência de Desenvolvimento Sustentável de Maceió), mas era a ALURBE (Autarquia de Desenvolvimento Sustentável e Limpeza Urbana), tinha esse dinheiro, mas aí tinha que passar pelo aval da prefeitura. Nada foi feito. Quatro anos e meio que nós estamos lutando, entendeu? Então, hoje, em Maceió, quem morre, a família que perde o ente querido, que não tem um jazigo em um cemitério particular, vai ter que se sujeitar àquilo ali. Sabe? Vai ter que se sujeitar àquilo. E isso, para mim, é a maior falta de respeito, entendeu? E a omissão, como eu falo, já falei em todos os órgãos aqui, na Câmara Municipal, umas cinco vezes, em audiência pública, que aquilo ali é a maior falta de respeito. Ora, se a prefeitura tem condições de gastar 30 milhões em um carnaval, em um São João, pagar cachês caríssimos, e um serviço de utilidade pública essencial, ela não tem condições? Olha, eu sou professor de Biologia, de 2021 para cá, eu passei a ser agente funerário. As pessoas identificaram que eu tinha uma referência. Telefonavam para mim: “Professor, o meu pai está há três dias dentro do caixão. Está em decomposição e ninguém aguenta o mau cheiro. Está na sala.” Eu ia para a televisão, conseguia, através de pressão, fazer o sepultamento. Fiz vários, mais de 25 de 2021 para cá, entendeu? Levei isso à defensoria pública, coloquei eles no canto da parede. Então, através dos defensores, melhorou assim: “Não, são 24 horas agora para sepultar.” Mas nessas condições, o que eu não aceito. Mas isso está ajuizado, está no fórum, está ajuizado. Estamos pedindo danos morais, danos materiais, porque como ninguém colocou suas casas à venda, ninguém colocou os restos mortais dos seus entes queridos à venda também.
01:28:05
P/1 - Professor, tem mais alguma coisa do cemitério que o senhor queria destacar nesse momento?
R - Olha, a luta continua, certo? Porque o problema não foi resolvido. Continua da mesma forma. Como eu disse a você, quem não tem um jazigo em um cemitério particular, que as pessoas estão fazendo sacrifício e estão comprando, adquirindo esses jazigos em várias parcelas. É injusto, é muito injusto, porque eles não ressarciram as pessoas, não deram ressarcimento pela compra desses túmulos, entendeu? E tampouco deram opção para essas pessoas terem o sepultamento, que a família sepultasse seu ente querido dignamente. Então, nós iremos continuar lutando, falando, gritando, até um órgão desses, Ministério Público, Estadual, Federal, Defensoria Pública da União, que não estão nem aí também, fazer alguma coisa. É isso aí.
01:29:12
P/1 - Professor, você já tinha destacado que tinha saído de Bebedouro, no momento que começou tudo com o tremor, mas que tinha propriedade lá.
R - Sim, estava sempre lá.
01:29:24
P/1 - Então, como foi saber que aquela propriedade teria que ser deixada para trás? Como foi que ficou o seu imóvel quando começaram as saídas, as remoções?
R: O que aconteceu no Flexal de Baixo e no Flexal de Cima e na Marquês de Abrantes? Essas comunidades, essas ruas de Bebedouro não entraram no mapa de subsidência, entendeu? Porque a Defesa Civil diz que ali o risco é 0,2, 0,1, não tem muito risco. Só que eles esqueceram que as pessoas ficaram em isolamento socioeconômico, porque lá você não tem nada, nenhum serviço público, você não tem padaria, você não tem escola, você não tem posto de saúde, você não tem frigorífico, você não tem nada, não tem supermercado, não existe absolutamente nada. Aquelas pessoas estão totalmente isoladas, entendeu? Estão à margem da sociedade. Porque aquilo ali não existe. Você não tem segurança, você não tem transporte, você não tem mais o trem. E o trem era de uma importância para as comunidades de Fernão Velho até Maceió, a estação central, era de uma importância que não tem nem como você mensurar como foi a retirada dos trens que passavam em Bebedouro. Então, ali os nossos imóveis não existem. Estão lá em pé: “Aí eu vou vender.” Você quer comprar um imóvel ali? Você não tem nada. E a incoerência desses órgãos da mineradora é que tiraram um lado da rua e o outro deixou. Derrubaram todas as casas, colocaram tapumes de alumínio e o outro lado o pessoal está lá vivendo. Vivendo não, sobrevivendo, porque não existe mais. Nós tínhamos a cultura, a tradição que é imaterial, que é o sururu, nosso. Ali não se tira mais sururu. As marisqueiras que viviam do sururu, hoje elas não têm mais o que fazer. As pessoas que tinham seus negócios pequenos, suas pequenas vendas ali, comércio, hoje não tem mais. Não tem mais. Então, aquilo ali não existe. Teria que ser realocado àquelas pessoas para dar condições de vida àquelas pessoas, para tirar as pessoas daquele sofrimento e daquela depressão que eles vivem. Mas ninguém. Os órgãos compactuam. Claro que a Braskem é uma multinacional, hoje a Braskem tem um poder que a gente não pode nem mensurar o poder que aquela Braskem tem, pelo dinheiro. Então ela consegue comprar tudo. Agora as pessoas continuam sofrendo, continuam morrendo e estão ali abandonadas. Você fala com o irmão Valdemir, por exemplo, que mora lá, que é um ativista do nosso grupo. Eu falei, eu sou um dos diretores do MUVB, o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem. Eu sou coordenador do patrimônio histórico e de preservação. Como eu sou muito dessa área, eu fiquei nessa cadeira aí, de preservação do patrimônio histórico e cultural. E a gente fica, assim, estarrecido de ver o silêncio dos órgãos ambientais, dos órgãos públicos, federais, estaduais, nesse nível, e nada fazem, nada fazem. Então, ali, as pessoas que estão vivendo ali não estão vivendo, estão morrendo. Minha propriedade está lá, as casas estão vazias. Não tem lenitivo, nem condições de ninguém viver ali. Todo o dinheiro que foi empregado ali, o trabalho do meu pai, da minha mãe, do meu avô, do meu tio, meu também, está ali. Ninguém faz nada. Não há um ressarcimento, nem há um reconhecimento de que aquilo ali é propriedade particular de uma pessoa que viveu em prol de ter aquilo ali.
01:34:04
P/1 - Entendi. Professor, você já não morava mais, mas tinha sua propriedade. Como é que foi deixar aquele local, toda a história da sua família e acompanhar também as pessoas saindo?
R - Como eu lhe falei, eu tinha saído de Bebedouro há quase 13 anos, mas continuava em Bebedouro. Eu saí por uma questão de saúde da minha mãe. Ali, aquela área muito fria e no verão tem muita poeira, minha mãe é asmática, então ela desenvolvia constantemente a crise de asma. Mas eu estava lá todos os dias, praticamente. Dava no final de semana, estava lá. Até porque lá é patrimônio da gente, é patrimônio da nossa família. Eu tenho uma tia que mora lá ainda. O meu tio morava lá, faleceu, mas a esposa dele continua lá, no sítio da gente. Então, não tem como a gente desvencilhar essa vivência, separar essa vivência do hoje para o que foi antes, não, a gente continua, e eu continuo indo em Bebedouro. Eu continuo em Bebedouro. Sábado eu estava lá. Embora seja uma coisa que dói muito na gente, porque não tem mais nada. Uma das atitudes que a Braskem toma, que é uma atitude pesadíssima e com mentes muito perigosas, é o apagamento da memória, porque eu passo em Bebedouro e fico: “Meu Deus, onde era a casa do Flávio? Onde era a casa do Jorge Sexto? Onde foi a casa que eu nasci?”. Porque você não tem mais, ela devastou, ela deixou em terra e a vegetação está cobrindo tudo, então está pior. A gente não dimensiona mais o que era. O Alberto Torres a gente sabe por causa da praça, que ele ficava na esquina da praça. Mas o restante, da casa dos meus amigos, do Padre Júnior, enfim, a gente não sabe mais onde era. Então ela faz esse processo de destruir, demolir, que é justamente para apagar a memória das pessoas. Isso adoece as pessoas. Entendeu?
01:36:22
P/1 - E como foi? Quais os maiores desafios nessa adaptação em outro bairro?
R - Difícil. É difícil, porque mesmo quando eu me mudei de Bebedouro, eu me mudei em uma situação extrema. Eu não queria sair. Eu saí por conta da saúde, da saúde da minha mãe. Tanto que foi difícil. Eu passava dias sem ir em Bebedouro? Não. Eu ia quando eu podia, sempre. Eu estava lá em Bebedouro. Foi difícil a adaptação em outro local. O ser humano vai se adaptar, ele é adaptável, mas é muito difícil essa adaptação. Mas como eu saí e eu estava lá, como eu saí e eu estava na casa dos meus amigos no churrasco todo final de semana, quando eu saí, eu tinha uma folguinha à noite, eu ia lá para bater papo na praça, então eu não saí. Porque onde eu morei, na Serraria, era um condomínio fechado e pessoas que chegam com o seu carro, se trancam e tchau e malmente dão bom dia a você. E a gente não era disso, a gente era de sentar na calçada. Todo mundo chegava do trabalho, tomava banho, quem fumava acendia o cigarrinho e a gente ia comentar o que aconteceu no dia a dia ou o que se passou de interessante que chamou a atenção e até fofocar um pouquinho, às vezes, que todo mundo fofoca, entendeu? Isso fazia parte da nossa vida. Ia ajudar, sempre que um precisava, todo mundo se juntava: “Olha, está acontecendo isso. Vamos?”. Estava todo mundo junto. Na hora da festa, estava todo mundo junto, na hora do enterro estava todo mundo junto, na hora de ajudar do hospital, a gente revezava: “Olha, dona Fulana está no hospital, vamos revezar?”. “Vamos. Dia tal vai eu, dia tal vai você, eu fico de noite, você fica pelo dia.” Isso foi o que eu nasci, isso foi o que eu me criei, foi assim que eu vivi, foi assim que minha mãe me ensinou. Porque minha mãe trabalhava o dia todo, minha mãe é formada, minha mãe tem curso de enfermagem. A mamãe saía aplicando injeção nas pessoas nas favelas, nas grotas, de noite, eu ia com ela. Minha mãe fez isso durante muitos anos da vida dela. Então, não dá para ser diferente, não dá para mudar a história.
01:38:46
P/1 - Professor, você conseguiu criar raízes em outro bairro? E como é que ficou a relação com amigos, com a vizinhança?
R - Eu não sou uma pessoa difícil de conviver, mas não criei raízes, não criei, porque as pessoas não são tão acessíveis como eu, entendeu? Não cheguei a ter raízes. Aqui, por incrível que pareça, é um lugar mais simples, eu já tenho um carinho muito grande por algumas pessoas aqui, principalmente a pessoa que eu mais gosto, é um senhor e uma senhora que fazem reciclagem aqui. Ele anda com o carrinho a madrugada toda, catando reciclagem. Eu os chamo para as minhas festas aqui, eles não vêm, porque são muito envergonhados, mas aí eu faço pratinha de bolo, de churrasco e levo para eles, entendeu? E eles conversam comigo, muito. Eu acho assim, ela é uma pessoa tão digna, essa senhora, é uma pessoa tão solícita, isso, para mim, é o que é o importante. Meus amigos, muitos que casaram, algumas amigas minhas saíram, casaram com pessoas que têm uma posição social e econômica boa, moram no Alfa, no Aldebaran: “Você nunca vem aqui.” Eu digo: “Eu já fui na sua casa umas duas vezes.” “Vamos reunir aquela turma de Bebedouro.” “Oh, Rosa, não rola.” Aí a gente chega na casa da Rosa, ela fez um encontro com a gente de Bebedouro uma vez, minha amiga, tem a minha idade, a gente dormia na casa dela, era aquela coisa. Aí fomos. Chegou lá e tinha um povo que a gente não conhecia, não sei quem, dono da não sei o quê, não sei o quê. Tinha a dona fulaninha, que é não sei o quê, não sei o quê. Tudo gente empresária. E eu gosto de tocar violão. “Ah, mas toca violão. Ah, tem violão?” “Tenho.” Aí foi eu, Jadinho, que toca também. Tocamos, e o povo ficava assim, impressionado: “Olha como canta bem e tal.” Tudo assim: “Ô, Rosa, vamos contratar eles?”. “Não, não contrate, não. Não canto profissionalmente, não. Se a senhora quiser, eu dou o endereço.” Eu sou muito, sabe? Eu sou assim mesmo. Aí tem um que é dono de uma rede de lojas aqui, por incrível que pareça, ele simpatiza tanto, esse casal comigo, que eles me convidam para a casa deles. Todo mundo conhece, não vou falar o nome, não, mas é conhecidíssimo aqui, um dos maiores empresários de Maceió e mora lá no Aldebaran. Aí ele fez assim, encontrei um dia desses comprando um carro para o pai, o pai tem 97 anos, o pai dele. Aí ele falou: “Olha, Déo, estou escolhendo aqui um carro para o meu pai. Venha olhar aqui e tal.” “Certo. Me convida.” Sabe por que eu não vou? Não faz parte do meu meio. Não é radicalismo, não é. Essas pessoas, eu gosto do social, eu brigo pelo social. Essas pessoas dizem: “Olha, eu fui para Paris, comprei não sei o quê. Você viu o carro que foi lançado?” “Não, não interessa.” Eu tenho o carro porque eu preciso de um carro, não posso ficar sem ele, entendeu? Mas é aquela coisa, não casa, entendeu? Não casa. O meu pessoal era de Bebedouro. A minha turma, a minha praia eram os meus amigos de Bebedouro, que hoje estão por aí. Estão por aí.
01:42:25
P/1 - Professor, e essa turma de Bebedouro, você conseguiu manter o contato? Falou que estão por aí. Como é que ficou?
R - Poucos, eu encontro. Alguns eu tenho no WhatsApp. Inclusive, eu encontrei dois aqui, já vieram aqui, porque eu não sabia que eles estavam morando aqui. Tem muita gente que era de Bebedouro que está morando nessa região aqui, de cima. Eu encontrei dois. Aí já me disseram: “Olha, tem fulano. Encontrei o Batista. Encontrei não sei quem. Encontrei o Jô. Menino, eles moram bem pertinho.” É assim. Mas outros moram na Serraria, espalhados.
01:43:05
P/1 - Professor, em relação ao meio ambiente, você sentiu muitos impactos ambientais por conta desse desastre assim como aqui?
R - É o maior desastre ambiental. É o maior desastre ambiental do mundo em urbano, foi esse desastre da Braskem, porque nós temos 22 lagunas aqui. 22. Então, as duas lagunas mais importantes do estado chamam-se Mundaú e Manguaba. O estuário lagunar está ligado a essas duas lagunas, porque elas banham a parte leste da cidade. Então, o estuário, o berço ecológico da fauna das lagoas é imenso. Nós temos o berçário do caranguejo uçá, do caranguejo vermelho, nós temos o sururu, tudo acabou, isso está acabando. O sururu, ninguém tem mais sururu na lagoa. E as marisqueiras? Então, o impacto ambiental é de uma dimensão que a gente não pode, nem sabe. A gente não tem nem como dimensionar, porque os pescadores do Pontal, a Associação de Pescadores do Pontal, como é que esses homens estão vivendo hoje? Estão vivendo em uma bolsa-pesca, entendeu? Dada pelo governo federal. E existia a época do defeso do caranguejo uçá, que são seis meses. Aí, durante esse período do defeso, que é a época de reprodução do caranguejo uçá, então eles têm direito a essa bolsa. Não permanente, passava o defeso, eles voltavam ao manguezal para catar o caranguejo uçá, comercializar e tirar sua subsistência. Não existe mais isso. Principalmente as marisqueiras do Pontal, do Trapiche, de Bebedouro, não existe mais. O sururu, ele embranqueceu, embranqueceu, não é mais sururu, ele dissolveu, ele não consegue sobreviver aos impactos causados justamente pelos produtos químicos, pelo dicloroetano, que ali sai assim, oh, entendeu? Matou. Então, isso, enquanto a Braskem estiver, isso aí vai levar milhões de anos para a natureza se regenerar outra vez. Acabou o Mutange. O Mutange faz parte do estuário principal da lagoa. Hoje é o quê? É da Braskem. A minha revolta maior é que esses bairros são 100 mil pessoas atingidas, falam em 60, 70 mil, entendeu? Mas isso aí acabou com a vida diária, a vida do dia a dia das pessoas, do pescador, entendeu? A gente não tem acesso ao Mutange, é tapado. Por quê? Porque é da Braskem. A gente não tem acesso aos lugares que a gente ia, é tapado. Por quê? Porque é da Braskem. Ou seja, Maceió está vendido, cinco bairros estão vendidos à Braskem. E a nossa luta maior, hoje, é justamente para reverter isso. Os danos materiais. O que foi que eles fizeram? Danos materiais não é por essa construção aqui, não. Se me tirarem desta casa, vão ter que indenizar. Indenizaram vergonhosamente, um valor de 40 mil reais pela construção. Não é. Se a casa tem 10 pessoas, são as vidas que têm que ser indenizadas, são 10 valores morais. O que não aconteceu, porque tudo foi feito num acordo bilateral entre Braskem e ministérios e tal. E como é que pode? Se as vítimas não estavam presentes. Como é que eu vou poder negociar a sua casa sem você saber quanto vai ser a casa? Ninguém tem esse direito de negociar a sua casa. Foi o que eles fizeram. Então, não tem como você... O impacto ambiental é um dos maiores e quase irreversíveis, porque as crateras que nós estamos falando, quando houve o dolinamento, é pela ganância. As minas eram para terem sido exploradas com 100 metros de distância uma da outra e com profundidades de mil metros. O que foi o que eles fizeram? Eles fizeram um aqui, fizeram outro aqui com 20 metros, fizeram outro ali com 80 metros. E o que foi que aconteceu? É um queijo suíço. A Lagoa nossa está oca por baixo. Aí: “Não, vamos fazer o tamponamento com areia.” Aquilo ali não funciona. Não funciona. Então, quando é que a gente vai recuperar esse substrato, esse estuário? Não vai. A mortandade de peixes ali no Pontal é absurda, milhares de peixes mortos ali boiando. E o siri, que é um crustáceo que a gente ama, a gente não tem mais aqui. Hoje, para comer um crustáceo, um sururu, tem que vir lá de Roteiro, de Jequiá da Praia, porque aí você vai colocar a sua saúde em altíssimo risco se comer alguma coisa nessa Lagoa. Então, a Braskem, junto ao IMA (Instituto do Meio Ambiente), que eu acho que ele foi omisso demais, eu já disse isso, aos peritos do IMA: “Você foi omisso. Como é que você, ao lado de uma indústria que estava devastando, sem nenhuma fiscalização? Sem nenhuma fiscalização?”. A gente não tem nem como dizer o tamanho do desastre que ainda vai acontecer por conta disso aí. Agora, o único que sofreu foi o povo, foi a população, os mais atingidos.
01:49:54
P/2 - Professor José Balbino, como esse desastre impactou a sua área de atuação, o seu trabalho?
R - Impactou, Porque, como eu falei, eu gosto muito de aulas, extra sala de aula, entendeu? Tanto que eu já fiz, dei algumas aulas ali nos Corais de Ponta Verde, mostrando aos meus alunos o que é um polychaeta, como acontece a formação dos Corais de Recife, por que eles são vivos, qual a importância dos Corais. E quando a gente trata da Lagoa, a mesma coisa, eu sempre gostei muito de, mesmo como guia de turismo, dar aulas sobre a Lagoa. Eu fazia as nove ilhas, ali dentro do barco, mostrando os tipos de manguezais, da vegetação do manguezal, como acontecia, como se reproduzia. Eu passava ali por trás da Braskem, nunca gostei, e o pessoal perguntava: “E isso aí?”. Eu dizia: “é uma indústria química.” O pessoal: “Química?”. Os leigos até já ficavam, e eu já fazia de conta, fazia de conta não, para não impactar tanto as pessoas, com a minha opinião e o que eu achava do que iria acontecer, que eu sabia que um dia ia acontecer algo desse tipo. Então, isso impactou, por quê? Isso foi quando a gente fala assim: “Acabou o bairro de Bebedouro, acabou o bairro do Pinheiro.” Mas isso tem outra questão, quando aconteceu o dolinamento da Mina 18, o impacto foi tão grande que os hotéis perderam 45% das reservas, porque disseram que Maceió ia afundar. Então, para um professor de Biologia, que dava aula dentro da Lagoa e hoje é proibido de entrar na Lagoa. Os alunos de hoje vão continuar sem saber muito o que é que acontece, qual a importância do estuário lagunar para a nossa cidade, porque a Lagoa não só é importante porque é laguna. Não é lagoa, é laguna, lagoa é uma coisa e laguna é outra. Nós temos laguna, não temos lagoa. A laguna é aquela que tem canal que se encontra com o mar. E a lagoa é aquela que é fechada, como a Rodrigo de Freitas no Rio, que você pode fazer cooper na circunferência da lagoa, ao redor da lagoa. Então, a lagoa é importante para o mar, porque o substrato que o mar traz para a lagoa, para a laguna, ele se fixa nas raízes do manguezal. E também é um estuário de reprodução para as espécies menores. A lagoa, na sua essência, a água, ela é doce, mas com o encontro das duas águas, a lagoa é salobra. Então, não só é a importância para a sobrevivência das espécies, a presença da água do mar. E isso também foi afetado de uma forma devastadora. Foi afetado de uma forma devastadora por conta da poluição causada pela Braskem, pelos produtos que ela derrama ali dentro. Então para a minha profissão, para a profissão de qualquer biólogo ou ambientalista que lida com essa área, aquilo ali é doloroso, porque você perdeu uma sala de aula ao ar livre, uma aula de campo. Isso tem um impacto devastador para a vida da gente como profissional.
01:53:56
P/2 - Professor, o senhor falou sobre turismo. Eu queria saber, na visão do senhor, como é que o turista vê esse problema aqui em Maceió, se ele tem interesse, se ele é informado ou se isso é pouco chegado até ele?
R - Infelizmente, infelizmente, eu digo a você, sem medo de ser feliz, 80% dos turistas que chegam aqui a Maceió não tem muito conhecimento sobre isso aí. No máximo, 30% tem conhecimento, porque acompanhou, mas isso também é a questão da compra, chama-se a imprensa negra, é a compra do “cala boca". Não divulgar. Por que a Braskem não gosta de mim? Por que a Braskem não gosta dos ativistas? Por que a Braskem não gosta? Tentaram me comprar um emprego e tudo mais. Por quê? Eu não me vendo, claro, justamente por isso, porque quanto menos isso for propagado, melhor. Mas eu fiz Globo News, o que depender de mim, eu vou sempre dizer e vou sempre falar. Entendeu? E com a maioria das pessoas. Então ela se sente incomodada, porque ela não conseguiu vencer a gente. E hoje a população tem mais consciência, uma parte da população tem consciência disso, propaga isso e vai para os movimentos que são planejados por nós. Então é difícil, é difícil, mas é assim, é uma luta, é um elefante e uma formiguinha lutando. E a gente tem que continuar essa luta. Tem que continuar. Causou impacto? Causa. Causou impacto para o turismo diretamente, né. Porque o passeio das nove ilhas você é delimitado para fazer, você não pode fazer mais a extensão que você fazia, por conta das minas, você não pode mais fazer o que a gente fazia toda a orla ali por trás da Braskem, mostrando ali o estuário todo do Manguezal. Hoje a gente não pode mais. Como a gente não pode mais adentrar em várias partes, em várias ruas, a gente também não pode, o pescador ou os passeios turísticos das nove ilhas, ele não tem mais a extensão que ele era realizado antes. Impactou o turismo, muito!
01:56:30
P/1 - Professor, o impacto desse desastre para os animais domésticos, silvestres e a vegetação é uma coisa que chegou até você?
R - Sim, a coisa mais dolorosa, foi essa. Eu vou falar de Bebedouro e Pinheiro, que foram os mais impactados. Por quê? Porque com a realocação compulsória das pessoas, na lei do apulso, com a Polícia Civil e tudo mais, e Defesa Civil, então, muitas pessoas, devido ao impacto e ao choque da coisa, eles deixaram seus animais abandonados. Deixaram seus animais abandonados. E já existiam animais de rua, mas que muitas pessoas cuidavam, alimentavam esses animais e tudo mais. Então quando há a saída dessas pessoas, milhares de animais, milhares de gatos, de cão, de cachorro, ficaram abandonados. Então as ONGs (Organizações não-governamentais), nós nos juntamos para reconhecer animais, junto com a UFAL (Universidade Federal de Alagoas). Pedimos uma intervenção da UFAL, que fizesse um programa pra gente resgatar esses animais e colocar em um abrigo, mas a gente não teve nenhum apoio governamental, nem tão pouco municipal. E a Braskem matou muitos. Lá em Bebedouro ela mandou selar algumas casas, quando eles chegavam os gatos entravam para se esconder nessas casas. Então eles selavam, faziam o tapume e os gatos morriam lá dentro, de fome, sem poder sair. Outra coisa que ela fez muito, foi colocar umas caixinhas pretas e morreram centenas de gatos e de cachorros, mais gatos, dizendo que aquilo ali era para evitar a proliferação de roedores, de ratos. Os gatos comiam e morriam. Morreram milhares ali em Bebedouro. Eu tenho uma amiga, a Sandra, ela começou a acolher esses cachorros, ela e o esposo e a gente fez muita campanha de ração e tudo mais. E eles estavam com 300 animais. Ele estava construindo, vendeu quase tudo o que tinha, das poucas coisas que tinha, para fazer um abrigo para 300 animais de lá de Bebedouro, só de Bebedouro. Então foi assim, um crime declaradamente e ninguém fez nada. Foi denunciado por muita gente, biólogos, ONGs e tal, mas: “Não, isso aí a gente estava colocando essas armadilhas para matar roedores.” Não era, não era! Era para matar os gatos, e mataram muitos, muitos!
01:59:31
P/1 - Professor, na busca por reparação, o senhor sente que houve justiça e se envolveu em algum processo de reparação. Pode falar, explicar um pouco do processo?
R - Sim. Até hoje, nós temos ajuizado, são vários processos. Então, como nós temos o doutor Cássio, que é do nosso grupo, ele é o coordenador geral. Temos o doutor Kleber, também, que é advogado, é do nosso grupo, do MUVB. Foi feito. E eu corri muito para a Defensoria Pública, através do doutor Ricardo Melro. Ele sempre foi meu suporte, foi o doutor Ricardo Melro. E, claro que nós não tivemos êxito. Por quê? Porque o Ministério Público Federal, Estadual e Defensoria Pública da União não estão do nosso lado. E a Defensoria Pública Estadual, que está do nosso lado, na pessoa do doutor Ricardo Melro e do doutor Lucas Valença, eles são fracos, eles não têm o poder desses três poderes juntos. Então essa questão da reparação está tudo errado. A começar pelos danos morais, que eles deram pela casa, não foi pelas pessoas. E não é a casa, não é a construção. Se tem dez pessoas, são dez danos morais, mas eles deram pela casa, quarenta mil. E o dano moral passa de cem mil. Está tudo em juízo, mas ela recorre para todas as varas de Recife, de tudo e tal. Sabe?
02:01:16
P/1 - E o senhor participou de alguma atividade para preservar a memória do bairro, daquilo que existiu ali um dia?
R - Sim. Primeiro, eu fiz logo uma campanha. Primeiro o cemitério, eu entrei com o processo e transformei em memorial. Então, ninguém pode mexer mais, nem tirar nada. Eu fui adiante deles. E depois eu comecei a denunciar o Bom Conselho, a Igreja de Santo Antônio, o Solar, aquela casa enorme, avarandada toda, do comendador Nunes Leite. Foi quando o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a gente fez uma documentação, mandou para o IPHAN, e começou a fazer muito barulho, e eu fazia vídeos, vídeos, vídeos, em tudo que era lugar, em frente ao Bom Conselho, em frente à Igreja de Santo Antônio, e também, uma coisa que eles esqueceram totalmente, a casa de Graciliano Ramos, foi de lá que Graciliano saiu para a prisão quando ele escreveu Memórias do Cárcere. Graciliano Ramos morou ali na praça, na casa azul, quase de esquina. E a casa estava se diluindo, deteriorada. Então, foi principalmente, que eu entrei logo assim, rapidamente, foi o Bom Conselho, essas construções, como fiquei com essa parte do patrimônio, foi o Colégio do Bom Conselho, a Igreja de Santo Antônio, que eles estão lá fazendo ainda uma revitalização, o Solar, do Nunes Leite, do Comendador, e a casa de Graciliano Ramos. Pronto esses daí. A casa que era de Nise da Silveira, a psiquiatra que revolucionou o tratamento psiquiátrico no Brasil e no mundo, ela morou lá na Subida da Chã, a casa antiga também. Essa já foi destruída.
02:03:16
P/1 - Professor, houve algum processo de reparação fora a compensação financeira por parte da Braskem?
R - Não, não houve. Não houve. Tem muitas pessoas, inclusive, que entrou em pânico. Como ela não concordou, nem a Defesa Civil acatou a realocação, então, essas pessoas saíram por conta própria e não tiveram indenização nenhuma.
02:03:45
P/1 - Então, não houve danos morais, patrimoniais, extrapatrimoniais, nada?
R - Não. Como eu falei para vocês, as pessoas que ela comprou a casa, tiveram 40 mil reais por família, não foi pelas pessoas. Se eram 10 pessoas, teria que ser, pelo menos, que não é esse o valor, está errado, deveria ser 40 mil para cada pessoa. A casa tem 10 pessoas, vai sair da casa, o dano moral vai ser pela casa, 40 mil pela construção.
02:04:20
P/1 - E o que falta ser reparado na sua visão?
R - Falta muita coisa. Primeiro, tem que ser desfeito esse acordo esdrúxulo, esse acordo vergonhoso que foi firmado entre Ministério Público Federal, Estadual e Defensoria Pública da União com a Braskem, principalmente o Ministério Público. Isso tem que ser desfeito. Houve a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Braskem, lá em Brasília, do Omar Aziz, e eles vieram aqui, eu os acompanhei, eu mostrei logo como aquelas pessoas estavam vivendo, mas, não surtiu muito efeito. A gente achava que, ali, eu achava assim, achando e desachando ao mesmo tempo, que iria surtir algum efeito, mas virou uma grande pizza. Então o que tem que ser feito é realocar as pessoas que estão no Flexal, que estão vivendo aquelas condições subumanas, e fazer a reparação digna das pessoas que saíram e que a Braskem assuma. Teve uma família agora que ganhou os danos materiais, eles já colocaram isso até na Holanda, eles recorreram à Justiça da Holanda, porque ela tem lá, uma sucursal na Holanda, a Braskem. E muita gente daqui colocou, um vizinho daqui colocou lá na Holanda, porque ele era de Bebedouro também, esse aqui, tinha um bar em Bebedouro. Então a gente está correndo atrás disso, mas é dificílimo, é dificílimo. Como a gente entrou, eu já pedi a indenização por danos materiais e morais pelo cemitério memorial de Santo Antônio, lá. A Defensoria da União, ela queria engavetar isso aí. Aí foi quando a gente entrou, falei com o defensor público, doutor Valença, e ele conseguiu que o doutor André Granja nos recebesse em uma comissão. Fomos e contei as coisas, ele ficou estarrecido. Depois marcou com os advogados da Braskem, junto com os órgãos da Prefeitura, enfim, enfim. E deu um prazo para que a Braskem desse uma resolução a respeito do cemitério, sobre a construção. Aí ela bota um monte de mentira, a Braskem também. Resultado, nós estamos na mesma. E as pessoas me cobram, todos os dias: “Professor, e o cemitério?”. Eu digo: “Eu não tenho poder.” Quem tem o poder nas mãos não fez. O prefeito, eu achei que ele ia ser digno de, agora, o ano passado, está com o ano, ele fez um acordo global com a Braskem e vendeu, deu o perdão à Braskem, por um bilhão e setecentos milhões. Pelos danos materiais, ambientais, ele fez isso. O senhor JHC (João Henrique Caldas). Entendeu? E eu digo isso na cara dele, que eu já o chamei de covarde também. Mas, o que foi que ele fez? Qual foi a primeira ação dele? Aquilo ali era para danos, era para reparação, era para reparação das vítimas. A primeira coisa que ele fez foi comprar o Hospital do Coração, por duzentos e sessenta e seis milhões, superfaturado. Está sucateado. Entendeu? Comprou mais não sei o que, não sei o que, não sei o que. Foi comprando, não fez reparação, não fez o cemitério. A última parcela de duzentos e cinquenta milhões foi paga agora no final do ano, mas ainda tinha trezentos e cinquenta milhões que a Braskem ia dar por fora, que é muito dinheiro. Sabe? Muito dinheiro. E nada se faz. Como é que hoje nós nos sentimos aqui em Maceió? Sem apoio de nada. Sem justiça. Não existe justiça para a gente. Sabe? Não existe justiça. E eles não fazem nada.
02:08:26
P/1 - Professor, em relação às cicatrizes, quais as marcas que ficaram pra você e pra sua família? A saúde mental, como é que foi afetada?
R - Olha, eu, assim, eu sou muito emotivo, sabe? Eu, quando desço a Ladeira do Calmon, eu até chorava mais. Hoje eu me controlo. Mas aí, pra mim, vem a revolta. Vem a revolta. Sabe? A gente não tem como se conformar em ver aquilo tudo. Não tem mais nada. Entendeu? Uma cidade de lata. Coberta por lata. Então, esse impacto pra gente, emocional, é muito grande. É muito grande. Eu passei a sofrer muito e isso estava me afetando de uma forma que eu estava adoecendo. Eu tive que parar. Agora, eu estou me recuperando. Não foi depressão. Mas, sabe o que foi? Você ficar sem meios de lutar. A palavra que resume tudo é impotência. Pela impotência de você não poder fazer nada, porque quem pode fazer, não faz. E você, como simples mortal, não tem esse poder nas mãos. E você, lutando pelo que é certo, lutando pelos direitos humanos. Então, a sensação é essa. Impotência. Agora, luta, continuamos lutando. Tem pessoas que continuam comigo nessa luta e a gente não vai parar. Não vai parar. Entendeu? Não vai parar. Até a gente conseguir reverter um pouco disso aí.
02:10:29
P/1 - E o que mudou para sempre, professor?
R - O que mudou para sempre? As mortes. É a única coisa que eu digo que não tem mais volta. Que não tem mesmo. Eu perdi pessoas muito queridas, pessoas que eram muito caras para mim, pessoas boas, sabe? Isso não vai sair mais. É uma cicatriz que eu vou levar para o caixão, para a eternidade. Isso não volta, porque os trilhos da minha vida, quem constrói os trilhos da vida, somos nós, não é o seu pai, não é o seu irmão, não é o seu marido, os trilhos das nossas vidas são construídos por nós, porque somos nós que vamos trilhar nele. Se você não construiu esses trilhos para a sua vida, se você não experimentou aqui no mundo, nesse torrão de terra passageiro, se você não experimentou, se você não teve as experiências, não teve lenitivo. O que foi que você veio fazer aqui? Passar como o vento? Não. Então na construção desses trilhos, ninguém, só ele, Deus, ele tem o direito de dar e tirar a vida, mais ninguém, homem nenhum, tem o direito de mexer nos trilhos que eu tracei para a minha vida, os trilhos são meus, porque o trem que vai passar sou eu neles.
02:12:15
P/1 - Como o senhor vê o futuro das regiões e do meio ambiente das regiões afetadas?
R - É uma incógnita, porque ninguém nos diz. Uns dizem que vai acontecer um condomínio de luxo pode acontecer. Como o doutor Ricardo Melro diz, eu estava assistindo um vídeo que ele gravou essa semana, um documentário, em que ele dizia o seguinte: “Daqui a dez anos, daqui a cinco, talvez, ela é a dona. E a justiça nossa é cheia de brechas. Ora, se você é dona, o que é que vai impedir de você entrar com o processo e você transformar aquilo num condomínio de luxo?”. Que é o que todo mundo acha, como aconteceu no Lago Paranoá, em Brasília, que hoje é a região das mansões. Então, ninguém sabe hoje, responder essa pergunta. O que vai ser do futuro? Não sei. E o presente? É esse. O presente é esse, o que você está vivendo. Agora, o futuro…. Vai ter o futuro da lagoa? Qual vai ser o futuro ambiental? Qual vai ser o futuro dessa imensidão de cinco bairros? Que aquilo é dinheiro, que foi simplesmente tomado por micharias.
02:13:51
P/1 - Professor, o que você gostaria que as pessoas soubessem de toda essa experiência?
R - Eu gostaria que as pessoas tomassem conta do seu patrimônio, em primeiro lugar, e não abrissem mão dos seus direitos, principalmente isso. Porque as pessoas, mesmo dessas 70 mil famílias que foram compulsoriamente obrigadas a sair de suas casas e de suas propriedades, uma boa porcentagem dessas pessoas não estão nem aí. Estão indo para o forró do senhor prefeito. Acham que a vida é isso. Na realidade, eu gostaria que as pessoas não compactuassem com o erro, com a miséria e nem com o sofrimento do outro, só isso. As pessoas não compactuassem e não achassem isso normal, tudo isso que acontece aqui. Porque eu vejo. Eu ando muito, eu falo muito, em tudo que é lugar, em supermercado todo mundo me conhece, em farmácia: “Ah, o professor Balbino? Ah, eu conheço o senhor.” Eu falo muito mesmo. Eu brigo pelos meus direitos, seja onde for, eu brigo pelos meus direitos, sempre, seja em qualquer esfera. E eu fico olhando assim, tem pessoas que: “Ah, o senhor é aquele que luta contra a Braskem?”. Outro dia tinha um monte de gente no caixa, assim: “Eita, é horrível aquilo ali, não é professor?”. Mas tem pessoas que já chegaram pra mim e fizeram assim: “É o que que aconteceu mesmo?”. Vivem em Marte. Tem uma porcentagem dessa cidade que além de não estar nem aí, nem tem conhecimento de causa e nem fazem questão de ter. Isso é o que me dói, entendeu? Eu gostaria que as pessoas olhassem mais humanitariamente pelo outro, para o outro.
02:16:02
P/1 - Professor, o que você vê ou como quer ver o seu legado para as próximas gerações?
R - Eu digo sempre uma coisa, a minha passagem aqui, neste plano, não foi em vão. Porque me emociona muito, alunos, ex-alunos meus, eu encontrar, às vezes, nem conheço mais, eram adolescentes, e dizer assim: "Professor, o senhor mudou a minha vida.” “Professor, eu estava entrando nas drogas, mas, com as suas aulas.” Porque a minha aula de Biologia é muito intensa. E ele diz: "O senhor mudou a minha vida." Outra coisa, eu entrei numa farmácia e tinha uma farmacêutica e eu falando muito, “papapapa”, aí ela disse: "Esse foi meu professor. Professor Balbino, o senhor foi meu professor." Então eu transformei vidas, eu formei advogados, eu formei médicos, eu formei farmacêuticos, eu formei engenheiros, então, tá bom. A minha passagem aqui não foi em vão. Eu transformei vidas pela educação, que é a única coisa numa nação que faz jus à nação, é a educação.
02:17:33
P/1 - Professor, como foi contar um pouco da sua história?
R - Contar a minha história, eu gosto de contar, até porque a minha vida é um livro aberto. E quando você não tem nada a dever às pessoas, você conta. Aí tem uma coisa, eu não minto. É tão difícil uma pessoa não mentir. Eu não minto, doa a quem doer, eu não minto. Eu chego no supermercado, no Assaí, que eu faço compras no Assaí, quando eu chego com o carro, os meninos que recolhem o carrinho, que o povo deixa atrás dos outros carros mal educadamente, dizem assim: "O professor chegou." Daqui a pouco, o gerente sabe que eu cheguei. Sabe por quê? Eles deixaram no supermercado de fazer isso por conta de mim. Nas gôndolas que ficam na parte de verdura, eu fui comprar ontem, eles deixavam os sacos cheios, batata, cenoura, cebola, pimentão, tudinho e em cima das gôndolas, os tomates podres, cebolas, tudo e eu dizia: "Não, eu estou comprando! Eu não vou ficar catando aqui. Não estou no lixão do mercado. Estou pagando." Eu pegava a chave do meu carro e rasgava todos os sacos, eu sou assim, exatamente assim, e botava todas as verduras que estavam no meu saco, as verduras novas. O gerente com a cara deste tamanho. Eu dizia: "Vocês estão pegando podre, mas aqui tem nova." Aí o povo, “vrum”. Aí ele vinha, mandava tirar e despejava o saco. E eu fiz isso algumas vezes, umas quatro vezes, aí ele resolveu tirar os sacos dali, mas não adiantou, porque quando eu chego, eles falam: "Chegou o professor, olha como é que está a verdura.” Porque se tiver verdura velha, eu não compro. Aí eu digo: "Por favor, eu quero tomate novo, batatinha nova." Aí ele: "Não, o senhor aguarde um momentinho.” Eu chamo mesmo. “Chame o gerente para mim." Entendeu? E eu sou assim, não vou mudar. E eu gosto de ser assim, não somaria para com as outras.
02:19:42
P/1 - Professor, essa foi a nossa última pergunta. Quero agradecer pela entrevista. Muito obrigada! Foi ótimo!
R - Agradeço a vocês!
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