Projeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Waijóre Karajá Iny (Luiz Carlos Maury)
Entrevistado por Tiago Nhandeva
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Luciara), 17/11/2022.
Entrevista n.º: ARMIND_HV025
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Boa tarde, parente Maury! Eu estou muito feliz de recebê-lo aqui para mais uma entrevista dos parentes indígenas que estão contando suas histórias de vida para o Museu da Pessoa, para o Brasil e para o mundo. É uma forma de valorizar a história de cada indivíduo e principalmente dos indígenas que lutam pela terra e pela vida. Então já gostaria também de começar perguntando a respeito das origens. Primeiro o nome, o nome em português e também o nome indígena, e quais os significados desses nomes?
R - Ok. Gostaria de me apresentar primeiro, meu nome em português é Luiz Carlos Maury. E o nome tradicional, Waijóre. Os nossos nomes, alguns têm significados como coisas da natureza, bichos da natureza, um rio, ou matas. No meu caso o Waijóre é um nome comum na cultura Iny. E como o meu nome tradicional é Waijóre, então eu já pertenço ao povo Iny. Nós nos autodenominamos de Iny. Mas ao longo da história, os pesquisadores, muitos estudiosos acabaram colocando o nosso nome de Karajá, mas nós nos autodenominamos Iny.
P/1 - O professor falou do Iny, como vocês se autodenominam, e que Karajá foi dado pelos antropólogos e pelos pesquisadores. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco do povo do senhor. Onde está localizado e quantos são? Se pudesse contar um pouco dessa história…
R - Ok, Tiago. Eu agradeço pela participação e pelo convite, por estar contribuindo com um pouco da história do povo Iny. Então pra gente vai ser muito gratificante e prazeroso estar contando para que a sociedade realmente conheça um pouco mais da história do povo Iny. Então, a história do povo Iny é…...
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Entrevista de Waijóre Karajá Iny (Luiz Carlos Maury)
Entrevistado por Tiago Nhandeva
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Luciara), 17/11/2022.
Entrevista n.º: ARMIND_HV025
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisado por Luiza Gallo
P/1 - Boa tarde, parente Maury! Eu estou muito feliz de recebê-lo aqui para mais uma entrevista dos parentes indígenas que estão contando suas histórias de vida para o Museu da Pessoa, para o Brasil e para o mundo. É uma forma de valorizar a história de cada indivíduo e principalmente dos indígenas que lutam pela terra e pela vida. Então já gostaria também de começar perguntando a respeito das origens. Primeiro o nome, o nome em português e também o nome indígena, e quais os significados desses nomes?
R - Ok. Gostaria de me apresentar primeiro, meu nome em português é Luiz Carlos Maury. E o nome tradicional, Waijóre. Os nossos nomes, alguns têm significados como coisas da natureza, bichos da natureza, um rio, ou matas. No meu caso o Waijóre é um nome comum na cultura Iny. E como o meu nome tradicional é Waijóre, então eu já pertenço ao povo Iny. Nós nos autodenominamos de Iny. Mas ao longo da história, os pesquisadores, muitos estudiosos acabaram colocando o nosso nome de Karajá, mas nós nos autodenominamos Iny.
P/1 - O professor falou do Iny, como vocês se autodenominam, e que Karajá foi dado pelos antropólogos e pelos pesquisadores. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco do povo do senhor. Onde está localizado e quantos são? Se pudesse contar um pouco dessa história…
R - Ok, Tiago. Eu agradeço pela participação e pelo convite, por estar contribuindo com um pouco da história do povo Iny. Então pra gente vai ser muito gratificante e prazeroso estar contando para que a sociedade realmente conheça um pouco mais da história do povo Iny. Então, a história do povo Iny é… como também são muitas histórias…. é bem parecida com as histórias de outras etnias, de outros parentes que estão habitando em outros territórios brasileiro. Então assim, nós Iny, Tiago, infelizmente com a invasão dos nossos territórios tradicionais, hoje nós estamos espalhados em três estados brasileiros, do qual o primeiro estado se chama estado de Goiás, lá se encontram indígenas Iny. E também no estado do Tocantins se encontram Iny, inclusive é onde estão concentrados a maior parte do povo Iny, que é na Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial do mundo. E por último, aqui também no estado do Mato Grosso, que se encontram os Iny. Então assim… e no Tocantins, também lá e encontra um povo chamado Karajá Xambioá. Eles se autodenominaram dessa forma. Eu já tenho um pouco assim, pouco conhecimento da história deles, tenho um pouco assim, triste, história de invasões de territórios, por esse motivo que vieram a esquecer um pouco da língua tradicional. E a nossa língua tradicional é do tronco linguístico do macro-jê. Então assim, Tiago, por questões de invasões territoriais, os Karajá se espalharam ao longo desses três estados brasileiros. Mas a primeira que eu citei, está lá no estado de Goiás, que se chama Aldeia Buridina, já foi uma aldeia tradicional da qual os nossos parentes, aqui do Bananal, iam muito lá festejar as festas tradicionais. E naquela época não haviam transportes, então assim, os nossos avós acabavam atravessando matas, quilômetros e quilômetros para se encontrar com os parentes e fazer os seus festejos tradicionais. Em algum aspecto, naquela época, era difícil em relação à questão da tecnologia, a tecnologia do homem branco. Mas em questão de vivência, eu acho que, na minha opinião, nós éramos mais felizes. Tínhamos paz, tínhamos harmonia entre os parentes que moravam em outras localidades. Então assim, outros parentes acabavam se juntando nessas festas tradicionais, que hoje ao longo dos quinhentos anos estamos aí lutando para que essas festas não se acabem. As festas tradicionais, a língua tradicional, porque o povo Karajá é um povo muito, muito ligado com a questão da língua, dos costumes, das crenças. Então assim, nós temos uma ligação muito forte, Tiago, com a natureza, com a mata, com o Rio. E eu posso te dizer que os Iny… não sei se alguns antropólogos, estudiosos, eles perceberam… os Iny não são, assim, um povo do Cerrado, indígena do Cerrado, nós somos um povo mais da beira do Araguaia, ou seja, da beira de rio. Então assim, é por isso que nós, os Iny, somos exímios nadadores, nós temos uma ligação muito forte com o rio, assim como outras etnias tem alguma ligação com alguma floresta ou com alguma caça. Então o povo Iny tem uma ligação muito forte com o rio, com o Rio Araguaia, do qual nós habitamos. E é muito assim, interessante, que esses três estados, é onde o Rio Araguaia passa, Tiago. Isso é muito interessante, assim, eu nem tinha percebido isso, o Rio Araguaia passa no estado de Goiás, passa no Tocantins e também passa ali, onde se concentra o povo Xambioá Karajá, como eles se autodenominam. E fica ali na divisa com Tocantins e Pará. Então assim, é uma coisa que eu fico pensando, eu acho que é uma coisa de outro… a natureza foi feita de acordo com… como nós podemos viver mesmo, sabe? E ao longo dessa nossa luta, dessa nossa jornada. Infelizmente as coisas vêm diminuindo, tanto da natureza como da questão social, e uma coisa liga a outra, Tiago. Sabe? A natureza, o território, os nossos costumes, uma coisa liga a outra. Se uma coisa é invadida, então tudo fica invadido. Não só o território, mas como nossa língua, os nossos costumes, o nosso jeito de viver, o nosso cotidiano. Então assim, é uma coisa que pra gente, o indígena, não só o povo Iny, tem que ter um território, um território demarcado, homologado, registrado, do qual infelizmente alguns parentes ainda estão na luta, na luta aí da demarcação da terra, de uma homologação, ou seja, que seja reconhecido na lei do Tori. Tori é não indígena na nossa língua. Que seja demarcada, homologada e reconhecida nos cartórios. Então assim, essa é a nossa batalha, Tiago. E assim, hoje o povo Iny, nós temos uma ligação muito forte. Eu tenho uma ligação… eu tenho outros parentes no estado do Goiás, no estado do Tocantins, então assim, o povo Iny sempre tem uma ligação de parentesco. Então assim, nós sempre… os nossos avós sempre contam histórias, mitos que essas histórias são contadas desde a nossa infância. Então assim, cada criança percebe que recebe esse ensinamento da mãe, do avô, da avó, então todas crescem com essas aprendizagens. Porque na cultura Iny, isso já era como se a criança, o menino, ou seja, a menina, já estivesse sendo educada pelos mais velhos. Então essa é a parte que cabe à educação indígena. Então assim, o conhecimento, o aprendizado já eram passados do pai para o filho, da mãe para a filha, do avô para o neto, da avó para a neta. Então esse é o costume do Iny, ou seja, com a chegada da tecnologia as coisas foram mudando. Então as coisas… nós tivemos que adaptar a questão da educação escolar, da sociedade envolvente com a educação indígena, ou seja, a nossa pedagogia é bem “diferida”, ela é bem diferente, lá, do que hoje nós estamos vendo lá fora. Então assim, a mudança foi muito brusca, sabe Tiago? Foi muito brusca! É por isso que hoje muitos jovens estão crescendo com essa tecnologia muito avançada e muito rapidamente, e muitos não estão preparados para essa tecnologia. Então há muita dúvida, muitas vezes na cabeça da criança, na cabeça do jovem. Então temos que ter muito cuidado com essas mudanças, com essas mudanças muito rapidamente. A gente sempre tem que estar focado no que somos, ou seja, qual é a nossa origem, para que a gente não se perca nesse mundo cheio de tecnologias. Então essa primeira parte eu posso definir dessa maneira, Tiago.
P/1 - Muito bem parente! Então o senhor fez essa introdução falando sobre o povo Iny, o povo Karajá, o território de origem, essas características culturais. E eu gostaria de voltar mais também para o senhor agora, o senhor dizer onde nasceu, em que ano foi que o senhor nasceu e também como foi o dia do nascimento? Os pais do Senhor contaram como foi esse dia?
R - Ok, Tiago. Não, é muito, muito interessante a pergunta! É uma coisa que a gente não esquece dessa parte. Às vezes… eu sempre falo para os meus alunos, nas minhas palestras, isso é uma pergunta que não pode se calar mesmo. Então assim, a gente tem que falar da nossa origem, o que nós somos e que nós nunca vamos deixar de ser o que somos. Então assim, respondendo à sua pergunta, sim, como eu estava dizendo, nós Karajás temos uma ligação, o povo Iny, nós temos uma ligação um com o outro. E eu sou dessa aldeia antiga, que se chama Buridina. Hoje ela está situada no Município de Aruanã, lá no estado de Goiás. Então assim, eu sou filho dessa aldeia, o meu avô se chamava Jacinto Maurehi, Jacinto é português, Maurehi já é indígena. Ele foi o fundador daquela aldeia, da qual, como eu disse aqui no começo da minha fala, a nossa história, nós sempre estamos ligados com outras histórias de outras etnias, de outros parentes. E não foi diferente a nossa história lá no município de Aruanã, no qual, na época, se chamava Leopoldina. Ela se chamava Leopoldina, que em… eu acho que foi em homenagem à uma imperadora que se concentrou naquele município. Porque antigamente tinha aqui no Rio Araguaia um barco a vapor, então esse barco a vapor era da missão católica da qual esses missionários católicos andavam aqui na beira do Araguaia, catequizando jovens, levando lá para uma, tipo assim, um aldeamento. Tirava das aldeias os jovens, os jovens não sabiam sequer falar uma letra “N”, uma letra “E”, não sabia nada do português. Então esse jovem era tirado das aldeias e levado para um tipo de aldeamento. E aí lá também era concentrado povos de outras etnias. Então lá era agrupado essas etnias e ninguém se entendia, era uma história até muito triste, Tiago. E lá eles não se entendiam, e lá tinham missionários, freiras, pessoas ligadas a igreja católica. Lá colocavam eles para trabalhar e infelizmente ensinavam a cultura que não era deles, a cultura ocidental, infelizmente! Então aquilo lá veio a confundir a cabeça deles. E aí muitos ali perderam a sua fala, a sua origem. Então muitos, até parece que fizeram tipo uma lavagem cerebral mesmo, infelizmente, nesses parentes antigos. Então assim, ali foram concentradas essas pessoas, Tiago. E na qual o meu avô lutou bravamente para que isso não afetasse a comunidade dele naquela época. O meu avô, o Jacinto Maurehi, foi um cacique muito tradicional e os meus bisavôs também já eram caciques, líderes ali da… que fundaram aquela aldeia. E aí chegaram, infelizmente, os invasores naquele município. E como os nossos avós, antigamente, não entendiam o que era documentação, o que era escrita, então eles viviam harmoniosamente, felizes e em paz. E aí com a chegada desses missionários e outros invasores, políticos, fazendeiros, empresários, e aí infelizmente aquele lugar foi sendo… foi invadido. Foi invadido e começaram a construir mansões. Começaram a construir muitas imobiliárias para que as pessoas morassem ali. Então nós acabamos, mais ou menos, em um pedaço de apenas dez mil… quadrados… Tiago. Apenas esse pedacinho do qual o meu avô correu atrás, e aí tivemos pouca ajuda na FUNAI, que na época era STI, né? Serviço de Proteção ao Índio. E aí então ele procurou ajuda e o pouco que eles ajudaram foi cercar aquele lugarzinho, aquele pedacinho, somente para eles morarem, com uma tela, uma tela onde cerca as hortas. Essas coisinhas. Então fizeram esse pedacinho para que eles morassem. Mas mesmo assim, Tiago, infelizmente tem muitas histórias de outros parentes que moram na cidade grande que foram invadidas. Então assim, alguns jovens começaram a perder a língua materna. E o meu avô mais a minha avó, que era a companheira dele, inseparável, companheira de luta, eles lutaram bravamente. Eles ficaram lá, eles lutaram bravamente, fortemente, mas eles não mudaram de lá, Tiago. Não mudaram de lá, enquanto outros mudaram e tiveram muitas doenças. Doenças infecciosas como a malária, tuberculose. Aí outros começaram a morrer, outros começaram a mudar aqui para a ilha do Bananal, Tocantins. E aí eles resistiram lá até o fim, Tiago. E lá então, alguns começaram a retornar, depois de mais ou menos quinze, vinte anos, outros começaram a retornar para morar naquele lugar que se chamava Buridina, e até hoje se chama Buridina. E aí, devido a festa tradicional, colocou o nome daquele município… foi fundado o nome de Aruanã, devido à dança do povo Iny que é aruanã. Porque tem uma dança, uma cerimônia que o povo Iny celebra, que se chama aruanã. Então devido aos festejos, aquele município foi chamado com este nome tradicional. Mas aí depois, com muita luta, com muita persistência, conseguiram marcar um pedaço de terra para que eles plantassem, criassem gado, ter as coisinhas deles. Então assim, depois de décadas… hoje eles se organizaram. Eles se organizaram. E o meu avô, já falecido, hoje ele é homenageado. Lá tem umas escolas, temos um centro comunitário de venda de artesanatos e temos um porto onde os turistas descem ali com os barcos e também os parentes ali, eles cobram pedágio para os turistas descerem ali, na temporada. Então assim, aí eles se organizaram e tal. Aí esses monumentos, essas construções, eles colocaram o nome de Projeto Maurehi. Até uma professora, hoje, quando eu cito o nome dela, professora Socorro, Maria do Socorro Pimentel, uma professora da UFG, não sei se o senhor já ouviu falar nela, é uma professora muito conhecida pelo povo Iny, uma professora muito querida! E ela conheceu o meu avô quando ele era vivo. Essa professora é doutora em Linguística, ela é linguista da UFG. Infelizmente ela veio a falecer com a pandemia, veio a falecer. E aí então, Tiago, ela criou um projeto do qual o nome ficou em homenagem ao meu avô, Projeto de Revitalização da Língua Maurehi. Então assim, esse projeto, graças a Deus, deu certo, ajudou muito, muitos jovens que estavam já à beira da perda da língua, da língua mãe, da língua materna. Ajudou com encontros de professores, de ambos, esses três estados se uniram, todos os educadores, contadores de histórias e mitos. E como já os parentes aqui da ilha do Bananal, eles sempre… nunca perderam a língua, os rituais. Então eles partiram daqui, convidados para ensinar aqueles jovens que já estavam quase perdendo a língua. Então um desses jovens, no qual era eu, Tiago. Mais ou menos, eu entrei nesse projeto, eu tinha dezenove anos. Hoje eu estou com 48 anos e me orgulho muito, muito, de ter feito esse projeto, de ter feito história desse projeto tão maravilhoso que resgatou, revitalizou a língua, as cerimônias do povo Iny, do qual, aquele lugar onde eu nasci foi Aruanã. Eu nasci em 26 de outubro de 1974, Tiago. Eu sou deste mês, desta data. Da qual eu era cacique quando a professora esteve lá, na minha aldeia de origem e na qual eu ainda não falava muito bem a minha própria língua. E hoje é um orgulho imenso que eu tenho de me expressar na minha língua nas reuniões, com os meus parentes. Foi até meio engraçado quando eu cheguei aqui nessa comunidade, nessa comunidade também Iny, aqui no Mato Grosso. Eu até vou contar um pouco aqui da história dessa comunidade, onde me receberam e me abraçaram com muito carinho e afeto e da qual, na cultura Iny, Tiago, o esposo, o marido tem que seguir a esposa. Então assim, a minha esposa é dessa comunidade, é Iny também, mas de outro estado, e aí eu tô aqui há mais de 25 anos. E foi até engraçado, sabe? Como eu estou dizendo, uma coisa liga a outra. Quando eu cheguei aqui, os jovens começaram a dar risadinhas, porque o sotaque que eu falava na minha língua, eu não falava certo, eu não falava correto as palavras, era um sotaque tipo estrangeiro quando está aprendendo uma outra língua. Então assim, eles começaram a dar risadinhas, aquela coisa. Mas com esforços e com as capacitações, eu falei: “Nossa, isso para mim… eu não posso perder a minha própria língua mãe, minha própria língua materna. Ela está no meu sangue. É uma coisa que os meus pais, os meus avós herdaram. Então eu tenho que aprender e passar para os meus filhos e para os meus netos. Então eu tenho que lutar para que isso não acabe por aqui”. Então essa foi a minha… um pouco da minha trajetória como educador, Tiago. Eu comecei como cacique, aí eu fui convidado… sempre era convidado para os encontros de educadores no qual a gente falava mais, era na língua materna na questão territorial. Então esses dois termos eram sempre discutidos nos nossos encontros de professores. Então assim, é uma história muito, muito assim… até eu gosto muito de lembrar, foi uma luta mesmo do meu avô, e aí o meu tio também, que hoje é cacique lá na aldeia onde eu nasci, que é Buridina, o Cacique Raul, que é o nome dele, o tradicional é _________. Então assim, está no nosso sangue, Tiago. Está no nosso sangue, essa é a nossa luta, nossa batalha. A gente está à frente sempre de uma batalha em questão dos nossos territórios, em questão da nossa língua materna, em questão dos nossos costumes. Então assim, é uma coisa que eu tenho orgulho de estar à frente dessa batalha. Principalmente hoje, eu abracei uma causa como educador. Hoje a gente conheceu um pouco da cultura da sociedade envolvente, não todo, né. Porque a cultura da sociedade envolvente sempre é um mistério para a gente. A gente está aprendendo todos os dias com a cultura indígena. Tanto é que, no nosso estabelecimento, aqui, educacional, nós trabalhamos aqui com professores indígenas e não indígenas. Então assim, a gente faz um, é tipo um agrupamento mesmo. A gente entra com a língua materna e os professores não indígenas entram com a cultura, com a língua portuguesa. Mas primeiramente a gente valoriza a língua materna aqui na nossa instituição, aí depois vem o português como a segunda língua. Mas existem também outras línguas, como o espanhol, que outros jovens também têm o interesse de aprender. E não entrou na disciplina inglês. Alguns acharam muito, assim, estranho ter o inglês em uma comunidade indígena. Então assim, temos português, temos o espanhol. Até a gente recebe aqui visitas de indígenas da Argentina, que falam espanhol, visitas de parentes lá da Bolívia que falam espanhol, então a gente faz tipo um encontro mesmo para que a gente conheça a cultura um do outro. Então assim, é sempre com a gente está falando, assim, da origem e das nossas batalhas, das lutas. E a gente vem percorrendo ao longo dessa nossa jornada. Então assim, respondendo um pouco disso, era isso, basicamente.
P/1 - Muito bem! O senhor citou os avós, o avô principalmente. Eu gostaria que o senhor falasse mais um pouco da sua mãe. Quem era ela, o nome dela e de que parte da família ela vem?
R - Ok. Sim, Tiago. Essa parte até liga também a questão cultural. Eu sou o primeiro filho e na cultura Iny o primeiro filho, sempre o avô e a avó que ficam responsáveis para criar, educar. Então assim, mesmo a mãe estando ali, o pai estando ali por perto, na cultura Iny o primogênito fica para a responsabilidade dos avós. Aí eu fui criado pelo meu avô Maurehi e pela minha avó Dicuriá, que são os nomes tradicionais deles. E a minha mãe já vivia um pouco assim, distante. Assim, não muito distante, mas ela era de outra localidade. Tanto é que ela foi casada com um Tori, Tori é assim, é branco, homem branco. Aí ela vivia na fazenda, tendo a vidinha dela lá. Aí ela, às vezes, vinha visitar a gente, aí voltava novamente. E aí depois, muito novo, mais ou menos… muito novo mesmo, mais ou menos cinco a seis aninhos, eu nessa idade, infelizmente, ela veio a falecer, ela ficou doente. Mas como eu já estava acostumado, já criado pelos meus avós, que era da nossa cultura Iny, então essa era a cultura Iny, eu já estava bem já, ali, acostumado com os meus avós. Mas assim, eu a via, ela me acompanhava no crescimento. E aí tudo isso me… mas eu não sou Tori, era o meu padrasto, ela teve um segundo casamento. E aí o meu pai é Iny mesmo. O meu pai é Iny e foi o primeiro casamento dela, do qual eu fui filho. Aí ela teve um segundo casamento que foi com um branco, um Tori. Então assim, dessa forma aí meus avós me educaram, mas sempre falando ali, quem era minha mãe, quem era o meu pai. Então tudo ali dentro da cultura e me explicando, para a gente não ficar com aquele pensamento que a mãe não queria, o pai não queria: “Olha meu filho, na cultura Iny é dessa forma, o primogênito sempre os avós que criam, sempre os avós que ficam responsáveis pela educação, pela criação, até quando ele se formar adulto.” Porque ele na cultura Iny a pessoa fica adulta a partir dos quinze anos, Tiago. A partir dos quinze anos ele passa por um ritual, passa por uma cerimônia, do qual esse ritual é festejado aqui por todo o povo Karajá, que se chama Hetohoky. Uma festa muito grande, da qual reúne todos os Karajá aqui do Araguaia. Aí eles se reúnem onde? Na aldeia anfitriã. No caso, esse ano vai ser aqui, nessa comunidade, nessa comunidade de Kehauhy, reserva São Domingos, da qual hoje eu atuo, hoje eu moro com a minha família, esposa, filhos e netos. Então assim, esse ano vamos ter o Hetohoky. Então assim, a partir dessa idade o jovem já está preparado para ser um chefe de família, pra casar, assumir uma responsabilidade. Mas nessa cerimônia os homens ficam responsáveis, lá na casa dos homens, onde acontece a cerimônia. E lá passa toda a questão da educação, o que tem que ser falado. E lá também é uma coisa que fica só entre eles, a mãe, a tia não podem saber, Tiago. Na cultura Karajá, o local ali, da casa dos homens, a mulher não tem acesso, só os homens. É uma coisa da cultura mesmo, do povo Iny. A mulher fica mais ou menos a uns cinquenta, sessenta metros ali, só assistindo de longe, enquanto o menino, o filho ou o neto está passando por aquela cerimônia ali, de passagem, de criança para uma vida de adolescente ou adulto. Então tem toda essa cerimônia aí. Então assim, infelizmente lá na minha aldeia de origem, Buridina, no Estado de Goiás, Tiago, lá já não tínhamos essa cerimônia. É igual eu te expliquei na minha fala, na minha primeira fala, que território, costume e cultura sempre estão ligados, juntas. A partir do momento que nosso território foi invadido, então tudo foi invadido. A cerimônia, os rituais, a língua. Então assim, infelizmente eu não passei por essa passagem de cerimonial, que a criança já está preparada para ter uma vida adulta. Eu já vim, mas os meus avós me passaram essa história oralmente. Eu não passei na prática, mas na história tudo foi passado pra mim. Eles costumavam colocar uma esteira, ali, para mim; “Olha, meu neto, na nossa cultura é dessa forma. Infelizmente nós não temos mais a cerimônia aqui, devido a invasão do nosso território, mas os nossos parentes da Ilha do Bananal ainda praticam essa cerimônia, esse ritual que é de passagem dos jovens, para uma vida adulta. E aqui eu vou te passar só na oralidade. Pelo menos você vai aprender na oralidade e você fixa isso na sua mente, para que você passe isso para os seus filhos e para os seus netos”. Então assim, na prática, eu não tive essa vivência, Tiago. Depois que eu cheguei aqui que eu comecei ver essas cerimônias e rituais que para mim, assim, como foi de primeira, era como se fosse um marinheiro de primeira viagem entrando no barco. Quando eu vi esses rituais, essas danças, para mim foi, ao mesmo tempo bonito, mas ao mesmo tempo vinha um certo medo de eu não ter passado por essa cerimônia, eu via apenas na história do meu avô, contada pra mim ali. A noite na esteira era passado todo esse conhecimento cultural do povo Iny, sobre os nossos costumes, os nossos rituais, crenças e outras coisas mais que os nossos parentes praticam até hoje aqui na Ilha do Bananal.
P/1 - Muito bem! O senhor trouxe em algum momento o pai do senhor. O senhor explicou que foi criado pelos avós maternos, mas essa relação com os pais…? Quem era o pai do senhor? Poderia contar um pouco sobre ele? A origem dele?
R - Ok, Tiago. Sim, aí eu fui criado pelos meus avós e eles sempre passavam para mim quem era a minha mãe, quem era o meu pai. Então o meu pai foi também morador ali, de Buridina, no qual ele tinha uma ligação também com a Ilha do Bananal. Ele tinha parentes aqui na Ilha do Bananal e em uma aldeia chamada Santa Isabel do Morro. Então, o meu pai quando eu era pequeno, sempre tinha uma ligação comigo. Ele morava com os pais dele, como tinha se separado da minha mãe, então ele morava com os pais. Mas como a gente morava na mesma aldeia, ele sempre ia me visitar lá, me fazer um carinho, passear comigo. Então ele estava sempre presente quando eu precisava dele, ou nos momentos que eu estava ali com os meus avós. Então assim, ele sempre… na verdade ele sempre foi presente na minha vida. Ele não foi assim… porque na cultura Iny, os avós ficam um pouco assim também… eu não sei se eu poderia dizer enciumados, por eles terem me criado, mas sempre tive uma ligação boa com o meu pai, apesar da separação da minha mãe. Então ele se chamava, May Jahari, na língua Iny, May Jahari. Então ele era tipo um guerreiro mesmo. Ele era um guerreiro lutador. Então assim, já a minha mãe, também uma guerreira. Mas apesar do contato, apesar da invasão, dos invasores, a minha mãe sempre esteve ligada também à questão social. Ela sempre esteve à frente, lutando. Ela não tinha escolaridade. Como naquela época era muito difícil o indígena se inserir em uma faculdade, mas pra idade dela, para época dela, ela era uma índia que tinha mais conhecimento ali, naquela comunidade. Então assim, ela sempre foi um pouco… vamos dizer que, assim, na época dela, do movimento social. Ela ajudava na parte da tradução da língua para os meus avós, para as minhas tias, algumas que tinham dificuldade na comunicação com o português. Então ela sempre estava ali para dar esse apoio, ajudando nessa parte. Então assim, ambos foram guerreiros também, de certa forma.
P/1 - E aí para fechar essa parte da família, o senhor falou também que teve irmãos. Aí eu gostaria que o senhor contasse um pouco como é essa relação com os irmãos do senhor. Quem são eles? Quantos são? Se o senhor puder falar um pouco dos seus irmãos.
R - Ah, tá. Sim, Tiago. Na verdade, já… eu tive assim, irmãos já por parte do segundo pai. E aí não com o primeiro. E aí nós não tivemos muito, assim, ligação, por eles estarem em outra localidade, em outra cidade da qual, até hoje, eu acho que eu consegui falar apenas com um pelo telefone. A nossa comunicação... Mas a minha comunicação mesmo, desde a infância, foi com os meus primos, primas que já… o povo Iny tem uma ligação muito forte entre parentesco. É até assim… hoje eu venho observando, Tiago, nessa parte familiar, de irmandade é um pouco assim… vem perdendo um pouco ao longo do tempo. Antigamente, o povo Iny sempre foi do coletivo. Do coletivo, da harmonia. Um não pode ter mais que o outro, um ajudando sempre o outro ali. E quando o outro não participa da pescaria, o ouro vai ali e dá um peixe, dá uma tartaruga, dá um pedaço de uma carne de caça. Então assim, o povo Iny é sempre solidário com o outro. Ainda mais quando se trata de irmão, irmã, primos, primas. Então assim, a minha ligação mesmo foi com as minhas primas e com os meus primos. A gente quase que fomos criados juntos, praticamente. Então para mim, já eram como se fossem minhas irmãs e os meus irmãos ali na nossa convivência. Infelizmente uma das minhas primas, que era técnica de enfermagem, da qual eu tinha uma comunicação muito, muito, muito mesmo, assim, quase que uma irmã mesmo de sangue biológico, ela morava lá em Buridina, lá em Goiás, onde eu nasci. Então ela ligava, se eu tô bem aqui, como é que eu tô. Então, praticamente uma irmã mesmo. E aí infelizmente com a pandemia, ela estava à frente dessa luta, ela era técnica de enfermagem, infelizmente ela também nos deixou por conta da pandemia.
P/2 - Então, parente. O senhor estava falando sobre os irmãos. Inclusive que o último que o senhor… tem um irmão que mora distante, o senhor falou por telefone, né? O senhor estava indo nessa linha, contando um pouco sobre eles. Então se o senhor quiser falar mais um pouco sobre eles, antes da gente ir para a próxima pergunta?
R - Ah, tá. Sim, aí eu estava dizendo que os Iny, nós temos uma ligação muito grande em questão de familiaridade. Então assim, nós sempre somos o povo Iny, de um povo coletivamente falando. Um sempre ajudando o outro. Mesmo ali não sendo irmãos, mas sendo tio, tia, primo, prima. Então assim, o povo Iny sempre tem essa ligação muito grande um com o outro. Mesmo assim, sendo em comunidade, e até mesmo quando moram em outra comunidade. A gente sempre tem uma ligação, um clã muito forte um com o outro. Nós sempre temos uma ligação. O povo Iny, por exemplo, lá onde eu morava, a minha aldeia de origem, Aruanã, temos uma ligação com o povo Iny lá de Santa Isabel. Então temos sempre uma ligação muito forte um com o outro, uma ligação de parentesco, uma coisa que a gente dá muita importância, é isso, a questão da familiaridade. O povo Iny dá muita importância. Então na questão social, a gente não difere. Se ele é o melhor pescador, se ele é o pior pescador, se ele é o melhor caçador. Então a gente sempre está em união ali, coletivamente ajudando, em harmonia, em paz. E por incrível que pareça, Tiago, o povo Iny… nós sempre vivemos em harmonia, ou seja, antigamente nós não travávamos guerra, muitas guerras. A não ser quando era para se defender, na questão da defesa. O povo Iny sempre foi passivo, do diálogo, das festas tradicionais. Por isso que nós temos uma convivência muito grande, somos fáceis de fazer amizades com pessoas de fora, seja indígena, não indígenas. Nós temos uma coisa, que é do nosso costume, é da nossa cultura viver assim, em paz com a natureza, viver em harmonia, em coletivo. Hoje praticamente… infelizmente tem muitas pessoas maldosas que aproveitam dessa nossa bondade. Vou dizer… vou usar essa palavra. Às vezes se aproveitam muito dessa bondade nossa. As pessoas que vem de fora, pessoas que vem de uma outra cultura que são a sociedade envolvente. Então assim, passando um pouco disso, eu até queria contar um pouco da minha chegada nessa história, nessa outra etapa. Eu vou contar um pouco da minha chegada nessa comunidade e um pouco da minha luta aqui, como eu criei a família aqui, restitui uma família, da qual continua a minha luta aqui, em termos de território, não como antigamente, mas em outras questões, no que tange a questão assim da titularidade de um território, de uma regulamentação de uma área, demarcação. A gente sempre está aqui em busca de orientação, orientando os colegas, os parentes que estão ainda nessa luta aí de reconhecimento de território, de terras. Então assim, o pouco… contando sobre essa minha familiaridade, quando era jovem. E agora eu tenho uma outra família, agora por parte de casamento, já de uma outra família. Quando… na cultura Iny, quando a gente assume uma esposa, a gente já assume uma outra família, essa é a cultura Iny. A família da sogra, a família do sogro. Então, claro, a gente não deixa para trás a família do avô, da avó. Como eu fui criado pelos meus avós, os primos, as primas, eles ficam ainda sobre… assim, dentro do meu coração, bem dizendo. Mas já é minha responsabilidade em termos financeiros, como hoje, agora a gente usa muito dinheiro. Como antigamente não, antigamente a gente tinha roça, a gente tinha uma pescaria em abundância, a gente tinha uma roça farta. Então aí a gente já responsabiliza todos esses alimentos na parte do sogro e da sogra, os parentes da sogra e do sogro. Então a partir dessa passagem aí, dessa nossa… não ‘desligação’, dessa nossa desvinculação dos pais, dessa saída dos pais, a gente já está entrando em uma outra família para responsabilizar de uma outra forma. Então assim, esse é o costume Iny, da cultura Iny, essa parte da mudança. No dia do casamento a gente já sai dos pais, lá da saia da mãe, como o Tori fala, né? Da saia do pai, da barra da calça do pai, a gente já parte para uma outra família que é onde a gente acaba assumindo uma outra responsabilidade. E é o costume do Iny também, culturalmente.
P/1 - Uma pergunta que eu gostaria de fazer e que não quer calar aqui. No Início o senhor disse que os Iny são exímios nadadores e com certeza aprendem desde cedo a nadar. Então gostaria de perguntar para o senhor como foi esse aprendizado do senhor?
R - Ok, Tiago. Muito interessante essa pergunta. Olha, já a minha convivência, isso até é muito gostoso de contar. Como o povo Iny, ele cria os filhos, os sobrinhos, os avós… aliás, os netos, as netas. Então nós somos livres! Não a ponto de fazer o que quer, não é isso, que às vezes muitos pesquisadores entendem isso. Quando a gente coloca a palavra “livre”, que a gente pode fazer o que quer, a criança. Mas não é dessa maneira. Eu falo livre no aspecto de a gente se sentir livre mesmo, assim, de poder nadar, poder brincar e como isso já faz parte do nosso cotidiano, desde… é uma história milenar essa nossa história com o Rio Araguaia. Então assim, com o rio e com a água, assim falando. Então assim, quando eu nasci, aí eu já tinha uma ligação muito grande com o rio, com a praia, e o meu avô, como ele era muito de fazer a roça, muito assim da pescaria, da caça, então ele sempre tinha ali… sempre ia ali visitar como estava a roça dele, se estava já germinado, ou então ia na pescaria e sempre me levava junto. E ali, quando a gente entra em uma canoa, é como um não indígena quando ele coloca um filho dentro de um carro para aprender a dirigir, a lidar com a cidade grande, com a sinaleira e todas essas coisas que existem em uma cidade grande. Então dessa forma que é a cultura Iny. Então meu avô sempre me chamava, mais ou menos com cinco, seis, sete aninhos ele já me colocava dentro da canoa, da canoa de madeira, e ali eu observava ele, como ele remava, como ele entrava no rio para nadar. E aí com muito cuidado e muito carinho, ele me pegava no colo e me colocava também junto com ele dentro do rio. Então ali eu fui já [ia] pegando o ritmo. Eu só sei que quando eu me lembro, Tiago, as minhas primeiras, assim… que eu consegui mesmo nadar ali, com aquela segurança, foi mais ou menos com seis anos, Tiago. Com seis anos eu já era um nadador. Nadador assim, igual um peixe na água mesmo (risos). Então assim, a gente não tem aquele cuidado, sabe? O povo Iny tem uma ligação muito forte mesmo, sabe? Acho que não tem uma explicação. Uma coisa muito grande mesmo com o Rio Araguaia! Tanto é que existe um mito, o povo Karajá, o povo Iny, que o povo Iny veio do fundo do Rio Araguaia, do qual lá não existia doenças, não existia a miséria. Então lá só existia a alegria, felicidade e fartura, e não existia o que infelizmente existe hoje, a morte. Lá tudo era uma coisa assim, fora do comum mesmo. Isso os nossos avós contam, alguns se emocionam quando começam a contar essas histórias. E a nossa ligação já veio daí, com o Rio Araguaia. E no mito existe… e no mito fala que lá ainda existem os nossos ancestrais que ficaram lá no fundo do Araguaia. Eu não sei onde, como, né. Mas ficaram o restante dos nossos ancestrais lá no fundo do Rio Araguaia. Então assim, é uma história até muito interessante, esse mito. E aí quando eu me deparei, Tiago… voltando a falar de novo com que idade eu comecei a nadar. Então aos sete anos eu já atravessava o Rio Araguaia e a praia, voltava de novo. E aí a gente com aquelas brincadeiras, às vezes a gente alagava a canoa de propósito, umas brincadeiras nossas mesmas, de criança, de infância. É muito interessante que a gente tinha também uma consciência com os bichinhos ali do rio, que era o boto, a gente não tinha medo de jacaré. Parece que é uma coisa nossa mesmo, é um costume mesmo. É como eu estou dizendo, é como o Tori mesmo, quando está em uma cidade grande ali, que se depara com tanto carro, com tanta coisa. Porque é o costume deles, é uma coisa da cultura, da sociedade ali, envolvente. Então isso é uma coisa já nossa, a gente já, desde pequenininho, a gente já nasce com esse costume do que é o rio, do que é a praia, do que é a natureza, os bichinhos que lá existem. Então assim, nós temos… até hoje eu tenho uma convivência, assim, harmoniosa. É igual eu falo, Tiago, se for para morar em uma cidade grande, mesmo as pessoas lá, se alguém me levar dando todas as condições, sinceridade, sinceridade mesmo, Tiago, acho que prefiro mil vezes ficar aqui onde eu moro, no lugar onde a gente mora, que é a natureza, que é a praia, o rio. A cidade grande é para quem gosta mesmo, para quem tem esse costume. Tem alguns jovens que vão para estudar. Alguns se adaptam, alguns não, alguns voltam para trás. Eu acho que é um pouco disso, sabe. Não conseguem se adaptar à realidade que tem lá, que não é a realidade dele. A não ser, assim, se for por sobrevivência. Assim, de querer ter um conhecimento a mais, ou lutar mesmo. Lutar mesmo. E como o meu filho lutou aí, o Nairu. O Nairu, desde os dezesseis anos saiu para fora, e graças a Deus ele se firmou e tal, ele está na NB. Então, assim, eu tenho outra filha que estuda aqui, na universidade aqui de Mato Grosso. Uma outra que está em Miracema. Então, assim, eles estão na cidade grande, mas eles sempre estão em comunicação, que lá é ‘‘assim e assim’’. Então quando a gente nasce no local, Tiago, é muito difícil a gente se adaptar a um local. Eu mesmo, desde pequenininho já convivi com a natureza, que é o Jaraguari, as praias, as gaivotas e o boto. Então quando a gente vai para cidade grande, logo a gente sente saudade. Quando eu era o diretor aqui da escola… então eu viajava muito, ia para Cuiabá, Capital, ia para Brasília participar da conferência de Educação Escolar Indígena. Olha, deu quatro, cinco dias, eu já estava assim, muito, muito preocupado, já para voltar pra trás, sabe, pensando na minha família, onde eu vivo. Então, parece que quando chego aqui, é uma coisa que abre, abre uma coisa, assim, como se fosse um leque, Tiago. Um leque assim que se abre, assim, a gente vê, e não tem definição. Uma coisa que a gente, só estando aqui mesmo para a gente ver mesmo. Então o rio, assim, para gente tem um significado muito grande. No entanto, para nadar, tomar banho, para pescar, pra gente se locomover, como a gente se locomovia antes, os nossos avós, para fazer visitas aos parentes. Então pra gente… o rio pra gente tem um significado muito grande, juntamente com o território. Entrelaçadas, estão ligadas, para a nossa sobrevivência. Então é dessa forma, Tiago. Em relação ao rio e a aprender a nadar, essa é a minha história.
P/1 - Bom, eu acho que tem a ver com escola, e eu gostaria de… tem a ver com escola, a pergunta que eu vou fazer. O professor falou da liberdade…
R - Certo.
P/1 - … de ir pro rio, nadar. E eu gostaria que você contasse, como foi esse tempo na escola, como foi essa formação que o senhor teve na escola. Eu fico pensando no Davi Kopenawa, no Davi Yanomami, no Marcelo Tupã, que eles foram para o seminário. Então, assim, eles têm uma história muito interessante a respeito do processo de escolarização. E como foi esse processo de escolarização do senhor? Quando o senhor entrou na escola e seguiu aí por essa formação escolar?
R - Ok, Tiago. Bom, como eu disse, na minha fala aqui sobre a minha… A minha aldeia de origem se chama Buridina, nome tradicional. Nome português, Aruanã. Então eu tive o acesso à escola, da sociedade envolvente, aos cinco anos, aos cinco anos de idade. Eu fui levado pela minha avó e eu não me adaptei no meu primeiro dia. Acabei… sai correndo, chorando atrás da minha avó, e quando eu vi eu já estava era em casa. Aí a minha avó teve que pegar no meu braço e me levou de novo com muito carinho, ela conversando comigo. E eu sempre conto isso para os meus alunos se interessarem mais pelos estudos, pelo estudo científico, para que… isso vai ajudá-los muito nesse mundo que vivemos. Tiago, eu sempre falo isso para os meus alunos, e até mesmo, também em casa para os meus filhos, falo muito para eles que: ‘‘A escolaridade é muito importante, cultura é uma coisa que vocês não devem esquecer jamais, a língua materna, e a questão da escolaridade, da educação escolar. Isso que vocês também têm que saber, vocês têm que saber lidar com essas coisas, e essas duas coisas… e aprender essas duas coisas. Então essa segunda que eu falei, é para vocês se defenderem, defenderem a saúde de vocês, para vocês terem uma saúde de qualidade, para vocês terem uma educação de qualidade dentro da comunidade, para vocês defenderem os seus territórios diante de estranhos, diante de pessoas que querem aproveitar, as vezes da nossa bondade, como eu posso dizer. Então, assim, vocês aprenderem, não a malícia no sentido mal da palavra, mas no bom sentido, vocês aprenderem a malícia lá de fora, e vocês vão aprender só através da escola. Tendo uma escolaridade, fazendo uma faculdade. Vocês fazendo uma faculdade que vocês gostem, não que as pessoas obriguem, ou as pessoas orientem, mas a que vocês gostarem’’. Mas faz isso como? Eu escolhi educador. Educador é uma coisa que eu me identifiquei. Eu tive a oportunidade de trabalhar na saúde… aí eu até brinco aqui com os colegas. E eu vi que não era a minha praia, sabe Tiago, questão de saúde como profissão. Então, assim, eu até agradeci, agradeci a pessoa que me deu todo esse apoio. E na época, isso é até interessante, até minha esposa, ela lembra, eu estava desempregado ainda, Tiago, naquela época, e a pessoa veio, e ofereceu emprego na saúde. Falei: ‘‘Olha, se eu falar que vou aceitar, eu vou estar mentindo para a senhora, porque saúde é uma coisa que eu não dou muito, assim, certo. Então, eu não vou fazer um bom trabalho, não vou fazer uma coisa boa. Então eu agradeço a senhora, agradeço a comunidade, mas se aparecer uma oportunidade, por acaso, um dia, na educação, aí sim eu aceito, de trabalhar na educação. É uma coisa que eu me identifico’’. Eu falei para essa senhora. Então, assim, eu sempre falo um pouco disso, pensando na minha infância, sobre a minha escolaridade, Tiago. Eu fui, não me adaptei, aí eu me adaptei ao quarto dia. E ainda, não sei se você se lembra, não sei quantos anos vocês têm, Tiago, mas não sei se você se lembra do antigo jardim de infância, não sei se você já ouviu falar, ou lembra ainda, você é jovem ainda, né. Mas a minha primeira escola foi no jardim de infância, que hoje se eu não me engano, é creche, né, eles falam. Então, assim, eu não tive essa oportunidade de estudar, de fazer uma faculdade que também me interessa muito, uma faculdade diferenciada, na qual eles aprendem a língua materna. E hoje temos aqui no Mato Grosso, temos em Goiânia, pelo FG, aqui é pela UNEMAT. Inclusive, a minha filha está nesse curso aqui da UNEMAT, ela foi uma das que passou no vestibular de Matemática, uma Licenciatura Intercultural, aqui para indígena. E hoje, aqui o nosso município está recebendo parentes Xavante, parentes da Tapirapé, parentes Canela, e parentes Caiapó. Estão aqui no nosso município por duas semanas… Em janeiro vai ter outra etapa de um mês daqui, na qual a minha filha está no meio deles, cursando Matemática. Então, assim, falando um pouco disso, Tiago, uma coisa até que eu conto assim, e me emociono também, ao mesmo tempo que… os meus avós eram analfabetos, a minha avó era analfabeta, do português, falando da língua portuguesa, agora da cultura dela, ela era uma mestra como ninguém, sabia fazer pote de barro, sabia fazer uma esteira, contar história. Então ela foi uma anciã que ensinou muitos jovens, e já estavam à beira do esquecimento da cultura, e também o meu avô. Então ambos foram guerreiros também nessa parte. Meu avô ensinou a fazer remo, ensinou a fazer sinta de dança, cocar desses que eu estou usando, da qual os jovens já não faziam mais. Então, assim, realmente eles foram mestres, assim, na cultura. E agora, na questão da escolaridade, eles eram analfabetos, mas apesar de analfabetos, eles sempre me incentivaram a conhecer uma outra língua, uma outra escola, uma outra cultura. Ele falava: ‘‘Meu neto, você tem que estudar, você tem que se dedicar, você tem que continuar a minha luta, eu lutei, já estou velho, mas nós conseguimos com muita garra, com uma ajuda de instituições, universitários, e através dessa professora Maria do Socorro, que nos ajudou muito, mas agora você tem que aprender também. Aprender a escola da sociedade envolvente’’. Então, pensando nisso que me empenhei, e me empenhei, Tiago. Apesar de nós termos nascido em uma aldeia quase que urbana, praticamente, uma aldeia quase que urbana, mas ainda tinha as nossas raízes, tinha as nossas raízes no nosso coração, na nossa mente. E por isso ainda, nós tínhamos ainda dificuldade de entender o que nos esperava lá fora, ainda tínhamos esse medo do que nos estava esperando numa sala de aula, em uma professora que não é o mesmo ensinamento, igual a nossa avó, igual o nosso avô. É um ensinamento praticamente diferente. Então tudo isso, ainda, a gente tinha receio, a gente ainda tinha um certo medo de enfrentar isso dentro de uma sala de aula. E não foi diferente, Tiago, apesar da gente ter nascido quase que praticamente dentro de uma cidade, a nossa aldeia, o que separava a nossa aldeia era apenas uma tela. Essa tela que eu falei na minha primeira fala. Então, para mim, eram as pessoas falando ali do meu lado, não tinha muito costume ainda de… pelo que mais eu falava, mas não tinha costume de falar com os meninos lá da cidade. Não tinha o mesmo costume de falar com os meninos, igual eu conversava com as pessoas da aldeia. Então para mim era uma coisa nova. Então ali eu insistia, muito tímido, muito tímido, e até os meus dezenove, vinte anos, eu era muito tímido, sabe, Tiago? Depois que eu comecei a estudar, lidar com pessoas, com instituições, com autoridades, aí então eu fui me soltando. Fui me soltando, conversando com as pessoas, tendo diálogos. Então aí dos 24 para cá, eu tive, assim, eu me senti mais liberto nesse aspecto da timidez. Aí eu consegui passar da antiga… esse nome que eu acabei de usar aqui… eu lembrei, eu anotei aqui… o que hoje é creche, hoje, agora é creche. Então, antigamente, era esse outro nome que eu usei aqui, agora. Eu consegui passar na transição, consegui passar pro Primeiro Ano. E aí, no Primeiro Ano, eu comecei, infelizmente, a ter, assim, piadinhas de colegas lá em sala de aula, já numa escola estadual, ter essas piadinhas. Às vezes eu ia com algumas pinturas, às vezes a gente fazia comemoração do dia dezenove, do índio. Então aí a pessoa já fazia piadinha: ‘‘Ah, olha o índio ali pintado’’. Aquela coisa, sempre essas coisas que a gente ouve hoje. E aí, aquilo lá me deixava incomodado, Tiago, me deixa incomodado, preocupado. E no outro dia eu já pensava em desistir, de não ir à escola. Mas aí já vinha o incentivo do meu avô, da minha avó, eles perguntavam: ‘‘O que aconteceu? Por que o desânimo?’’. Aí eu contava para eles sobre o que acontecia dentro da sala de aula. E aí eles me incentivaram, Tiago, eles falavam: ‘‘Não, isso aí você vai enfrentar, meu neto… Meu neto. Meu filho, você vai enfrentar, porque isso aí é uma luta que você vai travar, travar dentro da sala de aula. Depois que você tiver terminado, você vai travar outra luta, fora de sala de aula’’. Aquilo lá me dava força, aquilo me dava uma energia positiva. E aí, já os meus, o Quinto, o Sexto e o Sétimo Ano, eu não repeti, eu não repeti, Tiago. Eu fui, assim, já graças a Deus passando de ano, graças aos incentivos também dos meus avós. Então, ali… mas sempre tendo algum preconceito dentro de sala de aula, digo de alunos, e de alguns professores também eu tive alguns preconceitos. E já lá na minha cidade de origem, isso nada mais, nada menos… a gente tem esse preconceito por questão da guerra por causa do território, por causa da aldeia. E aí, já na cidade, já não via nós com os olhos… porque a FUNAI junto com a universidade, a procuradoria, a procuradoria da república, tinha demarcado um território para nós. Então a cidade já não via nós com bons olhos, esse nosso ganho desse território que a gente tinha ganhado na justiça. Então a gente sempre enfrentava preconceito dentro de sala de aula, e por alguns professores. E nisso, nós éramos que… às vezes, chamavam nós de invasores, olha só viu, isso é até muito irônico para nós, nós que somos os invasores. Então até isso a gente ouvia dentro de sala de aula. Mas graças a Deus consegui terminar o ensino médio. Terminei o Ensino Médio, não lá na minha cidade de origem, mas eu vim terminar o ensino médio aqui, nessa cidade onde eu moro, Tiago. Eu terminei o Ensino Médio, eu fiz o Primeiro e o Segundo aqui, no município do Ceará. Ainda não havia Ensino Médio aqui na comunidade. Então eu tinha uma bicicletinha, pegava a bicicleta e saía seis e meia da comunidade, da qual é três quilômetros, aqui o município com a cidade. Pegava a minha bicicletinha, colocava a minha mochila nas costas e ia para a cidade, cursar o Ensino Médio. Aí cursei o Segundo e o Terceiro, dois anos no município do Ceará. E aí, graças a Deus, eu estava cursando o último ano, Terceiro Ano do Ensino Médio, já no mês de outubro, já findando o ano, praticamente. E aí a minha esposa me incentivou, a minha esposa me incentivou e eu acabei não topando aquele incentivo. Falei: ‘‘Não…’’. Porque a inscrição, Tiago, custava cinquenta reais. Custava cinquenta reais a inscrição do vestibular. E até isso me emociona muito, muito mesmo, também o incentivo da minha esposa quando eu cheguei aqui. Passando um pouco lá da minha trajetória, do Ensino Infantil, Fundamental, Médio, e agora pra Universidade. Então, assim, até aí ela me incentivou. Acabou pegando aqueles cinquenta reais, e às vezes… ainda naquela época, a nossa condição era bem mínima, do que graças a Deus, a gente tem hoje, era bem mínima naquela época, e aqueles cinquenta reais era para comprar, às vezes uma bolacha da minha filha, dessa que está fazendo faculdade hoje. E ela acabou fazendo a inscrição, falando: ‘‘Não. Vai, tenta! Se não der certo para você, você tenta uma outra oportunidade’’. Aí eu falei: ‘‘Não, eu não vou conseguir, ainda não terminei o Ensino Médio, ainda estou terminando aí, ainda falta outubro, novembro e dezembro ainda, para eu finalizar o Ensino Médio, o Terceiro Ano, então deixa para outra vez’’. E ela ali, firme ali para que eu fizesse, pensando positivo, aí eu acabei topando. E aí ela pagou minha inscrição, fiz o vestibular, mais ou menos na época, 340 pessoas concorreram, e graças a Deus, eu fiquei em quarto lugar, Tiago. Então eu agradeço primeiramente a Deus e a minha esposa, que foram meus incentivadores na época, aqui da universidade. Na minha infância, eu agradeço aos meus avós, que me incentivaram. E agora, sempre a gente, sempre tem uma pessoa, uma companheira, um companheiro. Então dessa passagem da Universidade, do Ensino Médio para a Universidade, então já o incentivo foi da minha esposa. Então, aí terminei, na qual eu sou licenciado em Geografia, sou licenciado em Geografia, pela Universidade do Estado do Mato Grosso, cursei em 2003, e terminei, finalizei em 2007. E logo após fiquei, mais ou menos, cinco a quatro… quatro a cinco meses parado, e eu fiz um outro curso nessa mesma instituição, que é a UNEMAT, Universidade do Estado do Mato Grosso. Cursei uma Pós Graduação, uma Especialização, e também consegui, eu fiz entre um ano e meio, essa minha pós, me formei, essa minha pós em Educação Ambiental. Educação Ambiental é meu curso de pós, Tiago. E agora estou me preparando aí para um Mestrado da Educação Intercultural, aqui da UNEMAT também, e da qual eu me inscrevi, o meu pré projeto, já me inscrevi, e agora estou só aguardando aí o meu resultado. E hoje eu estou aqui no estado do Mato Grosso, trabalho e leciono aqui, na Escola Estadual Indígena Radori, o nome aqui da nossa instituição. Uma instituição que tem formado muitos alunos aqui, daqui já saiu… já estão fazendo Administração na UFG de Goiânia, outros estão fazendo Enfermagem lá em… na UFT. Na UFT. Temos alunos também em universidades particulares cursando Enfermagem. E o meu filho também saiu daqui, é o Nairu, filho aqui dessa comunidade, e hoje ele está fazendo… fazendo Doutorando aí na UnB, de Direitos Humanos. Então, assim, essa escola pra gente é um orgulho, os professores, aqui os alunos, então a comunidade, as lideranças... a gente aqui é uma comunidade de mais ou menos 215 pessoas, aqui a comunidade não é uma aldeia grande, mas é uma aldeia que está sempre unida, sempre juntos, e é isso que eu acho bonito aqui, e da qual eu estou aqui morando já há 25 anos, e como eu sou Iny já, eu me sinto daqui também. O Iny, aí quando ele parte de uma aldeia para outra, no caso essa aldeia da minha esposa, origem dela, e aí… mas agora, a minha responsabilidade é defender essa comunidade, essa escola, essa saúde aqui, nós temos a saúde também, da qual já foi muitos… tive muita representação. Graças a Deus, a comunidade vê o nosso trabalho, a nossa luta aqui. Eu já fui conselheiro distrital aqui de saúde, já participei também como representante de saúde, como representante aqui da comunidade. Eu sou uma das lideranças aqui da comunidade, e um educador aqui na comunidade, da qual a gente fica muito feliz, e a gente tem muito orgulho de trabalhar com essa equipe aqui, de professores da qual a gente… tem escolas que já não tem, não-indígenas, Tiago, tem escolas aqui que já não aceitam não-indígenas. Mas eu já penso ao contrário, Tiago, não sei se você concorda comigo, os colegas que estão me ouvindo. Eu penso assim, Tiago: a gente sempre… enquanto eles tiverem vaga em escola indígena, a gente está trabalhando com os não-indígenas, aqueles que gostam de trabalhar com os não-indígenas, aqueles que têm uma afinidade muito grande, aqueles que abraçam a causa mesmo indígena, então esses é que trabalham com a gente aqui. Essa professora que estava aqui, me dando esse apoio tecnológico, já tem mais de dez anos que trabalha aqui, respeita a cultura, entende da cultura, tem o nosso entendimento, ela é como se fosse uma Antropóloga dentro da aldeia, entende o nosso anseio, a nossa fala. Então, assim, a gente trabalha em parceria. O que a gente tem, uma dificuldade de entender ainda na questão da tecnologia, e aí nós estamos aí ainda participando de capacitações, de cursos. E é uma coisa, assim, que já entrou na comunidade, que a tecnologia, então a gente tem que usar isso para coisas positivas. A gente sempre orienta os jovens também para que não levem essa tecnologia para o outro lado, porque tem coisas boas e também tem coisas ruins. Então essa é a nossa orientação para os jovens. E hoje, como chefe de família, também tem a minha esposa, que se chama Chiriquero. E tenho dois netos, que se chamam Oruquero, e um se chama Bikuna. E também três filhos, um é o Mairu, que vocês já devem conhecer, ele está aí na UnB. E outro é o Manakiru, ele está cursando aqui Matemática, da qual eu falei. E a outra é a Claudia, é Paji, Oremo é o nome dela indígena, está cursando Serviço Social na UFT, lá no Tocantins. Então, assim, essa é a minha família, e na qual eu formei aqui. E aqui a gente vive em comunidade, um sempre ajudando o outro, em todos os locais é o nosso costume, até mesmo na escola aqui, Tiago. Aqui na escola, não é porque eu sou professor que eu vou ficar só em sala de aula, eu venho aqui para a biblioteca, eu vou, às vezes para a sala de aula, vou para a secretaria. Às vezes, o professor… a gente faz um rodízio, então a gente é uma união aqui. Às vezes a professora ensina as questões burocráticas, ensina a secretaria, orienta. Então é uma coisa assim, que a gente tem muita felicidade de trabalhar dessa forma, então eu acho que é o espírito do Iny que habita aqui nesse local, nessa escola, seja no postinho de saúde, onde a gente estiver aqui, é o espírito do Iny que está habitando em toda localidade, em nosso espírito é isso, a coletividade, a harmonia, a alegria. Então, se você tiver a oportunidade de visitar uma aldeia Iny, você vai ver quanta alegria, se você ver ele só vai começar a rir, dar risada, quando você for fazer pergunta para ele assim, ele vai começar a rir, seja uma mulher, seja um homem, para você ver a felicidade estampada no rosto do Iny. Então é só harmonia mesmo, só essa felicidade, essa paz que o povo Iny tem. Principalmente a gente busca isso na natureza, na questão da nossa sobrevivência em sociedade, então esse é o nosso costume. O Iny, Tiago, nunca fica sozinho, sempre está acompanhado, tanto é que, nas nossas casas, eu acho também nas casas dos outros parentes, também pode ser dessa forma, agora que nós temos compartimentos. Mas na casa do Iny não existia compartimentos, existia uma sala só na qual todo mundo dormia junto, um perto do outro, ali numa rede, numa esteira. Agora, hoje que as coisas estão mudando um pouco, aí está tendo compartimento dentro de uma casa, cozinha, quarto, cômodos, mas antigamente não havia compartimentos. E até mesmo para gente se alimentar, também não havia essa divisão, cada um hoje… hoje cada um tem seu prato, cada um tem sua colher, cada um tem o seu garfo, mas antigamente nós comíamos em uma vasilha só, então, até mesmo para alimentar nós tínhamos essa coletividade. A gente assava o peixe, colocava em um prato só, seja o beiju, a farinha, e todos sentavam ali na esteira. Então esse é o espírito, é o costume do povo Iny falando assim culturalmente. Então, hoje… mas a gente tem um pouco de saudade disso, a gente até pratica isso em casa, eu mais minha esposa… a minha esposa herdou conhecimento da minha sogra, então ela aprendeu a fazer esteira, aprendeu a fazer os adornos, aprendeu a fazer muitas coisas culturais. Então ela sempre faz uma esteira para gente sentar ali e comer um peixe, comer um peixe ali, tudo junto, minha filha, filho, neto. Alguns ali gostam de sentar na cadeira, na mesa, mas a gente gosta de sentar mesmo é na esteira ali, com todo mundo junto. É pra gente nunca esquecer os nossos costumes, os nossos… da ancestralidade. Então, falando um pouco disso, da família, da questão da… aí eu comecei a te responder sobre a questão da escolaridade, como eu iniciei, então foi um pouco disso, Tiago.
P/1 - Uma pergunta: quando o professor falou dessa ligação com o rio do Iny, e também com o território, eu fiquei pensando aqui e gostaria de perguntar, como vocês, Iny, estão vendo essa destruição das matas, poluição dos rios. Como os Iny estão vendo essa degradação ambiental, uma vez que pode impactar nessa ligação cultural, ancestral e sagrada que tem. Como vocês estão vendo tudo isso?
R - É uma boa pergunta, Tiago. Uma pergunta que… essa pergunta que está sendo feita em todos os lugares, aí na mídia. Então é uma coisa realmente muito preocupante, Tiago, muito preocupante. Eu não sei se você viu uma reportagem sobre A Ilha do Bananal, passou no Jornal Nacional. Que as lagoas estão secando, muitos peixes estão morrendo, como a pirosca, jacaré. Coisas que não aconteciam. Então, o que vem acarretando isso? Com certeza, Tiago, é a degradação do meio ambiente. O que eu falo quando é degradação? Eu falo em todos os sentidos, no desmatamento, na criação de gado abundante, aqui na Ilha do Bananal, em nossos territórios. Porque não é uma coisa nossa, não é uma coisa do nosso costume, não é uma coisa da nossa cultura, Tiago. Mesmo alguns parentes querendo praticar a criação bovina, esse projeto bovino. Mas, assim, não é uma coisa que fomos criados, orientados, e educados com isso, com essa cultura, ela não faz parte do nosso cotidiano. Eu até falo assim, Tiago, nós, indígenas, nós nunca vamos… alguns parentes, eu falo assim: ‘‘Vocês me desculpem aqui, os Iny…’’ Pelo menos na nossa cultura aqui, nós nunca vamos chegar a um… de ser um grande plantador de soja, ser um fazendeiro, nós nunca vamos chegar a isso. E eu falo assim: ‘‘Sabe por que, parentes Iny? Porque isso não é uma coisa do nosso cotidiano, nós não nascemos com isso no nosso sangue. Nós somos um povo coletivo, nós somos um povo do diálogo, nós somos um povo da distribuição, nós não queremos uma coisa só para mim. Só para eu estar ali, eu vou ali, aglomerando, juntando as coisas para eu um dia ser um grande fazendeiro, um grande __________ , isso não faz parte e nunca vai fazer parte’’. Eu sempre falo para eles aqui, sempre oriento. Porque você vai ver índios assim, tendo uma condição, tendo uma casa boa, um carro para mudar, uma moto, mas um índio assim, sendo um grande plantador de soja, um índio com grande criação de gado bovino, isso até não faz parte do nosso cotidiano, eu sempre falo isso. Então, assim, Tiago, o nosso cotidiano é o quê? É a gente, claro, acompanha a tecnologia. Claro que hoje nós tentamos acompanhar a tecnologia. O índio quer um carro para andar, uma moto, ter um conforto, uma casa. ‘‘Sim, até por aí, tudo bem’’, eu falo para os colegas. ‘‘Aí tudo bem, desde que isso não ultrapasse a questão da ganância’’, eu falo para os colegas. ‘‘O que é a ganância? É você querer uma coisa só para si. Isso já foge do nosso costume, e nós não somos desse costume, nós não fazemos parte desse cotidiano’’. Eu sempre falo para os nossos parentes, eu sempre… às vezes, a gente entra em um pouco de discussão, porque alguns, às vezes, acabam discordando, que está estudando para isso, que está buscando conhecimento para ter uma vida boa, para ter uma… não essa vida que estava tendo. Eu falo: ‘‘Não, tudo bem. Isso até eu concordo’’. Mas eu falo assim: “A gente…” é querer acabar com as coisas mesmo. Como algumas pessoas, infelizmente, da sociedade envolvendo vem fazendo, vem acabando com os nossos peixes, os nossos rios, as nossas matas. Então é uma preocupação muito grande, Tiago. E principalmente, eu não posso deixar de falar isso, que eu vou falar agora, principalmente nesse governo, que graças a Deus está findando. Esse foi o maior desastre ecológico que já aconteceu, nesse governo, que graças a Deus está findando, está acabando. Foi um desastre para todos os indígenas, para todos os povos, para todas as etnias, para todos os ribeirinhos. Ribeirinhos que eu quero dizer, é até para aqueles que dependem do rio, da pesca, que não só nós, Tiago, não é só nós indígenas que dependemos da caça da pesca. Tem mais outras pessoas, que têm poucas condições, que são os ribeirinhos, que estão nas cidades, que dependem da pesca da caça, de fazer uma roça para a sobrevivência. Roça, assim, tem um jeito de fazer roça, mas sem degradar o meio ambiente. Como os nossos avós faziam. Eles faziam tudo da maneira certa, eles não faziam aquela queimada. Faziam um cercado, tinha um manejo próprio deles. Fazia a rocinha, e ia ali para não fazer aquela queimada que vem acontecendo. Em todos os lugares, todos os territórios aí, que as vezes acaba chegando nas reservas indígenas ou nas reservas ambientais, que infelizmente acaba com tudo. Acaba com os animais, acaba com as frutas nativas, acaba com as madeiras, que às vezes usamos para fazer as casas. E fora as outras coisas que às vezes, porque… e como eu disse, tudo isso tem uma ligação: nós, território, natureza, Araguaia. Então, assim, como nós estamos aqui, morando em divisa com a Ilha do Bananal. Então a Ilha do Bananal vem sofrendo há anos, há anos, com invasão de madeireiros, invasão de pesca ilegal, e agora com criação de gado bovino. Isso aí é o que vem acabando com as matas virgens, com as madeiras, com os peixes, os lagos agora, como eu tinha falado, vem secando devido essa destruição do meio ambiente. Então, assim, aqui no nosso município, que está em divisa com a Ilha do Bananal, a nossa reserva já tem um pouco de restrição. Ela tem restrição, porque ela está do lado da cidade, então logo a gente acaba acionando as autoridades, e aí logo as autoridades acabam tomando conta, e vem aqui, às vezes faz a fiscalização. Tem alguns que fazem aqui a retirada de árvores, ali retirada de madeira, mas não é muito. Tem alguns que fazem retirada de cascalho aqui na reserva indígena, outros querem tirar areia da praia, mas aí, às vezes a gente reúne a comunidade, o cacique, a liderança e a gente faz uma orientação. Porque a retirada de areia da praia, isso pode trazer impacto, pode trazer um impacto muito grande, futuramente as praias podem nascer e não daquela forma que nascem todo ano aqui no Araguaia. Então pode trazer um impacto até mesmo dentro do nosso território aqui da aldeia. Então isso a gente vem orientando, junto com as entidades, as entidades ambientais. E pena que nesse governo, nessa gestão do Governo Federal, algumas instituições perderam muita força, como o Ibama, a FUNAI, que faziam toda essa fiscalização. E agora ficou muito, muito, sem força, esses anos todos. Agora a gente está com esperança que agora venha retornar todas essas entidades que ajudavam na questão da fiscalização aqui das matas virgens, das frutas, dos lagos, e principalmente do rio aqui, que todos precisam dele e necessitam do Rio Araguaia. Então a gente tem muita preocupação e muito cuidado com o meio ambiente, Tiago. E principalmente, nós, os povos indígenas, nós dependemos deles, nós dependemos dele. E futuramente os nossos filhos, netos, também vão depender dele. E a gente sempre orienta também os não-indígenas, também os netos e os filhos deles, que podem precisar um dia de ar fresco, de uma fruta, de um peixe ali fresquinho. Então, tem lugares que já não tem mais isso, peixes, frutas. Então, assim, tudo está sendo, infelizmente, degradado ambientalmente, Tiago.
P/1 - Essa luta pela terra, pelo território, pelo meio ambiente, também é uma luta pela vida, e nós estamos ainda, parente, numa pandemia que começou aí em 2020, Coronavírus. E como foi aí para vocês enfrentarem essa pandemia, como vocês fizeram para se proteger, e se teve alguma perda familiar ou uma perda aí na comunidade? Como foi esse enfrentamento da pandemia, está sendo ainda?
R - Assim, ok, Tiago. Uma boa pergunta. A pandemia, infelizmente, eu até citei um pouco dela nas minhas falas anteriores, foi uma coisa que trouxe, uma doença, uma epidemia, aliás, uma pandemia que trouxe muita tristeza para nós e para o mundo todo. Então culturalmente falando, nós não estávamos preparados para essa pandemia. Tanto é que, acho que foi por Deus mesmo, a gente não ter perdido muitas vidas aqui na Ilha do Bananal, e aqui também no Mato Grosso. E infelizmente tivemos algumas perdas dentro da Ilha do Bananal, em Santa Isabel, se eu não me engano de uma família, três pessoas, infelizmente, vieram a falecer, da qual já tinham algum problema de saúde, e aí, infelizmente, com a pandemia, com esse Coronavírus, e foram infectados, aí a coisa se agravou de maneira que infelizmente vieram a óbito. Mas aqui na minha comunidade, graças a Deus, não tivemos nenhum óbito. Tanto é que o povo Iny, até isso mesmo, questão de degradação ambiental, entra isso também, você falou bem, questão da vida, da sobrevivência, você falou bem sobre isso, citou bem, bem lembrado mesmo. O que eu quero dizer com isso? Que através disso, do conhecimento milenar, das nossas avós, dos nossos avôs, então eles têm o conhecimento da planta medicinal, da qual ajudou muito, muito mesmo, Tiago. Porque na verdade, nós não tivemos o apoio de instituições que trabalham com a saúde indígena. As pessoas ficaram com medo umas das outras. Então a SESAI junto com os seus funcionários, aqui de Araguaia, eles ficaram, praticamente, assim… não deram apoio. Não deram apoio, cada um ficou nas suas casas, tinham medo... eles não iam nem pro serviço, fazer expediente, quanto mais ir nas comunidades fazer uma orientação, levar remédios, levar uma máscara. Na verdade, nós tivemos aqui o apoio de alguns indígenas aqui, que falaram através de face, através da internet, pediram ajuda. E aí a prefeitura aqui do nosso município, depois que... já na metade da pandemia, as pessoas já contaminadas, então aí que vieram dar apoio pra gente, com máscaras, distribuíram cestas básicas para que as pessoas não fossem à cidade e aí que ficasse em casa. E aí começaram a distribuição de álcool em gel. Mas isso tudo através do município. E como eu estou dizendo a SESAI, que é a Secretaria Especial de Saúde Indígena, ela sequer moveu um dedo para ajudar, pelo menos aqui, a nossa comunidade de São Domingos. Então, como eu estava dizendo, culturalmente o povo Iny não tem... a gente não tem muro na comunidade, a gente não usa portão. Então tudo, assim, aberto, praticamente, Tiago. E para a gente falar: ‘‘Olha, por favor, não venha na minha casa, ‘isso e, isso’’’. Aí já para nós seria um constrangimento, para a gente e para os nossos parentes, assim, falando culturalmente. E aí a gente recebia mesmo em questão da pandemia, eu falo pessoas assim, da aldeia mesmo, os parentes mesmo, dentro da comunidade. Aí a gente recebia, a gente não tinha como falar ‘‘Não’’, né, ‘‘Olha, cada um fica na sua casa’’. A gente não tinha jeito para falar, culturalmente. Então a gente foi convivendo ali normalmente, ali dentro da comunidade. Tiveram, alguns tiveram… a minha esposa mesmo, ela não saía, para lugar nenhum e acabou sendo contaminada. Mas aí, graças a Deus, ela já estava tomando o remédio caseiro, que é o remédio medicinal, da mata, e aí isso fazia com que a saúde dela ficasse mais assim, mais preparada. Ou seja, fazer [com que] o organismo dela, com aquele remédio tradicional, ficasse mais preparado para quando ela… quando as pessoas pegassem o Coronavírus. Então todo mundo já tomava aquele remédio. Eu mesmo peguei uma vez só, graças a Deus, mas não sabia que estava contaminado, porque quando eu fui fazer o teste, aí já estava bem mínimo, mas é porque eu já estava tomando o remédio medicinal, tradicional. Aquilo lá aumentava a imunidade das pessoas, então ajudou muito o remédio, esse conhecimento tradicional adquirido pelos mais velhos. Eles passam de geração em geração, para que isso não venha ao esquecimento. Então, Tiago, aqui nós não tivemos casos. Se eu não me engano, uma ou duas pessoas foram hospitalizadas, mas a maioria fez todo o tratamento em casa mesmo. Fizeram o tratamento em casa, e graças a Deus, ficaram curadas e começaram a ter sua vida normal. Enquanto, perda mesmo, foi, infelizmente, essa prima minha, que ela não mora aqui, ela é de Goiás. Então eu tive essa perda, infelizmente, que ela estava também trabalhando como técnica de enfermagem. E aí, infelizmente, foi contaminada. Até então ela não sabia, achou que era uma gripe, aí a mãe, que é minha tia, ficou muito preocupada, falou para ela fazer o tratamento. Mas ela, muito preocupada com os outros pacientes, infelizmente não buscou o tratamento a tempo, e infelizmente ela piorou e veio a óbito. Então aí a comunidade… então, assim, aqui onde eu moro há 25 anos, nós enfrentamos a pandemia dessa maneira. Culturalmente ninguém ficou proibido de ir na casa do outro, porque culturalmente, como eu estou dizendo, é até constrangimento para gente falar: ‘‘Olha, por favor, não vem em casa, a pandemia está aí’’. Então culturalmente a gente recebe todo mundo em casa, e é uma coisa nossa mesmo, nosso costume, mesmo em época de pandemia. A gente seguiu normalmente, culturalmente falando.
P/1 - Eu também passei por essa situação, foi difícil, mas estamos aí. Parente, depois de o senhor ter falado toda essa trajetória pessoal, e também coletiva, de todas as lutas, eu pergunto: hoje, quais são as coisas mais importantes pro senhor, quais os seus sonhos, e qual o legado que o senhor quer deixar da vida do senhor?
R - Certo. É. Bom. Tiago, para mim, uma das coisas mais importantes que eu tenho é a família. Essa família que eu construí com muita luta, muito amor, muito carinho, então, para mim, a família. Então a nossa luta aqui, hoje, não trava muito na questão territorial, graças a Deus, isso nós não temos, esse problema da questão territorial, questão de demarcação, questão de homologação, de registro de terra. A comunidade aqui já… quando eu cheguei aqui, já tinha passado por esse processo de luta. E as lideranças, da qual o cacique foi, o tio da minha esposa, chamado Carlos Washimauri. E da qual tiveram apoio de lideranças, como o senhor Waçari, Yuana, Ydiahiva, Tenuira, Terrerire, Wahiro, e dentre outros. Então essas lideranças tiveram parte na construção desse território aqui, que graças a Deus, eles não têm essa comunidade… os parentes aqui não têm esse problema sobre território, e já é registrado, já juridicamente. Então a nossa luta aqui trava realmente um pouco a questão da educação mesmo. Essa mudança vem cada vez [mais] acontecendo. Como eu falei aqui, a gente trabalha em união, a gente trabalha aqui junto com indígenas e não-indígenas, aqui nessa nossa instituição, então é uma coisa muito gratificante, é um ajudando o outro. Então essa… a escola, Tiago, eu até falo muito nas reuniões, na comunidade, entre os professores, que a escola aqui, para a comunidade é uma referência. Ela é uma referência em todos os sentidos. Primeiro no sentido de aprendizagem, dar conhecimento para os nossos alunos, que é o nosso público, nosso público alvo, para que esses alunos venham ter conhecimento, primeiro da cultura, da origem. Em segundo momento, a questão do conhecimento lá de fora, que é da sociedade envolvente, da tecnologia, das palavras técnicas, de uma faculdade. Então esse é o objetivo da escola aqui, dos professores, da gestão. Então, a gente aqui luta por um objetivo só. Então, assim, eu como educador… a gente quer deixar aqui para os futuros profissionais, para os futuros professores, que é o que a gente almeja, que eles alcancem ser um futuro professor, ser um futuro técnico de enfermagem, ser um futuro médico, ser um futuro advogado, ser uma liderança aqui, um defensor mesmo da causa indígena, da causa da educação, da causa da saúde, da causa… do social. Então, assim, eu quero que eles sejam esses profissionais, esses guerreiros, lutadores. E é o que a gente está batalhando aqui nessa instituição, junto com os colegas professores indígenas e não-indígenas, Tiago. Então a gente quer futuramente ver essa escola aqui a cada dia melhor, mais do que a gente, quando a gente chegou aqui, para que realmente eles sejam autônomos. Autônomos em todos os sentidos. Em sentido de conhecimento, em sentido… como pessoa, como ser humano. Que é bom sempre a gente estar ajudando o próximo, seja onde a gente estiver, e ser um pouco disso. Como nós indígenas, Iny, sempre somos do coletivo, Tiago. A gente não quer uma coisa só pra gente, quanto mais conhecimento. A gente quer passar, seja cultural, seja conhecimento científico, a gente quer passar para quem vem atrás da gente, para que eles sejam os futuros líderes aqui nessa comunidade. Então a gente quer deixar um pouco disso, um pouco dessa nossa luta, um pouco dessa nossa batalha, para que eles continuem avante, Tiago. Então, um pouco disso, basicamente.
P/1 - É isso aí, parente. Eu fiz várias perguntas pro senhor e talvez tenha alguma pergunta que eu não tenha feito, e se o senhor quiser responder alguma coisa que o senhor queira falar que não foi falado, o senhor pode falar agora.
R - Sim. Obrigado, Tiago. Eu só quero agradecer, viu?! Só quero agradecer imensamente por esse convite, por essa oportunidade de estar falando um pouco da nossa trajetória como pessoa, do nosso profissionalismo, da nossa instituição, das pessoas que trabalham conosco, os profissionais indígenas e não-indígenas que vem batalhando junto conosco nessa questão da educação, nessa questão da saúde, nessa questão do social, do território. Então, assim, eu só quero agradecer. Para a gente falar um pouco disso, existem pessoas que ainda não conhecem sobre cultura indígena. Então, assim, para alguns ainda em pleno século XXI, ainda, pessoas lá nas capitais, lá fora, acham que indígena é tudo um só, que tudo fala uma língua só, que tudo é uma cultura só. Mas, não, cada um tem o seu jeito, sua maneira, e tem o seu costume de viver. Então a gente passa um pouco disso aí. Eu só tenho a agradecer você… o professor, desculpa, o nome dele, o colega, o companheiro aí. E agradecer também a colega, a professora, que enviou o link aí para nós, a Elisa, né? E aí agradecer a todos vocês por essa oportunidade aí, da gente estar falando um pouco disso aqui, sobre a nossa história e sobre a cultura. Muito obrigado mesmo!
[Fim da Entrevista]
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