P/1 – Vamos começar então, dona Valdenia?
R – Vamos.
P/1 – Eu quero que a senhora diga para a gente o nome completo da senhora.
R – Meu nome é Valdenice Ferreira Santos.
P/1 – E onde que nasceu?
R – Nasci em uma fazenda chamada Quati.
P/1 – E onde que é isso?
R – Meu Deus, na cabeceira do Marobá.
P/1 – Em Minas Gerais?
R – É, Minas Gerais. A terra da fartura, jaca, cafezal, canavial, jaqueira.
P/2 – Marobá é um rio?
R – É um córrego.
P/2 – Onde que ele fica?
R – Conhece ali a fazenda de Caçula, do cacauzeiro?
P/2 – Não.
R – É, então, está muito distante. Mas é a mesma... Esse córrego que eu estou falando, desce de lá dos Quati. Então, cada fazenda vai mudando os nomes e vai diferenciando.
P/1 – E qual a data de nascimento da senhora?
R – Eu, na minha identidade, estou com 58 anos. Caso faleça, tem todo xerox, né? Eu não falei para vocês que eu não gravo nada?
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai, Josino Ferreira dos Santos, Pascoalina Maria de Jesus. Avós maternos, Felício Caetano Ferreira dos Santos, Ana Maria dos Santos. Vitória Maria Jesus, que era mãe da minha mãe. Clemente Rodrigues dos Santos, que era o pai da minha mãe.
P/1 – O que seu pai fazia? Qual era a atividade dele?
R – Lavrador, porque quem sempre tem um pedaço de chão para plantar, para ter os mantimentos, ele é lavrador, né? Se eles trabalham para os outros, é o mesmo lavrador. Como é que se diz? Roçador, conhece o que é a cera de abelha de cerca, conhece? Onde é que tem cerca que eles acera para não pegar fogo na cerca, pois é, aquilo se chama de acero, né? Bom, a gente sabendo, né? Meu pai era serrador. Sabe o que é serrador, né? No mato, faz aquele estaleiro, joga aqueles “torão” em cima e tem um serrote mesmo para... Que trabalha de dois companheiros. Era isso que era a profissão de meus pais. Bom, a gente nasceu, ele vai criando naquela luta. Quando acha já terra limpa, planta o feijão, o milho. Esses é naquela serra ali que planta feijão, milho, a manaíba para dar mandioca. O brejo é o arroz. Que o arroz não pode ser plantado naquela serra, senão ele não nasce ali, ele não dá nada. Ele tem que ter uma vazante no rio para ser plantado. Tudo isso eu já trabalhei. Quando eu peguei, peguei por jeito, porque era meu povo, né? Mas tudinho foi crescendo, a escola nossa era essa. É colher café, moer cana, fazer farinha. Na frente do potinho mesmo tinha uma tenda de farinha que nós chegava de manhã cedo para dar conta daquele saco de farinha pronto. Nós crianças, rapava mandioca. Era roda. Nós inventava para observar, também, para ajudar os grandes. Para vim sacos de farinha para Almenara. Ah bom, depois que eu saí das roças, eu vim para a cidade. O que era? Cozinheira. Trabalhei no hotel da Dona Joaquina, que eu tive o maior prazer de ela ir me dar um alô lá no Sesc [Serviço Social do Comércio], acho que anteontem, não sei que dia foi, sobre o meu trabalho, sobre a minha limpeza, que não gostam de eu ser preta não, mas gostam da minha limpeza. Adorei a dona Joaquina me dar essa mão. Meu trabalho era esse. Bom, depois que eu passei a ser mãe, aí eu fui cuidar dos meus filhos. Porque tinha hora que eu saía de casa para trabalhar de doméstica, né, eu deixava as crianças. Minhas crianças nunca tomou mamadeira, era o leite materno. Às vezes eu trabalhava o dia inteirinho, chegava base de seis, sete horas da noite, estavam os bichinhos lá com a barriga grudada no espinhaço, o peitão estava por aqui. Vocês me desculpa falar assim, mas é do jeito que a gente se fala, né? Cheio, doendo. Acordava eles para mamar. Era um alívio a hora que eles mamava. Minha mãe falava: “Valdene, esse leite vai fazer mal a esse menino, fica represado”. Que nada, aí é que os moleques ficavam fortes. Aí eu falei assim: “Quer saber de uma coisa, eu vou sair dessa vida de fogão dos outros, porque eu tenho que olhar os meus filhos. O meu ganho não dá para botar um para cuidar dos meus filhos, tem que ser eu mesma”. Passei a ser lavadeira. Que andei, que hoje em dia, eu lavava nessa lavandeira. Primeiro lavava no rio, tudo que seu Roberto fez essa lavanderia para nós, eu continuei a lavar lá. Quer dizer que tinha todo o dinheiro livre, né, não pagava água, não pagava luz mesmo. Uma patroa boa para mim foi na época que surgiu esse trabalho para nós do coral. Esse trabalho nosso começou em uma época da eleição, o povo caçoava de nós, que dizia que aquilo era política. Mas nós não estava nem aí, né? Isso que era política, hoje, nós estamos no mundo inteiro. Até em Portugal nós já foi. Nós tinha essa capacidade, né? Então, eu tinha que dizer: “Meu Deus, lavadeira não tem valor”, porque o povo antigamente falava que lavadeira não tinha valor. Eu chegava cansada da lavanderia, jogava aquela trouxa de roupa lá e corria para o fogão para ajeitar a comida para comer, porque aquela fome... Mas, hoje em dia, eu dou valor tudo que eu fiz, até lavar eu dou valor. Porque o que eu fiz eu não fiz nada perdido. Trabalhar na roça, ser cozinheira, bom graças a Deus, voltar, passar a ser lavadeira e dou graças a Deus. A Deus porque me dá anos de vida e saúde para mim conseguir mais. Porque tem que pedir a Deus. Não é porque eu já estou nessa idade, eu vou dizer: “Ah, eu já estou velha mesmo, eu morrer”, não. Pois agora que eu vou em frente, porque agora eu tenho juízo, eu tenho a minha memória, sei o que eu estou fazendo. Porque se eu me entendo de nova, por enquanto que eu acho, eu nunca fiz nada errado, agora depois de velha que eu vou fazer? Agora que eu vou caprichar, ser mais feliz. Aí eu acho que eu sou uma velha, não jogada no lixo, uma velha dura, uma velha lutadora, da vida, feliz, contente, né? E eu tenho prazer todinho do que eu fiz. Ser mãe, ser avó, que tudo é cria, lá em casa eu tenho o quê? Seis netinhos que eu cuido. Eu vou te falar que eu tenho uma felicidade muito chique, graças a Deus. Tem hora que eu rezo (risos). Eu estou lá em casa eu rezo agradecendo a Deus: “Deus obrigada desse trabalho todo que eu fiz!”. Agora só a leitura que foi pouca, né? A leitura quando eu pensava de estar na escola, falava: “Sabe de uma coisa? Eu vou é trabalhar, que essa escola não dá nada. (risos) Eu vou é trabalhar”. Agora depois de velha eu estudo quando tenho tempo. Eu tenho uma professora boa para danar. Também se eu ficar aqui um mês ou dois, depois ela não me dá falta, ela só me dá... Diz que eu sou certinha. Mas até hoje eu estudo e meus netos todos estudam.
P/1 – Valdene, só para voltar um pouquinho na sua infância, você tinha irmãos? Quantos eram na família?
R – Três.
P/1 – Três?
R – É. Nós somos três irmãos. É eu, Maria da Paz, o Alvimar que mora em Conquista. Nós só somos três irmãos.
P/1 – Queria que a senhora contasse para a gente como que era na infância.
R – Das crianças?
P/1 – É.
R – Aqueles que eram maiorzinhos iam cuidar dos mais pequenos, né? Eu mesma era babá do Alvimar. Se fosse para roça, a mãe tinha que levar ele, que ele não ficava em casa.
P/1 – E a senhora ia para roça desde que idade?
R – Ó, com idade de sete anos, os pais da gente, antigamente... Começa que a gente não sabia fazer nada, mas a gente ia para não ficar em casa só. Ali eles diziam assim: “Ó, isso aqui é para vocês aprenderem a trabalhar”. Meu pai tinha um dizer, a terra toda para a gente plantar, aí ele dizia, eu mesma era uma que apanhava nessa hora, essas covas aqui da beirada, quer dizer que tem essa parte já para fazer cova, né? Então, separava essa carreira de cova aqui sem plantar nada, aberta, para quando terminar essa carreira aqui, voltar ali, “cuvejar” aquela terra para a gente continuar. Mas eu esquecia do diabo da cova de beirada, tampava tudo. Quando ele ia caçar o lugar dele tornar e continuar a “cuvejar” para plantar as coisas, estava tudo tampado, ele dizia: “Uai, desse jeito fica plantando um por riba do outro”. E aí agora, ó. Ele tinha uma chapéu velho de couro, ele era danado para tirar aquele chapéu velho e jogar em mim. Quando o chapéu velho não pegava em mim, eu dava vaia nele: “Ih, não pegou em mim”. Coisa boa! Tudo isso a gente já faz. Esse irmão meu, esse Alvimar, ele era pequeno, ele tinha que ir para a roça mais eu. Ali eu estava ajudando eles para aprender o quê? Aprender a plantar feijão, milho, eles ficavam aprendendo. Isso é bom porque a gente aprendeu mesmo. Tem o milho, é, seis caroços. O feijão é quatro. Em uma plantação você vai plantando a mandaíba daqui para cima, não pode colocar o olho para baixo que a raiz sai lá para cima, tem que virar. Então eu aprendi, né? Tudo é escola para a gente viver e trabalhar.
P/1 – E tinha alguma diferença na educação dos meninos e das meninas? Ensinavam algumas coisas para os meninos que não ensinavam para as meninas?
R – Ensinava sim.
P/1 – Era diferente?
R – Eu acho. Se você está me perguntando sobre a criação de hoje, eu acho demais. Eu falo por mim, por umas colegas que a gente tinha, porque se tivessem todos que nem vocês aqui, adulto, eu de cá, vocês de lá, nós crianças não passava aqui no meio. Não precisava nosso pai falar, bastava olhar para nós aqui assim, nós já sabia, dali nós voltava. Se dissesse: “Isso aqui vocês não pegam”, ah, não pegava não. Não, nós tinha, se eles quisessem dá para nós, se fosse coisa de comer nós tinha que esperar eles dá para nós. A criação da gente foi essa. Em uma época de festa, tinha dança dos adultos, mas nós estava para lá, ó. Se nós aprendeu dançar e cantar é porque de lá nós escutava. Então a gente aprendeu assim. Mas nós no meio não. “Sai daqui menino que os grandes vão pisar em vocês”. E nesse tempo tinha um que gostava dela, né, estava meio bêbado, no meio do povo, fala: “Ê menino, para não machucar vocês”, a gente obedecia.
P/1 – Tinha muitas festas?
R – Graças a Deus. Começou na fazenda de Poti, Bem-vindo, Saúde, acho que vocês conhecem todo mundo, eu estou até falando o nome do povo tudo. Entrou janeiro, falhava fevereiro, aí deixava o mês de maio, junho, julho, aí entrava São Sebastião, senhor do Bom Jesus, Nossa Senhora, era tanto santo, menino! Que tinha vez (risos) que de dia estava com as bandeiras na estrada, de noite ia contar contra-dança, quem queria contar contra-dança aí cantava. Aí inventava uma festinha para todo mundo dançar, para amanhecer o dia e pisar na estrada com o santo na mão.
P/2 – E no trabalho vocês cantavam?
R – Cantava sim.
P/2 – Que tipo de música vocês cantavam?
R – Menina, eu vou te falar. Tinha uma música de boiadeiro para tocar os bois no engenho para moer cana, até isso nós já fizemos. Achava bonito e gostava fazer cachaça na fazenda de Poti. Porque a fazenda de Poti era rico da fartura, rico da lavoura.
P/2 – A roça era muito longe de casa?
R – Perto. Perto do predinho dele, do sobradinho que ele tinha lá na Barra do Bacava, na beira do Rio Grande.
P/1 – A senhora aprendeu a cantar com...
R – Com os adultos. Eles cantava. Meu pai mesmo cantava muita contra-dança que eu nem sei, acho que você sabe o que é contra-dança também. Contra-dança, batuque, né?
P/1 – O que é contra-dança?
R – Hã?
P/1 – Como que é contra-dança, o que é contra-dança?
R – A contra-dança, em uma comparação tem oito pessoas. Um com bumba, um com violão, outro com uma caixa, nesse tempo não tinha pandeiro, era um prato com um garfo, né, e ali formava um samba. Eu tinha um avô que cantava o tal do Maranhão, mas esse Caía no chão, rolava. Tudo isso nós ficava lá de longe assistindo, nós não ia para perto não.
P/1 – Caía no chão e rolava, era uma dança?
R – É. Para ele era um dança. Agora os outros tudo ali em cima: “Ah, você está com saudade de uma...” e falava o nome da cidade, tudo que falava antigamente, né, que hoje em dia até tem. Essa Joelma mesmo era chefe dele, falava no nome dela ninguém nem pensava que existia esse comércio, né, acho que era até roça nessa época que ele falava. Porque ele foi daqueles velhos (andes?), daqueles velho boiadeiro, viajante. Nesse tempo era na base da corcunda do animal, né, conhecia muitos lugar.
P/1 – E do que falavam as músicas?
R – O que falava as contra-danças?
P/1 – É, por exemplo.
R – Batendo e cantando. Pois é menino, as contra-dança eles canta e toca na viola. Quando está os oito, oito pessoas, né, eles cantava: “Ô Ferreira dandão, da maldição, dandão, quando acha o ferro dandão falta o carvão”. Esse é o oito, né, que eles fala. Hoje em dia ninguém vê mais isso não, né, tem televisão, tem som, tem Roberto para cantar, tem o CD para gente rodar, ninguém liga isso mais não. Agora eu lá em casa falo, quando os meninos falam: “Ô avó, vem ver o jogador”, “Eu não jogo bola!”. “Ô avó, vem ver o cantor”, “Também não sou cantora, não vou escutar cantor não!”. “Ah, mas a avó é nojenta”. Sou mesmo, eu vou é trabalhar. A hora que eu estou vendo a televisão ali está empatando o meu serviço. Não gosto não.
P/1 – E como é que era para estudar nessa época?
R – Para estudar?
P/1 – É.
R – Ó minha gente, eu saía da fazenda de Poti, do Velho Petrolino para a fazenda de Poti estudar. Até que a professora nossa chama Maria, eu nem sei se ela é viva. Meu Deus, correr de gado, de animal nas estradas, até de animal nós corria, com medo. Porque eu posso te dizer: “Ó, esses pastor aí na manga, mata a gente”. Nós tudo pequeno, nós corria. Ia beirando as cercas no ______, até chegar nossa escola. Aí quando chegava naquela época das plantas, nós saía da escola. Nós ia trabalhar.
P/1 – Com que idade?
R – De sete anos para lá nós já se virava.
P/1 – Você saiu da escola?
R – Ah, nós não estava nem aí para escola. Eu não sei como é que eu aprendi a fazer o meu nome.
P/2 – O que plantava na roça?
R – Ah, o que plantava na roça era para colher, vender na cidade para comprar outras coisas, né? Uma comparação assim, que nem, uma gordura, uma carne, farinha não, porque ninguém preocupava, o arroz também não. O feijão também não, porque a gente tinha da lavoura.
P/2 – E em que cidades se vendiam os produtos?
R – Em Almenara. Tudo o que nós, ou construía em Almenara mesmo.
P/2 – Tinha uma feira, não?
R – É. Isso aí. Vinha, trazia aquelas coisas, vendia para comprar outras para levar para roça.
P/2 – Quando a senhora veio da roça para a cidade como é que foi?
R – Ah, eu já estava grande, eu já era mulher de, aí eu já era mulher, que eu já estava grande. De 15 para 16 anos para a cidade aonde eu vim. Já fui chegando sendo empregada dessa dona Joaquina, que ela tem o hotel lá em Almenara ainda. Nessa idade que eu já comecei a entrar no fogão dos outros, também assim, sem medo de errar, porque tudo a minha mãe ensinava nós. Ensinava nós a fazer tempero, ensinava nós a temperar uma carne, temperar o feijão, como é que fazia um arroz, como é que fazia verdura. Porque as mães de algum tempo tinha muita inteligência, muito cuidado. Eu hoje tenho uma neta lá em casa, eu falo com ela. Ela está com nove anos. Ela estuda muito é muito inteligente na escola. Mas eu tenho medo que ela estude de manhã. Eu tenho dó de tirar da escola para botar para trabalhar, mas é muito orgulhosinha, sabe, uma alegria exibida para caramba. Eu fui, falei com ela, se ela não aprender a trabalhar, se ela não ser humilde, ficar confiando só na escola, esse ano que ela vai estudar a quinta, pois eu vou tirar da aula, vou deixar um ano ela em casa só trabalhando, para ela aprender. Trabalhar na cozinha, lavar prato. E sabe fazer tudo a danadinha, mas é preguiçosa. Agora, é a primeira que levanta de manhã para ir para escola é ela e reúne os irmão tudo. “Levanta Fulano, vai para aula. Levanta Fulano para escola”. Eu tenho dó dela por causa disso. Mas é preguiçosa em outro serviço, porque eu quero ver assim igual nós foi criado, naquela luta, aprender a fazer tudo. Porque hoje ela me acha e amanhã se ela não me achar, quem vai fazer para ela, né? Tem que ser ela mesma.
P/1 – Como que foi quando a senhora chegou em Almenara? Como que foi a sensação de chegar na cidade, mudar de...
R – Ai meu Deus, era ruim demais. Olhava para aqui, para acolá, nesse tempo não tinha luz na cidade. A luz vinha lá de Água Bela, quando dava dez horas a rua estava escura. Olhava para aqui, olhava para acolá, aquela escuridão! “Ê, meu Deus, nós podia voltar para trás, nós podia voltar para fazenda Poti de novo, porque lá é tão bom, festa e bam-bam-bam!” Tinha o carnaval na cidade, mas nós tinha medo de ir. Porque ali nós não tinha conhecido e lá na roça nós tinha bastante conhecido, homem e mulher, né? E na cidade nós não tinha. Aí era Maria, minha irmã, que já era grandinha, o que nós fez, nós fazia? Quando chegava o mês de junho, aí nós fazia as trouxas e ó, para roça. Ficava lá dois, três dias, era alegria. Aí quando a gente foi acostumando na cidade, aí a gente acabou o medo. Mas menos ir para festa. Eu nunca gostei de festa da cidade.
P/2 – A cidade era mais calma do que a roça?
R – A roça é mais calma de que a cidade. A cidade eu acho muita violência.
P/2 – Mas naquela época as festas...
R – Era. Tinha muita festa, mas a gente tinha medo de ir. Porque a gente não tinha aqui os colegas, não tinha ninguém, um tio, ninguém tinha um primo para ir com a gente. E lá na fazenda de Poti, não. Bem dizer, a família todinha morava na frente de Poti. Saía na casa de minha avó, chegava na casa de meu tio, ali tinha um bocado de primo. Chegava na frente tinha outro bocado de primo. “Vamos embora, Fulano?”. “Vamos”. “Amanhã é sábado, né?” “É mesmo, amanhã é sábado, né?” Hoje a gente já estava arrumando os paninhos, alisando, não tinha aquelas rouponas rodadas na goma? Aquilo nós metia aquilo na goma já começava alisar, até chegava a chiar. Fede brasa. Alisava aquilo, botava lá no sol. Aí quando ia dando a noite a gente ia saindo de casa, falava: “Você vai?”. “Vou”. O Valmir é o vaqueiro da fazenda de Poti, era o que mais gostava de festa. “Você vai para casa de dona Alzira hoje?”. “Vamos”. “Você vai?”. “Vou”. Aí nós saindo... “Você leva um correio avisando...”, quando era de noite reunia tudo na casa de seu Almiro, forrozão comia.
P/1 – Tinha comida, muita comida?
R – Ah, tinha! Tinha sim, porque era terra da fartura.
P/1 – O que tinha de comida?
R – Ué, carne de porco, galinha caipira, tinha hora que tinha carne de boi, biscoito, né, cachaça. (risos) Quem gostava de tomar todas, tomava mesmo, né? Que era os garrafão, não era aquele tiquinho, o alambique ali pertinho. Não era comprado o litro de pinga, dois real, três para dar em um litro de cachaça, falava: “Eu sei o que fazer. Compra um quilo de pelanca para vocês assar”. Porque assa ela, ela é salgada, assa, come, bebe água, sustente a cachaça ___. (risos)
P/1 – E eram mulheres que organizavam mais a festa?
R – Uai, mas festa sem homem o que ela é?
P/1 – Tem que ser reunido, o homem e a mulher. Tem que ser na paz dos dois senão... Porque como é que você é solteiro, você vai chegar em uma festa, você sem uma namorada, se você é casado você para festa sem a sua esposa? Não pode. Porque se eu fosse ela, eu dava uma pisa a hora que chegasse. Tinha que ir os dois.
P/1 – Mas quem fazia a comida, eram as mulheres ou os homens?
R – Eram as donas da casa que fazia a comida. Não, mas tinha parte que eles já tinham os cozinheiros mesmo e as mulheres ficavam folgadas, só cuidando nas roupas.
P/1 – Como é que eram as roupas?
R – Tudo na goma, aquilo chegava a parecer, você conhece o curador?
P/1 – O que é curador?
R – Ah, meu Deus! Povo que entende candomblé gente.
P/2 – Conta para a gente o que é isso.
R – Ué, você nunca viu sessão não? O povo fala sessão. Como é que trabalha com o povo das águas, trabalha com os caboclos, trabalha com os fulanos de tal, que eu não gosto de falar o nome, né, aquelas rouponas rodadas, toda cheia de goma. Hoje em dia acho que nem goma o povo está comprando mais para fazer, diz que as biscoiteiras não deixam. Eu gosto. E, além disso, as mulheres não estão vestindo mais roupa de goma. As mulheres, né, não agravando vocês, né? As mulheres gostam mais de calça. Calça não gasta goma. Calça não gasta nem ferro, quanto mais goma.
P/2 – E como que fazia a goma?
R – Como é que faz? Com água fervendo. Você pega ela, bota em uma vasilha com água fria, vem com aquela água fervendo, despeja ali, mexe, ela engrossa igual mingau. E aí, agora, mete as roupas ali dentro, põe para secar. Hoje em dia ninguém está vendo, nem bem lençol de goma. Eu, quando era criança, eu cresci o olho em uma dona que eu vi ela alisando um lençol na goma. Que antigamente os lençol bordado chamava, acho que é Santista, não sei como é que é. Ela chamava Tervina, nem sei se ela é viva. Dona Tervina era lavadeira dos outros. Ela ia com aqueles “lençolzão” assim quase do tamanho disso aqui com a ___ e tudo. Botava na goma, botava para secar. Quando aquilo secava, ela pegava, dois trabalhos, ia lá pegava um pano molhado, passava naquilo tudo e vinha com um ferro de brasa. Também quando ela colocava ali, aquilo chegava a brilhar e o fumaceiro levantava. Eu: “Um dia eu vou ser uma lavadeira, uma gomadeira”. Não é isso que quando eu consegui lavar roupa para engomar, já tinha caído da moda foi tudo, foi ferro de brasa, foi goma de roupa. Ficou mais fácil para mim, porque aí agora só pegou uma só dobra, né, umas ainda alisa e outras não. Que eu mesmo, não é toda roupa que eu aliso não. Eu ontem mesmo, eu fui alisar uma roupa do trabalho, aí começou a queimar, eu fiquei calada, não falei nada com Carlos. Depois é que eles vão achar elas com a banda girada assim. Eu não falei nada. Dobrei, usei ela lá, cheguei, tirei. “Porque suas roupas está...”. Mas ele vai falar: “Ô, nega, você queimou a saia?”. Eu falei: “Eu não, foi o ferro”. Mas eu falei que aquele pano não aguentava quentura. Eles teimou.
P/1 – E a senhora sempre cantou enquanto lavava e passava?
R – Desde criança. Nós ia olhar passarinho no brejo, acho que os passarinhos nem atacava o arroz porque nós cantava demais. Eu e essa Maria, minha irmã. E essa Maria no badoque, você sabe o que é badoque, né?
P/1 – O que é badoque?
R – Ó, porque hoje em dia tem o tilê. O badoque é um pedaço de pau que eles fazia o badoque e matava muito passarinho, né? E aí nós abria o bico cantando, até reza nós rezava lá nesse brejo. Só ia embora para casa quando dava noite. Ah, nós já lutou viu, para poder sobreviver, né? Sabe lá o que é você entrar dentro do prédio tocando passarinho ___. Senta só para comer. E é assim, um está aqui, está comendo e o outro está lá enrabando os passarinhos, porque eles atacam mesmo. Que o arroz dá muito trabalho, no nascer, quando ele está embuchando e quando ele está amadurecendo, que aí que os passarinhos ataca. Aí meu Deus, quando eu penso assim que eu já lutei tanto para viver e graças a Deus, vou agradecer Deus muito mais, para mim viver mais.
P/1 – Valdenia e a senhora, quando trabalhava na cidade, já quando mudou para cá com 15, 16 anos, para Almenara, era cozinheira, só cozinheira?
R – Fui. Já fui chegando na cidade, muitos ignorou, que eu já fui entrando na cidade já fui logo no hotel, chamava Hotel Amorim. Se naquele tempo uma boa funcionária ganhava o que, acho que era, não sei se era dez, hoje em dia fala dez centavos, nem sei mais como é que chamava o dinheiro, ganhava 15 por mês, eu já entrei nesse hotel ganhando esse dinheiro. Esse dinheiro eu pagava aluguel de casa para minha mãe, comprava roupa para meu irmão, que a outra irmã minha foi logo empregada também. Com Luizão, com dona Natália, mulher de Luizão. Seu Luiz era um bancário, dona Natália era professora. ___, qualquer hora que nós chegava na casa deles, fala: “Eu quero isso”. A gente não fala “me dá”, não. “Ó, eu vim buscar isso aqui!” Dona Natália e seu Luiz: “Pega lá, nega”. Leite, nós não compra leite, é muito difícil. Vamos lá na casa dele buscar. Uai, se nós ajudou eles, não ajudou não, nós gostou, não ajudou, né, então agora eles que está ajudando agora nossa intimidade, né, nós chegar, nós, eles mesmo falam que nós fiquem por falta das coisas, se nós querer, ainda chama a gente de orgulhosa, mas não é orgulho, sabe o que é? É que hoje em dia a gente tem muito trabalho que a gente pode sobreviver, é por isso que nós não mais perturba eles. Aí eu ganhava esse dinheiro, era dividido. Lá tinha um João Avelar que tinha uma loja, eu era freguesa dele. “Olha dona Joaquina, eu vou lá na loja comprar...” “Vai, nega, vai comprar e no fim do mês você paga”. Esse dinheiro que eu estou te falando. Quando já passou 500, vixe, que dinheirão, era o dinheiro que uma professora ganha, ganhava. Ô dinheiro, mãe comprou até uma barraca para nós morar.
P/1 – A senhora era cozinheira então, aí ficava...
R – Ó, eu já fui cozinheira. Já trabalhei de garçom, garçom assim, lavar vasilha, na Cabana. Vocês conhecem a Cabana lá em Almenara? Hoje em dia não, que ela acabou. Ali quem vai para o aeroporto, trabalhei ali muitas vezes. Atendi Geraldo. Já trabalhei ali. Entrar, o sol entrando, para sair depois que o dia amanhece. No castelo. Já trabalhei no castelo dos Miranda, que foi o dinheiro mais grande que eu já ganhei na minha vida. Inclusive quando eu saí de lá, que o povo tudo dizia assim: “Ah, você precisa botar no pau”, né? E eu nunca gostei disso. Ele mesmo que foi na minha casa me procurar, que eu tinha direito dos meus tempos de serviço. Aí eu falei para ele, falei: “Olha, lindo, ué, mas se vocês não pagou meu trabalho”. Ele disse: “Não, dona Valda, não mas lá é firma”. Quando ele disse, me deu vontade de chorar, de ele ir na minha casa para me dar os direitos. Também não me deu, nem eu dei trabalho para ele e nem ele me deu trabalho no meu dinheiro. Graças a Deus. Mas entrava assim antes de escurecer, passava depois que o dia amanhecia. O dia que tinha bem movimento mesmo, saía o dia amanhecendo. Agora o dia que não tinha movimento, saía base de 12 horas, três, quatro horas da manhã. Para mim já estava bom, né, porque eu estava ganhando o meu. Tudo isso eu já enfrentei e gostava. Mas mais que eu estou gostando é do coral, né?
P/1 – Com que idade a senhora trabalhou antes de ser lavadeira? Que idade a senhora começou a trabalhar como lavadeira mesmo?
R – Ah, isso eu já estava caducando. Foi de certos anos para cá, acho que está com seis anos ou sete anos que eu comecei a lavar roupa. Isso já foi depois que eu peguei os filhos, os filhos pequenos, né? Eles, hoje em dia, tudo é grande, é pai, mora tudo perto lá de casa. Mas o serviço melhor que eu gostei foi o coral, né, que é diferente de cobra coral, né? Aquela se morder mata e nós... (risos)
P/1 – Mas o coral começou por causa do trabalho de lavadeira?
R – Das lavadeiras, sim.
P/1 – Conta como é que era, a senhora ia para o rio, aí lavava e ficava cantando?
R – É, a gente lavava lá e cantava. Mas este festival desse coral é como eu falei para você, foi intervalo da política com seu Roberto, esse Luiz Carlos, que ele morou lá. Mas ele candidato. Antenor tem até umas blusas que ele deu para nós, ele. A saia dona Irmã que deu, saia verde, que nós não estamos usando ela mais, mas eu gosto dela. Bom, nesse intervalo a gente ficou cantando lá na praça, aquelas coisinhas na época da eleição, nós foi aqui para o lado do Salto, nós fomos no Jacinto, Jequitinhonha, aí pegou a gostar, né? Aí já começou a gravar com a gente. Aquelas músicas que ele vê que presta, ele colhe elas e aí ele vai, faz o trabalho do CD. Aquelas que ele vê que ainda está meio torta, ele deixa encostado para depois “ponhar”. Que ele tem um bocado de música encostada que eu quero elas, porque eu acho elas bonitas. Eu gosto. Aí vem papai e mamãe, né?
P/2 – E vocês já se conheciam?
R – É isso aí.
P/2 – Quanto tempo?
R – O Carlos?
P/2 – Não, as lavadeiras.
R – As lavadeiras a gente conhecia direto de Almenara. Aquelas todas são de lá, né? A gente já conhecia.
P/2 – De infância?
R – Não. Sobre assim, de criança, de farra, não. Eu fui conhecer elas mesmo na lavanderia. Mas a gente tinha notícia delas. Fulana de tal e bê-bê-bê e etc. Mas agora para reunir mesmo todas foi na lavanderia.
P/2 – Como é que é essa lavanderia?
R – Ela é uma casa grande. Tem tanque. Quem tem tanquinho, bom, e quem não tem lava na mão mesmo. Eu mesmo lavo na mão, que eu não, ó gente, eu vou falar a verdade, fogão a gás e tanquinho para mim, não é comigo não.
P/1 – E o rio? Qual a importância do rio?
R – O rio, a importância?
P/1 – Para lavar a roupa.
R – Eu acho no rio melhor. Porque lá a água não é o prefeito que paga, é Deus que mandou. Com arador demais, lajedo, arame para a gente estender roupa para vir sequinha para casa, né? Lá não paga imposto de nada. Nem de arame, nem de água. Ali eu derramava tudo que eu queria.
P/2 – Ia no Jequitinhonha?
R – Eu lavo no Jequitinhonha, mas não gosto não, que só vou mais os netos. Eu gosto mais do São Francisco que a água lá é muito funda, só tampa a cabeça dos meus dedos. É por isso que eu gosto de lá. Mas tem lajedo, tem arame lá dos fazendeiros, que eu estendo roupa. É por isso que eu gosto. Agora o pirãozinho não, já leva farofinha no saco, garrafa de café, que eu adoro um cafezinho amargo na beira do rio. Os meninos: “Ô, avó, eu estou com fome”. “Ô avó, me dá um cafezinho?”. “Só um tiquinho, porque você sabe que aqui não tem fogão mais!”.
P/1 – Passava o dia lá?
R – Ô, eu passo o dia inteirinho com eles lá no rio. Meus netos, tudo lava roupa, que eu falo: “Ô, hoje por mim, amanhã por ti. Hoje você me tem para cuidar de vocês e amanhã quando eu bater o pé na cerca, quem vai cuidar de vocês é vocês mesmo”. Se eu, mesmo que eu sou pobre, tivesse criado naquela bobice, de esperar papai e mamãe, que eu estava fazendo hoje? Nada, né? Era na rua bestando, como eu vejo muitos, que eu não estou gravando a ninguém, eu falo do que é meu mesmo, né? Na rua bestando, vagabundando, tomando tapa, cacetada, não é? Então eu falo com meus netos, ainda falo para eles: “Ó, meninos, vocês ainda tem boa vida que vocês está criado aqui na cidade. Eu não, fui criada nas brenha, nas mata, lutando”. Se meu pai roçava na roça, claro que nós tinha que aprender a plantar, pra ter aquilo. Minha mãe roçava tudo de foice, pra falar a verdade. Se pai inventasse de fazer uma roça e aparecesse outro pra fazer uma serra, ela ia pra lá e ela ficava cuidando de cá. É isso que eu falo para os meus netos. E falo com qualquer um, trabalho não mata ninguém. Trabalho é saúde, trabalho é a vida para quem tem espírito e gosta. Ainda mais a gente pobre, quanto mais lutar para saber trabalhar e viver melhor de que, digo: “Ah, eu vou lá para esquina”. Tomo um banho, visto um vestido bonito, passo um batonzinho vermelho e vou para... Não, isso aí não é trabalho de ninguém, não. Não é boa vida de criança, que hoje em dia quem eu vejo usando batom é as crianças. Lá em casa, de vez em quando, me faz juízo de queimar o bico dela, né, que é a Mariana. Eu não me acho que isso é o modo de viver. Dá duro, gente, é bom. Saber trabalhar. “Ah Fulano, limpa esse quintal aqui para mim?” Dei-lhe uma enxada. “Meu Deus como é que eu limpo isso aqui?”, pois não sabe nem arrumar a enxada no chão para arrancar um cisco. “Ô menina, passa um pano aqui nessa casa para mim!” Agora põe o balde ali com água, o rodo na mão, “Ô meu Deus, como é que eu passo esse pano?”. Agora eu não sou contra não, porque quando eu entrei um dia em uma casa para dar limpeza, eu fiquei: “Ô meu Deus como é que eu vou tirar esse trem daqui da penteadeira?”, porque é sempre na penteadeira. E eu com medo de quebrar os vidros de perfume da mulher. (risos) “Ô meu Deus, como é que eu faço?” Ali ela chegou lá dentro, aí eu falei: “Ah, eu não vou mexer com isso aqui não!”. Ela foi, falou: “Me dá isso”. Tirou tudo da penteadeira: “Ô aqui, põe tudo em cima da cama, limpa aqui, depois você torna a por esse aqui, esse aqui”. Aí eu aprendi. Mas por quê? Porque eu não fui criada assim. Aí eu até que falo com minha neta, agora ela é caprichosa, ela passa pano na casa, ela vai fazer quando ela quer. Quando ela não quer, ela cresceu o bico e pronto.
P/2 – E esse rio onde a senhora começou a lavar roupa, ele mudou até hoje?
R – O São Francisco? Ó minha filha, não mudou nada, porque... Não, mudou porque tirou o esgoto do matadouro e jogou fora do córrego, né? Mas antigamente a água caia lá. Porque lá, o matadouro lá de São Francisco, tem uma cidadezinha lá que ela chama o bairro de São Francisco, o matadouro é lá.
P/2 – O que é matadouro?
R – De matar o gado, matar o porco, já para trazer prontinho para a cidade. Tipo um frigorífico, né? Agora mudou. Agora melhorou muito porque eles tirou aquele esgoto que vinha do matadouro que caía dentro do rio, eles tirou, jogou para fora. A água agora está mais limpa, só mesmo para a gente lavar a roupa. Inclusive a gente não bebe ela cá embaixo, não. Lá em riba eu não sei se eles bebem, porque lá em riba é mais limpo. Agora no tempo, quando tinha esse comecinho lá, a gente usava água do São Francisco para tudo. Beber, cozinhar, lavar roupa, mas hoje em dia, eles lá não estão usando. Já tem água encanada também. Todo canto tem água encanada.
P/1 – Dona Valdenia, as pedras do rio são importantes para bater a roupa, para limpar?
R – Eu acho. Se tem um sujo no cós, aí você coloca ele lá no lajedo. Passa sabão, toca a escova bem com força, joga uma aguinha, o sujo vai saindo. Se a barra de sua calça está suja, você pega ela, põe ela no lajedo, passa bastante sabão, né, morrendo de saber lavar roupa, porque tem outra coisa que tem que ter o tanquinho. É a escova. Vai jogando uma aguinha, o sujo vai saindo. Do jeito que quando você olha está limpinha, fala: “Ah, eu vou é torcer logo, botar no sol para secar para mim vestir”. É por isso que eu gosto do rio. Porque no rio não é aqueles diabo de tec-tec, não. E uma é que eu gosto muito de bater na roupa, que ela não vai bater em mim, né? (risos)
P/1 – Só um pouquinho, a gente vai trocar a fita aqui, que está acabando. Eu queria perguntar para a senhora porque a senhora gosta de bater na roupa, descarrega alguma coisa?
R – Eu acho que a hora que está batendo na roupa ali o som está saindo. É por isso que eu gosto de bater. Porque a gente antigamente dava dois sabão na roupa, se não desse os dois sabão na roupa, a roupa não estava limpa. Mas antigamente não era esse sabão de hoje em dia, era sabão de quadra. Meu povo dizia que era para sair o fedor, daquela de quadra, né? E hoje em dia, não, está mais fácil, que é o sabão em pedra, ou aliás, sabão em pó. Que antigamente não tinha sabão em pó, não tinha Qboa. É por isso que a gente conseguia lavar roupa acima disso. Que antigamente não existia Qboa, antigamente não existia sabão em pó, era na base da mão mesmo. Lá nas roças, como não tinha ninguém para roubar, né, dormia no rio, para no outro dia amanhecer alvinha. Chegava a amanhecer cheirando, mas aqui na rua ninguém pode fazer isso. É bater, torcer, botar para secar, mas hoje em dia, tem ajuda da Qboa, do sabão em pó, né? Você esfrega ele com menos sabão. Eu mesmo não esfrego com sabão em pó para não estragar os meus dedos. Depois que eu tiro aquele sujo, grosso, aí eu vou com sabão em pó e a Qboa em outra vasilha e jogo a roupa dentro. Aí eu pego ela, jogo no lajedo. O sol está quente, ali eu vou jogando água. Que quando dá a hora de eu torcer ela, o sujo já saiu tudo, a roupa está cheirando, que se você usa sabão em pó mais a Qboa a roupa está cheirando. É por isso que eu gosto de lavar assim.
P/1 – E o canto, ele é para ajudar na sua tarefa?
R – Ah, que nem a gente estava pensando assim, lá longe a gente fala assim: “Ah, tira esse sentido mau”. Aí a gente canta, o menino dali começa: “Hum, hum”. Meus netos mesmo é assim, né? A Mariana até que canta, os meninos homem não, fica assim: “Hum, hum”. “Ô menino, que você está falando aí, menino?”. “Ah, avó, estou cantando!”. Eu falo: “cantando é assim, ó”, aí eu abro meu bocão e todo mundo entra no meio, cantando mais eu. Ó menino, aí cantava isso. Ó menina, aí cantava aquilo outro. Ah, hoje em dia, meu filho, quando é nas festas de Cosme eu não vejo um neto dentro de casa. Mas correndo atrás de quê? Não é tanto das músicas, é as balas, cocadas, né? Mas nós não, antigamente a gente gostava de cantar. A minha mãe ia colocar os meninos para dormir, cantava. Disse que cantando os meninos dava sono. Cantava até que o menino dormia. Disse porque era sono que estava cantando, mas acho que não fazer barulho, o menino dorme com barulho.
P/1 – E tinha que colocar as roupas para quarar? Até hoje a senhora faz isso?
R – Até hoje. As minhas roupinhas, as roupas de meus netos, eu lavo é assim.
P/1 – Conta para a gente. Descreve um pouquinho como é que quarava uma roupa.
R – Como é que quara? É como eu estou falando. Esfrega, estende no lajedo. Quer dizer que o sol está quente, está esquentando. Só não pode deixar queimar, porque se queimar também, Ave Maria! Tem que jogar água, para aquele sabão ir saindo. Quando você, você, nem sei se lava roupa no rio, joga água, porque nós faz assim. Jogou água, desceu água alvinha, ali ela está boa de enxaguar. Vamos enxaguar, botar na corda para ela secar, para levar seca. É por isso que eu gosto da roupa quarada. E falo para o povo, eu não gosto de lavar roupa dentro de casa não. Quem quiser me empreitar uma roupa, manda eu ir para o rio. Basta você me dar uma garrafa de café, nem pão eu quero, não quero biscoito, não quero nada. Basta me dar uma garrafa de café. Para mim está bom, lá no rio. Eu fico até o dia inteiro. Agora, quando eu chego em casa, sai leão que eu te mato. Aí eu como tudo.
P/1 – Dona Valdenia, e são só mulheres que lavam roupa no rio?
R – No rio? É.
P/1 – Porque será que, hoje em dia, não tem homens querendo fazer esse serviço ainda?
R – Pois ali tem um rapazinho ali que lava. Ele está ali com nós. Ele chama Elencar. Ele trabalha na lavanderia, mais as meninas. As meninas pega a roupa, que nem elas, agora que ele está aqui também, mas as meninas viajam e deixa ele lá na lavanderia, lavando roupa delas, alisando para entregar. E ele entrega tudo e as patroa gosta. Que ele lava limpinho, bem alisadinho, igual se fosse uma mulher mesmo, né? E eu falo para os netos assim: “Ó, em uma comparação, vocês saem daqui para São Paulo, Rio de Janeiro, seus dinheiros não dá para vocês pagar lavadeira, vocês mesmo lava. Vocês mesmo alisa. Aquele dinheiro que vocês tirou para pagar uma lavadeira, uma alisadeira não custa nada”. É porque como se diz, lavar roupa fora é mais caro, porque é o peso, né, é por peça. Nós pelo menos lava uma roupa, uma trouxa de roupa no valor, de dez, de 15 eu mesma nunca lavo. ___ que eu não quero não. E lá é peça, dois real, três reais, uma meia pagada, tudo é descontado, né? Lá em casa, não. Se quiser lavar tudo embolado, é meia, é, tudo que vim nós lava tudo. E nesses lugar fora não, é pagado pelas peças. É o que eu falo com eles lá em casa. E eles vai e eles lava. Tem um Marco lá, brabo para caramba, mas é bom lavador. A roupa dele, que ele lava, você sente que ela está limpa. Já o Juninho já é mais seboso. Ele nem gosta de sentar na bacia mais eu. Que eu tenho uma bacia de alumínio lá grande, eu coloco Qboa, sabão em pó, jogo a roupa toda dentro e vou ensaboando. “Ó, vai esfregando essa aqui!” Nem isso o Juninho gosta de sentar perto de mim. Ele quer lavar lá longe, na ponta do Olaredo. Mas por quê? Lá ele passa o sabão da maneira que ele quer, esfrega, enxágua logo e põe na corda. Ele é o primeiro que lava roupa, mas quando chega em casa você vê o sujo todinho. Agora o Marquinho não. Marco é bom lavador mesmo. O Marco está com dez anos. Mas o Marco tudo bem. Mas todos sabem lavar a roupa deles.
P/2 – Eles cantam também?
R – É. Quando eu estou falando lá no rio, ele ficam assim: “Hum, hum, hum”, eu não sei o que está cantando. Esfregando a roupa, aí eu pergunto: “O que é isso menino, vocês estão cantando aí? O que é menino, está mastigando aí?”. “Estou cantando, avó”. Eu falo: “Vocês não estão cantando, vocês estão mastigando!”. Aí eu vejo que eles está cantando, então o outro ainda... Mariana ainda gosta de cantar muito a Dona Mariana, né? Mas os meninos fica assim: “Hum, hum...”, “Que isso que vocês está mastigando?” “Não, avó, estou cantando!”.
P/1 – E a benção das águas, o que é isso?
R – A benção das águas? Gente, isso veio do mundo inteiro. Rio de Janeiro... Eu tenho umas primas que mora lá, conta história no Natal, no ano novo, né, que fica aqueles povo, solta tanto barco de flor, canta, os macumbeiros dança na praia. Na televisão mostra, né, em Salvador, Jequié, aquelas baianonas dançando na praia com aqueles troço amarrado na cabeça. É isso que nós fazemos aqui. Agora mesmo que elas preparou ali uma bacia de flor para nós daqui a pouco jogar nas águas. Ali nós canta para Maritim, para dona Iemanjá ou dona Ioxum, que é a mesma, né, mas tudo muda o nome. Quer dizer que tem Valdenia aqui, tem Valdenia em outro lugar. É assim que é a nossa, nosso trabalho é esse, que ele faz. Porque eu cantei, que lá em Omenara tem um moço lá que ele bate tambor mesmo, e nós cai no meio. Mas eu saí, porque qualquer coisinha o povo é feiticeira, é feiticeira, eu não sei fazer feitiço. Mas eu fiquei com aqueles canto na cabeça. Uma época nós estava lá na casa dele, aí eu cantei, ele gostou. “Ô nega, vamos fazer um CD dessa música?”. “Vamos”. E nós fizemos. E hoje em dia, quando eu chego nos palcos, aliás, vem esses músicos de fora, eu vejo eles cantando, lelelê, batendo os instrumentos, né, eu falo: “Ó, não é só nós que canta música de macumba não. Todo mundo canta!”. Os meninos de Salvador mesmo quando veio tocar em Omenara, eles cantou, tem um tal de batuque lelê, né? E é bem as musiquinhas de macumba. Eu: “Ó, não é só eu só, não. Pois agora que eu vou cantar mais”.
P/1 – Qual o significado dessa benção? Para que ela serve?
R – Eu não sei. Diz o Carlos Farias que serve para muita coisa, né? Tipo descarregar, quer dizer, diz eles, né, que naquela hora que está ali cantando o santo está ali. Agora eu não vejo não.
P/1 – Mas a senhora gosta?
R – Adoro! Eu vou falar a verdade, eu gosto é de tudo. Porque de tudo eu já brinquei. Contra-dança eu já brinquei. Cantar, as vezes que meus pais cantava, a gente ficava de longe escutando. Esse negócio de macumba nós ia direto na segunda, na quarta, na sexta. Quando não estava fazendo nada, não ia caçar festa, então vamos embora para macumba divertir. Os outros dançando, nós ali, sentado olhando. Mas os, eles falam é xula, né, tudo entrando na cabeça.
P/1 – E no coral são só vozes, tem instrumento também?
R – Tem.
P1- Quais instrumentos têm?
R – Tem sax. Tem violão. Tem guitarra. Tem o atalho de botija. Tem uma cabaça. Tem o chocalho. Tem tudo.
P/1 – E como que é para a senhora tocar em público?
R – Para cantar?
P/1 – É, cantar em público.
R – Ah, é uma alegria. Trenzinho vem lá daquela serra, hoje em dia está no mundo inteiro. Para mim, faz de conta assim, que eu estudei o ginásio, formei. Para mim esse coral, para mim é escola. E cantar no palco, no meio dos colegas para mim é uma formatura. (risos)
P/1 – E como foi gravar CD também?
R – A primeira vez nós foi __ com Bernardo, um rapaz que mora no Rio de Janeiro. Aí a turma: “Você topa fazer?”. Eu falei: “Topo! Nós vai lá, se não der nada nós volta para trás. Não estou nem aí”. E lá com o povo do Rubinho tudo no meio, eu falei: “Ah, também vou”. Aí ele pegou lá, gravar aquelas fitinhas, para lá ele colher o que ele queria, fazer o trabalho. Foi no dia, chegou a notícia, foi até a dona Nice Amorim, que nessa época, tudo isso ajudava a gente, né? “Como é meninas, vamos?” “Vamos sim”. Ela arranjou carro e nós fomos fazer essa gravação. Primeiro foi o povo do Rubinho, né, entrou primeiro. Falei: “É, quando eles vim de lá, eu vejo a resposta, como é que é o troço aí dentro!”. Aí já foi animando mais o coração, né? Aí quando ela saiu chegou nossa vez. Nós foi. Fica aqui. Fica aqui e bebebê, vamos ver as meninas, aí nós, também foi só três mulherzinhas, né, mas foi dos outros que a gente trabalhou para completar. Aí quando foi a época, Carlos José vem: “vocês topam fazer uma gravação?”. “Ah, nós agora acabou o medo”. Nós tudo ficou alegre. Ah, mas agora acabou o medo, ô, porque nós vai ter medo de fazer gravação, por quê? Pois é. Tal dia é para nós gravar um CD que é o Batuquinho Brasileiro, aquele verdinho. Aí cantando, aí ensaiando, aí depois vem cá fazer gravação, quer dizer, nas fitas, né, que eles fazem nas fitas para depois... Aí nós soltou o pau. Chegou no dia, Carlos mandou o carrão lá na porta da lavanderia: “Ô beleza, que trelido!”, levar essas marmota, encheu o carro, fomos batendo até Belo Horizonte. Nós nem saiu na casa dele não, nós foi para o estúdio. Eu falo, falo: “Ó meu Deus, eu vou ter medo de quê?”. Eu só tenho medo do carro tombar e eu cair lá e morrer, mas é uma coisa que eu podia achar mais difícil, né, entrar no estúdio. E não é isso que faz medo a ninguém, a gente depende de botar as coisas no lugar. A gente não deve ter medo de trabalhar. Não ter medo de lutar, para nada. A gente tem que colocar na cabeça e no coração, pensamento em Deus, depois os colegas, daí o trabalho da gente, que a gente vai em frente.
P/1 – Valdenia, eu queria, se fosse possível, a senhora cantar um pouquinho para a gente.
R – Que música?
P/1 – A que a senhora quiser.
R – Se eu não tivesse que alisar roupa com raiva eu tinha queimado ela. Eu não. Mas eu liguei o ferro. Ah, pois o trem grudou. Se eu tivesse deixado o ferro com pouca quentura, regulado o ferro, eu não tinha queimado a saia. Então tudo só vale com amor e carinho e amizade.
P/1 – A senhora cantou uma música ontem no show. A primeira música, você podia cantar ela para a gente?
R – A Maria no meio da rua. Não, eu canto outra.
P/1 – Então, tá!
R – A musiquinha que minha mãe cantava para meu irmão dormir, né? Fica mais fácil, mais baixinha, né?
P/1 – Pode cantar?
R – Deixa eu ver a garganta se presta ainda. “Eu vendi minha agulhinha, emprestei o meu dedal”. Sabe o que é dedal, né? “Vendi minha agulhinha, emprestei o meu dedal, só falta eu vender o meu ferrinho de engomar”. Já falei, né, o que é ferro de engomar. “Adeus goma, adeus goma, adeus ferro de engomar”. Por que adeus ferro? Porque trabalhou muito, vendeu. O dedal ela emprestou. A agulha também, tinha alguém, a minha colega precisava. Eu tenho uma agulha aqui, eu tenho um dedal aqui e o ferro trabalhou muito, não precisou mais dele, “Vamos vender ele? Vamos”. Por isso que eu não vendo nada velho, eu guardo tudo.
P/1 – E essas músicas que a senhora canta, hoje, qual a importância para as meninas mais novas, os meninos mais novos, conhecerem isso?
R – Está muito alegre, nós estamos querendo colocar elas no nosso lugar. Nós fala para elas, nós fala com Carlos: “Ó, Carlos, nós já está chegando a idade que nós não vai aguentar mais nem entrar na van, nós estamos achando melhor você colocar esse mais novos do que nós”. Ele disse assim: “Será que eles topam?”. “Topa”. “Ah, então vocês reúnam umas pessoas suas assim que gosta do trabalho para nós colocar no lugar”. Então nós estamos vendo se vai dar certo elas querer. E também se elas não querer pode entrar outro qualquer um, que quer trabalhar e quer viver, conhecer o mundo, não é? Porque para conhecer o mundo da maldade, da traição, da perseguição, não pode. Mas para felicidade é bom conhecer o mundo. Que eu falo a minha verdade, se eu mais nova tivesse aquele pensamento, aquela ideia, há muitos anos que eu estava nesse trabalho, mas eu vim recolher o meu trabalho foi dessa idade que eu já estou para cá. E a mesma coisa eu falo com meu povo, com meus netos. Eu mesmo queria comprar um caixinha ali para levar para os meus netos bater, daquelas miudinhas, cem reais, mas eu não estava com dinheiro e tomara que, se eu voltar lá que eu comprar uma para levar para os meus netos, para os meus netos também aprender a bater.
P/1 – A senhora viaja um monte para cantar, mas o que significa para a senhora o __ que tinha na sua casa?
R – Eu acho bom. Que a minha terra, bendizer onde eu nasci, aliás, eu não nasci lá, como eu falei para vocês, que eu nasci em uma fazenda chamada Quati, mas foi mais feliz descendo, fazenda de Manezinho da Sapata, fazenda do Velho Petrolino, fazendeiro que eu não sei se vocês conheceu, acho que até neto e filho para lá. Descendo para a fazenda de Poti, depois da fazenda de Poti que eu vim para Almenara.
P/1 – E a senhora conhece bastante o rio Jequitinhonha?
R – Ah, o rio Jequitinhonha só não conheço a cabeceira mesmo, porque quando eu fui em Diamantina, o Carlos mostrou, e disse que era muito longe. Porque disse que ele nasce naquele meio, né, de Diamantina, a terra do ouro, a terra da prata, diacho, terra rica. Aí eu faço que nem a contra-dança, “Adeus terra rica, terra de pobre viver”, isso era meu pai que cantava, né, “Adeus terra rica, terra de pobre viver, lá em baixo, na baixinha para meu canto enverdecer. Esta morena que eu vou me embora com você”. E nós gostava.
P/1 – Tem algum outro nome para o rio Jequitinhonha?
R – Hã?
P/1 – Tem algum outro nome para o rio Jequitinhonha?
R – Não. É só esse nome mesmo. Você está falando nome?
P/1 – É. Isso.
R – Não. É só o nome mesmo, Jequitinhonha. Agora a Almenara era Virgília. De uns anos aí atrás é que mudou para Almenara. Lá tinha farmácia, o nome Virgília, o poço ali onde é abaixo da ponte, era o poço da vigilância, que todo mundo conheceu. Era barca, era (escale?), era canoa, era isso que era ___ dali onde é a ponte hoje. Aquela ponte está com 40 e poucos anos, que ela foi feita. A idade que tem minha filha mais velha, tem que fizeram aquela ponte. A maioria que trabalhou naquela ponte, foi até parente meu. O chefe dali, do comandante, chamava Zé de Souza. Eu não sei se ele já morreu.
P/1 – E assim, Almenara é muito próximo da Bahia, né? Qual a sua relação com a Bahia, a senhora foi para lá? Gosta?
R – De Conquista, eu ia direto, porque eu tenho um irmão que mora lá. Mas lá não tem água. Ela só tem água quando chove, porque tem aqueles poços, né, dos fazendeiros. Mas a Bahia, para o lado de Porto Seguro eu gostei porque tem muita água. Tem o mar, tem o braço do mar, né, então eu gostei.
P/1 – Quais são as, a vegetação da ilha de Almenara, aquela região? Qual é o tipo de árvore, de frutas?
R – Tem demais, naquelas fazendas, é isso aí que você está fazendo a pergunta?
P/1 – É.
R – Laranja, mexerica, que nós chamava lá é tanja. É isso que você está fazendo a pergunta? Mangue, cafezal, canavial. É?
P/2 – Qualquer árvore.
R – Tem demais para aquelas fazendas. Agora ainda no nosso terreno nós não plantamos, “mode” a água, né? Porque se a água fosse farturosa para a gente, cada um tinha um pé dessas coisas plantada no terreno. No tempo que não pagava água, meu terreno parecia uma chácara. Mas depois que eu peguei pagar a água, então eu diminui minhas plantas. Mas no meu terreno eu tinha.
P/1 – E animais? Tem animais lá também?
R – Eu?
P/1 – É.
R – Sem meus cocós, não deixo de criar não. Minha cachorrinha para latir de noite, os malandros que ela mata, ela amarrada. Porco eu não posso criar, porque aí já é o povo da prefeitura que perturba, né? Eu não posso criar, mas tem espaço de eu ter chiqueiro, para mim ter um porquinho lá dentro. Mas não posso, por “mode” disso. Agora galinha, cachorro, acho que eu tenho lá cinco galinhas botando, estou pensando aqui que eu deixei uma presa. Se os meninos não soltou, ela morreu. Dormi essa noite pensando nessa galinha, essas cria. E ela está botando, esses dias ela tinha tirado os pintinhos, aí eu falei: “Eu vou deixar essa galinha que é para mim comer ela gorda”. E aí deixei a galinha lá presa. Se eles não soltaram ela morreu, porque desde ontem...
P/1 – Essas festas que tinha de santos, tem bastante ainda?
R – Ainda tem, mas o povo está esmurecendo, né? Porque uns gosta e outros fala demais. Eu mesma, eu adorava macumba. Por que eu saí? Porque: “Ah, Fulana é feiticeira, está na macumba!”. E não é, a gente vai para divertir, conhecer. Ninguém vai para fazer ruim para os outros. Mas falando a verdade, eu não gosto que ninguém reza de mim, não. Só confio em Deus mesmo.
P/1 – Está muito ligada à igreja, as festas ainda?
R – No domingo na igreja, quarta e sexta na macumba. Aí coração. Dois coração, né? É, aí não dá, né? Por isso que eu falo: “Aí não dá não. Tem que ser um coração só”. Mas agora falando de Deus, eu não esqueço Ave Maria, meu pai. Se não fosse o senhor onde é que eu estava? De que é que eu estava vivendo?
P/2 – E nas festas de santo não se misturam, assim, as religiões?
R – Não. Agora não estão se misturando mais não. Quem mistura é meus netos, né? Não fui mais não. Outra coisa que a gente vai em uma reza na cidade. Não tem mais aquelas festas que tinha das roças não, gente. Compra um quilinho de carne, dois, três, faz uma churrascada de lá, assa. Comeu, acabou. Bebeu aquela cachacinha, pronto. E na roça não, é fartura mesmo. Para tudo.
P/1 – A senhora que percorreu muito já o vale, tem uma diferença entre a cultura, as pessoas, no alto, no médio, no baixo do vale? Tem uma diferença, tem várias regiões no vale, né, tem alguma diferença entre uma pessoa que mora lá perto da Bahia, ou mora ali perto de Belo Horizonte...
R – E daí?
P/1 – Tem diferença?
R – Eu acho que não tem diferença não, né? Porque todos que eu vejo são todos igual com a gente. Aquela presença, aqueles amor, aqueles sobre... né? Tem hora que eu chego, que eu penso assim, que eu pergunto: “Será que aqui é minha terra, nessa felicidade que eu estou?”. Eu acho que nunca fiz uma viagem para mim dizer assim: “Ah, tal lugar é ruim”. Para mim todos são bons. Todos me tratam bem. Trata nós todos, que não sou eu só que estou no meio, é todo mundo, né? Eu não acho nada diferente. Eu fui para Teixeira de Freitas, em uma van, estava bem assim, eu fui, quando o sol esquentou, eu falei: “Sai dessa camarada! Tomar sol na praia nada, eu vou é me embora!”. Mas gostei de lá, gostei do povo. Ninguém veio olhar para gente assim, porque eu tenho uma raiva disso, eu para mim ter um pouquinho de prosa eu falo: “Xô! Sai de mim que eu também sou gente!”.
P/1 – Eu queria que a senhora falasse um pouco dos festivais acontecendo. Qual a sua participação?
R – Qual é o festival?
P/1 – O festival daqui. Qual a sua participação, você vem cantar sempre, faz muito tempo já? Faz o que? Seis anos, sete anos, que a senhora vem cantar no FestiVale?
R – Aqui?
P/1 – É.
R – Eu nunca vim cantar aqui não. É a primeira vez.
P/1 – Mas esse festival aqui tem sempre?
R – Não, nunca vi não.
P/1 – E era só __ o ano passado?
R – Ah, nesse aí, eu acho que fui já duas vezes. Nesses cantinhos, que de vez em quando, nós vai, né?
P/1 – E como que é a recepção do público?
R – Falam que está bom, né? Diz que está uma beleza. Agora eu que estou lá em riba.
P/1 – Para a senhora está bom também?
R – Está bom.
P/1 – E a senhora pretende continuar cantando?
R – Ainda mais. Aí a garganta vai limpando, ainda mais ainda, vai melhorando muito mais.
P/1 – Vai limpando durante...
R – Porque aquele espaço que a gente tem para cantar, quer dizer que a garganta da gente, como se diz? Limpa mais. Eu acho. Esse dia, lá em casa, eu estava com a voz tão ruim que eu mesma senti, falei para o meu menino, falei: “É, estou imaginando viajar, que eu estou sentindo falta da minha voz, força na minha garganta”. Aí ele ainda falou assim: “Ave Maria, mãe, que é?”. Eu falei: “eu não sei Zé”. Porque ele chama José, eu trato ele de Zezinho, que ele foi o primeiro filho. Eu falei: “Ô, daí eu não sei meu filho, eu estou sentindo, estou até com medo de ir nessa viagem, eu estou achando que eu não vou cantar nada”. Então eu acho que assim, a gente às vezes canta, às vezes a gente fala, a garganta vai se, como é, esticando, né? Eu, vou comentar outro causo, outra coisa a gente tem criança: “Cala a boca menino”, você sabe que isso não é bom? Lá em casa tem uma vizinha que tem um filho mudo. A minha cunhada tem um neto que ficou mudo. Ô, lasquera. Me leva pião! A menina, né, disse que o bichinho ia falar, que a criança quando ele está novinho, gralha ele, se ele já está andando, ele vê você conversando, ele aprende a perguntar uma coisa. Você ensina, porque a gente também tem que ensinar. Disse que ela falava: “Cala a boca menina, isso é barulho!”. Quando foi tirar residência, que o bichinho pegou a crescer, já ficou naquela tristeza de não conversar. Quando levou no médico, o médico ensinou para ela, isso não foi lá em Almenara não, foi em Conquista. O médico falou: “Ó, esse menino está, mudou a voz, não sai. O culpado foi você!”. A hora que a criança começa a engatinhar, começa a gralhar, você tem que conversar com ele, para ele ficar alegre, aprender as vozes. Lá em casa __ rapaz, aí em Almenara, viu? Ficou mudo. A avó dele chama Lora. Ela mesma queixou que foi a filha também, quando o bichinho... Aí o bichinho foi naquilo, ó, tristeza, tristeza, acabou a voz. Tudo na vida a gente tem que ter alegria, fornecimento, ajudar a viver. Maria, minha irmã, tem um dizer, “que a criança, ela na barriga da mãe, ele entende as pessoas”. Pois eu já vi essas duas crianças. Ficou, não nasceu mudo, um é neto da minha cunhada e o outro é vizinho, que ele mora em uma rua eu moro na outra. Ele hoje é um homem. Valente, acho que com raiva, né, já está grandão, não fala.
P/1 – Então para ser uma boa cantora tem que aprender desde cedo?
R – Desde cedo. E o que viu hoje, colocou na memória para amanhã. Tem dia que eu deito lá em casa, vem assim, outras músicas, sem ser essas que está gravado, eu falo: “É, essa eu vou guardar para levar para Carlos fazer”. Quando é no outro dia eu levanto, doida no fogão, fazendo café, botando coisa no fogo, esqueço.
P/1 – Queria perguntar para a senhora, está acabando já, a senhora dá várias entrevistas, né? Mas qual a importância de registrar, para a senhora qual a importância de registrar a memória das pessoas? Assim como a gente fez hoje aqui, conversar um pouco da história, qual a importância para a senhora disso?
R – Eu acho feliz. Eu gosto. Porque eu tenho recebido diversas, jornal com essas palavras. Já chegou revista lá em casa comigo daqui para cima. Eu falei: “Ah, meu Deus, o que essa revista veio fazer aqui?”. Até que aquela Juraci xingou: “Mas essa Valdenia é exibida!”. Eu falei: “Não é me exibir, não!”. Porque desse jeito eu estou no mundo inteiro. Está chegando até uma revistinha aqui e essa revista sumiu, acho que elas mesmo apanhou. Carlos Farias entrega a nós todos os jornais, de todos os lugar que nós vai, ele entrega. Lá em casa está assim de jornal, ó. E os meninos fala: “Guarda mãe, que um dia nós vai precisar desses papel”. E eu pego e guardo tudo, eu não jogo fora não!
P/1 – E o que a senhora achou de dar essa entrevista para gente?
R – Gostei. Não estou tomando sol. Está fresquinho, né? Agora se o sol estivesse quente você ia ver como eu estar com uma cara, você já viu onça acuada de cachorro? Estava eu aqui com uma cara tão fechada, “mode” o sol, vixe Nossa Senhora. Eu não aguento. Eu lavo roupa, mas amarro um pano aqui. É as vistas. Minha vistas dói. Gostei.
P/1 – Então, muito obrigado!
R – De nada. Obrigada vocês também.
P/2 – Obrigada!
R – De nada.
P/1 – Adoramos.
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