Entrevista de Rogério Dyaz
Entrevistado por Wallison Cláudio da Silva
Maceió, Alagoas, dia 19 de agosto de 2025
Projeto Memórias que não afundam
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00:33 P/1 - Para começar, eu gostaria que você se apresentasse dizendo o seu nome, local e data de nascimento?
R - Meu nome é Rogério Dyaz, sou nascido em Maceió e morador do Bom Parto. Sou de 1979.
00:55 P/1 - Qual o nome dos seus pais?
R - José Salustiano Dias e Maria Teresa de Jesus Dias.
P/1 - Com o que seus pais trabalhavam?
R - Meu pai trabalhava de comerciante, no mercado da produção, e minha mãe era... Ambos eram do campo, mas vieram pra cá, e aqui ele virou comerciante e ela trabalhava em casa, mas também costurava e plantava também nesse terreno aqui onde a gente tá agora, que é o Quintal Cultural.
01:33 P/1 - Você tem irmão?
R - Eu tenho uma irmã viva, e alguns irmãos e irmãs falecidos.
P/1 - Quantos anos eles têm?
R - Olha, minha irmã hoje tem perto de 70, não sei exatamente. Meus irmãos, minha outra irmã… Eu tenho outra irmã também, duas irmãs na verdade, vivas. Eu não sei a idade delas não, exato não.
02:03 P/1 - Qual era as suas relações com eles?
R - Com as minhas irmãs a relação permanece, com a Luciene e com a Quitéria. Mas elas são muito boas.
02:24 P/1 - Sabe de alguma origem da sua família?
R - Então, minha família é… A maioria da região de União dos Palmares, Capela, Mundaú, Branquinha, essa região.
2:32 P/1 - Você tem alguma lembrança de infância dos seus irmãos? Coisa que você gostava muito de fazer?
R - Olha, aqui… Lembranças muitas, né? Mas brincar aqui no mangue, pegar a tetéia e pegar os peixes aí. Brincar, jogar bola dentro da lama, chegar preto em casa dos pés à cabeça. Minha mãe reclamando. Eu brincava mais com os primos do que com os irmãos, porque meus irmãos eram muito mais velhos do que eu, porque eu sou filho adotivo. Então, meus irmãos eram tipo... Meu irmão mais novo morreu com 70 anos. Mais novo, não, o mais velho. O mais novo, perto também. Tudo assim, com a idade avançada.
03:23 P/1 - Rogério, quais as brincadeiras que você mais amava?
R - Rapaz, eu sempre gostei de jogar bola no campinho aqui. Tipo, as brincadeiras garrafão, cuscuz. Uma chimbrazinha, mas eu era enrolado na chimbra, mas eu jogava. Quando a gente não é muito bom na habilidade é bom na conversa, né? Mas também tinha pião, elástico, avião. Ah, sim, tinha todo pulso. Todo pulso era bom demais (risos). Muita brincadeira, cara. Muita brincadeira. A gente inventava também de se esconder, de lobisomem, carnaval. Carnaval era uma brincadeira, meter ovada aí, nos outros aí. Enfim.
04:18 P/1 - Você queria ter alguma profissão quando você era pequeno, o seu sonho?
R - Eu acho que eu tive essa coisa de... Eu sou brasileiro, brasileiro raiz, queria ser jogador de futebol, depois eu queria cantar, ser músico. Jogador de futebol. Mas também pensei… Hoje eu tenho formação em Direito, mas pensei em várias coisas, sempre fui muito indeciso. Até hoje eu ainda estou buscando ainda o que eu quero de mim, quanto profissão. Enquanto eu não decido, eu sou artista mesmo.
04:58 P/1 - Você lembra onde você estudou?
R - Sim, eu estudei no SESI (Serviço Social da Indústria) Cambona, aqui do lado. Bem pertinho aqui. Graças a um padre que me botou pra estudar lá, porque lá na época, no SESI, não era pago, era para funcionários da indústria. Meu pai inocentemente me levou lá pra me matricular, meu pai é analfabeto, minha mãe também. Aí, ele foi me matricular lá. Chegou lá na hora. “Moço, aqui não é assim, não é isso.” Meu pai, “eu tenho dinheiro, eu pago, não sei o quê.” Meu pai me ajeitou, botou um chapeuzinho de vaqueiro em mim, aquela camisa de botão, aquela alpercata, calçãozinho daquele camelozinho ali. E aí, é uma história bem interessante, porque eu lembro que ele ficou insistindo ali. E eu tinha acho que uns três anos na época. E aí, eu comecei a chorar na hora, porque eu percebi que não tinha jeito. E meu pai, “eu pago, rapaz! Eu tenho dinheiro pra pagar, não sei o quê.” E hoje eu entendo que meu pai brigou ali, ele já entendeu também, mas ali foi meio questão de salvar a minha honra. Foi quando apareceu um padre, que eu quero até saber quem é esse padre ainda, aí botou a mão na minha cabeça e disse assim: “deixa esse vaqueirinho entrar”. Cara, isso aí foi o meu início da escola, porque o caminho natural era ir para uma escola pública, e acabei no SESI porque meu pai foi me matricular lá, sem saber que lá não era uma escola que você pagava para estudar. Tinha uma regra que era só funcionários da indústria, os filhos deles, que estudavam lá.
06:41 P/1 - Mas nesse decorrer do período da sua escola, tem algum amigo que marcou sua infância, professor?
R - Sim, professora Elba, que morou aqui pertinho, inclusive, figuraça assim, sabe? Lembro muito bem dela. Chegou a ficar amiga minha mesmo assim, quis até me adotar. E amigos, muitos amigos, muitos amigos, inclusive muitos que não estão aqui mais. Mas enfim...
07:16 P/1 - Voltando um pouquinho ao tempo, você lembra um pouco da vivência com a sua mãe e seu pai? Tipo, aquele café que era de lei?
R - Claro, isso aí, as memórias melhores que eu tenho estão na comida da minha mãe, aquele molho de pimenta, aquele feijão de corda que você pegava aqui na farinha, com a mão, comia com a mão, aquele molho. Minha mãe fazia feijão de corda, mas com molho ela fazia a pimenta-de-cheiro, cebola, coentro, jogava aquele salzinho e tal, e fazia aquele caldinho, pegava o feijão, amassava com a mão assim, molhava ali, rapaz, aquilo ali… Inclusive, estou até marcando aqui com o meu cunhado aqui, porque também tem o feijão, que é aquele feijão com bucho, com tripa, fato, charque, quiabo e maxixe. Até conversando com o meu cunhado aqui, que a gente vai fazer um dia aqui, fazer essas comidas, que são as comidas da memória. As comidas que nos levam como portais, faz a gente, túnel do tempo ali.
08:26 P/1 - Seus pais contaram as relações como se conheceram?
R - Eu não sei, mas sei que eles são de Capela, pelo registro deles lá, sei que eles se encontraram… Minha mãe era uma índia, negra, de cabelo liso, aquela índia negra, morena na verdade, da sua cor assim mais ou menos. Meu pai branco, de olho azul. Meus pais não são meus pais biológicos. Eu não conheci meus pais biológicos. Mas assim, não sei como eles se encontraram, como foi o momento deles, não. Eu realmente nunca conversei com eles sobre isso.
09:15 P/1 - Tem alguma coisa marcante sobre seus pais?
R - Ah, sim, marcante, meus pais são dois analfabetos criados no cabo da enxada, que se juntam para fazer a vida, saem do interior, provavelmente ali da… Eu sei que é de Mundaú, minha mãe é mais de Mundaú, entre Mundaú e União, aquele meio ali, dos Palmares de Mundaú. Meu pai, eu acho que era mais da região de Branquinha, por aí… Eu lembro que meu pai me levou num rio lá em Branquinha, na beira do rio, criança. E faz todo sentido aquele rio hoje com tudo que é das nossas vidas aqui, nesse lugar, inclusive, porque é o mesmo canal de água que nos leva aqui, que gera a lagoa aqui, sabe? Eu digo que nós somos criados pelo signo das águas.
10:14 P/1 - Rogério, quando você começou a trabalhar, qual foi o seu primeiro emprego?
R - Olha, eu trabalhei fora, que eu queria ajudar o meu pai no mercado. Mas minha primeira profissão mesmo assim, foi palhaço.
P/1 - Sua rotina era essa?
R - Que eu trabalhei mesmo assim, que eu assumi mesmo uma profissão, foi palhaço. Mas, assim, eu fazia de tudo, né, velho? Tipo, vendia negócios no mercado, vendia... Tempo de finado, vendia vela. “Olha a vela!” Vendia coco. Mas trabalhar para o meu pai era meio complicado para receber. Meu pai era muito engraçado. “Pai, da um cafézinho aí!” “Já vendeu?” “Quando você vender, você tira o seu e compra o seu café.” Já estava com mais de 90. Mas a minha profissão mesmo, que eu fui assim mesmo, foi na arte mesmo, artista, o palhaço, . Cabra bom.
11:16 P/1 - Teve alguma dificuldade no mercado de trabalho?
R - Dificuldade de entrar num negócio, porque assim, eu aprendi a ser palhaço indo para o circo. Que aqui tinha muito circo, aquele circo original. Que era aqui do lado. Tinha um terreno aqui, onde é esse terreno baldio que está aqui agora, ali era o lugar onde o Circo vinha. E aí, eu aproveitava as matinesas ali e tal. Dificuldade mais assim de ser meio que um personagem que o circo foi embora e ficou sem a lona. O palhaço do circo sem lona, sabe? Mas, na verdade, me dei bem para caramba com isso. Ganhei grana, mesmo. Me sustentei muito tempo, boa parte da minha vida fui sustentado por esse palhaço.
12:00 P/1 - Qual foi o maior aprendizado no seu trabalho?
R - A loucura. Saber lidar com a loucura, que o palhaço, ele é isso. Ele não tem balanço. Ele é totalmente imprevisível. Essa coisa da imprevisibilidade, lidar com a imprevisibilidade, lidar com o time… Esse aprendizado de resposta na ponta da língua, soluções impossíveis.
12:38 p/1 - Seus pais esperavam que você trabalhasse com o quê?
R - Meu pai queria que eu estudasse mesmo. Eles tinham uma coisa, quando eu falei do negócio da escola aí, anteriormente… Eu até agradeço ao Luiz Gonzaga, porque meu pai tinha uma… Embora eu ache que o Nordeste inteiro teve uma coisa que foi fundamental, “Porque eu não quero filho meu analfabeto, quero no caminho certo da cartilha do ABC. Pelo menos nunca tive essa sorte, mas eu luto até a morte, modo eles aprenderem.” Isso faz todo sentido, né? Porque é uma moral. Isso é uma moral. E meus pais, apesar de ser criado no cabo da enxada, ambos analfabetos, família inteira, praticamente, de analfabetos. Eles tinham essa coisa do estudo. Então, foi uma constrição, porque eu tive essa sorte, porque, no geral, a maioria dos pais aqui. “Que negócio de estudar, vai trabalhar e tal.” Então, isso para mim foi... Meu pai queria que eu fosse alguma coisa... Cabra da caneta, entendeu? Eu lembro que a primeira vez que eu fui viajar de avião, primeiro ano do governo Lula. Eu todo arrumado, de camisa de botão, de calça. Eu ia sair na porta. Meu pai: “espera aí”. Voltei, fui lá para dentro, aí eu sem saber o que meu pai queria, ele voltou, chegou com uma caneta bem bonita, botou no meu bolso e fez. “Agora está certo.” (risos) Ele queria alguma coisa que representasse a questão da caneta, que representava o conhecimento, alguma coisa na área de conhecimento.
14:12 P/1 - Você tem planos de projetos profissionais, futuramente? Quais são esses?
R - O meu foco hoje é a música, que foi a coisa que sempre me acompanhou, desde criança mesmo, já cantava, já compunha desde cedo. Desde criança eu tenho músicas, acho que desde seis, sete anos que eu tenho composições. E cantar também, sempre gostei de palco. Hoje eu trabalho com Poesia na Trincheira, um trabalho que eu quero extrair o máximo em termos de excelência artística, sabe? Inclusive, porque é uma questão artística mesmo, pensando, egoisticamente falando, sabe? É uma questão artística mesmo, no sentido pessoal, me interessa entregar isso. E também pensando altruisticamente, porque quando a gente se entrega a produzir algo com toda força, que a gente quer entregar isso para a humanidade, para todos, compartilhar isso. A meta mesmo é entregar uma obra de arte da vida. Isso é o foco. E ainda tem a questão de que a nossa banda, ela fala daqui. Ela é a voz dessas comunidades da Beira da Lagoa. Nossa banda carrega a nossa geografia, que a gente fala. Nós levamos com a gente a nossa geografia. Então, de certo modo, é uma realização pessoal, mas é muito mais uma realização coletiva, no sentido de que é… Hoje faz mais sentido ainda, com esse espaço físico aqui desaparecendo, faz mais sentido ainda esse trabalho.
16:02 P/1 - Rogério, falando um pouco da sua banda, você pode falar para a gente como foi que começou esse projeto lindo?
R - Então, é um processo, são várias bandas dentro de uma banda. Porque foram várias… Porque não é só banda, tem várias histórias. Cada músico, cada membro da banda tem uma história. Então, são várias bandas com outras bandas. O baterista é daqui da Rua do Campo, por exemplo. O baterista da banda e da Rua do Campo. Só vai ficar praticamente agora a casa dele para cá. Entendeu? Ele vai sair, tipo… O nosso baixista é o Júnior Core, que é do Pinheiro, que sofreu também e está no Museu da Pessoa aí. O cara do violão é do Fernão Velho, que é o Gustavo Rolo. O Fagner do Brau, é daqui da Ponta Grossa, que também é uma região lagunar. E o Marvin Silva também morou no Quintal, chegou a morar aqui no Quintal Cultural. Então, a banda tem uma conexão direta com esse lugar. Eu diria que parece que a gente se separou de propósito, para montar a banda (risos). Mas não, foi a vida. Foi esse conjunto de atividades que formou a banda. A banda é um acúmulo de cultura de todo mundo envolvido, sabe? E de histórias.
17:34 P/1 - O impacto que trouxe essa tragédia desse sócio-econômico para a sua vida.
R - Então, o impacto maior foi aqui para o Quintal Cultural. Eu lembro que a gente montou o estúdio, essas pinturas aqui, tudo mais. A gente estava começando aqui a ter uma busca de uma auto-sustentabilidade. A gente estava com uma agenda cheia aqui de gente para gravar, de show para fazer. Fizemos a cozinha e tudo mais. Quando inauguramos o espaço, veio aquele negócio da Mina 18. Meu irmão, Marvin lembra muito bem disso. A gente com uma agenda da porra aqui pra fazer… de gente pra gravar, de show. A ideia da gente foi uma busca, demoramos muito pra chegar na condição de ter um espaço organizado, com uma cozinha, com o estúdio, com a sala, quando foi começar o negócio… Investimento também de muito dinheiro nisso. E aí, de repente, cara, foi o pior final de ano pra mim, porque cheguei no final de ano totalmente endividado. E foi tão marcante que eu não quis nada… Esse programa aqui foi uma insistência da Renata Ferreira, que queria que eu falasse, não sei o que. O pessoal vinha me chamar direto aqui. Eu ficava escondido ali, de cima ali (risos), esperando só o pessoal ir embora. Deixava outras pessoas atenderem eles aqui. Até que um dia, finalmente, acabei indo lá para uma atividade lá no Arte Pajuçara, com muita insistência. “Vai lá, vai lá participar, rapaz, você é muito importante participar, não sei o quê.” Mas, velho, eu fiquei tão arredio, que eu não queria mais saber de nada sobre esse assunto, ligado a Braskem. Ligado a essa criminosa empresa que está aqui debaixo da minha terra, roubando o meu… Me roubando aqui embaixo, que aqui é meu. Aqui não é da União, não, é uma empresa privada. Está roubando aqui, o meu ouro aqui, e não está me pagando royalties. Tenho muitos royalties aí para cobrar. Fora os royalties futuros, porque independente de indenização, o pessoal fala, não sei o que… Indenização? Indenização para mim é o mínimo.
Não existe reparação possível. Não se remonta mais um Coco de Roda em um lugar, não. Vai ser outro Coco de Roda. Esse Quintal aqui ele jamais existirá. Ele só existe aqui, não tem como ele existir em outro lugar. Vai ser outra história em outro lugar, vai ser outro Quintal Cultural. Quando isso aqui desaparecer, desapareceu mesmo, não tem… A reparação que a gente fala, é mais uma questão de honra. Então, assim, receber o que é meu de direito, sabe?
Mas o que eu quero é que ela seja condenada criminalmente. Eu quero ver a cara do dono da Braskem no plantão de polícia. Quem é o cara? Povo sem cara. Quem são esses ladrões sem cara? Quer dizer que o cabra rouba qualquer coisa aqui, está sendo exposto. Aliás, até acusado já é exposto. E aí, de repente, o pessoal passa, “ah, o pessoal quer ganhar suas casas, seus direitos.” Eu vejo liderança falando isso. Parece que resolve a coisa. Tá bom, deu a casa, pagou o dinheiro. Parece que resolveu tudo. E esse terreno, se esse terreno pertencer à Braskem, depois de tudo isso, é o criminoso ser beneficiado pelo próprio crime. Que tem um princípio no direito, que é o seguinte, o criminoso não pode se beneficiar da sua própria torpeza. Que é um caso clássico aí que aconteceu nos Estados Unidos, de um cara que matou o pai para ficar com a herança. E não tinha lei nenhuma que dizia que ele não podia ficar com a herança. Então, ele foi condenado por um princípio que foi, o criminoso não pode se beneficiar do crime. A Braskem ficar dona disso aqui, pra mim é desmoralização para todas as lideranças políticas desse Estado, vergonha geral, para prefeito, para governador, para parlamentares, para empresários. Eu não vejo nenhuma possibilidade da Braskem ficar com isso aí, sem a gente organizar uma ocupação, meter as caras, montar barracos lá de novo e ocupar tudo de novo, se for para ficar para Braskem. Tem que ser patrimônio de Maceió, tem de ser patrimônio público da cidade de Maceió, tem que servir à construção de uma nova cidade. Tem que ser o pulmão da cidade, tem que ser algo que melhore nossa água futuramente, cuidando desse ambiente, virando um ambiente de preservação ambiental, algo nesse sentido. Só não pode pertencer ao criminoso, porque o criminoso não pode matar os pais e ficar com a herança. Não pode chegar aqui, cometer um crime e ficar dono do terreno. Não pode. Isso é inconcebível.
22:35 P/1 - Rogério, o que impactou na sua vida cultural através dessa trajetória da Braskem?
R - Olha, uma das coisas assim, que mexeu muito comigo, foi o fato da agressão e eu ficar psicologicamente sem saber como reagir a isso, sem saber, por exemplo, se eu entro nisso… Eu não tenho como entrar nisso sem entrar de cabeça, o que significa que interfere no meu trabalho artístico, porque eu vou ter que me desviar do caminho que eu estou indo, porque não tenho como entrar numa briga dessa para o meu termo. Você tem que entrar para… Eu sabia disso, por isso que o tempo inteiro evitei entrar e participar de reunião e não sei o que. Porque eu sei que eu entrando nisso, bicho, a indignação é tão grande, e a minha figura também simbólica, enquanto artista, enquanto liderança política também da região, não me deixaria entrar lá e participar de uma coisa aqui, outra ali, uma reunião ou outra, sem eu me envolver total nisso e sem me desviar dos meus trabalhos, das minhas coisas.
Agora, territorialmente, aqui, tem outras coisas também. Sabe? Por exemplo, você não sabe se pode reformar a casa, você não sabe se pode vender, você não sabe se pode comprar. A sua vida fica… Eu tive que sair daqui, porque, quando eles fecharam ali, a pista também ficou fechada um tempo e tal. Eu tive que sair daqui, primeiro porque, aquela coisa, vou reformar uma casa que eu não sei se eu vou ficar na casa. Você está entendendo? Tipo assim, sua vida ficou indefinida, cara. Você está na mão de uma coisa que você não sabe, se a mina vai cair, se ela não vai cair. E a gente fica numa situação de não ter o mínimo de programação da sua vida. Então, isso impactou totalmente, porque você vai sair daqui, para melhor alugar um lugar, do que investir num ambiente que você não sabe se amanhã o cara chega e vai dizer: tu vai sair daqui. Também a questão artística... A gente fica… Como que eu posso dizer? Sem ânimo muitas vezes, tipo… Porque você fica naquela, porra, eu tenho que fazer alguma coisa, velho! E aí, você fica naquele conflito interno, de ter que ir, de ter que brigar. Sabe? Às vezes, até se culpando, porra, devia ter participado mais dessa luta aí. Enfim… E aqui o espaço, porque aqui é o nosso espaço de ensaio, aqui é o nosso espaço de gravação. Isso aqui é uma usina de conhecimento, de produção de cultura, esse espaço que a gente está aqui, o Quintal Cultural. Então, isso impactou na minha produção do dia a dia, na minha criação, nos meus ensaios, no passado de conhecimento que a gente tem aqui também. Então, tudo isso impactou. Essa situação está impactando, né?
26:09 P/1 - Rogério, você sonha em um bairro melhor, um futuro melhor para o seu fundo de Quintal?
R - Então, cara, aqui para o Quintal Cultural, para esse lugarzinho aqui… que eu andava de bicicleta aqui, que aqui era mangue. Eu penso no mundo, né, cara? Eu penso como o mundo pode melhorar. Sabe? Não tem como o mundo do meu Quintal melhorar se o mundo continuar sendo o que ele está. Enquanto a gente tem o algoritmo que ele é o próprio demônio, porque tudo que você faz de ruim, tudo que é ruim no ser humano, esse algoritmo da difusão, da visibilidade, da like, com uma linguagem colonizadora aí. E ao contrário, tudo que é feito de positivo, que pode elevar o ser humano, elevar a alma humana, elevar o ser humano ao caminho do bem, tudo isso é desmotivado por esse sistema, que hoje as pessoas vivem praticamente alinhadas com as redes sociais. Então, tipo, o meu bairro depende do meu mundo. E o mundo depende do meu bairro. E aquela coisa, pensar local, pensar universal e agir local. Agir local pensando universal.
27:41 P/1 - Rogério, qual a sua relação do meio ambiente da Lagoa Mundaú para você?
R - Eu digo que a gente aqui é uma simbiose com a Lagoa. Nós somos parte da Lagoa. Nós somos o povo da lagoa. Nós fomos criados sobre esse símbolo da Lagoa. Inclusive, o Instituto Quintal Cultural, ele tem no seu estatuto, a defesa da cultura do povo da Lagoa, estatutariamente. Desde o início que a gente começou, que a gente entende que é uma cultura da lagoa, do povo da Lagoa, que nós somos seres constituídos… Nós somos o que somos por essa geografia, por essa Lagoa. Desde a relação com ela, desde a comida que a gente come dela, desde o clima que é isso aqui, desde as atividades lúdicas, das brincadeiras de criança. Tudo está conectado com a Lagoa. Eu brincava com os camarõezinhos, esses pitus, amarrava uma linha e ficava brincando com ele. Com caranguejo, com siri, com muçum. Corria atrás de muçum (risos). Era bom demais, bicho. Corria atrás de muçum, era difícil de pegar demais, o bicho era liso. Galinha d'água, aquela tetéia de mosquiteiro, pegar tricongate, rabo de pavão, beta. Pô, os pássaros, né, bicho? Tipo, os bicos de lata, né? Aquilo lá chama bico de lata, que eu fui pesquisar depois. Criar peixe, criar rabo de pavão aqui, no vidrinho. Tricogaster também gostava bastante. Enfim, velho, memandim, sururu, sururu de capote. E que hoje ninguém toma mais caldo de sururu de capote. Esqueceram o caldo melhor que tem. Qualquer dia eu vou fazer um capote aqui, chamar vocês pra gente comer um capote. Sururu de capote mesmo, caldo. Eu sei que a minha irmã sabe fazer ainda, ainda tem a tecnologia que passou da minha mãe pra ela, pra gente comer esse sururu aí. Então, tipo, a gente é isso, somos, como diz o Edson Bezerra, somos os homens sururu. E o sururu, velho, tipo, tem um livro chamado Sururu Apimentado, do pai do Carlito Lima, general Mário Lima, que ele fala muito sobre tal. Sururu, você está ligado, se você tomar o caldo de sururu de capote, se você estiver fraco, você arreia, tem que sentar. O bicho é forte, e tem a ver com o desenvolvimento intelectual, inclusive. Foi o que garantiu a nossa... A gente ficar de pé aqui, o sururu foi fundamental. Então, a gente é... Aquela história do José de Castro, o caranguejo come o lixo do mangue e a gente come o caranguejo. Que é a natureza se renovando, né? Nada se perde, né? Tudo se transforma, né?
30:38 P/1 - Rogério, você achou que teve algum impacto na área lagunar, tanto do sururu, como do peixe, como do guaiamum? Teve algum impacto na renda das famílias que sobrevivem disso?
R - Olha, teve muito impacto. E as pessoas só pensam no impacto a partir do momento em que o desastre ficou conhecido. Mas teve muito impacto anterior, tem muita coisa aí esquisita que aconteceu com a lagoa nesse processo aí de salinização, de repente o sururu sumiu, de repente peixe morto. E também não só da Braskem, mas outras usinas também, com Tiborna sendo jogada aí dentro. A gente tem um espetáculo aqui chamado A Revolta do Mangue, que é um espetáculo que eu escrevi, que é os crustáceos se revoltando contra os seres humanos. E um dos monstros é o monstro da Tiborna, o mostro da Tiborna é a própria Braskem, que no fundo é uma empresa que chega aqui, não respeita a Lagoa, não respeita o meio ambiente, não respeita a vida das pessoas. E é totalmente predatória. E vem aqui para sugar o que tiver de riqueza e ir embora, meu amigo. Não tem essa de que vai faltar água, de que depois vai morrer um milhão aqui, porque vai faltar alimento, vai faltar água, porque vai ter um desastre, porque vai ter terremoto, porque vai ter maremoto, porque vai ter o que for. Não importa, eles querem o dinheiro que está aqui, usar o que tiver aqui, o meio ambiente. É como eles fazem no mundo inteiro. Por isso que eu falo, tipo, quero que o meu lugar mude, mas ele tem que estar em consonância com o mundo, a gente tem que fazer o nosso aqui, mas tem que entender que aqui é uma coisa universal.
32:19 P/1 - O que você acha que deveria ser melhor para a melhoria da Lagoa Mundaú?
R - Nesse momento, primeiro ouvir as pessoas que vivem da Lagoa, ouvir as pessoas que vivem da Lagoa. Que fazem parte da Lagoa, para pensar o que fazer sobre ela. Tipo, refletir o que é a Lagoa para nós, o que significa ter água potável, o que significa ter comida, o que significa ter sombra e o que significa ter um lazer, o que significa ter beleza, porque também a gente nunca pode perder o foco da beleza. Dostoiévski falava que a beleza salvará o mundo. Então, assim, se a gente não pensar num lugar, do ponto de vista também estético, a gente também não vai conseguir construir nada. Eu digo, o sinistro atrai sinistro. Então, assim, eu preferi que aquelas casas saíssem dali mesmo, mas não por causa da Braskem. Eu sempre fui a favor de retirar as casas dali, deixar ali só quem vive da pesca e tal, organizar isso. Nunca fui a favor da favelização. Não tem que ter favela. Tem que ter moradia digna. Não tem que derrubar o mangue para fazer casa, velho! Não é certo também. Do outro lado, é uma coisa alguém que não tem onde morar que é obrigado a derrubar um lugar… Porque a briga entre ele e o caranguejo, prefere viver o ser humano. Está brigando para sobreviver, não está ocupando aquilo ali para fazer uma vila de barraco para vender, para alugar, não é um condomínio que está sendo feito lá. Inclusive, você vê, tem vários condomínios sendo feitos hoje que têm um tratamento de esgoto específico, que a água que desce para a lagoa.
Tem tecnologia para isso. Eu fui lá ver, cara, o lugar que saiu. Está lindo, bicho. Até sonhei. Está lindo demais, cara. Tem que sair mesmo as pessoas dali, sabe? Num formato de favelização, tem que sair. Tem que ficar uma parte só e dentro de um planejamento da cidade. Tem que ter planejamento da cidade. Eu esqueci até a pergunta original. Mas o que penso para isso aqui é que, primeiro, em hipótese alguma a Braskem pode ficar dona desse território. Seria uma desonra, eu me tornaria menos gente, menos Alagoano. Eu enquanto alagoano, eu cairia um degrau, no meu orgulho de ser alagoano, eu cairia um degrau, se esse terreno ficasse com a Braskem. É uma covardia total. A primeira coisa que não pode. Um espaço de priorização ambiental aí, nesse lugar que o pessoal está saindo. Aproveita e retira todo mundo que for da favelização, que tiver em todo entorno da Lagoa. Aí, organiza os pescadores, marisqueiros, quem mora na Lagoa, que vive da Lagoa, estabelece regras. Porque também quem vive da lagoa tem que respeitar o defeso, tem que respeitar as regras do meio ambiente. O pescador tem bem mais responsabilidade do que qualquer empresa que venha para trabalhar aqui. Não pode também esquecer isso. A cidadania tem que ser lembrada. A cidadania é uma coisa ativa. Cidadania só tem sentido quando você age. Sem ação não tem cidadania. Cidadania é um ato de movimento. Então, se o cara tem ação… Cidadão, cidadão mora na cidade, todo mundo que mora na cidade é cidadão. Mas a cidadania é um exercício político, humano, da sua capacidade de fazer com que o mundo seja diferente a partir da sua ação. Então, você é responsável pelo mundo. Acho que as pessoas esquecem isso. Fica parecendo, sabe aquela coisa do império. “Queremos reivindicar o poder do imperador que vem aqui nos…” Não, você, cidadão da beira da Lagoa, Bom Parto, do Brejal, do Vergel, do Trapiche, do Bebedouro, do Flexal. Você é responsável pela sua história. As pessoas precisam saber disso e precisam… Para que a Lagoa tenha algum futuro, tem que ter formação humana. Não tem outro jeito. As pessoas precisam entender isso, que elas que são agentes transformadoras do mundo da vida delas e que são responsáveis também pela merda que der no futuro. Tem que saber disso. As pessoas têm que saber que elas são responsáveis. Não existe essa coisa de se colocar, estou na mão do império… E o que acontecer… “Eu não tenho responsabilidade de nada.” Sabe assim, do tipo, eu não tenho responsabilidade de nada. Esse cidadão… Essa cidade já morreu, velho, já perdemos. Enquanto não tiver uma consciência cidadã mesmo, já perdemos, pode entregar aí, pode pendurar a chuteira que já foi. É isso que, para mim, é fundamental.
37:40 P/1 - Rogério, com essa trajetória de destruição toda, de Bebedouro, Bom parto, pra cá, essas vielas que você anda andando, bate alguma tristeza de ver tudo destruído?
R - Cara, olha, tem alguns lugares, assim, que... Eu estava falando do Luiz Gonzaga, que Luiz Gonzaga era... Ele era admirador do Major Bonifácio, né? “Esquenta mulher.” Ele fala… Tem música aqui de Bebedouro. Major Bonifácio foi um grande mecenas, um grande incentivador da cultura. Você vê regiões, aí eu digo, que deveriam estar lá, que não estavam dentro da lagoa, que não tinham nenhuma afetação com a Lagoa, que foram destruídas. Passo nos lugares, é tristeza total, velho! Você vê aquilo ali, famílias minhas que foram embora. Porque, velho, existia uma cultura. Por isso que eu digo, não tem como voltar atrás. É a vida. Esse momento aqui não volta atrás. Não tem jeito, velho! Viveu, viveu. Não volta atrás. Então, aquela vida daquelas pessoas ali, cara, era o que constituía elas. Agora são fantasmas da cidade. Como diz o Manu Chao, são os fantasmas da cidade. São pessoas agora… É uma diáspora, são pessoas agora perdidas numa lógica de tempo. Como elas vão agora se reencontrar? Essas pessoas, na verdade, elas vão definhar. Os filhos dessas pessoas é que vão reconstruir uma nova história. Aquelas pessoas morreram quando saíram dali. Isso é perceptível quando você olha com olhar humano ali, sabe? Já era. Isso aqui, inclusive. Um Coco de Roda Reviver, não é mais o Coco de Roda Reviver. O Coco de Roda Reviver, ele fazia sentido, eu falo sempre como um diamante. Você pode fazer um de laboratório, mas ele não é um diamante. O Coco de Roda ele existe no Quintal, o Quintal Cultural existe aqui, porque a tia que costura aí do lado, porque a casa é ponto de apoio, porque o dono do mercadinho conhece e ajuda, porque o outro mora perto. Essa estrutura, foram décadas construída. Essa engenharia social… Isso é uma engenharia social, que é a mesma de construir um diamante, são milhões de anos para construir o diamante. Agora, o Coco de Roda Reviver, ou qualquer outro grupo que saia do Quintal, que saiu daqui, ele vai ser outra coisa, vai ter o mesmo nome, mas aquela coisa ali, você ir lá na granja, participar do ensaio lá com eles, como eu já tive a oportunidade de ir e de cantar também com eles, você ir ali participar das atividades, aquele mundo morreu. Sabe aquela cidade que o vulcão passou por cima, aquilo ali morreu. Você pode reconstruir com outras pessoas aquele mesmo lugar, igualzinho como era, mesmas casas. Mas não tem mais. Aquela vida social morreu, já era. Isso aqui é um crime bárbaro. Eu fico pensando, cara, nessas pessoas que estão por aí. Eu lembro da dona Pureza, que se suicidou. Outras pessoas da família também, coisas chocantes. Mas tem gente que está no álcool, outras drogas, que está na depressão. Especialmente as pessoas que construíram a vida inteira ali. Que saia ali para jogar um dominó na porta, que descia ali para ir na Lagoa, não sei o quê. Buscar o filho na escola a pé. Que deixava o filho na rua, porque a comunidade cria um sistema de proteção. Sabe assim, tipo, olha quanta coisa que a gente perde. Vou falando aqui, vou lembrando coisas. Você criar um filho dentro de um condomínio, ele fica protegido ali por uma regra do condomínio que é estabelecida. É fácil.
Você criar um filho aqui na rua para ele ser protegido, isso aí significa, por exemplo, aqui.
Aqui a minha sobrinha casou com um dali, outro casou com outro aqui, outro casou com outro dali. Aqui é praticamente uma família. Aqui a Rosa, minha vizinha, desde criança, conhecia a mãe dela. Conhecia o meu pai. São anos e anos de famílias convivendo juntos. Então, tipo, assim, o menino está na rua ali. “Olha, seu menino está ali.” Ia cheirar um Loló, já me entregaram (risos). A Lolô já me entregou. Lolô é o nome da mulher. Nada a ver com Loló, não, era porque era o apelido dela mesmo. Mas foi muito engraçado essa história, porque eu já estava com uns 14, 15 anos, eu fui cheirar Loló. Aí, eu estava com o vidrinho na mão assim, quando eu passei eu vi a Lolô. Eu vi a Loló, “tapiei” botando colírio. Aí, quando eu cheguei em casa, “Rogério, que história é essa que você estava cheirando Loló e quando você viu uma pessoa, você ficou tapeando que estava botando colírio” (risos). Informação, velho! Isso é rede de informação que a gente tem aqui, é uma rede de proteção, porque uma mãe olhava o outro, filho do outro. Isso aqui tem aqui nessa rua, isso aqui tem aqui nessa rua. Hoje os meninos que estão morando lá na Jatiúca, mas toda quinta, todo sábado, estão aqui. Tem atividade no Quintal Cultural, ele convivem aqui, porque… Os meninos adoram vir para cá, velho! Aqui eles se misturam. Porque aqui é uma cultura. E isso aqui vai morrer. E esse que é o crime bárbaro que eu falo. Isso que vai morrer. Por isso que é importante isso que está acontecendo agora com o Museu da Pessoa, com essas memórias, porque isso a gente vai ter que contar história mesmo. É uma parte da cidade, importante na construção da cidade. Maceió, existem várias Maceiós. E uma das Maceiós... Por isso aquela história da cidadania. A Maceió que você quer é a que você está lutando por ela. Não reclame de uma Maceió ruim, velho. Se você faz parte do que está construindo essa Maceió ruim. O que você está fazendo para que essa Maceió não seja ruim? A Maceió que você deseja, está fazendo o quê em prol disso? Essa Maceió que a gente conhece, aqui, a levada, por exemplo, aqui era o lugar dos ricos, era aqui, não era Ponta Verde, Ponta Verde vem depois. Aqui tem o porto, não é o Porto da Lancha, não. Antes, o avião descia aqui, aquela pista da Ponta Grossa, o avião descer ali. Todo artista que vinha descia aqui no Porto da Lagoa. Porto, que a gente chama Porto da Lancha. Isso aqui era uma Veneza, cara, você não tem noção. Tem uns filmes do Guilherme Rogato, você deve conhecer, o italiano. Ele filmou isso aqui em 1930, velho.
Se você ver a cor... Velho, Veneza? Veneza é fichinha. Lindíssimo. Ele vinha, e ia até ali, aí ia por trás do Deodoro. Deodoro não é à toa que ele é ali. A lagoa entrava até o mercado da produção. E um monte de barco assim. Tem algumas fotos dessas lá na SEPLAG (Secretaria do Planejamento e Gestão), eu acho, ali na parede, eu vi umas fotos da época. Tem umas fotos interessantes da levada desse período.
O italiano, Guilherme Rogato, se eu não me engano, fez um filme da época aqui, tem imagens disso. E aí, é por isso que eu digo, o que é o futuro? Você perguntou da outra vez. O que é, para que? Depende de planejamento e depende de participação nossa. É por isso que acho que temos que fazer desse desastre um movimento de evolução humana, de conscientização, as pessoas entenderem o processo. O nosso investimento é a reparação. É por isso que a cultura é importante, a arte, porque a reparação tem que ser no sentido de que esse desastre, não que ele sirva de lição, porque não sei se desgraça serve de lição, mas que agora estamos aqui, que ele sirva de um ponto de partida para que a gente repense o que foi nossa história de Maceió antes desse desastre e depois desse desastre, e chamar todas as responsabilidades. Político, não sei o quê. O pessoal bota culpa no político, ele esquece que ele é político. E é muito confortável botar a culpa no político, porque você se isenta. Não, meu amigo, você é culpado. Você vai para o inferno também. Se for do ponto de vista cristão do pecado, você é culpado, se ligue. Não venha com essa de reclamar da vida para perto de mim, não. Porque se eu cobro do político, do eleito parlamentar, eu cobro do pescador e da marisqueira. Obviamente, na medida da formação que eles tiveram. Não posso cobrar da pessoa que ela não pode dar. Não posso cobrar. Agora, cobrar humanidade, cobrar ética, cobrar a honestidade das pessoas, cobrar… Tem que cobrar, não tem essa não. Eu sou gente ruim porque não tive oportunidade. Não, você é gente ruim. Não venha com essa para o meu lado, não. Você pode até estar roubando, mas não é gente ruim. Tem diferenças. Conheci muitos ladrões honestos. É muito engraçado falar isso, mas... Claro que a profissão dele era roubar, meu amigo delegado. Sempre falo muito dele porque a gente viveu muito tempo juntos, foi assassinado. E, quando ele foi assassinado, ele já não era mais ladrão, estava com a família dele estabelecida, estava viajando mais na Bíblia. Já não era o cara lá, já era outro. Só foi matar o cara do passado no futuro (risos). Foi o que aconteceu com ele. Mataram o cara errado, apesar que parecia ser o mesmo, mas não era mais o mesmo.
48:39 P/1 - Bom, Rogério, eu gostaria de saber qual o legado que você gostaria de deixar para gerações futuras, para os seus filhos e até para você mesmo?
R - É a cidadania, velho. O legado é luta. É um povo capaz de buscar o bem, sobretudo. Porque eu acho que as pessoas esqueceram esse lance. Não adianta você fazer nada, velho, se você não tiver como foco central de que você está fazendo, o bem comum. Se você não tiver como foco tudo o que fizer, aí é filosofia pura. Aí, é Platão, é Kant. Se você é Jesus, tudo o que você estiver fazendo, se não tiver como meta final o bem comum, é tudo perdido. Você está fazendo para você mesmo, você está botando a evolução para trás. O legado que penso, é por isso que este espaço é um espaço de afetividade. Tem oficinas aqui com o Antônio Severino, que é um dos fundadores do Quintal Cultural. E é uma coisa... Olha só, é formação de criadores de conteúdo. O pessoal chega aqui e eles estão brincando, conversando sobre coisas, contando histórias da mulher da capa preta, contando a história do mangue. “Porque você não vai aprender, pegar uma câmera, não vai editar o vídeo, não sei o quê e tal.” Vai ter essa parte, mas olha com o que as pessoas se preocupam. Formador de conteúdo, cara, é formação… Quem forma conteúdo é quem tem cultura, é quem tem conhecimento. Não é o cara que faz o… É quem tem o que dizer, o que passar para o mundo. Formar conteúdo é formar gente. De qualquer modo, eu vou convidar vocês aqui para dar umas oficinas aqui para nós, para a pivetada, um dia de quinta-feira, sobre essas questões técnicas. Mas o lance é esse. As pessoas não entenderam a proposta da formação do criador de conteúdo. As referências dos criadores de conteúdo, no geral, é porque é destruição total. Todos nós somos criadores de conteúdo. Minha música, quanto a um legado, objetivo, são mais de 200 composições, em minha autoria. Mais as composições, tantas e tantas composições do Antônio Severino aqui, que acho que é um cara importante também para a próxima etapa do Museu da Pessoa, convidar ele. As peças te atraem, é o que vai ficar no sentimento, é o que vai ficar de beleza, é o que vai ficar de agentes que vão fazer o mundo melhor. O legado é humano, ele é evolução intelectual, evolução espiritual, evolução… Evolução enquanto ser, inclusive animal também. O legado é isso, fazer as pessoas melhores e cidadãs, para que elas sejam responsáveis, para que coisas como essas não se repitam mais.
52:15 P/1 - Rogério, estamos se aproximando da etapa final. Eu gostaria de saber alguma coisa que eu não perguntei, você gostaria de se expressar?
R - (canta) Um terreiro, um bico de luz, uma arquibancada de pau. Surgiu em Maceió o movimento Quintal Cultural. No batuque, na rebeldia, arte e conscientização, trazendo pra periferia a ousadia de ser cidadão, direitos e deveres dizem que a gente tem, os deveres a gente conhece, mas os direitos aqui nunca vêm. Guerreiros sobreviventes da guerra fria urbana, matando um leão por dia na correria cotidiana, agindo localmente, pensando universal, na pequena rua Sol Nascente, bem na divisa Bom Parto e Brejal.
Isso aí é uma música do Quintal Cultural. E, assim, falar desse espaço, falar da arte produzida aqui, dos emboladores. Cara, você sabe que aqui tem muito embolador. Tem alguns livros que são importantes, por exemplo, O Folclore Negro das Alagoas, Abelardo Duarte, o livro do Teo Brandão, que eu esqueci o nome dele agora. Fala que o pessoal migrou para essa região, para cá, em busca de sombra, água e comida. Olha a importância da Lagoa nisso. Vou fechar aqui. Vou cantar uma música que é uma parte do Antônio Severino, uma parte minha. Que é assim, (canta) eu moro na beira, eu moro na beira, na beira, na beira, na beira, na beira, na beira da Lagoa. Moro na beira da Lagoa, onde tem gente boa, muita criança à toa na beira da Lagoa. Eu me lembro quando eu pegava sururu na Lagoa Mundaú. Eu me lembro quando eu pegava guaiamum na lagoa Mundaú. Eu moro na beira, eu moro na beira, na beira, na beira, na beira, na beira, na beira da Lagoa. Lembro que na boca da minha porta passava um braço da lagoa, eu me lembro que na boca da minha porta passava um braço da Lagoa. O Bom Parto é na beira, Bebedouro é na beira, Vergel, Fernão Velho, Flexal, a periferia é toda na beira, na beira, na beira da Lagoa.
Essa é uma música de Antônio de Severino, meu vizinho aqui de Quintal e fundador do Quintal Cultural também, junto comigo. Poeta dos bons, compositor e artista também, e um educador também incrível, que é autor dessa música, que é linda. E aí, tem uma parte que é de outra música minha, porque juntaram as duas músicas e ficou como uma música só. Que é: (canta) Saudações aos orixás, hoje não tem sururu, destruíram os manguezais da lagoa Mundaú, outrora a aurora vinha te contemplar, agora aurora chora lástima. Mas o que foi que fizeram com minha Lagoa Mundaú. Aonde estão teus peixes, caranguejo e sururu? Estás pálida e triste, vejo em tua feição, escuto batidas de socorro que vêm do teu coração. Mundaú, Lagoa mãe, Mundaú, Lagoa ferida, Mundaú, Lagoa que morre, Mundaú, Lagoa da vida. Saudações aos orixás, hoje não tem sururu, a Braskem destruiu a Lagoa Mundaú.
É isso, galera. Obrigado. Acho que pra mim tá de bom tamanho.
56:32 - Desde já o museu da pessoa agradece pela entrevista. Muito obrigado, Rogério.
R - Valeu, meu velho.
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