E: Primeiro ia lhe pedir para se apresentar, para me dizer o seu nome, local e data de nascimento.
e: Eu sou José Fernando Santos Ribeiro. Moro aqui no Porto.
E: Nasceu aqui no Porto também?
e: Nasci aqui no Porto.
E: Em que ano é que nasceu?
e: 1978.
E: Muito bem, já filho da revolução.
e: Sim, sim.
E: Como é que se chamam os seus pais?
e: Américo José Santos Ribeiro e Rosa Maria de Sousa Dias Ribeiro.
E: Ainda estão vivos os dois?
e: Não
E: Já faleceram...
e: Já.
E: O que é que eles faziam?
e: O meu pai era pedreiro e a minha mãe era de casa.
E: Tem irmãos?
e: Tenho quatro, comigo cinco.
E: Então, eram muitas crianças em casa.
e: Muitas crianças, sim. Naquele tempo, agora não. Já não os vejo há muitos anos.
E: Eles também vivem cá no Porto?
e: Não sei onde eles vivem.
E: Perdeu o contato?
e: Perdi, completamente.
E: E sabe a origem da sua família? Eram daqui os pais, do Porto?
e: Eram todos do Porto.
E: Tem alguma lembrança? Conhece alguma história da sua família? Como é que eles chegaram aqui?
e: A minha infância foi muito, muito, muito cruel. Não foi uma infância de família. Uma vez que o meu pai morreu e a minha mãe despachou-nos todos. Fui para a casa do Gaiato. Estive na casa do Gaiato muito tempo, até aos dezoito. Depois dos dezoito saí, vim para aqui para o Porto. Conheci uma mulher, a mãe da minha filha, mas que me levou à ruína, que me pôs mesmo a meter-me no álcool, a enterrar-me até ao fundo e depois vim aqui para o Albergue, foi o que me fez alevantar...
E: Então não passou muito tempo em família, no sentido tradicional.
e: Não.
E: Que idade tinha quando o teu pai faleceu?
e: Eu tinha prai três anos.
E: Então nem tem muitas recordações...
e: Não, não tenho.
E: Mas manteve-se com os irmãos nessa altura?
e: Sim, só que não foi simples, dois foram adotados e ficámos só três. E depois o outro foi quando a gente foi para o colégio.
E: E na casa do Gaiato, onde estava nessa altura, alguém lhe contava histórias?
e: Sim, sim. Histórias era como aqui, não é como aqui, mas a gente lá trabalhava... Depois tínhamos a nossa hora de descanso, a brincadeira.
E: Eram muitas crianças?
e: Muitas, sim.
E: Como é que era o espaço, a casa onde viviam?
e: Era grande. Tinha várias casinhas e camaratas como aqui, mas mais pequeninas. A gente tinha o nosso espacinho. Foi um momento bom que eu passei lá. Foi a minha infância, para dar um exemplo, quase a minha infância, fui ali na casa do Gaiato.
E: Que recordações tem mais de brincadeiras, coisas que fazia?
e: As nossas brincadeiras eram jogar ao berlinde, jogar à carica, jogar à bola, as nossas brincadeiras, era assim.
E: E lembra-se como era o bairro e a cidade nessa altura?
e: Era a casa? Era grande. Aquilo tinha tudo. Tinha tudo de animais, tinha tudo lá. Foi uma coisa bonita.
E: E ficou lá até aos 18 anos?
e: Até aos 18.
E: E o que mais gostava de fazer quando era criança? Quais eram as brincadeiras?
e: Era as nossas brincadeiras. No arco, era as nossas brincadeiras eram estas.
E: E o que é que queria ser quando crescesse?
e: Cozinheiro, aquilo que eu sou.
E: Porquê acha que queria ser cozinheiro?
e: Porque gostei. Tive à beira de pessoas que cozinhavam, que me ensinaram e eu ganhei paixão por aquilo. E hoje, graças a Deus, estou a trabalhar na cozinha.
E: Então conseguiu cumprir esse sonho.
e: Exatamente.
E: E então, falou que depois foi para o colégio. O colégio era perto aqui da casa do Gaiato? Onde é que ficava o colégio?
e: Era mesmo na casa do Gaiato.
E: Ah, era lá.
e: Era mesmo lá dentro.
E: Então, pronto, a escola foi feita lá?
e: Não, eu não consegui estudar lá, porque me tiraram de lá para a gente ir trabalhar, eu nunca mais fui para a escola.
E: Então, fez até que ano?
e: Fiz só a primeira.
E: Então, depois disseram-lhe para ir trabalhar?
e: Lá dentro.
E: Então, com que idade é que foi trabalhar?
e: Com uns seis... não, sete anos. Toda a gente trabalhava lá. Ou a apanhar folhas, ou a ir para a máquina dos jornais, que a gente tinha lá uma fábrica de jornal.
E: Aí era? Então?
e: Sim, lá dentro, fazíamos o jornal para a gente levar para as cidades, aqui no Porto, para todas as cidades.
E: E era um jornal que vocês faziam?
e: Era um jornal que a gente fazia com a história de lá de dentro. Quem se comportava mal, quem não se comportava mal, e era assim. Era os castigos que a gente levava lá.
E: Então, depois produziam esse jornal e iam distribuir?
e: Íamos pelas ruas com a malinha e as pessoas compravam o jornal.
E: E depois, o que é que começou a fazer mais tarde? Foi aí que começou a ir para a cozinha e a ter esse contacto com...
e: Não, o contacto foi quando eu saí de lá. Lá não tínhamos acesso a ir para a cozinha nem nada.
E: Então, o que é que mais faziam nessa altura?
e: Era andar a varrer, ir para a beira dos animais, limpar as coisas dos animais, essas coisas assim.
E: E depois, quando é que começou a sair assim sozinho? Mais na sua juventude... com os 18 anos...
e: 18, 19
E: Como é que era o grupo de amigos?
e: Era bom. Éramos todos.
E: Eram dali da zona, da casa do Gaiato?
e: Não, depois eu vim para Valongo.
E: Foi para Valongo, ok.
e: Depois, a partir disso, quando saí de lá, fui para Valongo, estive lá 10 anos. Foi quando conheci a minha mulher, a minha ex.
E: E foi para Valongo para viver lá?
e: Sim, sim.
E: E começou a trabalhar lá em Valongo?
e: Sim, sim.
E: O que é que fazia?
e: Nesse momento, fui para trabalhar nas obras. Depois comecei a ver cozinheiros, foi quando comecei, não, não quero trabalhar nas obras, quero é ir para a cozinha.
E: Então, como é que foi essa ida para Valongo? Como é que era o grupo de amigos? O que é que faziam?
e: Ah, íamos para as discotecas, íamos para os cafés. Fazíamos a nossa alegria.
E: Tem algum momento que se recorda, alguma história?
e: Temos muitas. Tenho muitas, mas somente uma, que foi uma festa de anos que eles me fizeram de surpresa, eu fazia anos, mas só que eu não dizia a ninguém que eu não gosto. E eles fizeram uma surpresa lá na discoteca. Foi uma das maiores.
E: O que é que fizeram nessa surpresa?
e: Uii, todo enfeitado, bolo grande... foi bonito, foi muito, foi bonito.
E: Recorda com carinho essas memórias.
e: Sim, sim... Depois veio a desgraça. Foi quando eu conheci a minha mulher, pronto, deu-me a minha filha, mas a partir daí...
E: Ainda era muito jovem quando a conheceu?
e: Não, já tinha vinte e poucos.
E: Como é que se conheceram?
e: Éramos vizinhos. Vizinhos mesmo. Mas foi a desgraça, eu meti-me no álcool... perdi tudo. Até a filha perdi. Hoje não, hoje... Já tou com ela.
E: Que idade é que tem a filha?
e: Dezasseis.
E: E então, mas foi casado?
e: Não, não, nós estivemos juntos.
E: E como é que foi ser pai?
e: Ah, foi bom. Mas depois não, depois tive muito tempo sem a minha filha, tive muitos anos longe por causa do álcool. E não tinha coragem de ir para a beira deles. Mas foi quando...
E: Mas conseguiu agora e já tem uma relação com ela.
e: Tenho uma relação com ela.
E: E alguma vez foi para fora do país ou ficou sempre cá?
e: Não, já estive em três países.
E: Então foi trabalhar para fora?
e: Fui trabalhar para fora.
E: Onde é que foi?
e: Estive em França, em Inglaterra e em Espanha.
E: Sempre a cozinhar?
e: Não, não, só nas obras.
E: Só na construção, ok. Então, teve esse primeiro trabalho na construção de Valongo e depois voltou para o Porto?
e: Depois vim para o Porto morar. Vim para aqui para o Albergue, mandaram-me para aqui. Depois daqui é que comecei a sair daqui, porque tinha aquele cafezinho aqui em frente e eu ia sempre para lá e via ele a fazer o comer. E um dia pedi-lhe "olha deixa-me ir para a cozinha" e ele deu-me essa chance. Foi quando eu comecei a aprender as coisas da cozinha.
E: E isso foi há quantos anos?
e: Já foi, prai há dez anos para aí. E hoje em dia também tou bem.
E: Então, quando se mudou sozinho, foi para a França a primeira vez, não é?
e: Não, não, fui para a Espanha e já estava aqui a morar. E fui para a Espanha, estive lá dois anos. Depois vim de férias e já não fui mais. Depois fui para a Inglaterra.
E: Chamaram-no?
e: Sim, sim.
E: E como é que foi chegar assim a um país diferente?
e: Ah, nos princípios foi muito estranho.
E: Quais foram as principais dificuldades que teve?
e: A maneira como a gente... não conseguia falar, não perceber o que eles diziam. Era muito complicado. A gente só estudava o português. Para falar só com os portugueses. E depois vim embora, por causa disso. Em Inglaterra vim-me embora por causa do dinheiro. Que não vim com dinheiro de lá. Depois chegando, vim para a cozinha.
E: Disse que hoje está com as coisas endireitadas, com a vida endireitada, e que está satisfeito com a sua vida agora. Como é que descreve a sua vida hoje?
e: Neste momento, estou no princípio. Estou no princípio do livro, como se costuma dizer.
E: Portanto, na verdade, a sua história começa agora. O que temos para trás temos...
e: O passado esquece.
E: Ali umas coisas boas na infância, na juventude, mas agora é o momento começa agora
e: E espero que seja por muitos anos.
E: E o que é que acha que é mais importante para si hoje?
e: Hoje é ter... hipótese de ter uma maneira de arranjar uma casa para ter a minha filha à minha beira, que é o maior desejo que eu tenho.
E: E acha que o facto de não ter uma casa própria agora...
e: Sim, é...
E: Influencia a vivência... até com a filha?
e: Sim, sim. Mas hei de conseguir.
E: Claro que sim. E continua agora aqui a trabalhar, portanto, agora tem aqui uma possibilidade...
e: Exatamente.
E: E a fazer uma coisa que gosta.
e: Uma coisa que gosto.
E: Como é viver aqui num Albergue?
e: Para mim foi bom. Foi o que me ajudou muito. Esta casa é... Já sai, agora estou a trabalhar aqui, mas é uma coisa que a história aqui dentro foi o que me alevantou para a vida. Foi aqui. Umas vezes portei-me mal, outras vezes portei-me bem...tudo por causa do álcool, era. Eu era um desastre. Hoje, graças a Deus... já não é a minha parte.
E: E foi aqui que conseguiu fazer essa...
e: Exatamente.
E: ...a desintoxicação e deixar...
e: Exatamente. Com a ajuda dos doutores todos.
E: E está a trabalhar agora aqui em Albergue, faz aqui as refeições
e: Sim, sim.
E: Está satisfeito então esta... profissão.
e: Exato.
E: Além deste sonho de querer ter a sua casa para poder ter a sua filha, tem algum sonho mais?
e: Não, neste momento não. Só, tiver a minha filha aí já é outra história. Neste momento, na minha cabeça, só fica o trabalho, mais nada.
E: Aqui no Albergue, tem amigos aqui? Como é o seu dia-a-dia? O que é que gosta de fazer?
e: Estar com os amigos. Neste momento, hoje, estou de folga, gosto de estar um bocadinho com os amigos. Estar ali a conversar, contar histórias.
E: E são daqui também?
e: São daqui.
E: E o que é que gosta de fazer? Para além da cozinha, tem alguma coisa assim que gosta? Ou passear? O que é que gosta de fazer?
e: Ah, não, sou mais sossegado. Gosto de estar aqui, venho aqui de manhã, de tarde, lá por volta das três horas, gosto de estar aí. Vou para o meu canto. Vou ouvir o meu rádio...
E: Gosta de ouvir música?
e: É, Fados!
E: Também canta?
e: Não, acha? Quem me dera. Não, por acaso não. Mas gosto muito. É o meu entretenimento, é o rádio. Não quero televisão, não quero nada, só quero o rádio. E a pensar na vida, não é? É assim, a minha vida.
E: E como é que é viver aqui no Porto?
e: Ah, é bom. Eu, desde que vim para o Porto, sempre gostei do Porto.
E: O que é que gosta mais?
e: Eu gosto de tudo no Porto. Não vou dizer que gosto de nada, gosto de tudo no Porto.
Das pessoas, tudo.
E: Tem algum local que goste de ir?
e: Eu, por princípio, gosto de ir a todos os lados. Mas estou mais tempo parado.
E: Obrigada. Quer acrescentar alguma coisa? Contar alguma história?
e: Não, não quero contar.
E: Gostou de contar a sua história?
e: Gostei.
E: Muito obrigada, Sr. Fernando, obrigada. Foi um gosto. Bom trabalho, boa folga hoje.
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