Entrevista de Aristéia Avelino Nascimento Santos
Entrevistado por Lucas Torigoe e Jonas Samaúma.
Vila de São Jorge, 30/09/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes de um Mundo em Chamas.
Entrevista número: PCSH_HV1504
Realizado por Museu da Pessoa
P/1 - Téia, a pergunta é difícil para começar, tá? Qual é o seu nome completo? Que cidade você nasceu? Que local você nasceu? Que ano e dia foi?
R - Bom, eu me chamo Aristeia Avelino do Nascimento Santos. Eu nasci aqui na Vila de São Jorge, no dia 16 de setembro de 1965.
P/1 - Você nasceu em hospital, em casa? Como foi isso?
R - Eu nasci em casa, aqui a gente só tinha parteiras. A minha parteira era a mãe Onéia.
P/1 - Onéia?
R - Mãe Onéia.
P/1 - E você conheceu a mãe Onéia quando você cresceu ou não?
R - Quando eu era criança, eu tenho lembranças dela, mas ela faleceu, eu ainda era criança.
P/1 - Então não conhecia muito não?
R - Não.
P/1 - E qual é o nome do seu pai?
R - José Alexandre de Araújo.
P/1 -
E como é a família dele? Como é a história?
R - Então, eu não conhecia a família do meu pai. Meu pai saiu de casa muito cedo. Ele disse que saiu de casa ainda menino, devia ter 11 anos de idade. E veio, saiu de casa e veio para Goiás. Ele participou da construção de Brasília e veio aqui pra Goiás, especificamente pra Chapada dos Veadeiros, em busca de ficar rico, porque os garimpeiros acham que eles vão ficar ricos, que eles vão bamburrar. Então, nesse tempo, tinha muito cristal de quartzo. Aí ele veio pra cá em busca da riqueza, que era do garimpeiro.
P/1 - Mas ele nasceu onde?
R - Então, ele nasceu no Rio Grande do Norte e nós não conhecemos a família do meu pai porque ele não voltou mais. E aqui minha mãe que veio, que já nasceu aqui também, eles se conheceram e casaram e construíram a família aqui.
P/1 - Entendi. E ele conta pra você como é que foi essa época de vir pra cá, a ideia de bamburrar, enfim?
R - Então, meu pai...
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Entrevistado por Lucas Torigoe e Jonas Samaúma.
Vila de São Jorge, 30/09/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes de um Mundo em Chamas.
Entrevista número: PCSH_HV1504
Realizado por Museu da Pessoa
P/1 - Téia, a pergunta é difícil para começar, tá? Qual é o seu nome completo? Que cidade você nasceu? Que local você nasceu? Que ano e dia foi?
R - Bom, eu me chamo Aristeia Avelino do Nascimento Santos. Eu nasci aqui na Vila de São Jorge, no dia 16 de setembro de 1965.
P/1 - Você nasceu em hospital, em casa? Como foi isso?
R - Eu nasci em casa, aqui a gente só tinha parteiras. A minha parteira era a mãe Onéia.
P/1 - Onéia?
R - Mãe Onéia.
P/1 - E você conheceu a mãe Onéia quando você cresceu ou não?
R - Quando eu era criança, eu tenho lembranças dela, mas ela faleceu, eu ainda era criança.
P/1 - Então não conhecia muito não?
R - Não.
P/1 - E qual é o nome do seu pai?
R - José Alexandre de Araújo.
P/1 -
E como é a família dele? Como é a história?
R - Então, eu não conhecia a família do meu pai. Meu pai saiu de casa muito cedo. Ele disse que saiu de casa ainda menino, devia ter 11 anos de idade. E veio, saiu de casa e veio para Goiás. Ele participou da construção de Brasília e veio aqui pra Goiás, especificamente pra Chapada dos Veadeiros, em busca de ficar rico, porque os garimpeiros acham que eles vão ficar ricos, que eles vão bamburrar. Então, nesse tempo, tinha muito cristal de quartzo. Aí ele veio pra cá em busca da riqueza, que era do garimpeiro.
P/1 - Mas ele nasceu onde?
R - Então, ele nasceu no Rio Grande do Norte e nós não conhecemos a família do meu pai porque ele não voltou mais. E aqui minha mãe que veio, que já nasceu aqui também, eles se conheceram e casaram e construíram a família aqui.
P/1 - Entendi. E ele conta pra você como é que foi essa época de vir pra cá, a ideia de bamburrar, enfim?
R - Então, meu pai foi uma pessoa que não falava muito, então a gente não sabia de muita coisa dele, porque ele era bem fechado. Ele saiu de casa, ele era criança e ele não retornou mais. Eu não sei muita coisa dele. Eu sei do meu nome, que é o nome da minha tia, que era uma irmã, que ele gostava muito, porque no início eu não gostava do meu nome, eu achava muito esquisito, era muito estranho, então eu não gostava do nome. Mas aí eu perguntei para ele um dia por que eu tinha esse nome, que era um nome diferente, Aristéia, sou a única. Eu nunca achei ninguém com o meu nome. Aí ele contou que era o nome da irmã dele, e ele gostava muito dessa irmã, então quando eu nasci, ele colocou o meu nome por conta da irmã dele.
P/1 - A gente conversou sobre isso mais cedo, mas o que é o seu nome?
R - O meu nome, o meu nome grego, ele vem do Aristóteles, né? E significa deusa.
P/1 - E o seu nome é Aristéia… você tem irmãos?
R - Tenho. Nós fomos dez filhos, né? Nós somos oito mulheres, que são todas vivas, todas moram aqui, com exceção da mais nova, que mora em Goiânia, mas a nossa família toda mora aqui. O meu irmão, que foi o primeiro, ele já faleceu, né? Faleceu com 29 anos, ele teve um infarto fulminante e veio a óbito. E aí nós somos oito mulheres e um homem.
P/1 - E dá tempo de você contar o nome de todos eles?
R - Sim. Esse primeiro que faleceu, ele chamava Alflam. A segunda sou eu, Aristéia. A terceira é a Aristelina, que é a Átila, que é uma produtora, ela trabalhou hoje também na Casa de Cultura. Ela é bem ligada à cultura popular e ela é presidente da Casa de Cultura aqui. Aí vem a Aricélia, Aristelita, Vanésia, Vanusa, Ione, Alexandre e Raíssa. É o que eu falei pela ordem, por isso que eu demorei um pouco. Estava processando.
P/1 - E de onde que veio essa coisa de começar com Ari, Ari, Ari?
R - Antigamente, o povo era assim mesmo. Eles começavam e tinha que ter uma sequência. Se começava com a letra A, tinha que ser com a letra A. Se fosse com a letra B, era com a letra B. E aí, como lá começou com a letra A, aí foi. Mas aí eu me lembro que a minha mãe teve muitos filhos. Ela teve uma sequência de filhos, assim, quase que praticamente todos os anos. Aí depois parou sete anos. Aí quando começou de novo, aí eu falei: “Não mãe, vamos mudar, né?” A gente sugeriu a ela para mudar as letras, para ver se parava. Mas aí ainda teve um pouco, né? Ela totalizou vivos, foram dez, mas ela teve mais, alguns que morreram, que nasceram, a gente não conta, mas acho que no total deve ter dado uns 12.
P/1 - Não deu certo para a fábrica.
R - Não deu certo, só parou quando Deus quis mesmo. Porque antigamente era assim também. Não existia anticoncepcional. As mulheres tinham filhos até o dia que Deus quisesse. Eu, por exemplo, nunca tomei anticoncepcional. Eu tive três e tive um aborto. E meu marido fez vasectomia.
P/1 - E falando em nascimento, não te perguntei, mas você sabe como é que foi a sua gestação e o dia que você nasceu? Como é que foi? Seus pais te contaram isso?
R - Não, mas acho que foi tranquilo. Eu sei que a única coisa que eu sei do meu nascimento é que eu nasci numa quarta-feira, oito horas da noite. Mais antigamente era assim, eu me lembro das outras mulheres que ganhavam neném na vila, porque nós aqui na vila, nós éramos poucas famílias e era só uma rua só. Então, quando a mulher engravidava, todo mundo ficava sabendo e no dia do parto, esse dia era um acontecimento, porque era o pessoal mais antigo, os nossos antepassados, eles sempre falavam que a mulher quando ficava grávida, ela tinha um pé na cova, um dentro e outro fora. Porque ter filho, ela poderia morrer na hora do parto e era muito comum. Então, no dia que ia ter um parto, nesse dia, todas as pessoas da vila iam para a casa dessa mulher que estava ali parindo. Então, tinha muita oração, era um momento de respeito, sabe? Tudo ali. Eu me lembro que quando nascia a criança, a gente tinha o sino na igreja. E aí, a forma de comunicar, que a mulher teve, a criança que falava, deu à luz, ele soltava um foguete, se fosse mulher. Se fosse homem, era dois. E quando não tinha o foguete, ia lá no sino da igreja e dava uma batida, que sinalizava, ah, fulana ganhou neném, é uma menina. Se desse duas batidas, ah, é um menino. Então, essa era a forma de comunicação, sabe? E aí durante o período de resguardo dessa mulher que deu a luz, que era um resguardo de 40 dias, não podia ter barulho na rua. Qualquer coisa que acontecesse, além do normal, eles iam lá e avisavam: “Olha, vai acontecer uma festa, vai ter isso, vai ter um barulho, a senhora não assusta porque é isso que está acontecendo”. Porque antigamente as pessoas tinham muita referência ao outro, né? E eles também falavam que a mulher, quando ganhava neném, ela tinha que ter o resguardo, sem barulho, sem passar raiva, sem emoção, sem nada, porque eles falavam que podia quebrar o resguardo. E aí, com a mulher que quebrasse o resguardo, ela podia ficar até sabe, louco, ficar doida? Que eu acho que hoje, eu acho que é a... Como é que chama aquela coisa aqui? Depressão pós-parto? Então, eu acho que isso já era a depressão pós-parto, mas eles associavam isso. Então, ela tinha muito cuidado. Então, a comunidade toda se voltava a isso. Até a alimentação da mulher era diferente. Quando a mulher engravidava, eles já criavam as galinhas, porque só podia comer canja de galinha, de franguinho, tinha que ser novo, não podia ser velho, aí te faziam o pirão, que era uma delícia, com os temperinhos, com o minho, coentro, maravilhoso, até faço, chama o pirão da mulher parida, com galinha caipira, maravilhoso. Então ficava assim, durante 15, 20 dias só comia isso, no almoço e no jantar, Tinha que matar todos os dias. Primeiro que não tinha nem luz. Nesse tempo não existia geladeira, tudo era mais saudável. Depois de 20 dias começava a introduzir outro tipo de alimentação, porque eles entendiam também que a comida tinha que ser leve, tomava muito banho de ervas. Já também fazia os canteiros das ervas medicinais, que era para dar o chazinho para as crianças, de poejo, de tudo. Agora, o mais engraçado é que antigamente as crianças tomavam chá, tomavam essas coisas, e hoje os médicos não deixam mais. Falam que é só o leite materno até seis meses.
P/2 - Você tomou chá?
R - Sim.
P/2 - Quais eram as plantas?
R - O chá que as crianças podiam tomar, os bebês, era chá de poejo. É uma ervinha que aparece, hortelã, mas ela tem um cheirinho muito delicado, é uma coisa bem suave, coisa de beber, que é maravilhoso. E também tinha as garrafadas que as mulheres tomavam. Depois de 40 dias, não, quando você ganhava neném todos os dias, tomava sumo de algodão. Pegava a folha de algodão, tirava o vinho, ela esquentava a água, põe a folha dentro, espremia e ela sai aquele vinho vermelho. Tomava algodão durante um período para limpar o útero ou o ovário, para não ter inflamação, não ter nenhum tipo de infecção. E aí depois dos 45 dias, preparava uma garrafada com uma planta que chama Saúde das Mulheres. E aí tomava mais 40 dias e pronto, estava curada, não tinha problema nenhum.
P/1 - O que tinha nessa garrafada? Saúde das Mulheres?
R - Saúde das Mulheres era a planta, mas a garrafada, eles faziam, pode fazer com vinho branco, mas nesse tempo não era vinho branco, eu esqueci o nome agora, mas era uma coisa, acho que chamava água inglesa. Água inglesa e botava essa plantinha, que era a Saúde das Mulheres, que era para fazer a cura de ovário, de útero e preparar todas as limpezas desse processo de gravidez, de parir e tudo mais. E era muito interessante também a questão que era o seguinte, no período que a mulher estava de resguardo, as outras mulheres da comunidade tomavam conta da casa delas. Elas cozinhavam, cuidavam dos filhos, faziam comida, sabe? Era uma coisa bem assim. Era muito legal.
P/1 - Quer dizer, viu? Voltar só mais um pouquinho, você falou que quando a mulher estava para para ter o parto, as pessoas oravam muito nesse dia. Você lembra a reza que era? Como que era?
R - Antigamente só tinha uma reza. Era o texto, que é a Maria, Pai Nosso. Tinha a Salve Rainha. Não tinha esse negócio de tanta religião. Era igreja católica só. Todo mundo era católico ou era espírita. Aqui o que predominava era o catolicismo, então a reza era uma só. Agora tem muitas denominações, né? Porque tem uma igreja, todo mundo era católico. Pronto. Aí agora hoje tem a igreja evangélica, que tem presbiteriana, não sei o quê, Assembleia de Deus, Assembleia Madureira. Aí é um monte de coisa que se perde um pouco no tempo, mas era bem assim.
P/2 - E a parteira, ela era rezadeira também?
R - Normalmente as pessoas têm muita fé, né? A parteira tem muita fé em Deus e coloca ali toda a sua fé no Divino Espírito Santo. E também as pessoas antigamente tinham os santos de proteções. Tem a Nossa Senhora do Bom Parto, então eles se apegavam à Nossa Senhora do Bom Parto. Tem uns que eram devotos de Nossa Senhora Aparecida, de São Jorge, que é o nosso santo protetor, o guerreiro São Jorge, que é o nome da vila, e assim vai. Bom Jesus da Lapa, Divino Espírito Santo, Nossa Senhora da Abadia, é cheio de santo.
P/1 - E, Téia, qual é o nome da sua mãe?
R - Benedita.
P/1 - Benedita?
R - Benedita Avelino do Nascimento.
P/1 - E me fala um pouquinho, que nem a gente falou do seu pai, como que é a família dela, veio de onde?
R - Ah, minha mãe. Os meus avós, eles vieram da Bahia, daqui de Bom Jesus da Lapa, Irecê, aqui perto da Bahia. A vila de São Jorge, nós fomos colonizados por baianos. Quase as pessoas que vieram, a maioria aqui da Bahia. Minha avó, quando ela chegou, eles pararam lá no Moinho, ali no Campo do Meio, que vocês vão passar. Aí eles pararam lá, meu avô e minha avó. De lá eles vieram pra cá. Minha mãe já nasceu aqui, aqui ela teve todos os filhos dela. O meu avô eu não conheci, ele morreu muito cedo, ele tinha problema de asma. Então ele morreu cedo, minha avó ficou viúva, criou todos os filhos dela, sozinha, né? E ela era uma pessoa muito batalhadora, guerreira, ela criou os filhos dela todas fazendo doce, né? Ela fazia todos os doces de frutas, doces de leite, assim ela criou os filhos. E ela também ia pro garimpo, trabalhava no garimpo, mas fazia os doces, que mantinha a casa dela. Deixa eu ver quantos filhos que ela teve mesmo. Oito filhos ela teve também. Foram cinco homens e três mulheres. Teve um também que morreu, mas eu não sei não. Já morreu minhas três tias também, agora um morreu esse ano. Então, aí, eles vieram pra cá, ela constituiu as famílias, nós já estamos na segunda geração, segunda não, terceira, porque minha mãe é a primeira, eu já sou da segunda, eu já tenho meus filhos e tenho neto, quarta. Quarta geração. Aí, conta uma coisa que eu esqueci. Da minha mãe.
P/1 - Pode? Só ia perguntar, você falou que aqui foi colonizado por baianos, esses baianos vieram fazer o que aqui? Por que saíram de lá?
R - Todo mundo em busca da riqueza, em busca do garimpo, que as pessoas acham que fica muito rico fácil. Quando você acerta mesmo com os cristais, você fica rico mesmo. Só que dinheiro de garimpo não dura, porque eles fumavam dinheiro, faziam cigarros. Fazia o cigarro e fumava, porque ele estava tão rico que fumava, né? Agora o dinheiro... Eu me lembro uma vez, eu era menina, né? O povo ficou rico aí. Aí, eles fizeram um cordão de dinheiro e botava atrás... Não, botava atrás deles. Antigamente, eu corria atrás do dinheiro, agora o dinheiro corre atrás... Ai, Genro, mas é engraçado. O que foi? Não pode rir, não?
P/1 - Pode. Não. É que eu vi uma história parecida hoje, assim. Mas é doido.
R - É muito, né? E o dinheiro que as pessoas ficam ricos, eles não ficam muito tempo ricos. Eles perdem tudo. Jogam, bebem, gastam com mulher. Eu não sei. E é tão sofrida a vida. Porque, se você trabalhar, você vê no sol a sol, igual a gente foi hoje lá nos buracos, né? Dos garimpo abrir aqueles buracos grandes. Muitos morriam, porque caíam. Aí eles não podiam sair, morriam lá. E aí, quando ganhavam, ficavam ricos, gastavam tudo. Com as mulheres, com a cachaça, com o jogo, menina.
P/2 - Você lembra de alguma história dessa de alguém...
R - Isso aí que eu te contei e eu vi.
P/1 - Mas tem outra que te contaram que você viu quando você era pequena?
R - Não, essa do dinheiro eu vi, mas era desse jeito aí, assim, as gastanças, né, com as... Com mulher... Com tudo, com jogo, com tudo, que gasta com coisa fácil.
P/2 - Quando você cresceu já tinha eletricidade aqui?
R - Não, a luz chegou aqui, eu acho que foi em 1904, eu acho.
P/2 - E aí tinha muito fogo?
R - Tinha muito... Fogo no mato?
P/2 - Não, fogo de fogueira, as pessoas faziam fogueira.
R - Ah, sim, claro, a gente cozinhava no fogão de lenha e todo dia a gente fazia fogueira. A fogueira, à noite, era o que a gente encontrava para poder conversar, para poder tocar violão e era a nossa forma de interagir, bater papo, porque o fogo tem uma representação forte, é uma simbologia muito importante, eu acho.
P/2 - O que o fogo conta?
R - Não, porque o mundo não começou com os quatro elementos, ar, água, terra e fogo? E o fogo representa o que? Vida, tem que queimar, tem que ir. Você não faz limpeza com fogo? Então o fogo é muito importante, igual tem o fogo no Cerrado. Quando as pessoas... Eu me lembro que aqui tinha um senhor muito interessante, que ele chamava-se Arquelino. Uma vez ele contou pra nós que ele ficava muito bravo com essa história aí do povo do parque, que não deixava fazer nada, inclusive botar fogo, e que fazia parte da cultura, porque vai botar uma roça, as pessoas botavam fogo pra limpar, queimar as roças de touca e tudo. Aí quando chegava a época da queimada, que queimava tudo, que você tá vendo, tá queimando, porque eles não deixam mais queimar, porque ele sempre falava que o fogo ele precisa.. Ele só é prejudicial quando ele queima assim desenfreadamente, que queima não sei quantos mil hectares, aí ele é prejudicial. Mas ele sempre falava: “Olha, quando acabar as chuvas, quando estiver no fim das chuvas, não acabar totalmente, pode separar áreas e bota fogo e apaga, deixa queimar e apaga. Porque ali vem a brota do capim, porque quando queima o capim não brota novo, os bichos vêm comer. Nascem as plantas. Agora, se você não queima, quando o fogo chega, ele destrói, porque ninguém consegue apagar”. Só que, para os técnicos, no caso desse tempo do Ibama, eles não aceitavam isso, porque eles falavam que não podia queimar e fazer as colocações deles. Mas agora eles já estão fazendo isso, que eles chamam de MIF [Manejo Integrado do Fogo].
P/1 - É o fogo controlado?
R - É o fogo controlado. Depois que eles começaram a fazer isso, que lá, não sei quantos anos atrás, o povo que tinha esse conhecimento falava, eles não acreditavam. Depois que o Parque começou a aplicar, Manejo Integrado de Fogo, que eles chamam, a gente não tem mais grandes incêndios aqui na Chapada, aqui do lado do parque. O maior incêndio que teve foi em 2017, depois de três ou quatro, cinco anos sem queimar nada. Aí quando o fogo veio, não teve quem apagasse. Foi uma destruição daquela vez, foi muito triste.
P/1 - A gente vai voltar na sua infância, mas me conta, já que estamos aqui, me conta como é que foi, onde você estava quando começou, o que você se lembra, o que você viveu nessa queimada?
R - De 2017?
P/1 - Sim.
R - Essa queimada de 2017, eu acho que ela vai ficar na história, porque foi uma queimada, como queimou demais, demais, demais, a vila tomou conta de fumaça, a gente não conseguia nem dar aula, já dei aula na escola aqui. E muita fumaça, muito problema respiratório, as crianças, sabe? E foi muito difícil, foi muito devastador. Eu pensei que o mundo ia acabar. Porque na Bíblia fala que o segundo, quando o mundo acabar agora, vai ser com calor, né? E eu acho que é com fogo. Eu pensei que era aquele dia, mas não foi ainda.
P/1 - Mas você estava lá... Foi em que mês que isso aconteceu? Você se lembra?
R - O fogo? Ah, deve ter sido setembro, outubro, que é esse tempo que, agosto, setembro, é o auge das queimadas, porque outubro, normalmente, já é para estar chovendo.
P/1 - E você percebeu que estava diferente como, quando, você se lembra?
R - Diferente do que a queimada?
P/1 - É, que estava maior do que você...
R - Não, porque foram muitos focos de incêndio ao mesmo tempo. Então, foi muito impossível, era impossível de apagar o fogo, porque tinha foco de incêndio ali, sabe assim, a chapada ficou tomada de focos de incêndio, parece que os fogos foram surgindo de vários pontos, tudo ao mesmo tempo. Isso que aconteceu.
P/1 - E chegou perto daqui?
R - Até queimou uma casa ali, perto do Mar da Lua.
P/1 - E para como?
R - Olha, teve uma mobilização muito grande de muitos voluntários brigadistas, o povo da comunidade se empenhou bastante, todo mundo trabalhou, porque tinha que preparar kit de alimentação para os brigadistas, para os voluntários, veio helicóptero, veio bombeiro, veio tudo quanto é pessoas que voluntário, tudo quanto era lugar que sensibilizou, foi uma campanha muito grande até teve apelo até de pessoas, tipo, como é que ele chama? Leonardo Dicaprio. Ele fez muita gente, muitos líderes, muitas pessoas que foram para as mídias sociais para falar pelo fogo. Aí foi quando surgiu até essa Rede Contra Fogo, que é um grupo de pessoas que são bastante atuantes aqui em São Jorge, brigadas voluntárias, lá em Cavalcante também tem a Brivac [Brigada Voluntária Ambiental de Cavalcante] , as pessoas se organizaram para estar no combate desse fogo, até mesmo, porque tem muitos prejuízos. Porque o fogo, por exemplo, no Manejo Integrado do Fogo, eles protegem as nascentes, as nascentes não podem queimar. Então, você protege aquelas áreas que são sensíveis para elas não serem queimadas, porque é prejudicial. Mas nesse incêndio de 2017, eu vi a vegetação surgir que eu não conhecia. Por conta de ficar também muito tempo sem queimar, as espécies desaparecem. Aí quando veio o fogo, que acabou... É tão engraçado, Lucas, porque o fogo pode queimar em julho. Nós estamos sem fogo. Quando chegar agosto, sem chover, o cerrado já brota. E ele traz outros tipos de vegetação.
P/1 - Quando queimou, matou, mas...
R - Apareceu plantas espécies que a gente não conhecia.
P/1 - Tipo o quê? Você se lembra?
R - Não, eu tinha até pouco tempo, mas meu celular estragou, não tem mais.
P/1 - Tirou foto?
R - Tirei. Tinha registro, assim, que se você perdia de vista, umas flores brancas bem próximas ao chão, tipo candombá, só que ela é branca, era uma vegetação que a gente não conhecia, uma espécie. Aí eu até conversei com o professor da UNB, com um pesquisador que veio aqui na época, logo depois, eu falei isso com ele. Ele falou assim: “Porque são vegetações que com o tempo, a medida que o capim vem esse ano, não aconteceu nada com ele, ele seca e baixa. No ano que vem, vai e vai”. Aí, com o tempo, perde-se essa vegetação. Aí, quando veio o fogo, queimou tudo, eles brotaram.
P/1 - Então, foi uma surpresa para você.
R - Não, ficou tão lindo, aqueles canteiros de perder de vista. Branquinho, a coisa mais linda.
P/1 - E os bichos, como é que ficaram nessa queimada?
R - Ah, os bichos morrem. As araras, porque a época do fogo é quando as araras chocam. E as araras, não sei se vocês sabem, elas chocam dentro de pau, do buriti. Conhece o buriti? Então, você já viu que os buriti morrem e fica assim um negócio? Aí as araras _____ ali dentro. E elas chocam em agosto, que é justamente na época da queimada. Então eles morrem tudo lá queimados, os bichinhos.
P/1 -Você... não, vou perguntar isso depois. Vamos voltar, então, bem...
R - Uma fogueira?
P/2 - É, você falou que todo dia acendia uma fogueira.
R - Não, era normal. Mas a fogueira que a gente mais gostava era a de São João. Porque na fogueira de São João, a gente fazia com madres, fazia com padres, tinha casamento, tinha tudo. Porque era muito sério, assim, o santo. Aí você vinha, por exemplo, eu gostava muito de você. E aí, quando a gente gosta muito, é que a gente vai ser compadre. Se eu tinha um filho, te botava pra batizar, né? Porque era uma consideração muito grande. E se a gente não tinha filho, a gente podia saltar a fogueira de São João e fazia comadre e compadre. Então era muito representativo, né?
P/1 - Ah, vocês faziam... Ah, sua água tá aí, ó. Se eu entendi, vocês faziam pacto pulando a fogueira, é isso?
R - Compadre. É, compadre e comadre. Na fogueira, batizado, você batiza. Na igreja católica a gente não batiza, eu batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Na fogueira de São João, você faz esse ritual verdadeiramente, a gente batizando uma pessoa, a gente pulando a fogueira e fazendo esse pacto de juras verdadeiramente com a pessoa que você gosta e a partir daquele momento você é comadre, você é compadre. Porque dentro de ser meu compadre é de muito respeito, de muita consideração. Então as fogueiras de São João eram bem marcantes. As outras não, a gente só fazia fogueira mesmo pra conversar, pra esse tipo de coisa. E também, a minha avó era viúva, então todo dia 29 de junho, que é dia de São Pedro, todas as viúvas tinham que fazer fogueira. Então, no dia de São Pedro, as viúvas faziam fogueira, que era o São... São Pedro é o protetor das viúvas. Lembra do almanaque? (Risos).
P/1 - É como se fosse um batismo de fogo, então, essa questão do…
R - Uhum. O fogo batiza, casa. As pessoas que eram casadas no Padre só podem casar uma vez, você sabe, né? Você sabe disso, né, Jonas?
P/2 - É mesmo?
P/1 - É. O casamento da igreja é só uma vez. Aí você só pode casar de novo na igreja se ficar viúvo, que é o que é permitido. Então, mas você pode casar na fogueira. Se você foi casado, separou, aí você pode casar na fogueira. Mas no padre não pode, só se ficar viúvo.
P/1 - E, Téa, você... se você refletir, você consegue puxar pra gente as primeiras memórias que você tem de pequenininha? Algum cheiro, alguma coisa?
R - Memórias de infância?
P/1 - As primeiras coisas que você... você acha que você se lembra da sua vida, assim?
R - Eu me lembro de muita coisa. Mas assim, deixa eu ver. A minha infância foi uma infância não diferente das pessoas da minha época, porque naquele tempo criança não tinha o privilégio que as crianças têm hoje, né? Era um outro momento. Então, desde muito cedo a gente já começava a trabalhar. Por exemplo, eu com seis anos de idade, eu já tinha a obrigação de levar comida para o meu pai, que a gente andava ali na média de três, quatro quilômetros pra levar comida. Ia eu e meu irmão levar comida pra ele, que ele saía cedo pra trabalhar, não dava pra ir cá e vir, então a gente ia levar. Voltava e ia pra escola estudar. Mas a gente lavava louça, buscava água nas torneiras que a gente não tinha água encanada. Mas também a gente brincava muito, né? Foi uma infância de muita brincadeira, brincadeira de rodas. No fim de semana a gente sempre fazia cozinhadinho. Cozinhadinho que vocês chamam de piquenique, a gente chamava de cozinhadinho. Então cada um pegava o que tinha na sua casa, um pouquinho de cada coisa, e levava e a gente fazia, tinha um pé de pequi ali na serra, a gente ia fazer as comidas no domingo. Fazia nosso fogueiro, juntava as pedras, fazia o fogo e levava as panelas e a gente cozinhava ali. A gente não tinha prato, aí tem uma planta no Cerrado que chama chapéu de couro, ela é bem grossa assim e a folha dela parece um prato, ela fecha. Então ali a gente usava pra tomar água no rio, usava pra botar comida, a tampa da panela também servia de prato e a gente tinha muita cabaça, sabe? Você conhece cabaça? Conhece, se não conhecer não tem… Então a cabaça, ela... depois dela seca, você podia... a gente limpava ela e usava pra levar água pro garimpo, botava água nela e ela ficava bem geladinha, bem gostosa. E também serrava ela, podia fazer as cuias que você usava pra lavar arroz, era como um utensílio de casa, sabe? E a gente ia se virando como podia. Era artista.
P/1 - E que horas que você levava a comida pro seu pai, pro seu irmão?
R - Dez horas da manhã. 9, 6, 10. Ele tinha que ir lá, levar e voltar.
P/1 - E você conversava com seu pai, com o pessoal que trabalhava com ele lá? Como é que era?
R - Não, naquele tempo, menino, não tinha muita vez, não. A gente só era… Você tinha muito respeito pelos mais velhos, da benção, só boa tarde. A gente não tinha direito de estar conversando, entrando na conversa dos outros igual é hoje. Cada um no seu lugar.
P/1 - E esse caminho como é que era? Você lembra quanto tempo você demorava? O que você sentia quando você estava indo levar a comida para ele?
R - Nossa, às vezes eu sentia muita raiva, porque era muito cansativo, né? Ter que ir. Ele vinha todo dia na obrigação do sol quente, mas tinha que ir.
P/1 - Entendi.
P/2 - Sabe de uma coisa que eu queria saber, como era na tempestade? Os pássaros. Você brincava com o passarinho, sabia reconhecer o canto dos passarinhos?
R - Sim, até hoje. E tinha um que era o meu preferido, que era o tucano. Aí eu me lembro que uma vez eu peguei e pedi para o meu amigo pegar um tucano para mim, porque eu achava lindo, maravilhoso. Aí ele pegou o filhote do tucano. E aí eu trazia, mas o tucano tem um bico muito grande, né? E ele era filhotinho, ele não dava conta muito assim. Então eu tinha que pegar o mamão pra botar pra ele comer e tudo, mas depois ele voou. Não fiquei muito com o tucanão. Aqui tinha muita jandaia. Jandainha é uma... É um pássaro bem verdinho. E a gente tinha... Ali tem uma grota que ela dava água só seis meses durante o ano, na época da chuva. Então lá a gente lavava as roupas e a gente botava os coradores de roupa, sabe? Você lava a roupa e dava sabão e ensaboava isso e botava assim no chão, pra ela ficar bem limpinha. E aí tinha uns pés de goiabeira e as jandaias, uns passarinhos verdinhos. Acho que acabou, que eu não tô vendo elas mais. Elas vinham, tinha milhares de jandaias, sabe? Elas vinham. Agora tem ainda pássaro preto. Conhece o pássaro preto? Os pássaros pretos, eles têm até hoje, eles gostam muito de atacar roças de arroz. O povo que plantava detestava. Aí tinha que fazer aqueles espantalhos, botava nas roças pra espantar. Mas aqui até hoje ainda tem muito pássaro preto. Ele é o seguinte, ele sai de manhã e vai não sei pra onde. E depois, quando é seis horas da tarde, eles voltam, dormem nos pés de manga e vão embora. De manhã eles cantam e vão. Agora uma coisa que eu gostava muito da minha infância, porque antigamente o povo contava muito, casos de assombração, né? De defunto. Sim, menino! Na fogueira e dentro de casa também. O povo antigo contava muito caso, que não tem mais caso hoje, o povo não conta mais. Mas o povo contava muito caso de gente que já morreu, de defunto, que vinha, que puxava o pé da gente, era muito assim, sabe?
P/2 - Tu lembra de algum?
R - Do Saci Pererê, de tudo quanto é coisa, né? Do Rumãozinho. E aí, então a gente tinha muito medo de defunto, porque a gente achava que eles morriam e voltavam mesmo, né? A gente não andava à noite. E nos casos que eles contavam, quando o galo cantava, aí eles iam embora, não voltavam mais. Então, meninas, as noites de pânico, quando o galo cantava, eu achava melhor que eu saia, graças a Deus. E galo canta como uma sinfonia. Primeiro um canta, depois o outro, depois o outro. Gente, até hoje eu acho que a coisa mais incrível do mundo é isso, né? E tem gente que não suporta o cantar do galo.
P/1 - Agora, você lembra de alguma dessas histórias? Você pode contar pra gente?
R - Que história?
P/1 - Essas histórias que você ouviu.
R - Do povo que morre?
P/1 - De assombração que te marcou, que você consegue lembrar agora? Não, então... Como é que eram essas histórias? Se você puder contar.
R - Eu vou contar uma que até outro dia eu acreditava nisso. Mas depois vira lenda, engraçado, né? Eu sempre gostei muito de conviver com pessoas mais velhas. Eu, minha mãe... Teve um época, porque não tinha mais o garimpo aqui e meu pai gostava muito de ir em outros garimpos e minha mãe ia com ele. E aí eu fiquei com minha avó e meu irmão. E aí, aí sempre tinha as comadre dela que ia contar a casa e tudo, aí um dia elas contaram, eu tava escutando. Ela falou: “Olha comadre, quando a fulana de tal nasceu, ela quase morreu porque eu todo dia vi uma cobra mamar no meu peito e minha filha foi definhando”. “Como assim?” “Não, ela, a cobra, mamava e botava o rabo na boca da minha filha”. E a menina ia definhando, definhando, aí que a gente descobriu, meu marido descobriu que era a cobra que estava mamando. Menina, eu tive pânico disso. Mas eu acreditava. Lucas, acredita nisso? De pouco tempo pra cá, que essa gente é lenda, né? Isso não pode ser verdade. Hã? Você já viu falar isso? Eu não acredito que é verdade, não. Mas eu acreditava nisso. Então o povo contava muita coisa assim, sabe? É porque eles faziam medo pra criança e a gente não tinha muita... Quando eles queriam... que a gente não fizesse qualquer coisa, eles falavam: “Olha, não faz isso que o fulano vai vir puxar seu pé de noite”. Então, menino, você tinha muito medo. Aí o galo…, aí eles falavam: “Olha, mas quando o galo cantar, vai embora”. E aí, isso me marcou, porque o canto do galo, eu relaciono a essas fantasias de criança.
P/1 - E conta pra mim, conta pra gente aqui, como é que era a sua casa? Você consegue descrever ela?
R - Minha casa? A nossa casa?
P/1 - A casa que você nasceu.
R - A casa era assim. Era uma casa que tinha dois quartos, um do lado, outro de outro. Tinha a cama do meu pai, com a minha mãe, nessa cama que eu dormia. Acho que com o meu irmão também. Agora eu não me lembro onde que as minhas outras irmãs dormiam. Aí tinha a sala, aqui tinha outro quarto, aí tinha a cozinha. Naquele tempo a gente não tinha banheiro, não tinha pia, não tinha nada dentro de casa. A casa era de chão batido, de palha. Eu me lembro dessas coisas. Aí tinha uma mesa na sala, tinha um fogão de lenha que todo mundo tinha, que a gente cozinhava. A gente lavava vasilha, era bacia de água. Normalmente tinha duas bacias. Uma você lavava, ensaboava e na outra você enxaguava. Porque a gente tinha que buscar água longe, então pra economizar água a gente fazia isso, esse método.
P/1 - E como é que era a rua? Você falou que tinha uma rua só, né?
R - Uma rua.
P/1 - Qual rua que era?
R - Era aquela rua, ali onde a gente estava, lá é o quintal da minha casa. Aí, na parte da frente, onde a gente subiu pra ir lá no mirante, era aquela rua, tinha a igrejinha, era a última casa. Aí, aqui embaixo, tinha a casa da minha avó, que era a última também. Isso aqui não tinha, era tudo mato. Era uma rua de chão batido, uns cristaizinhos, que eu te contei já, que a gente fazia as... descascava os cristais e jogava na rua, né? Então, quando vinha... tinha pontos que tinha mais. Tinha duas vielas, onde tinha mais cristal. Aqui na rua, a gente varria as frentes das casas, porque a gente gostava de brincar, de jogar bola, brincava de bandeirinha, né? Sabe o que é bandeirinha?
P/1 - Não, como é que é?
R - A gente fazia dois times. E aí passava uma risca no chão, aí ficava um time daqui e outro de lá. e a gente contava algumas passadas, botava uma bandeirinha de folha e outra aqui. Esse time daqui tinha que pegar a bandeirinha de lá e o de cá pegar de cá. O que conseguisse pegar sem o outro, aí corria atrás, aí quando você pegava um no outro, falava, tá colado, você tinha que ficar parada ali, né? Tipo pique-esconde. Aí vinha o outro e podia te salvar. Aí até você chegar do outro lado e aí esse time ganhava. A gente gostava muito de brincar disso, porque a gente corria muito. E de bete, que é com bola. E também a gente brincava muito de roda também. Roda, aquelas cantigas de roda. E os meninos brincavam de biloca na rua. Sabe o que é biloca? Bolinha de gude. Aí fazia umas casinhas assim ó, aí você jogava e a bolinha tinha que entrar, cair dentro da outra. Tinha lá o jogo, eu não gostava muito de jogar isso não. E a gente jogava baralho, que era só o burro e aquela de três cartas, que da nova chama pife. A nossa brincadeira era essa.
P/1 - E aí vocês limpavam a rua com isso?
R - Varria pra poder ficar limpinho, pra gente poder correr, porque a gente andava descalço.
P/1 - E os cristais machucavam?
R - Não, depois não machucavam mais não, porque o pé da gente fica grosso. Mas ele corta.
P/1 - Mas me conta, como é que ficava essa rua? Com os cristais, como é que essa rua ficava?
R - A noite, quando era noite de lua cheia, que ela reflete. Você já foi em algum lugar que não tem energia elétrica e tem lua? Você vê que fica clarinho, parece dia, né? Aí a lua, quando ela bate nos cristais, reflete uma luminosidade e fica uma coisa muito bonita com aquele chão iluminado.
P/1 - Que eram os cristais que vocês...
R - Exatamente.
P/1 - E, antes de te falar do garimpo, me fala um pouquinho como era o dia a dia da sua casa nessa época? Você já falou que já levava comida para o seu pai, mas como era? Vocês começavam o dia que horas? Como era o dia inteiro da sua família?
R - Não, olha, era assim, a gente levantava cedo, era uma vida normal. Às vezes, você tomava café quando tinha e fazia comida. Roupa, você não tinha essa obrigação de lavar roupa que você nem tinha. Então, você lavava uma vez na semana, uma vez no mês. As casas eram tudo de chão batido, você só varria. Mas a gente tinha que pegar lenha no mato para cozinhar. Tinha que buscar água para encher os potes de água. Arroz, que a gente comprava arroz, era de casca. Tinha que socar no pilão pra limpar. Era assim a vida. Não tinha muita coisa pra fazer de diferente, não.
P/2 - E brincadeiras? Quais eram as brincadeiras?
R - Essas aí que eu falei. Brincava de bandeirinha, de pique-esconde, de bete, de biloca os meninos.
P/1 - Você falou que eram quantas famílias nessa rua? Eram poucas, né?
R - Poucas famílias.
P/1 - Você conhecia todo mundo?
R - Todo mundo e mais um pouco.
P/1 - E como é que era essa coisa do garimpo dentro da sua casa? Seu pai e sua mãe traziam isso pra dentro, contavam sobre o garimpo? Como é que isso impactava a sua vida nessa época?
R - Não, a gente vivia isso, né? Era a nossa forma de viver. Era uma coisa normal do cotidiano. Você ia, buscava, vendia. Isso aí era aquela coisa da rotina mesmo. Não tinha... Sempre o sonho de ter uma vida melhor.
P/1 - Mas na sua casa, vocês trabalhavam onde? Com os cristais? Como é que era isso? Não era dentro de casa?
R - Não, era no terreiro. Era por lá de fora, porque você tinha que ter claridade para poder beneficiar. Então, normalmente, as pessoas ficavam na porta da rua. Porque aí você já conversava com o outro, porque as casas eram uma pertinho da outra. Aí era o momento que você estava ali trabalhando, conversando e fazendo os benefícios dos cristais.
P/1 - Fala para quem não sabe, como é que é esse trabalho de garimpar cristal?
R - Olha, eu vou te falar que é um trabalho muito árduo, muito cansativo, porque você vê, você levanta cedo, você vai trabalhar no sol, abre buraco, perde peso, é muito difícil. É uma vida muito dolorida, sabe? Sofrida demais. E quando foi proibido o garimpo aqui no parque, às vezes cada membro da família, eles iam para um lugar mais distante, que chama Fiandeiras. Aí lá eles iam, porque lá eles ficavam intocados e trabalhavam escondidos. Aí lá eles ficavam, praticamente moravam, às vezes plantavam roça, porque não dava pra ficar pra lá e pra cá, aí plantava milho, plantava feijão, mandioca. Enquanto eles trabalhavam pra tirar o cristal, eles já faziam a roça, que era pra ter os mantimentos pra poder comer. Então eu ficava lá 3, 4, 5, 6 meses. Só vinha quando começava a chover. Porque quando começava a chover eu enchia. E aí você não tinha como passar. Então o tempo da seca ficava lá e o tempo da chuva ficava aqui, né? Porque, menina, pensa numa vida difícil que era nossa.
P/1 - E como é que você acha o cristal? Como é que o garimpeiro, a pessoa olha para o chão e sabe que tem ali?
R - Não, assim, agora a gente olha para o chão e pega, mas você tem que abrir buraco, você tem que abrir, você tem que tirar junto da terra, vem os cristais, né? E aí você vai e separa. Aí depois você lava, porque ele vem cheio de terra, para você beneficiar ele, separar o que é bom, o que é ruim, porque tem cristal que tem muita impureza. Os que tem impureza não tem valor comercial.
P/1 - E quais são os cristais que vocês geralmente achavam?
R - Aqui só tem um tipo, é o cristal de quartzo, o transparente. E, às vezes, tinha um galinho mais longe, que eu não sei onde era, porque eu não saía daqui dessas redondezas, tinha um cristal amarelo.
P/1 - Você já chegou a ver?
R - Já, mas eles falavam que era cristal… Ah, esqueci o nome agora. Tipo queimado, sabe assim alguma coisa, que ele era bem amarelo, não era igual o nosso. O daqui tudo é branquinho, transparente.
P/1 - E você chegou a garimpar também?
R - Sim.
P/1 - E como é que você fazia? Entrava no buraco ou não?
R - Não, eu não conseguia fazer buraco grande, né? Mas a gente tinha nossas enxadinhas pequenas e era mais assim, em cima da terra mesmo. Você abria o buraco e ele já vinha.
P/2 - Você lembra o primeiro dia que você pegou um cristal?
R - Não, porque era tão natural, era assim, tão no cotidiano que não tem... Tipo assim, você andava na rua, você pegava cristal. Porque, principalmente na época da chuva, chove grosso, aí não dá as enxurradas, aí não esbarranca, ali sai cristal. Porque o povo jogava também. Porque as pedras, elas tinham valor comercial. Tipo, pedra de cinco quilos era o que valia. Então tudo que era menor que cinco quilos, eles jogavam, descartavam. Não tinha valor. Então jogava por ali mesmo. Aí quando vinha a chuva, tchá, saía, brotava. O cristal aflora.
P/1 - Agora, o povo que bamburrava até, ele tinha que achar pedras de que tamanho?
R - Muito, 30 quilos, 40 quilos, sabe? Mas aí, eles falavam assim, ó, Lucas, eu usava essa expressão, eu peguei um veio de cristal, aí esse veio, ele representava muitos quilos de cristais, era assim, toneladas, sabe? Que eles achavam tudo de uma vez, aí bamburrou, ficou rico, mas acabava.
P/1 - E como é que era essa união aí dos garimpeiros? Dava muita briga? Você chegou a presenciar alguma briga ou o pessoal era mais unido? Enfim, como é que era isso?
R - Não, brigava bastante. O povo antigamente brigava muito. Por quê? Bebia muito, brigava, tinha uns desafetos e era um povo mais bruto mesmo. Ao mesmo tempo, que eles eram unidos naquilo que eles queriam, mas também, tipo, não leva desaforo pra casa. Eu me lembro uma vez que eu vi uma pessoa atirada, sabe? Que o cara atirou, eles matavam muito, usavam muita faca, arma branca.
P/1 - Mas seu pai era garimpeiro manso ou era mais bravo?
R - Não, meu pai nunca foi de brigar. Ele era garimpeiro, mas ele também era carpinteiro. Ele tinha habilidades muito assim com madeira, fazia telhado, corral, fazia cerca. Quando as pessoas morriam aqui, ele fazia o caixão. Eu até esqueci, desculpa. Então, quando ele e as pessoas morriam, que a gente não tinha funerária, né? Ele era uma das pessoas que fabricava os caixões. E aí tinha as mulheres que costuravam, que faziam as roupas de enterrar.
P/1 - E você acha ou achava esses cristais... O que você achava? Bonito, feio?
R - O que você acha dessa... Então, hoje eu gosto mais, sabe? Sabe quando você faz aquela coisa porque você tem que fazer? Aí ela não tem muito... não te representa muito. Mas, por exemplo, eu gosto do cristal, mas naquele tempo, acho que devido ao sofrimento, de tudo que a gente sofria, era uma coisa que não tinha muita memória afetiva.
P/2 - E na sua família você contou essa coisa do dinheiro, do garimpo? Sempre acontecia alguma história, né?
R - Na minha família, a nossa família era família pobre. A gente não tinha, não teve... Não teve nenhuma história dessas não.
P/1 - Não bamburraram?
R - Não.
P/1 - Mas você conhece gente que bamburrou aqui da comunidade?
R - Sim, aham.
P/1 - Você pode contar uma dessas histórias de bamburro pra gente?
R - Olha, aqui a gente tinha a família de seu Balbino. Ele foi um garimpeiro que ficou muito rico. Mas ele perdeu tudo também. Morreu na pobreza. que fez dó. Ele perdeu tudo, porque esbanjava muito. Aí ele perdeu tudo e ficou... Depois teve derrame e morreu num estado de pobreza muito grande. Ele ainda tem filhos deles que moram aqui. Tem o pai da Mércia, seu Corinto, que também ficou rico. Mas ele soube valorizar, sabe? Os filhos dele estudaram, moram em Brasília, tem um poder aquisitivo bom. E os outros, que eu só sei, eles ficaram, bamburraram, mas eles não moravam aqui, moravam no Rio de Janeiro, sabe? Cristalinas, lugares mais longe.
P/1 - E vocês vendiam pra quem? Como é que era?
R - Aqui tinham três pessoas que compravam lascas, os cristais. A gente vendia pra eles, tipo um atravessador. A gente vendia pelo preço baixo ou a gente praticamente trocava por comida, sabe? Porque era assim, você ia lá, o que você vendia, você pegava uma lata de óleo, um quilo de açúcar, o arroz, os mantimentos pra, sabe, você trabalha pra pagar seu almoço. Era nesse nível. Aí as pessoas que vinham de Cristalina, aí comprava deles com valor maior. E sempre essa exploração daquele que tem mais, que explora das pessoas que têm menos.
P/1 - Vamos para outro lado da sua vida também. Você falou que estudou, né? Nessa época estava estudando, né?
R - Aqui na escola a gente estudava até a terceira série, terceira série primária. Depois você não estudava mais, porque a escola era só pré, primeiro, segundo e terceiro ano. Aí eu sempre tinha, queria estudar, porque eu achava que tinha que estudar, que tinha que ter conhecimento para poder… a gente virar a chave. Mas meu pai, às vezes ele saía para trabalhar, uma boa parte da minha vida eu morei com minha avó. Depois minha mãe voltou. Aí quando eu terminei o terceiro ano, aí eu repeti ele de novo, porque não ia, tinha que fazer o quê? Então vou de novo fazer. Aí fiz. Aí nisso tinha os filhos do meu padrinho Tião, eles moravam lá em Sobradinho. Aí a filha dele veio aqui, a filha dele mais velha. E eu falei pra ela que eu queria muito estudar. Aí ela falou: “Vou falar com sua mãe pra te levar”. Aí ela falou com minha mãe. Aí minha mãe foi e falou: “Não. Ela não pode ir, porque o pai dela não está aqui. Se eu deixar ela ir, ele não vai gostar”. Aí eu insisti com ela: “Não mãe, deixa eu ir”. Aí ela falou assim: “Não, não pode ir não, porque você não tem nem registro de nascimento”. Eu tinha 12 anos. Não tinha nem registro. Aí eu falei: “Mãe, vai lá me registrar lá no cartório”. Ela falou: “Não posso”. Mas aí todo dia eu acho que eu infernizei tanto a vida dela, que ela resolveu ir. Aí ela foi. Porque também, naquele tempo aqui não tinha nem carro, então só tinha uma pessoa que tinha carro. Então quando a pessoa fosse, ia. A gente não tinha transporte. Aí eu sei que ela foi lá pra Alto Paraíso, que tinha o cartório. Aí chegou lá, ela foi, dormiu, voltou e falou. Eu falei: “Mãe, deu certo?” Ela falou: “Não”. “Por quê?” “Porque como eu não sou casada com o seu pai no civil, a mulher do cartório falou que eu não posso registrar, porque se eu te registrar, eu não posso botar o nome do seu pai. Porque senão…” Não podia, acho que até hoje não pode. Não pode declarar o pai se a pessoa não é casada no civil. Ai, eu fiquei muito triste, chorei até porque ela tinha decidido que eu ia. Eu falei: “Mãe, a senhora volta lá e me registra, eu sei que ele é meu pai, não vai ter diferença nenhuma. Só porque vai estar lá no papel? Não, pode ir para registrar”. Aí eu sei que ela foi e registrou, só que ela, ao invés de ter feito só o meu, que eu tinha falado, ela já aproveitou e fez de todo mundo. De todo mundo que não tinha. Aí tem uma parte dos meus irmãos, que a gente não tem o nome do pai na Certidão de Nascimento, né? Porque... aí eu falei... aí meu pai ficou... ele não gostou, né? Mas aí os outros que nasceram, aí ele já foi lá e registrou logo. E aí ficou, né? Tem eu e umas três ou quatro irmãs que não tem o nome do pai. E aí eu fui, fui pra Sobradinho, fiz até a oitava série lá.
P/1 - Sobradinho em Goiás?
R - Brasília, DF. Mas eu não me adaptei lá e voltei pra cá de novo, porque é muito complicado você sair de um lugar assim, ir pra outro lugar, pra outro, sabe assim?
P/1 - Era muito diferente, não?
R - Super diferente, total.
P/1 - Por quê?
R - Tudo, tudo era diferente, né? Você tinha contato com outro mundo. Você sair daqui da roça, ir pra cidade, morar com outro povo que não é nada seu. Não deu certo.
P/1 - Desculpa insistir, mas você sentiu muito o que na mudança de roça para a cidade?
R - Você estar num ambiente que não te pertence, casa que não é sua, que você não tem o apoio da família, é totalmente diferente.
P/1 - Na escola também?
R - Na escola não tive muita dificuldade não. É... Aí fui... Mas essa relação mesmo, assim, de trabalho, sabe? Você tinha que fazer tudo na casa, porque você estava ali morando de favor. Era... Não foi fácil. Aí eu não adaptei, voltei pra cá. E aí...
P/1 - É... Você tinha uns 16 anos, mais ou menos?
R - 18. Aham. Aí voltei pra cá. Aí, tinha uma amiga minha que dava aula de educação infantil. Aí, ela queria ir embora daqui, porque ela não gostava, porque ela queria ir para um lugar que tinha movimentos. Gostava de... não gostava da vida da roça, não. Aí, quando eu cheguei, ela falou assim: “Nnossa, que bom que você chegou, porque agora eu vou dar um jeito de botar você no meu lugar e eu vou embora daqui, não aguento mais ficar aqui”. Eu falei: “Como assim?” É, vou... Quando a minha coordenadora chegar aqui, eu vou te apresentar a ela e ela vai fazer curso com você e você vai ocupar meu espaço na escola. E assim ela fez. Quando essa pessoa chegou aqui, a coordenadora desse curso específico de educação infantil, que trabalhava com crianças, ela falou que queria ir embora, que ela não queria ficar mais aqui. e que me apresentou para que eu ficasse no lugar dela. Nesse tempo, dentro do MEC, tinha uma estrutura que se chamava MOBRAL, que era Movimento Brasileiro de Ensino. Era a Fabricação de Adultos. E eles, ao trabalhavam também nesse programa de educação infantil, que pegava criança de 4 a 6 anos antes de entrar na escola, porque antigamente as crianças entravam na escola com 7 anos de idade. E aí esse... no Mobral eles pegaram essa categoria de educação infantil para poder colocar as crianças na escola a partir dos 4 anos de idade, porque eles entendiam que, graças a Deus, com o tempo, os pensadores da educação foram vendo que as crianças, elas teriam que estar na escola em outro momento também, momento das brincadeiras, que é muito importante para interagir, e que também estava sendo no processo de alfabetização, não ali naquele processo formal de aprender a ler e escrever. Há algo antecedente para que isso acontecesse. E aí, nesse tempo, você não tinha a obrigatoriedade de você ter uma formação em pedagogia, algo nesse sentido, para você ser um professor. E aí essa coordenadora veio, aí eu sei que eu fiquei três meses, em uma outra cidade, aqui pra frente, que se chama Campos Belos, que é um dos municípios que geograficamente também integra a Chapada dos Veadeiros. E a gente ia e lá a gente tinha formação, sabe? Estudava pra três meses, voltava pra casa, fazia essa formação até poder assumir uma sala de aula. E assim foi. Aí eu fui... Que escola foi? Aqui na Vila.
P/1 - Qual foi o nome dela?
R - Hoje a escola chama Dona Lindu, que é a nossa primeira professora. Mas era a única escola que tinha aqui, mas ela era uma escola estadual. Ela fica em frente àquele restaurante que nós almoçamos hoje. Aí eu comecei a dar aula, né? E aí, depois, eu fiz uma formação que tinha como se fosse o magistério, mas numa modalidade à distância, mais presencial, aqui em Alto Paraíso mesmo, onde a gente ia, estudava até concluir o ensino médio. Aí depois abriram umas universidades onde todos os professores teriam que fazer graduação em pedagogia para poder assumir sala de aula. Aí o governo municipal, que era a pessoa responsável pelo ensino, eles fizeram parceria com a UEG, que é uma universidade estadual de Goiás, que tem lá em Formosa, e aí todos os professores fizeram revestibular, eles reprogramaram, fizeram ali uma estrutura onde nós tínhamos que estudar todo fim de semana, férias, até concluir a carga horária de um curso superior normal, formal, para que todos os professores pudessem ter o nível superior. E assim eu consegui concluir a minha faculdade já com quase 40 anos.
P/1 - Isso faz uns 20 anos?
R - Sim.
P/1 - Quando você começou a dar aula, foi no começo dos anos 80, mais ou menos?
R - Foi 84, eu acho.
P/1 - E você conhecia os seus alunos, a família dos seus alunos já? Como é que era isso?
R - Menino, eu sabia o nome de todos os alunos, do pai, da mãe, de todo mundo, o nome completo, data de nascimento. Porque nós éramos muito pouco, então você sabia tudo, nome e sobrenome.
P/1 - E como é que foi para você se relacionar com esses aluninhos enquanto professora?
R - Ah, era muito divertido, porque era muito do brincar, sabe? Você trabalhar o brincar. Eu sempre gostei muito de não ficar presa dentro da sala de aula. Então eu gostava muito dos ambientes livres, sabe? Ambiente aberto, onde a gente podia interagir com as crianças. Então, foi muito bom.
P/1 - E os seus alunos, eles tinham que idade? Era 4, 5 anos?
R - 4, 5 anos. E eu sempre gostei de trabalhar com educação infantil.
P/1 - Por quê?
R - Ah, eles são uns queridinhos, né? São ótimos. Você tá ali colocando eles no mundo, né? Assim, na vida, encaminhando, dando ali o seu melhor.
P/1 - E como é que uma criança olha pro mundo, você acha?
R - Eu penso que a criança olha o mundo de acordo com o que a gente apresenta pra ele, sabe? Porque se você apresenta pra criança um mundo mais com fantasia, com as histórias e tudo, ele vê com encantamento. Se você apresenta um mundo de uma maneira mais rigorosa e tudo, aí ele tem esse olhar. Eu acho que é essa apresentação que nós precisamos estar atentos para estar fazendo com que ele tenha esse olhar e essa percepção.
P/1 - E o que você achou de ser professora na época?
R - Olha, eu gostava muito de ser professora, mas confesso que eu saí com uma frustração muito grande.
P/1 - Assim, mas eu digo, nessa época em que você, tá ali em cima, nessa época que você, essa pessoa te propôs virar professora, você pensou o quê?
R - Olha, não era o que eu queria, nunca desejei isso, mas era uma oportunidade que eu tinha naquele momento, era a única opção que eu tinha. Na verdade, Lucas, eu sempre quis ter feito Direito, porque eu sempre achei que eu queria fazer Direito Comunitário para defender minha comunidade. Porque nós vivemos momentos muito difíceis e cruéis por conta da falta de conhecimento, sabe? Então nós passamos por muitas coisas e a gente não tinha quem falasse pela gente. Então eu sempre tive o desejo de ser uma advogada, de ir para o lado do direito para poder defender a comunidade, né? Porque eu acredito que uma comunidade como a minha, que nós éramos praticamente analfabetos e semi-analfabeto, além de não ter conhecimento, não ter condição financeira, o mundo que se apresentava para nós era muito cruel. Eu presenciei pessoas aqui, assim, eu tenho um que me choca bastante, de uma senhora que estava grávida, Ela entrou em trabalho de parto e ela morreu sem condição nenhuma. Primeiro que eles tinham, acho que tinha muita anemia, devia estar doente. Ela faleceu e a barriga dela continuou mexendo. Ali uns 20 minutos, assim, aí foi parando, sabe? Assim, coisa de extrema pobreza, assim. E aí eu sempre pensava que eu queria fazer algo na área do direito para poder defender a comunidade. Eu sempre fui do coletivo, sempre achei que sem conhecimento a gente não chega em lugar nenhum. E além das injustiças, você não ter conhecimento é a pior coisa que tem. Porque você lutar com as pessoas do poder econômico, ele já é complicado. E quando você não tem conhecimento, acabou.
P/1 - Você queria ser advogada e acabou virando professora.
R - Foi a opção que eu tinha. Mas eu faço uma leitura às vezes assim... Posso falar?
P/1 - Lógico.
R - Tipo assim, até quando veio essa questão dessa mudança de governo e tudo, onde nós, classes trabalhadoras, de pobreza mesmo, a gente pôde ter a oportunidade de estar estudando, de se posicionar no mundo. enquanto ser humano, até os programas que tem, que eu acho maravilhoso, mas você pode ver que quem tem acesso e continua tendo acesso à formação de cursos, não são os pobres. Pobre tem acesso a fazer curso de geografia, não querem desmerecer, pedagogia, história, quem tem acesso a fazer medicina, engenharia, ainda continua sem dar a outra classe, né? Porque nós da classe baixa, sem recurso, a gente continua do mesmo jeito. Não tem essa mudança, sabe? Por isso que eu disse que eu saí, eu acredito ainda na educação, espero que um dia ainda possa mudar, mas se você ver ali, eu fui fazer uma pós-graduação que eu desisti dela. Porque você vê, tem mais de 100 anos que nada muda, nada acontece. É a mesma coisa, você entra na educação, você coloca ali todo o seu amor, você quer mudar, você quer transformar, que a gente sabe que o único caminho que pode transformar é a educação, quando ela for igual para todos. E a gente sai e não consegue, sabe? E isso é muito frustrante, porque se você vê a nossa história aqui, que eu contei para vocês hoje uma parte, nós éramos tratados como os marginais, depredadores do garimpo, do meio ambiente, porque a gente tinha uma atividade para a nossa sobrevivência e que não era uma coisa exploratória. A gente foi expulso do nosso local, vi muitas coisas acontecendo. Eu mesma fui calçar uma sandália havaiana, eu tinha sete anos de idade. Não era a minha realidade só, era a realidade de toda a comunidade. Aí hoje, você vê, aí nós viramos isso, passamos a entender que a natureza a gente poderia trabalhar, viver em harmonia, ter o nosso sustento. Começamos a preservar, a gente garantia o cerrado intacto. O que a gente fazia no cerrado de degradação? A gente pegava lenha pra poder cozinhar, mas era uma coisa mínima e irrisória. Hoje chega o sojeiro aqui, que devastou tudo. Você ia daqui em Brasília, era o cerrado em pé. Hoje você vai daqui pra Brasília, você só vê soja. Aí você vê, nós estamos aqui no Cerrado, a gente entende que o Cerrado é o berço das águas, a gente luta por conta dessa preservação, que ela é significativa para nós, enquanto brasileiros, mas para o planeta, porque aqui nós estamos dentro da bacia hidrográfica, que é o berço das águas. As nossas águas, ela vai para o mar, ela vai para os afluentes, e a gente tem as maiores nascentes aqui e hoje a gente tá perdendo tudo, a gente não tem mais valor, né? Perdendo tudo pro agronegócio, pra exploração imobiliária, que tá aí devastando tudo, expulsando nós enquanto comunidade, que estamos aqui dentro de uma... Já tem quase 100 anos que nós estamos aqui, né? Nessa luta da preservação, tanto das comunidades como do ambiente, e agora a gente correndo risco dessa exploração imobiliária, sai todo mundo do território e a gente sabe e acredita que as comunidades tradicionais são as que mais preservam e a gente não tem esse valor, sabe? É a gente que garante a água. para todas as pessoas do planeta. Estamos aqui lutando pela sobrevivência, pela preservação do cerrado, dos nossos recursos hídricos. E a gente vê tudo isso indo embora e as comunidades mesmo sem valor nenhum.
P/1 - Não, ele pode.
P/2 - Eu queria fazer uma pergunta nessa linha que ele falou da água. Você contou um pouco como o Cerrado é essa bacia de água. Mas como é a sua relação com a água? Você contou que pegava água desde criança na cabeça, mas a relação com as cachoeiras. Podia contar um pouco a sua relação com a água?
R - Quando, antes dessa comunidade aqui ser formada, nesse local que nós estamos, ela foi formada lá dentro do parque, lá no Garimpão, que é na beira do Rio Preto. Toda comunidade, quando se forma, o primeiro local que as pessoas escolhem é o local que tem água, né? Então foi lá dentro. Mas aí, em 1918, que as pessoas que aqui chegaram primeiro, chegaram em 1910, teve um grande incêndio e queimou tudo lá. Aí eles tiveram que sair de lá e procurou outro local que aí eles identificaram que talvez fosse mais difícil ter incêndio. Aí eles vieram pra cá, que é uma baixada. Tanto é que o primeiro nome daqui chamava Baixa. Chamava Baixa dos Garimpeiros, né? Que é uma baixada aqui, o terreno. Aqui onde nós estamos não é muito bom de água mesmo. Mas a gente tem área de pântano ali que a gente fez as cacimbas, tem uma grotinha que passa ali que hoje é o preguiça. Essa grota, tem um professor da UNB que já veio aqui há alguns anos atrás e fez uma pesquisa e falou que ela seca porque foi mexida na nascente dela. E aí, porque ela não secava, quando mexer nessa nascente ela passou a secar, então a gente tem água durante seis meses no ano. Mas nessa região ali, próxima aqui, a gente furava nossas cacimas quando a gente lavava as roupas, sabe? No período que não tinha... No período que não tinha chuva. Porque quando tinha seis meses de chuva, a gente tinha água lá da grota. Aí hoje, nossa água, ela vem do Rio São Miguel. Porque aqui tem a nascente do Ribeirão São Miguel, que abastece a vila. Nós temos a nascente do Rio Preto, aí tem o Tocantinzinho, que a gente tá no berço das águas, geograficamente falando, sabe? É o cerrado. Além de ser o berço das águas, por conta até das plantas, da formação, de tudo, é o cerrado que garante a água pro planeta. É do Cerrado que vem a água. Então aqui nós estamos na bacia, é o que a gente chama o berço das águas.
P/1 - Conta uma coisa, você tem alguma árvore, alguma planta que é a preferida da senhora?
R - Planta preferida? Árvore do cerrado? Eu gosto muito da sucupira. Aí tem as frutíferas, que são muito boas, que tem a mangaba, tem o pequi, que até ela é tombada já, o fruto pequi é conhecido como dos goianos. O cerrado é muito dinâmico. Nós temos de maio até junho, o cerrado tem uma vegetação maravilhosa. Aí depois vem aquelas flores secas, não sei se você conhece, as palipalãs, os ____, a gente tem canteiros imensos dele. Aí tem a época da florada dos candombás, que são lindos, das canelas de ema. Tem uma época do ano que é no mês de junho, agora com as alterações climáticas, as plantas mudaram até a floração, o tempo delas. Essas quaresmeiras que floresciam em junho e a gente associava a São João, porque toda a época de São João, as quaresmeiras floresciam, a gente chamava a árvore de São João. Agora esse ano eu observei que no mês de abril já começou a florada delas. Ipê, que florescia em agosto, em julho ela já estava florescendo, junho, por conta dos efeitos das mudanças climáticas. Mas cada estação tem o cerrado, ele se apresenta de uma forma. Mas eu amo as quaresmeiras também, os ipês são lindos. E sem contar que no cerrado, uma gama delas, elas são medicinais, né? A gente utiliza muitas plantas do cerrado na nossa medicina.
P/1 - O que, por exemplo?
R - O barbatimão, o chapéu de couro que eu te contei, ele é bom para diabetes, ele é bom para uma série de, bom para os rins, para uma série de doenças que a gente traz, tem muitas.
P/2 - Tem alguma doença que você teve que você se curou com planta do cerrado?
R - Sim, eu tinha febre reumática e desenvolvi, através da febre reumática, eu tive artrite e curei com óleo de sucupira, sucupira branca.
P/1 - Eu queria voltar um pouquinho para o que você falou na linha do tempo da sua vida. A gente estava falando também da sua vida como professora. Como é que você dava aula? Você já falou que levava os meninos pra fora, né? Mas o que você fazia? O que você mais gostava de fazer? Como é que você tentava ensinar eles?
R - Eu sempre me preocupei com a questão da expressão corporal. E também gostava muito de trabalhar com o sentimento. Eu dava uma aula, por exemplo, de pintura. E eu sempre gostava que eles se apresentassem, o que ele sentiu naquele momento. E sempre, chamando a atenção deles, de falar daquele momento, do que ele sentiu, quando ele estava ali naquela construção, daquele desenho, falar para os colegas, sabe? Que eu acho muito importante a gente cuidar do sentimento do outro, sabe? Eu valorizava muito isso. E a questão da apresentação. Perceber na criança, sabe? Falar e sempre aplaudir, poder parabenizar muito bem, porque eu acho que a gente trabalha a autoestima das crianças, é muito importante, porque é uma maneira como ele se apresenta no mundo. Sem essa questão da inferioridade. Será que eu posso? Eu tenho isso? Eu tenho aquilo? Eu acredito que quando você trabalha dessa forma, você tem mais chance de ter um adulto mais preparado para enfrentar as coisas da vida adulta, que não é fácil. Desafiador.
P/1 - Você tem algum aluninho, aluninha que te marcou assim, que você pensa nessa pessoa, você lembra bem?
R - Acho que não, eu aprendi muito assim, eu aprendi muito a separar, sabe assim, essa coisa de não trazer por coração e tudo. Tratava todos muito… tinha uns que necessitavam de mais cuidado, de um olhar diferenciado, mas para mim eram todos iguais.
P/1 - Mas o que te marcou mais nessa vida de professora, aqui na Vila?
R - Olha, como eu te falei, eu sempre tive essa preocupação muito grande com a Vila. Então, na escola ali, quando a gente trabalhava, ela só tinha duas salas. E aí chegou um momento que tinha muitos alunos, a gente tinha mais de 100 alunos, o espaço era muito pequeno, era muito desgastante. E aí eu sempre estava à frente desses trabalhos, ia atrás do prefeito, a gente conseguiu fazer mais duas salas, depois conseguimos, a gente foi trazendo os benefícios, a gente só tinha até a quarta série, e aí nós fomos indo atrás, conseguimos introduzir o quinto ano. E sempre um trabalho mais colaborativo. O município entrava com uma parte, a gente entrava com outra. A gente que eu falo, a Associação de Moradores, sabe? A gente tinha muito essa questão do voluntariado. E a gente foi inserindo quinta série, sexta, hoje a gente já tem o ensino médio. O ensino médio eu não gosto muito da maneira como ele se apresenta, que é mais… É um modo online, eu não gosto muito, acho que a aula tem que ser presencial, né? Deixa eu fazer online quando estiver lá no curso superior. Adolescente precisa, eu acho, de ter um professor ali na frente mesmo. Fiz movimento também, conseguimos construir uma escola maior ali, que a gente tem uma escola grande, que é do ensino fundamental, que é assim… Eu trabalhei muito para que isso acontecesse. Criei na escola também a Associação de Pais e Mestres, que mobilizava os pais a poderem participar da escola, fazer essa construção coletiva envolvendo as famílias, os pais, os simpatizantes para trazer para a escola. Então, isso me marcou muito de eu poder ter ajudado nessa construção da escola, que apesar de eu achar que tem que melhorar muito, eu fico um pouco decepcionada, eu ainda acredito que é o que pode transformar, sabe?
P/1 - E tem aluno, aluna sua que está aqui, você anda na rua e chama de professora?
R - Chama de tia, a grande maioria.
P/2 - Eu queria fazer uma pergunta sobre a tia. Teve alguma vez que você estava ensinando o aluno é que te deu o ensinamento, que você olhou assim, a criança ou o jovem te ensinou alguma coisa?
R - Olha, como eu sempre trabalhei com educação infantil, e é uma outra proposta, assim, de ensinar não, mas de gestos sim, sabe? Porque eles são bem carinhosos, sabe essa questão de trazer flor? Estava sempre preocupada em dar um presente, trazer uma flor pra dar. Isso pra mim é um gesto de amor muito grande, sabe? Então, assim, nesses pequenos gestos a gente aprende muito, sabe? Mas, eu sempre lembro de uma aluninha que eu tinha, que às vezes, eu sempre gostei assim, meio que da perfeição, né? E às vezes tinha uns que tinha mais dificuldade. “Olha, você vai, isso não tá certo, você vai fazer direito”. Aí ela sempre falava assim: “Tia, meu pai sempre fala que o preguiçoso trabalha duas vezes, é verdade, não é? Porque se você faz mal feito, você tem que refazer”. Então acaba que isso ficou para mim também, para a vida. E às vezes eu exemplifico. Olha, o preguiçoso trabalha duas vezes.
P/2 - Eu queria também perguntar assim, de toda essa natureza do cerrado, qual foi uma lição que você já aprendeu, sendo aluna do cerrado, que é com a natureza que você aprendeu?
R - Olha, o cerrado, se você for ver, a gente tem tudo nele, né? Você tem desde a alimentação, porque tem a época dos frutos do cerrado, você tem a água, você tem os pássaros, você tem belezas cênicas, você tem a sua medicina ali natural no cerrado, você tem a comida, tem um palmito maravilhoso que a gente chama de catulé, que você usa na culinária, tem a pimenta de macaco que você usa também na culinária. Tem o jatobá, que é uma, não sei se vocês conhecem, ele é um fruto, ele dá uma farinha que ele tem um potencial muito grande que cura anemia, problemas de desnutrição. Tem os coquinhos do cerrado, tem o buriti. Então, você tem tudo na natureza, né? Você tem ali a alimentação, você tem a cura nas ervas medicinais do cerrado, você tem a água. A água é o que mais representa, porque a água é vida, né? Então, se você pensar, você trabalha tudo na sua vida, tudo que você quer dentro da natureza. Beleza cênica tem coisa melhor pra você contemplar e você ter qualidade de vida, você ter essa conexão com a natureza, com beleza cênica, com o cantar dos pássaros, com a alimentação, tudo, ele representa tudo. Ele é a nossa vida, o cerrado. Então, assim, e a cada dia que você levanta e que você olha para o cerrado, você vê uma coisa diferente, você tem uma contemplação diferente. Desde a hora que o sol nasce até a hora que ele se põe. Se você está com baixa energia, você fica descalço, você anda no chão, você pega a energia da terra. Se você abraça uma árvore, você tem ali a força da natureza, né? Então, gente, eu acho que é tudo que a gente precisa, né? Estar no Cerrado, que é o meu bioma, onde eu nasci, mas de maneira geral também a natureza em si, né? Muito da Mata Atlântica também.
P/1 - Você levava os seus alunos para o mato, né?
R - Sim, dava aula ali na beira do riozinho.
P/1 - E é a mesma coisa que dá lá dentro da sala?
R - Não, totalmente diferente.
P/1 - Por quê? O que acontecia, por exemplo?
R - É a liberdade, né? Você tem a liberdade, você pode ali experienciar várias coisas. Primeiro você não está dentro do quadrado. E aí você vai para um espaço aberto onde você pode explorar tudo. Você pode fazer uma atividade bem lúdica, onde as crianças podem contemplar, podem retratar o que viu. E ali você tem uma gama de oportunidades de mostrar para as crianças, ou até mesmo para o adulto, o que você tem de oferecer para eles, qual é o sentimento deles, deles poderem viver e experienciar tudo isso. “Passaram duas jandaias. Você viu?” Não em grande quantidade.
P/1 - E esse contato com o mato impactava as crianças?
R - Eu acho que sim, elas gostam bastante. Olha, toda criança adora sair da sala de aula, você já percebeu isso? Você já foi criança? Quando você ia passear não era bom? É a melhor coisa, porque é a sensação de liberdade, você vai desbravar, vai conhecer outras coisas, outro ambiente.
P/1 - Vamos fazer uma pausa de 10 minutos? Pode ser? Rapidinho? Eu vou precisar só ir no banheiro, só.
P/2 - E aproveitar que você estava comentando isso de como o cerrado vira medicina na mão das pessoas, se vira cosmética, se vira sabão… conta um pouquinho dessa história?
R - Sim, aqui tem várias pessoas que fazem os cosméticos com produtos do Cerrado. Tem os sabonetes, temos também protetor labial, que é feito do Buriti, eles usam a base do Buriti. Tem sabonetes, por exemplo, sabonete barbatimão, que é um sabonete íntimo, sabe? Para as mulheres. Tem de baru, que é uma outra castanha maravilhosa. Não sei se vocês já conheceram a castanha do baru. É como se fosse a castanha do Brasil. No Cerrado é a castanha, o baru, que é maravilhoso, tem os risotos, tem sorvete, por exemplo, ali tem uma sorveteria que ele faz pistache com baru, é maravilhoso. Então, se você perceber, a gente tem tudo na natureza, né? E o Cerrado, ele é um dos mais ricos que tem, porque eles falam que o Cerrado é o primo pobre da Amazônia, que eu discordo. Porque tem tanta riqueza, com tanto potencial, ainda falar que é primo pobre, e aí o rico vai ser aonde? Só que o cerrado não está tendo o valor e nem o olhar que ele deveria ter. E a gente precisa que as autoridades tenham esse olhar diferenciado para o cerrado, porque é ele que garante a vida do planeta, das pessoas. Porque se a água acabar, não vai ter sobrevivente, porque eu acho que é impossível, a gente não vai conseguir viver sem água. E está na hora de ter essa atenção voltada para o cerrado. para ter esses investimentos no cerrado, ter as leis para que possa garantir que o cerrado continue de pé e que pare de desmatar porque a soja vai destruir, ela está destruindo tanto o cerrado como a saúde das pessoas porque é muito veneno, é muito tudo e vai acabar com tudo e daqui a pouco nós ainda temos água pura. Temos a... assim, eu não sei nem que palavra usar, né? Mas é o privilégio, talvez, da gente ter aqui na nossa região o Pato Mergulhão, que é um dos indicadores de água pura do Cerrado, né? E o pato-mergulhão, ele se encontra aqui no nosso ribeirão do São Miguel, no Tocantinzinho ele tem, acho que lá no Rio dos Couros também, e que é um indicador de água pura que nós temos aqui na Chapada dos Veadeiros. E aí o pato-mergulhão é uma ave que está quase em extinção e a gente precisa garantir a vida do pato para garantir essas águas puras para a nossa sobrevivência.
P/1 - A gente está falando das coisas do cerrado, dos recursos da vida, da vida não humana também. Eu queria fazer uma ponte com a questão de vocês estarem olhando para isso. Como foi a proibição do garimpo e essa virada? Como é que isso aconteceu na sua vida?
R - Então, Lucas, no começo era muito conflitante, a gente tinha ódio de tudo isso. Porque era assim, voltando ao tempo, a gente estava naquele lugar onde para a gente sobreviver, era questão de sobrevivência, a gente necessitava de ter a nossa atividade econômica que garantia a nossa vida. E aí foi tirado da gente sem dar nada em troca. Então esse é um sentimento de revolta, de tudo, sabe? Cara, nós estamos aqui antes de vocês. Só que a gente não tinha esse entendimento da dimensão e da importância que era. Mas também foi muito injusto. Eu sempre falo que o governo tem uma dívida social aqui na vila com a gente. Por quê? Não é só, mesmo que fez essa conexão de trabalhar com o turismo, não era só isso, acho que falta mais. Mas a gente conseguiu fazer do limão a limonada, porque depois, com as formações, as vivências que nós fomos ter, nós entendemos que a gente precisava ser o guardião. E hoje, ser guardião do cerrado… e hoje, por exemplo, eu mesma, eu defendo tudo isso, a natureza, a nossa existência, com unhas e dentes. Eu aprendi a ser uma guardiã do cerrado e vou, participo de reunião, vou longe, vou em Brasília, vou em Goiânia para poder falar disso, porque sem ele não tem vida. Só que a maneira como aconteceu foi muito cruel com a gente. A gente estava falando de vidas que muitas pessoas morreram de subnutrição, de muitas outras coisas, por conta dessa situação que aconteceu e não deu nada em troca. E hoje nós sobrevivemos a tudo isso por um esforço coletivo, que nós fomos, nos juntamos, nos organizamos através de associação de moradores, porque já que a gente não tinha o poder econômico, a gente podia pelo menos estar unido para estar de forma coletiva indo atrás dos nossos objetivos para garantir a nossa permanência no território, que foi a maneira que nós encontramos para sobrevivência. E hoje, a defesa do Cerrado… O que a gente luta hoje, a gente está passando por um momento muito delicado na Chapada, que é a expansão imobiliária, que está com proposta de chacreamentos, loteamentos, do lado, praticamente dentro da unidade de conservação, colocando em risco tudo que a gente conseguiu até hoje. Aqui hoje, o Parque Nacional é patrimônio da humanidade, A gente tem esse título da Unesco. Nós estamos dentro da APA do Pouso Alto, que é uma área de preservação ambiental que todo município de Alto Paraíso se encontra dentro. Nós temos aqui, parece que 57, se não me engano, 57, 52 RPPNs dentro do território da Chapada dos Veadeiros, e uma grande maioria aqui, que são áreas de preservação, que são de proprietários particulares, de tamanha relevância, que é a Chapada dos Veadeiros e o Cerrado. E nós estamos em campanha de sensibilização, para que a gente tenha mais RPPNs, para que nós somos reserva da biosfera, não sei se eu falei para vocês, reserva da biosfera. Então aqui é uma área muito sensível e delicada que ela precisa e deve ser tratada e olhada com outros olhares, porque aqui é a garantia de vida para o planeta e para as futuras gerações.
P/1 - Agora, então significa que no começo vocês tiveram algum embate com esses órgãos como o ICMBIO, o IBAMA, isso?
R - No começo não existia nem ICMBio nem IBAMA, era IBDF, Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. O IBDF, os funcionários eram muito truculentos, eles tomavam tudo dos garimpeiros, todos os cristais, tudo, as ferramentas, eram muito truculentos. Aí depois veio o Ibama numa linha assim, mas também de fiscalização. Aí agora que é o ICMBIO, né? Mas depois ali da década de 90, quando iniciou esse processo do turismo, do garimpo para o turismo, essa transição, nós já da segunda geração, porque a primeira geração que era da minha mãe, do meu pai, minha avó, eles não suportavam nem que a gente relacionasse com eles, porque ele tinha como inimigo. Mas a gente já começou a ter um olhar diferenciado, já entender a importância da natureza, de saber que dali a gente poderia estar transformando, sabe? E aí nós fomos olhando por outro olhar, o olhar da sustentabilidade, né? Essa garantia tanto da nossa sobrevivência como da preservação do meio ambiente. Agora tem uma coisa assim que eu sempre penso e falo, que é o seguinte, nós aqui da vila, eu principalmente, eu sou daqui, nasci aqui, não tem outro lugar para morar. Eu tenho a consciência de que eu não estou aqui para ficar rica, porque da natureza a gente não está aqui para enriquecer. E o que está acontecendo? Está vindo muita ganância. As pessoas vêm para cá achando que vai enriquecer e que não vai… A natureza não está aqui para enriquecer ninguém. É uma questão de sustentabilidade. É a gente poder ter qualidade de vida, a gente poder viajar uma vez no ano, que já está bom demais, porque a gente nem tem necessidade de sair daqui, a gente está no paraíso. Não gosto. Às vezes é necessário. Mas assim, tudo se complementa. Sinceramente, eu não tenho vontade de sair daqui. Por quê? Primeiro, todos os dias eu convivo com pessoas que vêm de tudo quanto é lugar. Então pra mim já é um presente, não é isso? Poder estar aqui com vocês, a gente compartilhar momentos, poder sair ali, tomar um banho de cachoeira, bater papo com o vizinho. Tem presente melhor do que esse? A gente precisa de muita coisa na vida? Não precisa, a gente só precisa de duas coisas: saúde e paz. Só! E aí, às vezes você quer viajar, quer conhecer outro lugar e você poder ter seu dinheiro, você trabalhou, economiza e vai poder ter, se quiser, ir lá viajar, porque aqui para mim eu não preciso sair daqui não, aqui eu tenho tudo o que eu preciso. Mas aí vem as pessoas de fora que querem ficar ricos e aí eu, desculpe o termo, mas a gente não pode prostituir a natureza em benefício próprio, porque isso é prostituição. E aí eu fico muito indignada com tudo isso, porque são as pessoas que estão chegando com esse nível de pensamento e eles esquecem que aqui tem uma comunidade, esquecem que eles só chegaram aqui porque nós primeiros ocupamos e garantimos essa preservação para que eles chegassem até aqui, sabe? Então, é esse olhar que eu gostaria que as pessoas que aqui estão chegando e que a gente também não pode proibir, porque o sol nasceu para todos, mas cada um vê ele da maneira como ele reflete, de poder ter o mínimo de consciência de saber aonde ele está, pedir licença, o respeito aos nossos antepassados e a gente poder deixar um mundo melhor do que a gente achou, e como.
P/1 - É que foi esse aprendizado dessa nova linguagem, digamos assim, dessas questões de turismo, de não sei o quê? Como é que foi esse processo? Pessoas ajudaram vocês ou não? Como é que foi?
R - Quando, lá em 1988, quando a gente começou esse processo do turismo, eu percebi que a gente estava repetindo a história. Lembra que eu falei que as pessoas vieram, enriqueceram, acabou o garimpo, eles foram embora e ficou aqui quem não tinha jeito. Quando começou a exploração do turismo, estava acontecendo do mesmo jeito. As pessoas vieram do poder econômico e, mais uma vez, a comunidade ia ficar fora do processo. Coincidiu logo depois, em 1990, 1991, que entrou aquele governo Collor. Aí ele botou um plano que se chamava PDB, Plano de Demissão Voluntária. Aí as pessoas já começaram a vir aqui. Tem pessoas que têm muita visão de futuro, eles começaram a perceber que aqui seria um destino muito interessante. Pedir demissão dos trabalhos, comprar terrenos, porque naquele tempo ninguém mais queria ficar aqui na vila, porque as memórias afetivas, elas não existiam, era só de tristeza e dor. Então as pessoas queriam mesmo se livrar, essas pessoas chegaram, compraram terreno, começou a montar pousada, montar os negócios, e mais uma vez a comunidade que fora. Eu fiquei pensando: eu preciso fazer parte desse processo. O que eu posso fazer? Não tinha dinheiro, não tinha como fazer uma pousada. Eu tinha o sonho de fazer uma pousada, mas para fazer pousada tinha que ter recurso. Aí eu tinha uma varandinha na minha casa e tinha um fogão e uma cozinha. Aí fui, convidei minha mãe: “Mãe, vamos fazer comida para as pessoas?” “Aí não quero, não quero nem conviver com esse tipo de gente”. Porque já estava com trauma. Aí eu chamei minha irmã, minha irmã topou, porque eu tinha dois filhos, já era mais difícil. Aí nós iniciamos um restaurante, onde eu tinha uma listinha de um caderninho, a pessoa passava, eles anotavam, encomendavam o almoço, porque a gente não tinha energia, não tinha geladeira, não tinha nada. Até a quantidade de pratos que eu tinha, acho que era só quatro, não tinha nem panela de pressão. E ali eu iniciei no Carnaval de 88. Durante o Carnaval de 88, eu tive, parece que, 18 clientes em 5 dias, que foi maravilhoso. Comprei tudo para pagar depois, porque nesse tempo eu já dava aula. Então eu falei: “Bom, eu vou comprar tudo no valor que eu ganho do meu salário”. Aí fui, comprei no crédito, se der certo, eu pago com o que entrar e se não, do meu salário eu pego e pago. E assim fez. Aí deu certo, paguei todos os fornecedores e ainda sobrou dinheiro. Aí eu fui e comprei panela, porque eu precisava de mais utensílios. Comprei panela, comprei pratos, sabia que ia dar certo. E aí eu comprava os insumos e sempre pagava depois que as pessoas vinham, porque o meu desejo mesmo era ter a pousada, que é essa aqui. Aí eu pensei, quando eu tiver 60 anos, eu vou estar com minha pousada pronta, aí eu não vou ter mais o restaurante, porque eu vou estar sem força para trabalhar, porque restaurante dá muito trabalho, e aí eu vou ficar só cuidando da pousada, porque eu achava que era mais leve. Beleza. Aí fui. Essa casa que eu morava era do meu pai, que ele me emprestou, cedeu para eu morar. Aí eu fui, comprei com meu marido o terreno do lado, construí aquele espaço, aquele restaurante, fui eu que construí, já com o meu trabalho. Ali é o fundo do meu quintal, aí na frente é a casa, ali é o fundo do meu quintal, aí construí o restaurante. Mas, para isso acontecer, o que aconteceu? A gente tinha movimento, mas não nessa grande escala que é hoje, mas era o suficiente que a gente precisava para aquele tempo. Daí eu me lembro que aqui em Teresina de Goiás, aconteceu um fórum de discussão, sabe? Aí veio uma pessoa lá de Brasília, que era como o Secretário Executivo do WWF, que tinha uma sede em Brasília. Aí esse amigo nosso, que era o Elias Martins, que quem introduziu o turismo aqui, ele era jornalista, sabe, ele mudava, que era uma pessoa muito inteligente, e ele foi nosso mentor. Aí ele falou: “Téia, olha… - eu já era presidente da Associação de Moradores. Tinha sido eleita - vai ter um evento lá em Teresina, vai vir uma pessoa assim, a gente deveria ir lá para contar a história de vocês, para ver se a gente consegue sensibilizá-los para que eles venham a desenvolver algum projeto aqui na fila”. Aí eu falei: “Tá bom”. Aí ele foi, eu autorizei que ele fosse, ele foi, falou, aí a pessoa que é o Eduardo Martins, na época, ele gostou muito, achou muito interessante e pediu, mandou uma pessoa vir lá do WWF para cá para ouvir a nossa história. E aí veio. Ela veio, a gente contou, a registrou. E ela... porque depois eles tinham que passar tudo em inglês, né? E como eu te falei aqui, a gente não tinha esse problema da alfabetização. Ela escreveu tudo, fez o projeto, transformou lá em... E foi aprovado o nosso projeto. E aí a gente participou de... Foi um processo de construção, sabe? De falar, de reunião e tudo, sabe? Tipo ensinar o Beabá. Foram muito tempo assim. Aí a gente participou. Eu era... Como a gente era aqui da... morava do lado, praticamente dentro da unidade de conservação, associação de moradores, a gente sempre trabalhou com essa questão de educação ambiental, de orientar as pessoas, de ensinar, falar essa questão da importância da natureza, os cuidados que a gente tem de manter nossa água pura, sem contaminação. Desenvolver a oficina de educação ambiental, onde você transforma de dentro para fora, você tem que trabalhar a partir do amor, porque quando você consegue sensibilizar uma pessoa, acabou, não tem mais problema. E aí, a gente cuidou dessa parte de educação ambiental. Associada a isso, a gente já começou a trabalhar com cerrado, porque as pessoas tinham esses problemas de queimadas. Então, quando a pessoa começa a ter benefícios financeiros, ele começa a ter um outro olhar. Nossa, não posso acabar com isso aqui, porque isso aqui me dá retorno financeiro, que é a sustentabilidade econômica. E aí a gente começou esse processamento de polpas de frutas, de cajuzinho, de mangaba. O pequi já era tradicional mesmo, ele já fazia parte da nossa mesa. Todo mês de outubro é o mês dos pequis, então a gente traz para a nossa culinária. E começou a despertar esse olhar para o cerrado, essa importância que o cerrado tem para a nossa vida. E aí foi um projeto muito interessante, mas, infelizmente, com essa questão que eu já trouxe para vocês do conhecimento, foi uma das coisas que fez com que não deu certo, porque essa proposta era uma proposta de turismo de base comunitária sustentável, mas ele teve que vir outras pessoas para gerir os projetos e ele sempre achava que o povo da comunidade não tinha condição intelectual de acompanhar, e a gente foi atropelado, sabe? E foi uma das questões que eu percebo que não deu certo, foi essa falta de conhecimento técnico mesmo, porque o conhecimento popular, nós temos o notório de saber, mas tem hora que isso aí não é levado em conta. Agora, nesse momento eu percebo, de um tempo pra cá, os saberes tradicionais, esses valores, ele tem tido mais importância, mas antes não tinha. E que foi um dos prejuízos que nós tivemos, a nossa comunidade, foi essa questão. E a questão das ameaças, porque foi uma ameaça, né? E tipo assim, as pessoas vinham e falavam: “Olha, mas se vocês não aceitarem isso, vocês vão voltar àquela vida que vocês tinham antes”. Então teve muita permissividade por conta desse pertencimento que a gente não tinha e que a gente foi conquistando aos poucos. Mas quando a gente foi conquistando aos poucos, a gente se perdeu muito aí nesse caminho, sabe? Que eu falo assim, nós estamos aqui há 30 anos trabalhando, nós nunca tivemos uma formação, por exemplo, em hotelaria. Não temos um curso em formação de turismo. Como que a gente vai formar os nossos jovens se tudo isso está muito distante ainda da nossa realidade? E mesmo assim, para você poder sair, participar das formações, é desafiador, só vai mesmo quem tem muito amor e coragem e vontade de transformar. Porque você tem que deixar a sua vida, você tem que deixar a sua família, seus filhos, para ir buscar conhecimento, para ser multiplicador na sua comunidade. Porque eu sempre fui do coletivo, sabe? Eu me lembro que lá em 1992, por aí 93, teve um programa do governo que chamava PED, que era Programa de Execução Descentralizada, que era justamente para municípios que tinham trabalho com turismo. Aí esse programa contemplou Alto Paraíso. Só que aqui faz parte do Alto Paraíso, mas lá é a sede. E nessa época nem estrada a gente tinha. Você vinha de Alto Paraíso aqui com atoleiro, ponte que caía. Menina, a gente vive pela graça de Deus. Aí, eu fui atrás do prefeito, falei: “Prefeito, nós queremos também participar”. Ele falou: “Vocês têm que vir para cá”. Eu falei: “Mas como que a gente vem se a gente não tem carro? Vamos fazer lá em São Jorge”. Ele falou: “Lá não tem jeito, porque o recurso que tem é muito pouco. Eu não consigo pagar os professores que vêm fazer os cursos aqui. Então, vocês têm que vir para cá”. “Mas vir para cá vai ser difícil. Lá é mais fácil”. Ele falou: “Não tem como”. Aí eu falei: “Ah, mas o problema é só professor?” Ele falou: É, tem os professores, que aí eu tenho que ter hospedagem pra eles e alimentação”. Eu falei: “Então tá bom, e se eu conseguir?” Ele falou: “Se você conseguir, a gente leva”. Eu falei: “Beleza”. Aí eu voltei, nessa época tinha duas pousadas aqui, aliás, tinha três. Aí eu falei com os três, dois toparam dar cortesia pros professores. Aí eu já tinha meu restaurante nessa época. Eu falei: “Então tá bom, então eu vou doar as alimentações”. E aí voltei lá e falei: “Prefeito, deu certo”. Porque nesse tempo nem telefone a gente tinha, né? As conversas tinham que ser pessoalmente, então você tinha que ir lá pra poder falar. Eu falei: “Prefeito, deu certo. Então, a pousada tal e tal vai receber os professores e o meu restaurante vai dar alimentação para os professores”. Foi um curso longo, acho que tipo assim de dois anos, e eles vinham, tinha uns períodos que vinham, davam aula, eu sei que totalizou, eu, 500 refeições eu dei durante todo o período para que a gente pudesse garantir que tivesse a formação aqui. Então nessas formações a gente teve vários aprendizados, por exemplo, manipulação de alimento, a faca que corta o frango, não pode cortar a carne porque tem contaminação cruzada, a faca também tem que ser diferente, tudo nesse nível. Questão de higienização porque você está trabalhando com a alimentação, você vai alimentar outra pessoa. Então você tem que ter esse cuidado de acondicionamento correto, manipulação para que não tenha prejuízos, como infecção intestinal e tudo. Noções de receber as pessoas, até hábitos de higiene. Falava-se nesses cursos, tudo direitinho. Era como se fosse uma cartilha de aprendizado. E assim foi, nós temos também, até hoje, a gente tem a parceria do SEBRAE, que a gente foi atrás, eles são parceiros nossos até hoje, eles levam a gente, levou muito em missão técnica para a gente ver outras realidades em outros municípios. E aí é assim, Lucas, a gente trabalha até hoje dessa forma, buscando conhecimento, sendo multiplicador, mas com esses parceiros, porque efetivamente o poder público, ele não tem olhar para nós. Por exemplo, essa pousada minha aqui, eu comecei ela em 2010, eu terminei aquele primeiro bloco. Nunca fiz empréstimo, nunca tive acesso a empréstimo, porque é tudo muito difícil. Até hoje eu não terminei ela ainda e eu já preciso reformá-la. Eu preciso fazer a parte ali da recepção da pousada, trazer o meu café da manhã para cá. Mas, assim, você levanta todos os dias cedo, 5, 6 horas da manhã estou de pé para preparar o café para os meus clientes, não abro mão disso. Eu que cuido das roupas da pousada, das reservas, recepciono. Tem uma menina que me ajuda a passar, uma que vem aqui que me ajuda a limpar. Mas é assim, porque são empreendimentos que eu faço questão de receber o meu cliente, porque eu acho que é muito importante, quando você chama a pessoa pelo nome, você tem esse contato direto, pra mim isso tem um valor diferenciado de vir os investidores pra cá que você nunca viu na vida, você não sabe quem é, não sabe a história. E ainda tem o desafio, que eu quero e sonho e não posso ir embora desse mundo sem deixar essa vila sustentável mesmo, né? E começar ali pela gestão do resíduo sólido, a gente ter a nossa própria composteira, poder fazer essas hortas, sabe? Horta urbana, ter energia limpa, ter uma vila onde tem uma mobilidade onde não passa carro e de fato ter uma vila sustentável, sabe? Eu quero poder deixar essa contribuição aqui no meu território para poder saber que valeu a pena ter passado por isso aqui, passar por tudo isso que eu passei, né? Tudo aqui na vila que tem, eu tive uma participação, sabe?
P/2 - Imagino que sejam muitas histórias, mas eu imagino que... Na vida das pessoas da comunidade, o que você sente que alguma coisa do seu trabalho, por exemplo, melhorou a vida de uma pessoa específica? Você tem alguma história de alguma vida, de alguma família que foi transformada por esse seu trabalho?
R - Olha, assim, eu te falo que aqui na vila, todas as pessoas que estão aqui, elas vivem diretamente, indiretamente do turismo, por esse trabalho de formiguinha que nós conseguimos fazer, né? Porque... Eu contribuí para isso, mas tem outras pessoas, porque ninguém faz nada sozinho, que também fez com que essas pessoas estivessem inseridas hoje dentro do comércio. Nós somos protagonistas da nossa história, sabe? Tem uma coisa que eu sempre falo, que a gente poderia estar melhor. Mas eu deito e durmo com a minha consciência muito tranquila, porque aquilo que eu acreditei e que pude fazer pela minha comunidade, e atrás de formação, do conhecimento, que eu sempre falo, a gente pode não ter dinheiro, mas se você tem conhecimento, ninguém te tira. Ninguém tira seu saber. eu pude ir atrás, conseguir as coisas para que as pessoas pudessem aprender. E quem não quis, dentro disso que a gente pode oferecer, o mínimo que a gente pode oferecer, que a gente considera importante, não foi porque não quis, a oportunidade teve. E aí isso me traz muita tranquilidade, sabe? Agora tem coisas… Não, esqueci o seu nome. Quer lembrar do peixe?
P/1 - Da baleia.
R - Jonas. Tem coisas que aí a gente, que é, que passa por a gente e a gente não tem domínio, que é essa questão do poder econômico, que está chegando para arrasar. E aí a gente não consegue, né? Eu fiquei sabendo que o empreendimento foi vendido ali por 10 milhões e meio. Quem pode ter esse enfrentamento? Nós não temos essa condição. O nosso público está mudando, está vindo pra cá hoje pessoas que querem alugar espaço onde ele tem uma banheira só pra ele, que nem combina com o que a gente oferece, né? Então, nesse momento, eu penso que a gente não pode entregar o ouro. A gente tem que mudar essa história. Como que seria isso? É buscar fazer com que a nossa história seja contada de fato, é buscar fazer o nosso Museu do Garimpo, é contar a nossa história, é trazer as experiências verdadeiras para que a gente continue aqui no nosso território e sendo protagonista de tudo isso. Agora, a gente precisa de buscar parceria, precisa de um olhar de quem tem o poder da transformação e de vir para a comunidade e a gente poder fazer isso para que a gente possa garantir que a gente continua e as próximas gerações.
P/2 - Qual que foi a chave que você teve a visão assim para conseguir transformar um turismo predatório num turismo, não sei que palavra utilizar, sustentável, num turismo comunitário.
R - Inclusivo, né?
P/2 - Inclusivo. Como foi que você teve essa sacada e conseguiu implementar isso?
R - Não, assim, não é nem sacada, foi necessidade, né? Porque ou a gente transformava para todos, todos tinham que estar incluídos no processo, porque antes a gente estava todo mundo no mesmo barco e não dava pra gente beneficiar um e o outro não. Então, eu sou muito do coletivo, né? Eu tinha até uma certa dificuldade, até um tempo atrás, de ficar pensando, assim, tudo que eu... Às vezes eu ia fazer uma entrevista, eu falava assim: “Eu posso falar de mim ou vou falar da comunidade?” Eu tinha essa dificuldade por conta do coletivo, porque a minha vida toda foi pensando no outro, pensando no coletivo. Então, tudo que eu trazia era para a comunidade. Gente, nós temos que ir lá, porque se a gente não ocupar o nosso espaço agora, alguém vai ocupar pela gente. E eu sempre, como eu vivenciei todas as dificuldades, os enfrentamentos, para a gente poder sobreviver, eu tinha uma palavra de respeito. As pessoas me ouviam e falavam: “Não, é verdade, então a gente precisa fazer isso”. Claro que não foi 100% de aproveitamento. Tem pessoas que não gostam, que não queriam e tá tudo bem, né? Mas eu sempre pensei que as coisas só são boas quando é bom para todo mundo, quando todo mundo ganha. A gente não pode pensar que para ganhar o outro tem que perder. Não, a gente tem que dar um jeito para que todo mundo seja beneficiado e todo mundo ganhe. Agora, para mim, Jonas, sempre foi muito claro essa questão da sustentabilidade e não da riqueza, sabe? Esse conceito, eu quero ficar rico, quero ficar milionário, não vai ficar. Aqui não é lugar para isso. E eu gostaria muito que tivesse esse entendimento, até as pessoas, que são bem-vindas, as pessoas que vêm, mas que pudesse ter esse olhar, poder refletir e ver isso com a comunidade. Por exemplo, eu fico muito triste quando falam que vai ter uma novela aqui na Chapada. Gente, isso pra mim é uma destruição. Porque vai começar a vir turismo de massa. Como que a gente vai receber isso? Será que é isso que a gente quer? Nós temos belezas cênicas mesmo. Mas daqui a pouco o povo vai querer fazer o quê? Subir de teleférico? Eu acho super invasivo essa questão de drone. Por exemplo, você tá aqui e o povo botando drone. Dá vontade de derrubar o drone, né? E aí já começa tendo essas invasões onde você não fica mais confortável onde você está, sabe?
P/2 - Não se sente mais em casa, na própria casa, né?
R - Não.
P/2 - Mas, assim, teve alguma história que você vivenciou que a luta da comunidade venceu esses grandes empreendimentos? Vocês já tiveram alguma história dessa?
R - Eu preciso pensar, mas eu acho que já. Vou pensar e vou te responder. Eu acho que, pensando na questão da ampliação do parque, porque o parque era muito grande, ele era mais de 600 mil hectares quando ele foi criado em 1961. Aí depois teve uma redução. Aí agora teve a ampliação. Aí na primeira ampliação, os fazendeiros conseguiram derrubar. E aí a gente fez um movimento muito grande, um movimento ambiental, e a gente conseguiu uma outra ampliação, que foi uma luta da comunidade. Eu acho que isso é um grande ganho.
P/1 - E foi mais ou menos quando isso?
R - Foi... não faz muito tempo não, é recente. Mas deve ter... foi quando... lembra desse... quando a Dilma foi presidente aí quem assumiu não foi o Michel Temer? Foi quando nessa... não foi uma transição.
P/1 - Esse golpe, né?
R - Mas pelo menos ficou esse legado. O café chegou, né?
P/1 - Você quer pausar pra tomar ou a gente pode continuar?
R - Acho que é bom, porque o biscoito vai ficar frio.
P/1 - Tá, vamos fazer uma outra pausinha então?
R - Eu gosto de falar mais do coletivo do que de mim.
P/1 - Então, mas vamos rebobinar a fita.
P/2 - Isso faz parte de você, né?
R - É, já nasci assim.
P/1 - É a sua cara, né? Mas, vamos falar um pouquinho de você. Você, voltar quando, há uns tempos atrás, você namorava lá? Como é que era aqui, na Vila do São Jorge?
R - Eu nunca tive namorado aqui na Vila. Porque a relação era de muito familiar, né? Porque todo mundo passa a ser família. Então eu não relacionei com ninguém aqui, relacionamento amoroso. E pra falar a verdade, eu tive três namorados só. E no terceiro eu casei, que é com o meu marido, né? Que até hoje.
P/1 - Os três eram de fora?
R - Hã?
P/1 - Os três são de fora?
R - Sim, nenhum daqui.
P/1 - Mas era com um de fora, que era…?
R - Quando eu morei em Brasília, quando eu era adolescente, eu tive dois namorados lá. Aí eu vim pra cá. E aqui eu conheci o meu marido, ele trabalhava no Ibama. Aí ele veio trabalhar aqui. E aí a gente namorou e casou. E aí nós tivemos três filhos. Eu casei em 1986.
P/1 - Você tinha 25, mais ou menos?
R - Com 25 anos eu já tinha tido os meus três filhos. Foi rápido.
P/1 - Qual é o nome dele?
R - Divino. Ele é lá da cidade de Goiás, perto de Itapuranga.
P/1 - Você se lembra quando viu ele pela primeira vez? O que você achou? Você conversou com ele?
R - Ah, eu vi, eu lembro. Eu vi ele num bar, meu pai tinha um bar. Aí um dia eu vi ele lá. E aí... A gente… Começamos a conversar e eu era amiga da esposa do chefe do parque, dona Alta. E a gente começou a conversar e tudo, a gente se apresentou e a gente começou o namoro. Mas a gente não namorou muito tempo. Logo nós casamos. Eu acho engraçado. Aí, deixa eu te contar uma história. Não sei se é mística, mas eu sempre gostei dessas coisas. Quando era festa de São João, a gente fazia muitas coisas, muitos rituais. E aí tinha uma que você, no dia de São João, você pega... Ah, o que era a mesa? Não sei, eu sei que a gente pegava a chave da entrada da porta e colocava embaixo do travesseiro e à noite você ia sonhar com a pessoa que você fosse casar, e eu sonhei. Só que no sonho eu não vi o rosto da pessoa. Foi o único sonho da noite, foi esse. Eu não vi o rosto da pessoa, mas eu vi a pessoa toda, a vestimenta, até o sapato, a altura, tudo, mas o rosto não apareceu. Beleza! Aí eu conheci o Divino, a gente namorou e tudo. No dia do casamento, quando ele entrou na igreja, ele estava com a roupa, do dia do negócio lá, do sonho. Do mesmo jeitinho, até o sapato, a cor, a roupa, aí apareceu o rosto, numa noite de São João. Aí eu falei: “Bom, é ele”, então é coisa do destino.
P/1 - Ele estava vestido como nesse dia?
R - Era uma calça jeans, com uma camisa de manga longa, eu acho que um azul, uma tonalidade mais clara, o sapato era marrom, E aí apareceu o rosto, que eu não tinha visto o rosto. Aí veio isso. Aí eu acho que é o destino, né? Confirmou.
P/1 - E como é o seu marido, como ele é, o humor dele, o jeito dele?
R - Agora ele está mais tranquilo, mas ele era muito assim, ele gostava muito de beber e às vezes ficava assim, sabe? Mas eu nunca fui de... Tipo assim, levar desaforo pra casa. E sempre fui autêntica, falo o que penso. Se a pessoa fala alto, eu falava mais alto. Baixava o tom. Nunca me deixei me levar assim, sabe? Eu sempre impus e fazia sempre aquilo que era confortável pra mim, sabe?
P/1 - E você tem quantos filhos? Três, né?
R - Três filhos.
P/1 - E quem são eles? Qual é o nome deles?
R - O mais velho chama Rony, ele mora lá em Goiânia, que tem uma filha que chama Lara, que é a minha segunda neta, tem oito anos. Aí tem o Danilo, que mora aqui comigo, esse não é casado. E tem o Vinícius, que é o caçula, que mora lá em Brasília e tem dois filhos, que é a Maria Cecília e o Benício, que um vai fazer dez anos e o outro faz cinco.
P/1 - Como é que foi pra você ser mãe lá na primeira vez? O que mudou na sua vida? Como é que foi isso?
R - Menino, você sabe que quando seu filho nasce, que você vê a criança... é a coisa mais gratificante que tem na vida. É um momento muito emocionante, que a gente não consegue descrever. O tamanho e a emoção de você dar vida a um ser ali tão, sabe? É uma experiência muito boa, desde a gravidez, o nascer, aí depois vem os dessabores, mas até aí é muito interessante você botar uma vida no mundo e saber que saiu de você, das suas entranhas, é muito gratificante.
P/1 - Para as últimas perguntas, a gente falou muito sobre bichos, sobre árvores, sobre plantas, sobre rio, água. Você vê o ser humano acima da natureza? Como é que você vê essa relação?
R - Não, eu acho que o ser humano é um destruidor da natureza. Eu acho que a natureza está acima de qualquer coisa. E o ser humano deveria ter um olhar de mais respeito com a natureza, sabe aquela coisa de pedir licença, de agradecer e é... Eu acho que a palavra é destruidor. Claro que não são todos que se enquadram, tem aqueles que são diferenciados, mas os que destroem, eles sobressaem mais do que os que preservam, do que protegem.
P/1 - Você falou uma coisa antes da entrevista sobre conservar e preservar, você se lembra?
R - Lembro. A definição, né?
P/1 - Como é isso para você?
R - Bom, para mim, quando você tem, por exemplo, um parque nacional, que é o nosso ponto de referência aqui, quando você vê, de fato, para que uma unidade de conservação ela foi criada. E aí não tem como você ir contra isso, porque ela foi criada para dar garantia de vida, tanto para nós, enquanto humanos, como abrigar toda a diversidade da natureza. Ali é um santuário de vidas silvestres, eu acho. Quando você entra no Parque Nacional, o meu sentimento, aquilo ali é meu, me pertence. Ele está ali para a garantia de vida, porque nós temos água preservada, a gente tem a garantia de ter uma água pura, uma água que é nossa. É uma questão de vida. Essa questão de preservação, de conservação, das unidades de conservação, para mim é muito importante. Ela tem um valor imensurável, que não dá para você descrever o quão é importante as reservas, as unidades de conservação, que é a garantia de vida para nós humanos e da vida silvestre.
P/1 - Você quer fazer alguma pergunta?
R - Pode.
P/2 - Eu queria perguntar se teve algum momento na sua vida, ao longo da sua vida, que você sentiu Deus, não o Deus da igreja, mas algum momento que você falou: Nossa, isso aqui é a presença de Deus.
R - Olha, na minha percepção, só da gente acordar todos os dias já é um presente de Deus. E quando, por exemplo, acho que a conexão mais forte que a gente tem mesmo é quando você adentra os lugares tão perfeitos. Por exemplo, hoje nós tivemos pela manhã uma voltinha perto do mirante da janela, onde a gente pôde contemplar várias cenas, sabe? Inclusive pedras sobre pedras, que a gente chama de... Catedral. Como é que eu falei?
P/1 - Catedral.
R - Catedral, né? Lindas, são as coisas que não foi o ser humano que fez, é uma coisa de Deus. Você vê a presença daquilo, né? A brisa que vem, que compõe o canto do pássaro. Gente, não tem como você achar que não é Deus mesmo. Você entra numa caverna. O que é aquilo? Aqueles fragmentos, aquelas coisas caindo. Infelizmente, a gente não pôde ir lá na janela, que vocês iam ver que espetáculo que é ter uma pedra que ela é triangular e ela se encaixa com a cachoeira de 120. Então você vê ela, essa pedra, esse triângulo, e a cachoeira se encaixando assim, né? É uma coisa assim que não tem como você falar, você não tem outro nome assim para dizer, sabe? Que é uma coisa assim imensurável, você não tem o que dizer, você fica em êxtase de tão maravilhoso que é.
P/2 - Se quando você desencarnasse, daqui a muitos e muitos e muitos anos, daqui a um século, se você pudesse levar uma memória dessa vida, qual seria essa memória que você levaria?
R - Eu acho que eu levaria tudo isso que eu vivi aqui, que pra mim eu vim com uma missão de vida pra isso, sabe? Porque eu penso que lá na outra dimensão, lá sim que vai estar a perfeição, né? Então eu levaria tudo isso que eu pude aqui na Terra, vim e poder contribuir. Eu levaria isso comigo.
P/1 - Tem alguma pergunta que a gente não fez pra você? Alguma história que você queria contar ou alguém que você queria lembrar antes da gente terminar? Sem pressa.
R - Assim, tem uma pessoa que ela foi muito importante na minha vida, que foi a minha avó, sabe? Eu tenho memórias muito fortes dela, sabe? Uma mulher forte que, lá na década de 60, ela viúva, sozinha, cria oito filhos em meio a tanta dificuldade, sabe? E isso é uma coisa que eu trago comigo dela. Nunca vi... Eu vivi muito com ela. Inclusive, no dia que ela morreu, ela morreu comigo. Eu estava junto com ela no momento da partida dela. Então, ela me representou muito. E isso, essa fortaleza que ela veio, que ela trouxe, nos deixou, eu carrego comigo, sabe? Essa memória... muito de uma mulher da luta que veio, cumpriu o seu papel e com muita maestria, da maneira como ela pôde, ela criou seus filhos, ela foi uma mulher muito íntegra, honesta, então são coisas que a gente leva para a nossa vida, sabe? E aí é isso.
P/1 - Como é que foi contar um pouquinho da sua história nessa entrevista hoje pra gente?
R - Olha, foi muito bom. A primeira coisa que eu fiz hoje, quando eu levantei, foi agradecer. Assim, por tudo, por esse momento, por vocês virem aqui, da gente poder estar nesse momento, podendo compartilhar com vocês aquilo que eu vivi, eu acho que foi um presente, né? É um presente poder contar a minha história, porque são momentos que eu acho que necessita, não por conta do ego nem de vaidade, dela ser contada, porque é inspiração. Porque eu acho que o mais importante é a gente vir, viver e deixar algum legado, sabe? E não só simplesmente passar pela vida como se nada tivesse acontecido. Aí eu agradeci muito. Eu aprendi ao longo da vida que todos os dias, quando o dia amanhece, a gente tem que sempre lembrar do nosso propósito e no fim do dia agradecer e perguntar para a gente mesmo. O que eu fiz hoje que valeu a pena, que foi diferente, o que eu posso mudar? Então eu sempre me pergunto, faço essas perguntas para não perder a minha essência, sabe? Não quero que a minha essência se perca com tanta futilidade, com essas coisas que não me representam. Então eu faço isso todos os dias e hoje, no dia de hoje, o que eu fiz foi agradecer por tudo que a gente viveu durante o dia e foi muito gratificante.
P/1 - Você vai fazer o que mais tarde?
R - Nós vamos receber um grupo que vai vir lá de Minas, que a gente vai apresentar o nosso destino, as nossas experiências com eles. E depois a gente vai lá na pizzaria e a gente vai comer umas pizzas e vocês são convidados.
P/1 - Maravilha! Obrigado, viu?
R - Eu que agradeço.
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