Projeto Heranças e Lembranças
Entrevista com Fritz Haberer
Rio de Janeiro, 23/05/1988
Código da entrevista: HL_HV034
Realização Museu da Pessoa
Entrevistado por Susane e Evelyn
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Eu acho que a gente podia começar por aqui, seu Fritz. Esse livro, por exemplo, diz que são... É a história dos judeus em Konstanz. Konstanz é uma cidade na Alemanha?
R – É uma cidade na Alemanha, cidade pegada à Suíça. Ela está, em si, quase em território suíço. É uma cidade, hoje, com setenta mil habitantes. Tem universidade... Na minha época ela tinha trinta e tantos mil, e era uma cidade antiga, chamada de cidade reichsstadt. Como Nuremberg, Regensburg e Frankfurt, naquela época. Só que ela decaiu nos últimos trezentos anos, duzentos anos, mais ou menos, porque... Ela tinha também o bispo, o bispado. Está um pouquinho isolada da Alemanha, não está nas grandes artérias que vão do norte para o sul, como por exemplo Basiléia etc., que se desenvolveram de uma forma muito mais forte.
P/1 – E o senhor nasceu em Konstanz. E a sua família estava lá há quanto tempo?
R – Eu nasci em Konstanz. O meu pai foi para lá no ano de 1904, dez anos antes de eu nascer.
P/1 – Vindo de onde?
R – Meu pai é de Offenburg, na Floresta Negra, e ele veio porque o irmão dele abriu uma loja de sapatos, de calçados, por atacado e varejo. Como o outro irmão dele faleceu – que havia tomado uma parte que era para ser do meu outro tio, então, chamou meu pai, que era viajante-vendedor para uma firma de Offenburg, de onde ele vinha. Vendia crina. Crina...
R – E. Para colchões. Então ele foi, viajou pra Holanda, Dinamarca – naquela época –, vendendo. E também na Alemanha, vendendo. E foi Reno abaixo. Firma muito boa, fábrica. Depois ele se mudou para Konstanz para tomar a parte do irmão dele.
R – Mas a sua família, o senhor sabe, mais ou menos, há a quanto tempo era da Alemanha?
R – É o seguinte, o meu tetravô morava...
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Entrevista com Fritz Haberer
Rio de Janeiro, 23/05/1988
Código da entrevista: HL_HV034
Realização Museu da Pessoa
Entrevistado por Susane e Evelyn
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Eu acho que a gente podia começar por aqui, seu Fritz. Esse livro, por exemplo, diz que são... É a história dos judeus em Konstanz. Konstanz é uma cidade na Alemanha?
R – É uma cidade na Alemanha, cidade pegada à Suíça. Ela está, em si, quase em território suíço. É uma cidade, hoje, com setenta mil habitantes. Tem universidade... Na minha época ela tinha trinta e tantos mil, e era uma cidade antiga, chamada de cidade reichsstadt. Como Nuremberg, Regensburg e Frankfurt, naquela época. Só que ela decaiu nos últimos trezentos anos, duzentos anos, mais ou menos, porque... Ela tinha também o bispo, o bispado. Está um pouquinho isolada da Alemanha, não está nas grandes artérias que vão do norte para o sul, como por exemplo Basiléia etc., que se desenvolveram de uma forma muito mais forte.
P/1 – E o senhor nasceu em Konstanz. E a sua família estava lá há quanto tempo?
R – Eu nasci em Konstanz. O meu pai foi para lá no ano de 1904, dez anos antes de eu nascer.
P/1 – Vindo de onde?
R – Meu pai é de Offenburg, na Floresta Negra, e ele veio porque o irmão dele abriu uma loja de sapatos, de calçados, por atacado e varejo. Como o outro irmão dele faleceu – que havia tomado uma parte que era para ser do meu outro tio, então, chamou meu pai, que era viajante-vendedor para uma firma de Offenburg, de onde ele vinha. Vendia crina. Crina...
R – E. Para colchões. Então ele foi, viajou pra Holanda, Dinamarca – naquela época –, vendendo. E também na Alemanha, vendendo. E foi Reno abaixo. Firma muito boa, fábrica. Depois ele se mudou para Konstanz para tomar a parte do irmão dele.
R – Mas a sua família, o senhor sabe, mais ou menos, há a quanto tempo era da Alemanha?
R – É o seguinte, o meu tetravô morava em Colmar – Colmar, que naquela época era do bispo de Strasbourg, e perto de Strasbourg. Porque lá a Alsácia não era França, eram aqueles comandos etc. E isso pertencia ao condado, bispado e a Strasbourg. Ele tinha lá, e também, mais tarde, um negócio de sal, monopólio de sal para certa localidade. Depois ele mudou para a parte – hoje é Alemanha –, chamada Friesenheim, uma aldeia perto de Offenburg. Lá [foi] onde meu bisavô nasceu, em 1814. Quer dizer, o meu tataravô já veio... Era antes da Revolução Francesa, não sei em que ano ele... Nem tem dados de quando ele faleceu. Do meu bisavô sim, eu tenho até um quadro dele aqui. Se quiserem ver... É interessante, então vamos ver.
P/2 – Vamos lá.
P/1 – Então, quer dizer, o senhor já era a quinta geração na Alemanha? Tataravô...
R – Bisavô, avô, pai... Sim, a quinta geração.
P/1 – E da parte de mãe também?
R – Da parte de mãe também. A parte da minha mãe, eles vêm também de perto da Floresta Negra. É uma localidade pequena, cidadezinha pequena de Ettenheim. E tem o meu avô; ele nasceu em 1854 e faleceu em 1945, tinha quase 91 anos.
P/1 – Ele faleceu na Alemanha?
R – Na Suíça. Ele foi para a Suíça em 1872, logo depois da guerra, a guerra de 71 e 72, entre alemães e suíços. Ele foi embora da Alemanha e foi para a Suíça, foi para Diessenhofen, no cantão de Turgobie. Isso é sobre o Reno, o Reno Superior, quando ele sai do Lago de Constania para as cataratas de Schaffhausen. Já ouviu falar? Não. Ele fez... É na fronteira, na fronteira é o Reno, o rio Reno, e do outro lado, um pouquinho para cima, tinha uma aldeia grande chamada Geiling, que era onde tinha muitos judeus – pelo menos mais do que a metade de população de Judeus. E tinha até um prefeito judeu, no ano de 1872, me parece. Está num livro que tem aqui.
P/1 – Quer dizer, o senhor nasceu em 1914, que o senhor disse. Nasceu na véspera da primeira Grande Guerra.
R – 1914. Não, já no oitavo dia, no oito de agosto. Porque meu pai já estava convocado, e eles deram um, dois ou três dias para ele voltar e ver o filho. Depois, mais uns dias depois, para o ''Bris" etc., mas ele já serviu na Primeira Guerra.
P/1 – O senhor tinha irmãos também?
R – Eu tenho irmã, a Hildergard Bach, a mulher do Ernesto.
P/1 – Agora, o que nós queríamos é que o senhor nos contasse um pouquinho como era a vida da sua família lá. Quer dizer, a sua família, enquanto uma família judia, judia-alemã, como é que... Que tipo de casa... Como era a sua relação com os outros, que tipo de escola, se era uma vida assim muito comunitária, judaica, ou não, integrada. O que o senhor lembra? Quais são as suas lembranças? Lembranças fortes da infância. Vai contando pra gente.
R – Eu tenho muitas lembranças. Bom, eu fui naturalmente na escola primária no ano de 1921. Lá a pobreza era muito grande, em Konstanz. E as doenças, especialmente em crianças, eram horríveis. Muita tuberculose etc. E como era na fronteira com a Suíça, e a Suíça tinha fartura – quer dizer, tinha tudo –, então cada dia lá no colégio vinha grande quantidade de chocolate quente com pão para essas crianças. E eu não recebia, porque nós estávamos abastecidos. Meus avós moravam na Suíça, e não houve problema de alimentação pra nós. Nessa escola eu fui para 3 anos. Depois fui para a escola superior, que chama Realschule, que podia até fazer o abitur, mas eu não fiz. Eu fui lá só 6 anos. Nós éramos três garotos judeus entre outros trinta cristãos. Ainda era muito bom, não houve nada de discriminação ou coisa dessa.
P/1 – Havia no senhor uma consciência disso? “Os judeus são diferentes...”, ou isso era uma coisa...
R – Não, não. Naturalmente sentia a diferença, isso é claro.
P/1 – Mas no sentido, assim, de inferioridade?
R – Não, não. Não tinha nada até... Eu sempre fui um dos primeiros alunos da classe e... Não é coisa ruim. Ganhei os prêmios, os livros de prêmio a cada ano. Salvo o rabino... Meu pai era da maçonaria, era da loja da maçonaria, e o rabino não gostou daquilo não. Então, o filho dele, do meu pai, tinha que sentir isso. Em si ele não era ruim, o rabino (risos), até ele escreveu um livro sobre Nachmanides. Ele veio de Potsdam, se chamava Kohn. Mas ele me fez aí umas notas que eu fiquei impedido (risos). Isso se chama lachle em iídiche-alemão. Porque como era um garoto judeu que podia ganhar um prêmio, então não devia impedir isso. Mas não fazia mal. Apesar disso...
P/2 – Mas isso era uma escola que o senhor ia além da escola comum?
R – Não, não. A escola tinha tantas horas de religião por semana, e cada um tinha a sua. Protestantes, os católicos, os...
P/2 – Ah, o rabino vinha no colégio.
R – Vinha no colégio, vinha no colégio.
P/1 – Isso era o que? Mil novecentos e...
R – 1923, 24, 25.
P/1 – E a comunidade, por exemplo? Tinha uma comunidade judaica formada?
R – Sim, naturalmente. Tinha mais ou menos seiscentos judeus lá. Uma sinagoga muito bonita, com órgão, com coro. A minha mãe e eu fizemos parte do coro, a Hildegard também, a minha irmã. E o serviço foi muito bonito. Meu pai tinha uma irmã que se casou com o Chazan da comunidade. Chazan e também como Melamed, professor de religião. Era pequenininho ali. Depois se aposentou e veio um outro. Mas então nós tínhamos a Jugendfrei (free for de youth).
P/2 – Movimento juvenil.
R – É, juvenil. Uma biblioteca também de livros judaicos, sobre o judaísmo, tudo em alemão. Tinha... Porque hebraico a gente quase não aprendia, só aprendia para o Bar Mitsvá, que a gente foi – ainda me lembro bem disso –, a cada sexta-feira de noite, na casa do melamed, do Chazan, e fez lá as Brachas etc. Depois discutia-se sobre coisas do judaísmo. Mais tarde, então, já nos anos de... Saí da escola, do colégio, e fui fazer meu aprendizado na Alemanha, lá no norte da... Em Ruhr, chamada Dortmund, a cidade. Fiquei lá por dois anos. Depois voltei para a Suíça, porque de Konstanz nós nos mudamos para a Suíça, no ano de 1930, antes do Hitler. Não era nada.
P/1 – Mas se mudou por quê? Alguma razão especial?
R – É interessante; a minha mãe sofria de asma, e Konstanz é perto do lago, é muito úmido, tem muita neblina entre os meses de novembro e março. Ela sofreu muito. E em Konstanz não se encontrava [lugar] um pouquinho mais afastado para se morar. Como nós tínhamos também nossa loja, negócios na Suíça, então em oito dias tínhamos a indicação que podíamos mudar, e encontramos uma casa. Tenho fotos; depois, se quiser, posso mostrar. Depois, nos anos trinta, já no tempo de Hitler, a gente tinha o movimento sionista, Jugen Bund. Eu até fui, no ano de 1938, em Lutzern, no congresso sionista que tinha lá em Lutzern. Lá eu vi o Blumenfeld. Aquela gente toda lá, falando, era muito interessante. Só era duas horas, três horas de trem, lá de Kreuzlingen. E nisso, naturalmente, já éramos uma comunidade pequena na Suíça, porque a gente não podia mais... Quer dizer, às vezes a gente ainda entrava na Alemanha, mas liquidamos o nosso negócio na Alemanha em 1938. E nós morávamos na Suíça. Então, não houve problema.
P/1 – Mas vocês, na Suíça, sabiam o que estava acontecendo na Alemanha?
R – Claro! A fronteira é... A mesma coisa como... Vou citar a Marcílio Dias, lá em Petrópolis: uma do lado da Alemanha, o outro lado é Suíça. A rua é mais larga, e no meio tem um...
P/2 – Porque o senhor tinha documentos alemães, também?
R – Eu tinha documentos alemães, sim.
P/1 – Que coisa interessante, né, como a história se faz. Alguns metros...
R – Metros. E eu nasci na segunda casa depois da fronteira suíça. A nossa juventude, quando criança, nós passamos os dias nas barracas dos agentes de alfândega, que eram em barracas. Aí passavam os suíços e alemães. A língua também é quase igual, apesar de ter alguma diferença.
P/1 – O senhor falou de iídiche, mas vocês não falavam iídiche. Falavam alemão?
R – Não. Alemão, mas, por exemplo, existia na Alemanha aquele chamado iídiche-Deutsch. Quer dizer, era uma mistura do alemão do sul, do dialeto do sul, com palavras hebraicas, mas era distorcido. Meus avós, que moravam na Suíça, que tinham uma loja de confecção também, entre eles, eles falaram sempre... O preço que eles podiam ao freguês, sempre em hebraico (risos). A minha avó, ela sabia... Lá em Ettenheim, de onde eles vinham... Eles vieram do mesmo local, lá da Floresta Negra, e também o mesmo nome, Lion. Eles, nos colégios, aprenderam primeiro escrever alemão com letras hebraicas.
P/1 – Por isso, então, é que a gente encontra muito livro de reza que é escrito... Quando você vai ver, é escrito em alemão com letras hebraicas. Eu nunca entendi o porquê disso.
R – Bom, iídiche também é a mesma coisa. Iídiche também tem letras hebraicas, e é o iídiche.
P/1 – Pois é. Mas iídiche a gente acha que é... Sei lá.
R – Não, mas o iídiche é o alemão distorcido, com palavras hebraicas e russas e não sei o que, mas é escrito em hebraico.
P/1 – Nós encontramos livros antigos, de reza, em que a linguagem é alemão, mas é todo escrito em hebraico. Isso era comum?
R – Isso dependia do estado. Naquele estado, província de Baden, tinham colégios, não comuns, colégios judaicos onde foi, então, ensinado o alemão...
P/2 – Patrocinado pelo estado?
R – É, pago pelo estado, os professores pagos pelo estado. Também o rabino foi pago pelo estado.
P/2 – Mas o rabino da sua cidade, Konstanz... Ou era ‘Landes’ rabino?
R – Não era Landes rabino, era ‘Bezirk’ rabino . Bezirk é...
P/2 – Subúrbio?
R – Não, não, abrangia três ou quatro cidades pequenas. Como o Graetz, por exemplo, não sei se você conhece ele, o Roberto... Ele é de Manaus, onde... (risos) Ele tinha isso lá numa região certa, ele era o rabino.
P/2 – O senhor fez bar mitzvá, senhor Fritz?
R – Fiz.
P/2 – O senhor tem retrato, ainda?
R – Não, não tenho.
P/1 – A família era religiosa?
R – Não. Meu pai era maçônico, da maçonaria. Então não era religioso não. Mas a gente foi, naturalmente... Tinha tudo. Tinha Sêder, até hoje tenho Sêder, a gente vai. Meus pais fizeram... Minha mãe não, ela foi cada sábado na sinagoga, porque ela fez parte do coro.
P/2 – Marta, não é?
R – Marta.
P/1 – Shabat em casa, não?
R – Shabat em casa não. Não se acendeu vela, não... Nada disso. Meu avô materno era muito liberal; a minha avó materna era um pouquinho mais religiosa. Mas se comia de tudo e... Apesar de que não entrava carne de porco lá naquela casa.
P/1 – Agora, nesse tipo de família, se houvesse um casamento fora, tinha algum problema?
R – Eu tenho... A Leonie não é judia.
P/1 – E qual era o problema? Havia problema?
R – Havia problema sim, meu pai não queria, apesar de não ser, ainda, religioso. O meu avô paterno era religioso. Ele comprava gado – isso se chama Fiehherden Kreuzen, não sei se você entende o termo. Comprava gado, vendia gado...
P/2 – Um intermediário.
R – Também um intermediário, mas ele também tinha gado próprio. E, naturalmente, na época de Pessach, ele foi com um cavalo e não sei o que... Uma carrocinha, e foi fazer as viagens lá naquelas outras aldeias para ver o que é que tinha lá naqueles sities lá, comprar, vender etc. E, naturalmente, levava também Matzot e ovos cozidos. Isso é... (risos) Era a comida, porque ele era religioso. Mas meu avô materno não era. Ele ia também à sinagoga, às vezes, de Diessenhofen, lá para Geiling, na Alemanha, atravessando o Reno, onde tinha uma sinagoga muito grande e uma comunidade muito ativa.
P/1 – Quer dizer que o senhor se lembra, olha pra trás... O senhor diria que era uma vida muito tranquila, muito amigável?
R – Muito. Sem problemas de rixas etc.
P/1 – De relação com vizinhos não judeus?
R – Não, ao contrário: a gente era bem visto. Todo mundo era amigo, não havia nada... O povo, em si, era muito bom.
P/1 – E como é que foi, por exemplo, na sua família, quando começou a acontecer o que estava acontecendo? Como é que se interpretava isso? Como é que se pensava esse assunto? Quer dizer, como começou? Hitler sobe ao poder, entram as leis, aquela coisa. Como é que se elaborava isso dentro da sua família? Quer dizer, que explicação, que expectativa?
P/2 – “Vai passar, não vai demorar...”.
R – Bom, no início, naturalmente, como todo mundo, não se pensava que ia demorar, que ia ser desse tamanho que se tornou. Mas nós já estávamos um pouquinho afastados da Alemanha... Apesar de que a gente estava quase juntinho, mas a gente já viu isso de outro ângulo. Porque meu pai, por exemplo... Era o meu primo que trabalhava em nosso negócio lá na Alemanha, e o meu pai também foi. Um belo dia não foi mais para lá, porque atravessar a fronteira diariamente, ida e volta, era perigoso demais. Apesar de que eu fui de bicicleta, no dia onze de novembro de 1938, quando era aquela Noite de Cristal, né, quando eles incendiaram a sinagoga. Eu passei a fronteira, quando alguém me falou: “A sinagoga está em chamas.” Eu fui, atravessei a fronteira com bicicleta, fui lá em Konstanz, vi. Aí, encontrei com um antigo amigo meu: “O que você faz aqui? Vai. Volta já, já!”
P/2 – E o amigo que falou isso para o senhor não era judeu?
R – O amigo me falou, em frente da sinagoga, até. Estava em chamas. Então me mandei. Me mandei, e dentro de cinco minutos estava na Suíça.
P/1 – O senhor foi porque estava... De que jeito? Foi a coisa instintiva.
R – Agora, no decorrer desses anos aí, 1933 a 1939, 1940, tinha muita gente que passava lá em nossa casa, que saíam da Alemanha para fazer a imigração – amigos ou não amigos, parentes ou não parentes, que sempre vieram (viveram?) lá conosco. Eles trouxeram as joias deles ou deixaram lá na Alemanha. E nós, antes de 1938... Nós jovens é que fomos ainda lá para Konstanz, e nós contrabandeados aquelas joias para a Suíça. Depois a gente mandou lá para Montevideo, para Nova York, para onde essa gente tinha casa.
P/1 – Mas o senhor não tinha medo?
R – Eu digo que ‘sim e não’.
P/1 – Que idade o senhor tinha?
R – Vinte e quatro, 23, 24 anos.
P/1 – Aí tinha um pouco daquela coisa da aventura, do desafio.
R – Sim e não. Desafio... A gente, naturalmente, queria ajudar. Porque essa gente não tinha mais dinheiro, então, para eles poderem... Nós tínhamos em nossa loja uma coisa interessante – em nossa loja na Suíça: uma vendedora bem idosa, que morava ainda em Konstanz. Nós morávamos em Kreuzlingen, na Suíça, na cidade da Suíça, pegada. E ela sempre recebeu marmita, trazida pela irmã dela de Konstanz. E muitas vezes, nessa marmita, esconderam também... A gente deu a ela para esconder, trouxe as joias lá para a Suíça, pra ajudar também.
P/2 – Olha só! O senhor mencionou uma coisa que me interessa. Os não-judeus, depois da subida de Hitler, continuavam falando com vocês?
R – Sim.
P/2 – Lá não houve isso de: “Não falo mais?”, de virar a cara?
R – Tinha, naturalmente. Na época de Hitler eu, em principio, já não estava mais na Alemanha, né, estava morando em Kreuzlingen. Me ambientei lá, falava suíço tão bem quanto alemão. Estava no coro, no coro chamado Harmonie, de Kreuzlingen, onde a gente cantava e...
P/1 – Mas era coro judeu?
R – Não, de não-judeus. Porque naquela época tinha poucos, e naquela cidade, Kreuzlingen, deu para o "double miniam", uma coisa assim.
P/1 – Pouquinho, né?
R – Umas vinte famílias, naquela ocasião.
P/2 – Porque falaram pra gente que em cidades grandes, por exemplo, que os não- judeus pararam de falar, de cumprimentar. Por isso eu lhe pergunto.
R – Pararam de falar... Não, isso eu não senti. Não senti porque não morava na Alemanha.
P/2 – Mas o senhor disse, por exemplo, que quando atravessou, esse rapaz lhe disse que fosse embora, falou com o senhor.
R – Falou, falou bem (risos). Mas depois eu não tinha mais contato com gente lá de Konstanz, antigos camaradas lê do colégio.
P/1 – Nunca mais?
R – Nunca mais. Uma vez encontrei, faz uns quinze anos, um antigo camarada do colégio, colega do colégio, que tem uma joalheria lá em Konstanz. Mas uma coisa rápida. Eu também não tomei parte desses convites aí que fizeram...
P/2 – Para a Alemanha.
R – É. A Hildegard foi no ano passado. Ela não foi à Konstanz, foi a um jantar onde tinha convidados alemães junto com os judeus. Mas isso foi na Suíça, apesar de que eu sempre fui pra Konstanz nos últimos anos, porque eu tinha uma prima morando lá...
FIM DO LADO 1
LADO 2
JH. ...passado. Faleceu com 87 anos. lá no Altersheim de Konstanz, onde ela foi muito bem acolhida. Ela morava lá há 35 anos, lá em Nova York, e nunca se ambientou em Nova York, queria voltar para a cidade dela, que era Konstanz. Encontrou um asilo, asilo de velhos, numa…
(interrupção)
P/1 – Agora eu gostaria de saber um pouquinho mais. Por exemplo, essa questão. O senhor se casou com um moça não-judia. Isso era comum? Como é que era essa situação? O senhor conheceu ela na escola, no trabalho?
R – Não, não foi no trabalho. Um encontro, assim...
P/1 – Social.
R – Sim, social. E nós ficamos noivos... Quando eu vim pra cá, vim com meus pais e minha irmã, porque não tinha lugar para ela no vapor, então ela veio uns três meses mais tarde.
P/1 – E a família dela, por exemplo, a família dela é alemã? Da sua esposa?
R – Não, suíça.
P/1 – Ah, é suíça. Não tinha problema nenhum da parte da família quanto ao casamento com judeu?
R – Não, não tinha.
P/1 – Interessante como o suíço já era totalmente diferente. Tão pertinho...
R – Os suíços são muito diferentes dos alemães. Não há... É outra gente.
P/2 – Mas por que o senhor emigrou, se a Suíça era outra...
R – A pergunta não é... É muito válida, aliás. Nós fomos para a Suíça no ano de 1930. E, depois de dez anos, a gente pôde se naturalizar na Suíça. No ano de 1939, naturalmente a Suíça era muito pressionada pela Alemanha, não se sabia se os alemães iam entrar, não iam entrar – tinha colaboracionistas etc. Então houve também um governo, naquela ocasião, na Suíça, pró-alemão. E meio antissemita, ou antissemita. Quer dizer, não todo, mas... Uma queda. E dependia... Alguns conselheiros – são sete ou nove conselheiros que fazem o governo – eram pró-Alemanha, outros eram pró-França. Porque a Suíça é dividida em linguagens diferentes. Então a gente começou...
LH. Tá gravando?
P/1 – Tá. Pode falar. não tem problema não.
R – Então, naquela ocasião, a gente começou a tratar da naturalização. Até que já tinha... A gente tem que comprar a naturalização em uma pequena ou grande cidade, ou aldeia. Esse é o primeiro passo. Então isso já era arranjado, a gente podia fazer isso, e também pelo Cantão. Mas quando chegou, então, o governo central, lá em Berna, então veio o: “No momento nós não naturalizamos os judeus.” Isso era a primeira dica. A segunda dica era que, quando começou a guerra, em 1939, Konstanz era tão perto que até houve lá em Kreuzlingen, essa cidadezinha, muitas evacuações. Os habitantes, em parte, foram lá para o interior da Suíça – inclusive nós e Leonie, juntos, também. Não éramos casados. Nós fomos passar a noite atrás das fortificações Suíças. Nós fomos de bicicleta, automóvel não tinha, e não tinha gasolina, a gente foi de bicicleta, uns dez quilômetros, quinze quilômetros para a próxima cidadezinha, onde passamos a noite. E de manhã a gente voltou. Quer dizer, isso tudo, uma coisa... Hoje a gente sabe, infantil. Porque se eles quisessem, eles podiam. Não quiseram – essa foi a segunda dica. A terceira dica era que, nesse decorrer lá de 1940... Porque nós tínhamos a permanência Suíça, então o governo federal modificou e transferiu a permanência em precária. Aí...
P/1 – Aí era bastante dica.
R – Bastante dica. Depois vieram os telefonemas do meu primo, do Fritz Weil, que já estava em Petrópolis: “Vem que aqui é que é bom, é tudo ótimo”.
P/2 – Ele era de Konstanz, também?
R – Não, era de Stuttgart. “Aqui é muito bom”, etc. De maneira que preparamos a emigração e fomos no ano 1941, então, fomos para lá.
P/1 – 1941. Aí veio a família toda? Como é que foi?
R – Sim. Quer dizer, meus pais, a minha irmã, eu. E a Leonie foi com o próximo vapor.
P/1 – E ela veio sozinha, a Leonie, depois?
R – É. E ela estava [havia] seis semanas aí no mar, porque tinha que passar pela blocada, o bloqueio. Já estava... Já passou lá na...
P/1 – Quer dizer que aí fecharam tudo, venderam tudo, vieram embora?
R – Vendemos e fomos embora.
P/1 – E qual era a sua expectativa em relação ao Brasil? Quer dizer, tinham tido essa notícia de que aqui era bom, mas...
R – Nenhuma, nenhuma ideia. A gente até aprendeu um pouquinho português, [mas] muito errado, tudo errado.
P/1 – O senhor já trabalhava. Trabalhava em quê? Fazia o quê?
R – Eu era o gerente da loja do meu pai. Nós tínhamos loja de sapatos e também venda direta pelo reembolso postal. A mesma coisa que nós fazemos ainda hoje, aqui.
P/1 – É? Não sabia! Quer dizer, chegaram aqui, se estabeleceram mais ou menos na mesma coisa que faziam lá?
R – Não, não no início. Porque era guerra, então... Eu trabalhei numa lapidação. Primeiro aprendi a lapidar diamante lá no Rio [de Janeiro], e depois fui para Petrópolis, numa lapidação de um amigo do seu pai, Nicolas Klein, lá no Mosela. Depois trabalhei lá como gerente, também, durante quatro anos, até ele fechar. Ele fechou em 1945.
P/2 – Eu me lembro bem.
R – Ainda me lembro dele. Pois é.
P/2 – Aquela careca...
R – É isso mesmo. Ele e o Sam Brichte tinham sociedade, depois Sam Brichta se desfez dele etc.
P/1 – E não ficou família sua para trás, na Europa? Tios, primos...
R – Sim, tem uma irmã do meu pai. Ela mandou vir e ela foi para a Suíça – viúva, ela. Ela faleceu, depois, em Basileia. Tem uma outra tia minha, que era também de Konstanz, veio para Kreutlingen e depois emigrou para Montevidéu, onde o filho dela...
P/2 – Ah, essas pessoas que eu me lembro que vieram para o casamento?
R – Para o meu...
P/2 – Pro seu aniversário.
R – Aniversário, isso! Já é o filho daquele. Foi Ernesto, que tem aquela senhora mexicana...
P/1 – Tinha uma comunidade judaica grande na Suíça?
R – Na Suíça? Não, tem mais ou menos vinte mil judeus, hoje. E tinha também... Não aumentou nem diminuiu, outra gente em nossa situação ficou, não emigraram. Na Suíça. Daquele lugar até Kreuzlingen, mas nós achamos por bem emigrar.
P/1 – E hoje? O senhor acha que foi a melhor...
R – Eu acho que foi bom. Depois, podia ter ficado lá, mas não se sabia.
R – não, não. Eu só lhe pergunto assim, hoje.
R – Sim, naturalmente...
P/1 – Olhando para trás, né, o que sente?
P/2 – E a família da dona Leonie recebeu algum tipo de represália pelo fato dela ter se casado com judeu?
R – Não, não. Onde? Na Suíça? Não, nada disso.
S1,LJ. O senhor chegou a fazer... Quer dizer, o senhor fez uma espécie de escola técnica. Eu não entendi bem a sua formação.
R – Não, a Realschule é uma escola, digamos aí, secundária. Seis anos. Em geral são quatro anos de primário. Eu fiz só três anos, depois já passei para o secundário. São nove anos. Depois ainda [fiz] um ano de Escola Comercial, Colégio Comercial. E depois fui fazer meu aprendizado na Alemanha.
P/2 – Mas tudo sempre nessa linha de comércio?
R – Comércio.
FH. E esse grupo de sionistas, com quem o senhor trabalhou algum tempo, ele funcionava bem? Como é que ele se integrava? Isso na Suíça.
R – Bom, na Suíça não, isso ainda era na Alemanha. Apesar de que nós morávamos na Suíça, mas tomamos parte. Por exemplo, um primo meu fez "Harshara" perto de Konstanz, e depois emigrou, no ano de 1936, para a Palestina, para Ramat Hadar, Ramataim, e fez lá uma... Tem uma granja, que eram os... Chamavam "Ha-iekes" lá. Era um dos Haiekes lá, perto de Tel-Aviv. Já faleceu há uns dezoito anos.
P/1 – E ficou lá?
R – Ficou. A viúva está lá, os filhos estão lá.
P/1 – Agora, na sua família nunca passou a ideia de ir para Israel em vez de vir para o Brasil?
R – Não.
P/1 – Foi uma coisa tranquila. Veio para o Brasil porque tinha família aqui e era um lugar...
R – É, justamente, porque tinha família. Depois também a irmã da minha mãe, também. Você conhece o velho Weil. Philipe e Helena Weil.
P/2 – Eu conheci ele também. Por que eles vieram para o Brasil?
R – O Fritz Weil, não sei. Ele escutou falar... Ele tinha também um amigo aqui, então ele foi, no ano de 1935, para a França, e da França, então, em 1936, veio para cá.
P/1 – Agora, o senhor olhando assim para trás, a vida religiosa – ou comunitária, como quiser chamar – era muito diferente da que se tem aqui, tem na ARI, enfim, a vida que se tem aqui?
R – Não era muito diferente. Naturalmente não tinha esses métodos modernos aí. Mas em parte a gente também discutia questões judaicas, também... A gente andou junto, não sei o que, durante o domingo, passamos o sábado e o domingo juntos.
P/1 – Tinha atividades. E a educação que o senhor deu a seus filhos... O senhor tem filhos?
R – Não.
P/1 – Não tem filhos. E o senhor, pessoalmente, foi a Israel alguma vez?
R – Oito vezes.
P/1 – Por curiosidade? Quer dizer, foi porque... Para conhecer?
R – Não. O que? Para visitar?
P/1 – É, para visitar?
R – Para visitar, sim. A última vez foi no ano passado. Nós tomamos parte para os vinte anos da reunificação de Jerusalém. Fomos convidados lá pelo... Porque eu faço parte do Keren Yerushalaim, o Jerusalém Foundation. Então temos uma amizade – como ele tem milhares de amizades lá. Mas foi muito bonito, muito interessante.
P/2 – Esse congresso que o senhor foi, em Lucerna, que o senhor disse, congresso sionista, por que o senhor foi lá?
R – Foi um grupo. Foi um grupo de...
P/2 – Da sua cidadezinha?
R – Sim, sim, sim.
P/2 – Ah, e então foi um bando.
R – Foi um bando, é, foi um bando. Foi um programa também dentro daquelas atividades. A gente queria ir lá ver, escutar etc.
P/2 – Ele impactou?
R – Sim, o Blumenthal falou bem. Depois tinha aquela gente que falava iídiche, e nós quase não entendemos iídiche. O iídiche eu aprendi em Petrópolis (risos), para entender mais.
P/2 – O senhor foi direto para Petrópolis? O primeiro lugar que o senhor ficou no Brasil foi em Petrópolis?
R – Foi em Petrópolis.
P/1 – E morou lá em Petrópolis?
R – É. Depois nós descemos para eu aprender, durante seis meses, lapidação de diamantes, aqui numa lapidação...
P/1 – Com quem, quem fazia lapidação? Os judeus também, ou não?
R – Lapidar?
P/1 – É, essa questão toda de lapidação era coisa de judeu?
R – Era na mão dos judeus, dos belgas.
P/2 – Dos belgas. Dos pais da dona Raquel, dona Raquel Levy. Os pais estavam metidos com esse negócio. A esposa do... O sogro do Seu Guilherme Levy.
R – Ah, é. Sim, sim, natural.
P/1 – Eles ainda estão... Porque eles fundaram a sinagoga de Copacabana, né, esses belgas. Eles ainda estão aqui no Brasil? Não os vejo nunca.
R – Muito poucos, muito pouco. Tem o Ziniet Baum, tem... Tem alguns outros. Mas ele não tem mais lapidação, me parece, ele só tem comércio. Tinha aqui no Rio grandes lapidações.
P/1 – Nós ainda não conhecemos nenhum. Tem alguma pessoa que o senhor possa indicar, desse grupo de belgas, que a gente possa entrevistar, que o senhor achasse interessante? Tem alguém?
R – Não. Mas eles vieram do outro lado, eles vieram da Bélgica.
P/1 – Não, mas que o senhor tenha conhecido aqui, estou dizendo.
R – Que eu conheci aqui?
P/1 – É, que o senhor acha que possa ser uma pessoa interessante para a gente procurar.
R – Acho que não. O seu Walfred Baum é uma pessoa muito interessante. Se você tem... Você conhece o Walfred?
P/2 – A irmã dela mora no meu edifício, a esposa do Linon.
R – Ah, é, do Linon. O outro é Schlesinger, o cunhado dele. Mas eles foram se espalhando. Depois o (...) foram muito pressionados aqui pelo governo, por causa dos impostos. Porque diamante é um produto mundial, com preço mundial, entlo... Depois da guerra, então, eles voltaram para a Bélgica ou foram para Israel. Então se desfez aqui todo esse negócio. É uma oportunidade que o Brasil perdeu. Podia ser...
P/2 – Um centro ‘diamanteiro’.
R – Hein?
P/2 – O senhor diz que o Brasil poderia ter sido um centro ‘diamanteiro’?
R – Um dos centros ‘diamanteiros’, né. Tem um Stein, das pérolas majoricas. O Steinfeld tem uma lapidação aqui no Rio, e relativamente grande, até perto da minha firma. O Steinfeld, que também é negociante de ouro.
P/1 – Ai o senhor desceu de Petrópolis. Ficou quantos anos em Petrópolis?
R – Ah, do ano de 1942 até 1946: quatro anos em Petrópolis. E descemos para o Rio.
P/2 – Ficaram aqui na zona sul?
R – Não. Em 1946 quase não se encontrava moradia, então fomos alugar um apartamentozinho de quarto e sala lá em Santa Teresa.
P/2 – Ah, que romântico.
R – Não era tão romântico não, não era tão romântico. Depois achamos lá no Leblon, mudamos três vezes do Leblon, depois fomos para o Posto 6, e do Posto 6 para cá.
P/2 – Eu me lembro de vocês no Leblon, ainda. [Rua] Aristides Espínola, né?
R – Dois endereços que tinha lá: no 43 e 49.
P/2 – Depois a Conselheiro Lafayette. Sabe que a dona Hildegard cantou no casamento dos meus pais?
P/1 – Ah, eu não sabia que você tinha toda essa ligação.
R – Eu tenho fotografia dos seus pais aí.
P/1 – Ah, eu gostaria de ver um pouco das fotografias que o senhor disse que tem. Inclusive de lá.
(interrupção)
P/1 – ...Por ouvir.
R – Não por ouvir, também por ver. Porque lá, no início da guerra, tinham esses... Lá na parte da Suíça... Porque é uma cidade na fronteira, de onde foram já troca de soldados com não sei o que... Com defeito. Quer dizer, já mutilados etc. E a gente também viu os primeiros bombardeios na Alemanha do sul, lá em Friedrichshafen, onde tinha aquele Zeppelin e tinha também uma fábrica de armamentos alemães, lá no lado do Lago de Konstanz. O Lago de Konstanz é um lago de quarenta e tantos quilômetros. Tem três: tem Alemanha, Suíça e Áustria como... E às vezes também caíram no lado suíço. Mas eram bombas pequenas, porque no início da guerra os aviões eram pequenos também. Quer dizer, isso não era... Mas depois, naturalmente, com as deportações, aí é que começaram lá do outro lado, em Konstanz. Foram deportados também amigos e conhecidos para aqueles... Para Dachau, para Gurs. Já escutaram isso?
P/1 – Dachau eu fui depois.
R – Sim, Dachau é perto de Munique, Gurs é no sul da França. E assim, naturalmente isso era muito penoso pra gente. A gente era muito próximo daquilo e não podia fazer nada. Depois a gente mandava pacotes lá para os campos de concentração, né.
P/1 – Mas era claro... Porque, por exemplo, um amigo do senhor, uma família era deportada. Era claro que dali provavelmente o final era a morte ou ainda havia essa ideia de que ia trabalhar não sei onde?
R – Não se sabia. Sim, justamente, não tinha ideia nenhuma sobre a morte, não. Apesar de que o pai de um amigo meu, que foi levado para Dachau, no início ainda, em 1936, que faleceu lá e... Mas talvez foi morto, foi trucidado. (Talvez tenha sido morto, trucidado?)
P/1 – E não se sabia, não se imaginava...
R – Não, não se imaginava em que proporções isso podia levar.
P/2 – Que história é essa de pacotinhos? Eu já escutei isso. Podia mandar pacotes para Alemanha?
R – Sim. Liebensgaben pakete, se chamava. Para a Alemanha não sei, mas para Gurs, no sul da França, um campo de concentração...
P/2 – O senhor mandava esses pacotinhos do Brasil ou da Suíça?
R – Do Brasil.
P/2 – Aqueles que eram 125 gramas de sal... Aquelas medidas?
R – É isso mesmo, essas coisas. Meio quilo, acho, o total.
P/2 – Tinha tudo especificadinho, tinha que ser o tamanho exato.
R – É, liebensgaben pakete, como isso se chamava em alemão.
P/1 – E alguma vez o senhor teve a confirmação de que esses pacotes chegaram?
R – Em parte sim, chegaram. A gente às vezes recebia uma confirmação.
P/2 – Mas vocês mandavam para quem? Para algum conhecido que vocês sabiam que estava lá?
R – A minha mãe tinha duas tias lá. A gente tinha amigos e conhecidos, então a gente mandava.
P/2 – E quando que, aqui no Brasil, o senhor tomou conhecimento do que estava realmente acontecendo na Europa?
R – Não antes do que todo mundo.
P/2 – No final da guerra? Só no final da guerra?
R – É, como todo mundo.
P/1 – E o senhor se lembra qual era a o clima daqui quando chegou? Como é que as pessoas se referenciavam ao que estava acontecendo lá? Como foi a sua chegada enquanto judeu, enquanto alemão ou suíço, enfim, que lembrança o senhor tem em relação a essa chegada? Em relação ao brasileiro?
R – Bom, a gente presenciou esse quebra-quebra que tinha lá em Petrópolis, por exemplo, contra os alemães. E que também sofreu com o passaporte alemão, apesar... Sendo judeu, [éramos] igualados com alemães, que tinha até esse passepartout, esse... Como chamava aquilo? Uma concessão para viajar, não sei o que, para Petrópolis, para o Rio; do Rio para Petrópolis ou vice-versa, para onde for aqui no país. ‘Salvo-conduto’, se chamava isso.
P/1 – Alguém já me contou, não sei se foi o Alfredo... Mas que o judeu-alemão também chegava aqui, ele tinha muitos problemas, porque era tratado como um alemão, como inimigo.
R – É, alemão. Sim, exatamente, como inimigo. Apesar que eles não queriam saber de judeus não. Eu me lembro ainda o pai de Liselotte Weil, o Enerich, que era um judeu, mas um judeu muito alemão ainda, até o fim da vida dele... Falava não sei o que, e eles pegaram e botaram ele em Niterói, lá.
P/2 – Meu tio foi lá também, até ele provar que era judeu, que não tinha que estar lá.
R – O Herman?
P/2 – Não, o Mário.
P/1 – Mas fazia o que nesse campo?
P/2 – Foi preso.
P/1 – Ficavam presos lá?
R – Presos, com muitos alemães junto.
P/2 – Um campo de internamento, como chamavam.
P/1 – E aqui? Os alemães tinham alguma relação com os judeus? Como era o alemão aqui, o alemão que morava aqui? Ele se identificava com aquela Alemanha que estava lá, com todo esse antissemitismo? Houve algum tipo de encontro, relação? O senhor não sabe?
R – Não, eu não tinha relações com eles. Naturalmente – a gente evitava, evidentemente.
P/2 – O senhor não se lembrava de Petrópolis? O meu pai uma vez me falou que a família Hack, os Hack, andavam de uniforme pelo meio da rua.
R – Hack. Os óptico... Os óticos?
P/2 – É, aquele clube Concórdia, que eles puseram os judeus para fora também. O senhor se lembra?
R – Não, isso eu não me lembro não. Concórdia era um clube?
P/2 – Um clube, ali perto da [avenida] Rio Branco.
R – Isso eu não lembro. Isso certamente foi um pouquinho antes, porque quando nós chegamos, logo depois o Brasil virou e foi para o lado dos aliados. Depois daqueles vapores, daqueles navios que foram afundados, então... Isso foi logo depois que nós chegamos.
P/1 – E, por exemplo, a questão da imigração, a chegada de outros judeus etc., o senhor não sabe de nada... A sua chegada foi fácil? Não teve problema de...
R – Nós chegamos aí com o visto de capitalista. Quer dizer, tínhamos com o que... Nós morávamos na Suíça, então nós tínhamos dinheiro e pudemos, então, fazer a transferência aqui pra Banco do Brasil – que foi perdido completamente.
P/2 – Por quê?
R – Porque eles prenderam isso, depois, como dinheiro alemão. E depois, quando foi liberado, já não valia mais nada. Essas desvalorizações, até... Não sei quantos anos mais tarde, já não valia mais nada.
P/1 – E era uma quantia grande?
R – Naquela época era um bom dinheiro, sim.
P/1 – E era obrigatório fazer? Tinha que fazer?
R – Tinha que fazer, era obrigatório fazer a transferência para o Banco do Brasil, mas pelo menos a gente entrou com facilidade.
P/2 – E a viagem? Porque já viajaram no meio da guerra...
R – Nós viajamos no meio da guerra, fomos com o trem da Cruz Vermelha de Genebra até Espanha, fomos no navio espanhol. Cabo de Hornos. Tinha dois navios italianos. A Leonie veio depois com o Buena Esperanza, e tinha ainda dois navios portugueses. Então nós tivemos uma viagem muito boa.
P/1 – Sem nenhum percalço, sem medo?
R – Nada. Nós fomos, então, com o trem. O trem parou na primeira fronteira, na primeira cidade da França, e vieram os nazistas, porque a França era já ocupada. Essa parte estava ocupada, mas a parte do sul não era ocupada. Foram lá, fizeram... Também fizeram controle, mas andaram pelo trem...
P/1 – E eles sabiam que vocês seriam judeus?
R – Sim, claro, porque era um trem da Cruz Vermelha, a Cruz Vermelha era o último trem... Não! A Leonie foi com o último trem da Cruz Vermelha. Mas esses trens aí foram a cada semana, a cada quinze dias foi um trem, e eles sabiam que eram imigrantes. Porque tinha bagagem, muita bagagem. Até móveis, certos móveis a gente levava.
P/2 – E o senhor veio com muita bagagem?
R – Ah, sim. Meus pais tinhaM móveis, móveis antigos.
P/1 – Móveis, louças, roupas de cama...
R – Móveis... Tudo isso, tudo.
P/2 – O seu pai ainda veio para o Brasil?
P/1 – Veio toda a família.
P/2 – Ah, pensei que ele tinha falecido na Suíça.
R – Não, veio para o Brasil. Ele tinha 63 anos, viveu uns vinte anos aqui.
P/1 – E depois essa bagagem passou toda para o navio?
R – Passou sim.
P/1 – Que coisa, hein. E aí, no Brasil...
FIM DA FITA 1
FITA 2 - LADO 1
Continuação da entrevista com Sr. FRITZ HABERER. - 23/05/88
P/1 – ...E aí, os nazistas entraram, olharam, foram embora. Não criaram nenhum caso. Que emoção.
R – Não criaram nenhuma... Então, pois é. Então a gente foi de trem até a fronteira da Espanha. De lá, a gente foi para o... A bagagem foi separada para... Bom, nós fomos para Barcelona num ônibus. Agora, naquela época quase acabava aquela guerra civil da Espanha. Então o espírito estava horrível, eu senti um clima horrível. Você sabe mais ou menos o tipo de Beirute de hoje. Muita coisa destruída, não tinha pontes, o ônibus andava ... Era quase seco, então a gente andava em rios, em torno dos rios. Uma viagem horrível. A gente acabou em Barcelona, e depois fomos para... Não foi…
(interrupção)
P/1 – No porto tinha o que, que o senhor estava falando?
R – Viajando, uma parente aí, muito perto, uma parente meio longe, que estava no campo de concentração de Gurs, no sul da França. E conseguiu sair de lá e foi para a Argentina, no mesmo navio.
P/1 – Por acaso?
R – É, por acaso. Como nós tínhamos fartura de comida e fartura de frutas, tudo isso, então a gente podia levar para ela, pra baixo.
P/1 – Interessante que foi uma história de imigração envolta, né. Dentro da guerra, no tempo de guerra, mas com muita tranquilidade.
R – Em tempo de guerra, com tranquilidade. A Leonie foi com menos tranquilidade, porque ela foi para as Antilhas, lá para a Holandesa.
P/2 – Guiana holandesa.
R – Guiana Holandesa e Guiana Inglesa, e foram lá pela blocada. Tinha minas, estava tudo minado naquela época. Foi poucas semanas mais tarde.
P/2 – Quanto tempo durou essa viagem?
R – A nossa? Dez, onze dias, uma coisa assim.
P/2 – Até chegar no Brasil?
R – Até chegar no Brasil, foi direto... Não, foi mais, foi mais. Porque nós paramos em Vigo, paramos em Cádiz e em Tenerife. Foram vinte dias.
P/2 – Foi muito rápida, mesmo assim.
P/1 – O senhor chegou no Rio? Desembarcou no Rio?
R – Desembarcamos no Rio e fomos ainda fazendo uma excursão em Tenerife, excursão em Cádiz, e etc.
P/1 – Quer dizer, quase um passeio.
R – Foi um passeio, sim. E fomos diretamente para Petrópolis.
P/2 – O senhor morava onde, em Petrópolis?
R – Nas primeiras semanas morávamos naquela pensão do meu tio, na Rua Santos Dumont, daquelas irmãs Bergle. Você não... Não é do seu tempo. Onde o Fritz Weil morava até agora – ele se mudou agora.
P/2 – Eu sei. Ele saiu da casa, passou para o apartamento.
R – E depois fomos para a mesma rua, lá para cima, ali perto da Rua Sá Earp, do outro lado, na mesma rua .. Onde a Hildegard mora também, um pouquinho além, em uma casa. Depois os meus pais foram para a Dom Pedro, e nós fomos morar na Mosela, lá em cima.
P/2 – Naquela casa que eu conheci? Na Pirambeira?
R – É, isso, foi a nossa primeira casa, no meio de uma chácara de flores. Uma coisa muito bonita. Depois enfeou bastante – como Petrópolis, em geral.
P/1 – Mas aí os senhores se casaram aqui?
R – Nos casamos em Petrópolis.
P/1 – Interessante. Não houve exigência de ela casar lá antes de vir? Ela emigrou sem estar casada, em quarenta e tantos, né...
P/2 – É outra cabeça, né.
P/1 – É, outra cabeça, completamente outra. Imagine, você deixar a sua filha, naquela época, sem se casar. Eu não imaginava que era assim. Aí vieram, se casaram aqui. Mas é uma história diferente né, cada um tem a sua história. Eu acho que tem... Tem mais alguma coisa assim que o senhor gostaria de nos contar? Assim, que se lembra? Acho que a gente cobriu bastante bem...
R – Não sei. Naturalmente, com o tempo aí, no decorrer, [a gente] sempre se lembra de alguma coisa, mas não sei se é muito interessante para vocês.
P/1 – É interessante, é um quadro diferente do que a gente tem encontrado. É diferente, sim.
R – Bom, aqui, naturalmente... Então eu vou avisar a outros, aqui a gente tinha que trabalhar, tinha que ganhar para fazer a vida. A gente começou de baixo. Nós fomos no cinema com não sei o que, lá em Petrópolis, primeiro andar, junto com os pretos. A única coisa que me lembro, ainda, que é uma coisa... Nós estávamos perto do 13 de maio. Em Petrópolis a gente andava muito de ônibus, andava-se de ônibus, e andavam muitos pretos aí também. Gente meio suja e... Hoje já tem outro nível de gente que anda de ônibus, mas naquela época tudo era de pijama, aqueles sacos de farinha, tamancos etc. Então eu entrei no ônibus, fui no último lugar lá, sentei. Veio uma mulher preta, eu dei lugar a ela. Isso é uma coisa fora do comum. Porque eu estava acostumado lá, vem uma mulher aí, então a gente...
P/2 – Levanta e dá o lugar.
R – Dá o lugar. Tinha gente lá... (risos) Outra coisa que eu... No primeiro dia, eu fui na farmácia, Farmácia Viana, uma coisa assim. Não falava português, só falava francês, e tinha um remédio... Não tinha dinheiro comigo, porque era uma coisa muito rápida. “Não tem importância, o senhor paga amanhã, quando quiser”. Então, eu queria dar o meu endereço – isso era em Petrópolis, naquele tempo.
P/1 – Deve ter sido uma coisa boa de encontrar, né. Muito calorosa.
R – Justamente.
P/1 – Hoje eu acho que em lugar nenhum é isso.
R – Muito raro.
P/1 – Mas seu Fritz, eu acho que nós estamos bem satisfeitas. Qualquer coisa nós pegamos, nós voltamos, lhe perguntamos. Porque agora nós pegamos essa entrevista... (interrupção)
[Fim da entrevista]
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