Em uma noite fria de julho, dona Erica sentiu que a sua bolsa iria romper. Imediatamente, seu José Antonio, seu marido, de prontidão, a encaminhou para o Santa Marcelina. Aparentemente, tudo certo para o grande dia.
No entanto, o que o jovem casal não contava era que o destino iria lhes pregar uma peça que quase custou a minha vida.
Por uma grosseiria médica, fui transferido de última hora para o centro da cidade.
Entre gritos de ameaças e gemidos de dor das contrações, a ambulância foi parar lá no bairro da Santa Cruz. Eu fui concebido no corredor do hospital. Como narra a minha mãe, roxo como uma berinjela e feinho feinho.
Fiquei três dias entubado, longe da vista de todos.
Mas, contra todas as espectativas, lá estava eu, vivo e saudável. Inserido em um seio familiar abençoado, fui uma criança muito amada. Tive o privilégio de ser o primeiro sobrinho e neto de uma familia de cinco irmãos, experimentando carinho e afeto em sua melhor forma.
Mesmo sendo filho único, nunca estava sozinho. Sempre tinha meus pais ou lgum tio brincando comigo, exceto uma única vez em que deram bobeira e eu inventei de colocar a mão em cheio no ferro quente. A brilhante ideia quase me custou três dedos da mão direita. Por sorte, nasci canhoto. Mas a cicatriz, carrego comigo até hoje.
E assim se deu a minha criação. Sempre rodeado de bonecos que a minha boa avó, doméstica, trazia da casa de sua patroa em Alphaville.
Era particularmente engraçado, porque eu nunca saia de casa sem um boneco. Os meus pequenos bolsos estavam sempre carregados com grandes e pequenos exemplares da Marvel e da DC.
Por muitos anos, meus brinquedos foram o meu mundo. Desconfio que tenha sido assim para qualquer criança nascida antes da internet e que não tenha sido obrigada a trabalhar cedo.
Primeiro, foi fácil. Não me sentia sozinho. Depois, um pouco mais velho, tive de dobrar a minha criatividade para estancar aquele tipo de vazio que só filho...
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Em uma noite fria de julho, dona Erica sentiu que a sua bolsa iria romper. Imediatamente, seu José Antonio, seu marido, de prontidão, a encaminhou para o Santa Marcelina. Aparentemente, tudo certo para o grande dia.
No entanto, o que o jovem casal não contava era que o destino iria lhes pregar uma peça que quase custou a minha vida.
Por uma grosseiria médica, fui transferido de última hora para o centro da cidade.
Entre gritos de ameaças e gemidos de dor das contrações, a ambulância foi parar lá no bairro da Santa Cruz. Eu fui concebido no corredor do hospital. Como narra a minha mãe, roxo como uma berinjela e feinho feinho.
Fiquei três dias entubado, longe da vista de todos.
Mas, contra todas as espectativas, lá estava eu, vivo e saudável. Inserido em um seio familiar abençoado, fui uma criança muito amada. Tive o privilégio de ser o primeiro sobrinho e neto de uma familia de cinco irmãos, experimentando carinho e afeto em sua melhor forma.
Mesmo sendo filho único, nunca estava sozinho. Sempre tinha meus pais ou lgum tio brincando comigo, exceto uma única vez em que deram bobeira e eu inventei de colocar a mão em cheio no ferro quente. A brilhante ideia quase me custou três dedos da mão direita. Por sorte, nasci canhoto. Mas a cicatriz, carrego comigo até hoje.
E assim se deu a minha criação. Sempre rodeado de bonecos que a minha boa avó, doméstica, trazia da casa de sua patroa em Alphaville.
Era particularmente engraçado, porque eu nunca saia de casa sem um boneco. Os meus pequenos bolsos estavam sempre carregados com grandes e pequenos exemplares da Marvel e da DC.
Por muitos anos, meus brinquedos foram o meu mundo. Desconfio que tenha sido assim para qualquer criança nascida antes da internet e que não tenha sido obrigada a trabalhar cedo.
Primeiro, foi fácil. Não me sentia sozinho. Depois, um pouco mais velho, tive de dobrar a minha criatividade para estancar aquele tipo de vazio que só filho único sente. Então, passei a intercalar entre os brinquedos e alguns amigos que fui encontrar na rua.
Não sei precisar o momento exato em que os brinquedos foram deixados de lado. Acredito que ninguém o saiba, porque não dói. De tão natural que é, não dói. De repente, acordamos um dia, olhamos para eles, mas o brilho se foi, levando o interesse consigo. Então, os guardamos para sempre. Será que a galera da próxima geração terá a mesma experiência com o celular?
Era uma nova fase. Eu tinha uma dúzia de amigos ranhentos no bairro e minha prima Natália que viveu como uma irmã postiça. Quando sua mãe a levou, mais uma vez fiquei diante de uma vazio iminente. Já estava razoavelmente grande, com os meus dez anos de idade e os meus tios, pais e mãe já não me davam tanta atenção como antes.
Foi então que, despretensiosamente, pedi um irmão para os meus pais. A ideia deu certo, mas fui agraciado com uma irmã, o que descobri que era tudo o que eu precisava. Infelizmente, como ela era dez anos mais jovem que eu, acabamos por ter gostos diferentes.
De todo modo, ser o irmão mais velho tem o seu lado bom. Sempre que possível, passo algumas lições práticas para ela. As vezes, a escrevo cartas. Toda aquela baboseira de \"não repita os meus erros\".
Por falar em cartas, desenvolvi esse hábito particular por influência do meu pai. Como um homem que viajava muito, enchia a minha mãe com cartas apaixonadas, declarando minuciosamente seu amor e saudade. Vocês tinham que ver, uma coisa de partir o coração.
Por acaso, acabei lendo duas ou três e me afeiçoei à ideia. Como um punhado de palavras poderia carregar tanto sentimento? O bacana também era que as cartas tinham lá seus doze anos de existência. O papel, amarelado, tinha envelhecido... mas a ideia não; o sentimento não. Estava tudo intacto, fresco, como se tivesse sido escrito naquele exato momento.
Foi pensando nisso que comecei a entender melhor o poder da palavra. Sua importância está assentada no fato de que ela não envelhece, ela não volta atrás, ela vence o tempo. Por isso, não se deve ser leviano nas palavras. Elas tem que ser respeitadas.
Decidi declinar para o mundo das palavras por uma intenção única. Existe um antes e depois na minha vida, a partir dela.
Dizem que a vocação que escolhe a pessoa. No meu caso, foi o contrário. Eu sempre corri atrás da minha. Escrever, eu escrevia desde sempre. Frases soltas, rimas, diálogos aleatórios. Tudo numa ânsia inexplicável de me expressar.
Mas eu fui escrever mesmo... com propósito... depois do meu primeiro livro. Foi com dezesseis anos, na biblioteca Vicente Paulo Guimarães. Ainda frequento ela, com muito saudosismo. Aquela foi a minha casa durante anos a fio.
Me aproximei dos livros por pura provocação. Estava no segundo ano do ensino médio, em uma modesta escola pública no bairro do tatuapé. Engraçado que ela parecia um grande lava-rápido para quem olhava da marginal.
Por lá, como toda escola, existia os grupinhos. No entanto, o diferencial do Loureiro Junior, era que, quando era para estudar mesmo, todo mundo obedecia. Nunca vi nada parecido. Em partes, talvez pelo fato de ser uma micro escola e todos se tratarem como parentes.
Foi lá que eu conheci ela: Professora Sheila Feliz. Diretamente da USP, sua disciplina era filosofia. Foi com ela que o meu senso crítico deu os primeiros passos. A sua didática era, como posso dizer, revolucionária, porque não se baseava em nota, mas sim no potencial de absorção dos alunos. De fao, uma professora comprometida com a educação.
A minha maior nota, com ela, foi um cinco, que tirei por resenhar o filme expresso do amanhã. O resto era tudo dois, três, zero. Eu não me sentia mal com a nota e ela garantia mesmo que não, pelas razões acima.
Enfim, devo muito a ela por ter me provocado a questionar, a não ter preguiça de pensar, a ir além. Foi com a cabeça fervilhando de ideias que eu tive o primeiro contato com os livros.
Contrariando as espectativas, não foi nem de longe amor a primeira vista. Foi duro sair da zona de conforto para resgatar o leitor ávido dentro de mim. Com um vocabulário extremamente reduzido e uma parca experiência de vida, me perdia na leitura. Muitas vezes, o tédio e o desânimo levaram a melhor.
Foi aos poucos, bem aos poucos mesmo, que eu fui testemunhando a micro revolução que me ocorria.
As palavras, antes labirinto, agora eram as minhas aliadas. Eu olhava o meu entorno de outra forma. Olhava para além do que estava vendo. Era como se um véu tivesse caído dos meus olhos. De repente, eu existia de outra forma.
O impacto foi tal que definiu as bases para a minha vocação e profissão: a ideia inicial era ser escritor e advogado. Talvez, o motivo que tenha me levado a escolher a carreira de advogado seja meio tosco: usava leitura.
De todo modo, me tranquei no quarto por dois anos e só sai de lá quando ganhei uma bolsa em uma faculdade razoável.
Os cinco anos de graduação passaram tão rápido como se fossem cinco meses. Obviamente, potencializados pela pandemia, que roubou dois anos de todos nós.
Paralelamente, rascunhava alguns ensaios, histórias desconexas e, até mesmo, poesias. Tive uma página no instagram, temporariamente, para divulgar o meu trabalho. Foi assim que comecei. Demorei para dar um nexo às histórias, mas, aos poucos, elas foram ficando boas de verdade. Tinha corpo, tinha contexto e, principalmente, uma mensagem.
Fui ganhando concursos literários aqui e ali, divulgando os textos de alguma forma. Descobri que ser lido é transcedental, principalmente se você escreve com o coração. A capacidade de transmitir ideias tão íntimas e originais, lá do fundo da alma mesmo, por meio da escrita, é o que me fez se apaixonar.
Faz uns dois anos, desde que escrevo este texto, que sinto a necessidade de retratar certos tipos urbanos, como dizia Will Eisner. Esses tipos são minha gente, pessoas como eu, que fazem parte do meu convivio, da minha comunidade e que, por algum motivo, tive contato ou conhecia as suas histórias.
Da para aprender muita coisa apenas parando e observando. Os arredores pode nos ensinar muito. Foi pensando nisso que passei a escrever sobre. Alguns contos são inspirados em familiares, outros em vizinhos ou conhecidos.
Retratá-los, de certa forma, era me retratar também. Outra razão se dava, porque eu não queria que as suas histórias e a minha, por tabela, caissem no esquecimento pelo decorrer do tempo.
Foi transformador o exercicio. A gente perde tanto detalhe importante, no caminho, que só nota a sua relevância depois que o revisa na memória.
Meu primeiro livro se chama \\\"O que há na boina de Lucy?\\\" Nele, narro a vida de avó solitária que tem seus dias iluminados por sua neta. Ela usa uma boina, por onde se infiltra dois camundongos de personalidades destontes. A trama se desenvolve com ela sendo induzida pelos cochichos dos dois ratinhos, enquanto na companhia de sua neta.
Para os personagens, me inspirei em minha avó Vera Lucia. O \\\"Lucy\\\" vem dela. Não fui tão original, mas os traços da personalidade foram extremamente verossímeis. A minha avó é tudo para mim.
Já a criança foi tirada de todos os meus priminhos e minha irmã, Karoline. Afinal de contas, a constituição do livro foi em homenagem a eles. Sempre pensei que um livro fosse mais duradouro que um brinquedo. Foi com esse pensamento que ele foi concebido.
Bom, esse foi um resumo da minha vida. Havia muito para ser contado, mas decidi dar uma pausa e viver um pouco.
Costumo dizer que tenho a melhor familia do mundo. Uma santa mãe chamada Dona Erica e um honrado pai chamado José Antonio. Minha irmã é um gênio e cheia de personalidade. Barbara, por sua vez, minha esposa, é a minha melhor amiga e o meu amor.
Tenho tudo que preciso.
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