a:1:{i:0;a:3:{s:2:\"id\";s:6:\"132543\";s:6:\"titulo\";N;s:8:\"conteudo\";s:8163:\"Nesse mês de outubro de 2025 tive a oportunidade de estar, pela primeira vez, em Belém do Pará (no contrafluxo de dois grandes eventos: o Círio de Nazaré e a COP30 ). Entre outras experiências significativas, imergi (bem no dia da inauguração) na exposição inédita do Museu da Pessoa : “Você já escutou a Terra?”, montada no Museu do Estado do Pará , com curadoria de Ailton Krenak e Karen Worcman . Que experiência tocante! Em diversas ocasiões eu já logrei a satisfação de escutar a Terra: no som das águas (de cachoeiras, rios, mares, chuvas...), dos pássaros, do silêncio, vento, trovões! No farfalhar das folhas e borboletas, no zunido dos insetos, risadas das crianças, histórias das pessoas mais velhas, cantorias amazônicas d’Ayahuasca, maracás, flautas, tambores, sanfonas, violões... quanta diversidade, quanta beleza viva, pulsante! Ultimamente, contudo, quase sempre que me coloco a escutá-la, em todas suas manifestações, ouço grande lamento... um grito de dor. De alerta! A Mãe Terra chora, clama. Mas parece que poucas filhas e filhos escutam... Quando cheguei à Belém fui conhecer o rio. A baía do Guajará! Ah, as águas... Muitas águas! Que espetáculo impressionante! Chorei. De emoção e gratidão diante de tamanha beleza. De tristeza pelos horrores da dita civilização (isso não apenas em Belém, mas nas cidades de maneira geral, especialmente nos grandes centros urbanos): tantas pessoas desumanizadas em situação de rua, tanto lixo nas esquinas, lixo e esgoto também no rio... O rio. Percebi que quase ninguém parava para escutá-lo. Ele ali, imenso, fluindo, levando, lavando com suas águas... e os ruídos da cidade como querendo silenciá-lo: alto-falantes, carros, barcos turísticos, motos, apitos, buzinas! Parei por horas - na Estação das Docas e depois no Complexo Ver-o-Rio - a contemplar o rio... e escutei encantada:...
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a:1:{i:0;a:3:{s:2:\"id\";s:6:\"132543\";s:6:\"titulo\";N;s:8:\"conteudo\";s:8163:\"Nesse mês de outubro de 2025 tive a oportunidade de estar, pela primeira vez, em Belém do Pará (no contrafluxo de dois grandes eventos: o Círio de Nazaré e a COP30 ). Entre outras experiências significativas, imergi (bem no dia da inauguração) na exposição inédita do Museu da Pessoa : “Você já escutou a Terra?”, montada no Museu do Estado do Pará , com curadoria de Ailton Krenak e Karen Worcman . Que experiência tocante! Em diversas ocasiões eu já logrei a satisfação de escutar a Terra: no som das águas (de cachoeiras, rios, mares, chuvas...), dos pássaros, do silêncio, vento, trovões! No farfalhar das folhas e borboletas, no zunido dos insetos, risadas das crianças, histórias das pessoas mais velhas, cantorias amazônicas d’Ayahuasca, maracás, flautas, tambores, sanfonas, violões... quanta diversidade, quanta beleza viva, pulsante! Ultimamente, contudo, quase sempre que me coloco a escutá-la, em todas suas manifestações, ouço grande lamento... um grito de dor. De alerta! A Mãe Terra chora, clama. Mas parece que poucas filhas e filhos escutam... Quando cheguei à Belém fui conhecer o rio. A baía do Guajará! Ah, as águas... Muitas águas! Que espetáculo impressionante! Chorei. De emoção e gratidão diante de tamanha beleza. De tristeza pelos horrores da dita civilização (isso não apenas em Belém, mas nas cidades de maneira geral, especialmente nos grandes centros urbanos): tantas pessoas desumanizadas em situação de rua, tanto lixo nas esquinas, lixo e esgoto também no rio... O rio. Percebi que quase ninguém parava para escutá-lo. Ele ali, imenso, fluindo, levando, lavando com suas águas... e os ruídos da cidade como querendo silenciá-lo: alto-falantes, carros, barcos turísticos, motos, apitos, buzinas! Parei por horas - na Estação das Docas e depois no Complexo Ver-o-Rio - a contemplar o rio... e escutei encantada: majestoso, profundo, simples, belo! Escutei o brilho do sol em suas águas, a escuridão da chuva que lenta se formava, se aproximava; que forte caía, sem pressa... a floresta amazônica em pé, ao longe, na margem oposta; as crianças brincando nele – mesmo com a placa de “proibido nadar\". Escutei também grande lamento.... séculos de dores crescentes que se acumulam - desde os primórdios da colonização - não apenas no rio, mas também no solo da cidade construída às suas margens, despida de floresta; nos corações de suas filhas e filhos. Escutei ainda, nas águas do rio e nas ruas da cidade, os ecos do Círio de Nazaré a vibrar: a grandiosa e inexplicável energia da fé de uma multidão; o imensurável sofrimento de tanta gente; a alegria, arte, denúncia manifesta em dança, canto, brinquedo, cena. Linguagens, culturas constituídas de/atravessadas por conformismos e resistências (como me faz entender a professora Marilena Chauí,1986). Encontros, desencontros, tensões, trocas; nessa poética e política da diáspora, da diversidade, da relação (que aprendo, em teoria, com Stuart Hall, 2003 e Èdouard Glissant, 2005; 2021)... a Mãe, o manto, religião, promessas, procissões, multidões, dores, pranto... a floresta, a festa, os ritmos, os povos, o alerta sobre o clima, a cobra, os encantos... O calor do sol e a brisa que vem do mar, ali pertinho, soprando... Experiência profunda e impactante. Assim como a da exposição. Chego ao suntuoso prédio do Museu, herança da colonização. Busco a exposição e ao transpor a cortina artesanalmente tecida em coloridos retalhos de malha e adentrar à primeira sala chamada “O Manto”, deitar em uma das redes ali atadas e apreciar a forte paisagem sonora que ressoava, imersa e observando, à luz sombria e multicor, aquela espécie de oca geodésica psicodélica, coloridamente entretecida em multiplicidades de resíduos e tecidos, vindos de diversas localidades do Brasil, um misto de beleza e tristeza invadem meu coração. Me sinto no útero da Terra. Sou una com Ela. E escuto o som da vida! E da lacerante dor. Depois de um tempo, me desloco para a próxima sala. Foi como se, do útero da Grande Mãe, passasse ao fluxo de suas águas e ares. Em finíssimos e esvoaçantes tecidos transparentes contrastando com retalhos em tons de marrom e verde ao fundo, memórias escritas e expostas, lado a lado. Escuto a Terra ao ler as palavras que narram fragmentos de histórias de vidas de seus filhos e filhas, habitantes de distintas regiões brasileiras, criadores e praticantes de diferentes linguagens e culturas. No mesmo ambiente, projetada em alva parede, a imagem e o som de um belo riacho a fluir por entre as árvores parece se juntar ao fluxo das memórias e ao mesmo tempo contrastar com as dores sofridas/narradas; dores causadas pelos processos (des)humanos capitalistas de destituição de direitos e destruição da vida. Esse rio narrativo me atravessa, deságua em meu peito e escorre em gotas pelos meus olhos. Na terceira sala a experiência segue. Na sequência, leio textos sobre os nomeados seis biomas brasileiros: Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa - suas características físicas, populações, potências, fragilidades e ameaças. Leio também mensagens dispostas ao lado de grafismos indígenas: “O jeito de estar na Terra é comum, é coletivo”; “Somos parte, e não o centro”; “Ouvir é tão importante quanto falar”. Decido retornar à sala primeira. Deitada em uma de suas redes contemplo sem pressa, ouço e choro. Não vejo a possibilidade de sair dessa imersão indiferente à beleza e ao clamor da Terra; precisamos encontrar e praticar “outras” formas de existir e conviver (“outras” que não as hegemônicas, nascidas na modernidade ocidental, causadoras do atual caos-mundo, da atual emergência planetária - climática, social, econômica, política... melhor seria dizer (inspirada por Grada Kilomba, 2019) formas “próprias” de ser e estar com a Terra e todos seres que a habitam/constituem). Assim como nos alerta e nos convida Ailton Krenak em suas múltiplas e incisivas falas, em seus tocantes livros (Krenak, 2019; 2020; 2022). Na antessala, que pode ser começo e também fim da exposição, uma cabine do Museu da Pessoa com a pergunta “Você já escutou a Terra?”; e o convite para contar uma suscinta história pessoal. Naquele momento, não me senti apta. Mas aceitando o convite, teço e dou a ler essas breves palavras. E afirmo em uníssono com Larrosa (2004, p.52): “Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, em que fazemos coisas com as palavras e também que as palavras fazem coisas conosco”. Justamente nesse sentido, compartilho essas palavras, esse ensaio cultural em diálogo com as linguagens da exposição e outras mais. Almejo continuar esse exercício de escutar, rememorar, tecer e dar a ler, escutar minhas impressões em narrativas de experiências que entrelaçam arte, natureza-cultura, memórias, linguagens, emergência planetária: climática, social, política... Me uno a esse fluxo e sigo contando \"histórias para adiar o fim do mundo” (como propõe Krenak) * * * Meu nome é Fernanda Cougo Mendonça. Sou mestra e, no momento, pesquisadora doutoral pelo Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, da Universidade Federal do Acre. Vinculada ao Grupo de Pesquisa História e Cultura, Linguagem, Identidade e Memória (CNPq) e ao Projeto: Patrimônios culturais nas Amazônias e Pan-Amazônia - artes do fazer e do dizer: resistências e (re)existências cotidianas. Licenciada em Artes e Pedagogia. Publicou em coautoria com Luiz Mendes o livro “O Orador do Mestre Raimundo Irineu Serra _ diálogos, memórias e artes verbais” pela NEPAN - Editora do Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-Amazônicas. Coautora da coletânea: Mestres da Ayahuasca em contextos religiosos (uma das cinco obras finalistas do Prêmio Jabuti Acadêmico 2024, eixo Ciência e Cultura, categoria Ciências da Religião), além de outros capítulos, artigos, ensaios, entrevistas e performances Artista e educadora responsável pela Companhia Casmerim: Ação Cultural para o Bem Viver.\";}}
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