ESCREVO CARTAS PORQUE NÃO DESEJO ESQUECER: MEMÓRIAS DE UMA DOCÊNCIA NEGRA E ENGAJADA
Mossoró, julho de 2025.
Escrever esta carta não deixa de ser um exercício de memória, de afeto e de resistência. Sim, resistência para trilhar por caminhos e descaminhos, afinal, nem toda caminhada na vida é feita por belos vales. Existem trechos da estrada que devem ser desviados, outros ignorados, mas que ainda assim nos impulsionam a pensar em novas estratégias, reformular, reajustar nossos objetivos e seguir. Seguir rumo aquilo que acreditamos ser a nossa felicidade, a nossa realização.
Então, parar um instante e escrever sobre o meu percurso acadêmico é também um exercício para refletir sobre quem sou e como me tornei professor, pesquisador, defensor de assuntos que embora sejam tão discutidos, ainda se percebe que muitos insistem em perseverar na “ala da ignorância”. Dito isto, o gesto de escrever uma simples carta como essa, não é apenas um cumprimento acadêmico: é também um ato de denúncia e anúncio, como nos ensinou Paulo Freire, considerando que se trata de um pouco da escrita do mundo que me atravessa e que eu insisto e persisto em transformar.
Julgo ser pertinente deixar anotado que desde a juventude as palavras me tocaram com força e gentileza. Foi no Ensino Médio, sem nem saber ao certo o que poderia ser de mim, quando percebi que havia nas Humanas e na Literatura uma espécie de abrigo, um lugar onde me sentia bem-vindo e especialmente, onde cabia meus silêncios e também minhas tantas perguntas, que naquele tempo as respostas se faziam tão lentas e distantes. Mas a vida pedia pressa e era necessário agir e em razão da necessidade de trabalhar cedo para ajudar a minha família, não houve espaço imediato para o sonho da universidade, pois a urgência da sobrevivência me impôs o trabalho precoce.
Para quem na época era um simples jovem, posso então dizer que o mundo urbano, agitado e desigual, não só me acolheu,...
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ESCREVO CARTAS PORQUE NÃO DESEJO ESQUECER: MEMÓRIAS DE UMA DOCÊNCIA NEGRA E ENGAJADA
Mossoró, julho de 2025.
Escrever esta carta não deixa de ser um exercício de memória, de afeto e de resistência. Sim, resistência para trilhar por caminhos e descaminhos, afinal, nem toda caminhada na vida é feita por belos vales. Existem trechos da estrada que devem ser desviados, outros ignorados, mas que ainda assim nos impulsionam a pensar em novas estratégias, reformular, reajustar nossos objetivos e seguir. Seguir rumo aquilo que acreditamos ser a nossa felicidade, a nossa realização.
Então, parar um instante e escrever sobre o meu percurso acadêmico é também um exercício para refletir sobre quem sou e como me tornei professor, pesquisador, defensor de assuntos que embora sejam tão discutidos, ainda se percebe que muitos insistem em perseverar na “ala da ignorância”. Dito isto, o gesto de escrever uma simples carta como essa, não é apenas um cumprimento acadêmico: é também um ato de denúncia e anúncio, como nos ensinou Paulo Freire, considerando que se trata de um pouco da escrita do mundo que me atravessa e que eu insisto e persisto em transformar.
Julgo ser pertinente deixar anotado que desde a juventude as palavras me tocaram com força e gentileza. Foi no Ensino Médio, sem nem saber ao certo o que poderia ser de mim, quando percebi que havia nas Humanas e na Literatura uma espécie de abrigo, um lugar onde me sentia bem-vindo e especialmente, onde cabia meus silêncios e também minhas tantas perguntas, que naquele tempo as respostas se faziam tão lentas e distantes. Mas a vida pedia pressa e era necessário agir e em razão da necessidade de trabalhar cedo para ajudar a minha família, não houve espaço imediato para o sonho da universidade, pois a urgência da sobrevivência me impôs o trabalho precoce.
Para quem na época era um simples jovem, posso então dizer que o mundo urbano, agitado e desigual, não só me acolheu, mas de igual modo, também me exigiu e eu fui capaz de dar conta de toda minha responsabilidade. Foram mais de dez anos entre o fim do ensino médio e o início da primeira graduação, um intervalo nessa trajetória da vida que também foi formação e muitos aprendizados.
Carta 1 – O Despertar: Humanas e Palavras
Era ainda adolescente quando fui tocado pelas palavras com uma intensidade que não soube explicar. Foi no Ensino Médio que as ciências humanas, sobretudo a linguagem literária, despertaram algo em mim que ia além da obrigação escolar. Havia nas aulas de história, sociologia e literatura uma espécie de encantamento – nelas eu me reconhecia, mesmo sem ainda me compreender por inteiro. A leitura se tornou uma companheira silenciosa, abrindo portais para mundos que eu intuía, mas não vivia. Foi ali, entre páginas e reflexões, que nasceu minha primeira inquietação: por que certas histórias ganham voz, enquanto tantas outras são silenciadas?
No entanto, a poesia da juventude tropeçou nos limites do real. A vida me exigiu pressa e responsabilidade. Logo após concluir o Ensino Médio, foi necessário trabalhar. A universidade, sonhada em silêncio teve que esperar. Me mudei para um grande centro urbano em busca de oportunidades carregando comigo não apenas as malas, mas também a esperança de dias melhores para mim e minha família. Trabalhar cedo foi necessário. Sobreviver era mais urgente do que estudar. Ainda assim, mesmo nos horários exaustos, havia espaço para a leitura, para o sonho aceso em silêncio e tão bem cultivado.
Durante uns onze anos, a universidade ficou como uma estrela ao longe. Mas a chama não se apagou. Ao contrário, foi ganhando contorno, desejo e nome. Quando finalmente iniciei minha graduação em Letras, não a fiz com a ansiedade do começo, mas com a maturidade de quem sabia exatamente o que queria. A linguagem, que me acompanhou nos momentos mais difíceis, tornou-se também instrumento de formação e resistência. Ao me aproximar da literatura e da análise textual, comecei a compreender que há uma política do discurso, uma ética da escuta e um compromisso com o dizer. Nesse processo, fui percebendo que minha trajetória não era só individual, mas que ela era também coletiva, ancestral, histórica.
Carta 2 – Ensinar é Encarnar a Palavra
A sala de aula me recebeu antes mesmo do diploma. No último semestre da graduação em Letras, já estava diante de turmas da rede pública e particular. Era 1998, e lembro da sensação de estar ao mesmo tempo em casa e em território desconhecido. O caderno em mãos, os olhos dos estudantes em mim, e uma pergunta pairando no ar: o que é, afinal, ensinar? Com o tempo, compreendi que não se tratava de repetir fórmulas, mas de partilhar sentidos, de construir pontes entre o mundo e a palavra. Ensinar era, como afirmou Paulo Freire, “um ato de amor, por isso, um ato de coragem” (FREIRE, 2015, p. 91).
Com o tempo a prática docente me foi mostrando que cada turma é um universo, e que cada encontro traz em si a potência de uma descoberta. Havia dias difíceis, sem dúvida, mas havia também os momentos em que um texto lido em voz alta abria sorrisos, ou em que um estudante encontrava sua própria voz ao escrever. A especialização em Língua e Literatura Portuguesa veio logo em seguida, como um passo natural para quem via na linguagem muito mais do que instrumento: via nela a possibilidade de emancipação. Quanto mais estudava, mais percebia que o ensino da língua precisava ser libertador, crítico, plural.
Carta 3 – Voltar é Também Recomeçar
Em 2005 retornei a Mossoró. Era um retorno físico, geográfico, mas também simbólico. Voltar à terra natal depois de tantos anos foi como reencontrar raízes que nunca deixaram de pulsar. Na bagagem, levava não só os livros, mas as marcas da experiência, das lutas diárias, do ensinar e do aprender em contextos diversos. Voltar era também uma forma de recomeçar – com outros olhares, outras urgências e uma escuta mais atenta para os silêncios da cidade e das pessoas que ali habitavam.
Foi nesse contexto de retorno que encontrei na Especialização em Leitura e Produção Textual, oferecida pela UERN, a oportunidade de mergulhar em um campo de estudo que me inquietava há tempos: as relações étnico-raciais. Ao longo da formação o que antes era intuição tornou-se investigação. Percebi que as ausências que me atravessavam como docente negro e como estudante também, não eram meramente acidentais. Eram estruturais. A ausência de autores negros no currículo, o silenciamento das vozes negras na literatura, a invisibilidade da nossa história nos materiais didáticos. Tudo isso foi se revelando como parte de uma mesma estrutura de apagamento.
Aos poucos meu compromisso, então, foi se afirmando: pesquisar as relações étnico-raciais, denunciar os silêncios, visibilizar as resistências e, sobretudo, fazer da sala de aula um espaço de construção de identidades, memórias e pertencimentos. Hoje, ao lembrar dessa caminhada, compreendo que voltar à minha cidade não foi um recuo, mas um gesto de coragem.
Carta 4 – Entre Leis e Letras, uma Travessia
A busca por compreender com mais profundidade as estruturas que sustentam a desigualdade me levou alguns anos depois, ao curso de Direito. Ingressar nessa nova graduação foi mais do que uma escolha acadêmica, na verdade foi um passo em direção à leitura crítica das normas que organizam a sociedade, muitas vezes travestidas de neutralidade. Em 2014, concluí essa formação na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, ampliando ainda mais meus horizontes sobre justiça, cidadania e racismo institucional.
O trânsito entre as Letras e o Direito não foi simples, mas foi fecundo. A linguagem jurídica, marcada por formalismos e distanciamentos, desafiava minha prática pedagógica baseada no diálogo e na escuta. Ainda assim, percebi que era possível e necessário. Minha presença negra nos corredores da faculdade já era, por si só, uma provocação. Mas fui além: levei comigo as vozes silenciadas que sempre me acompanharam, buscando entender como o Direito pode também ser instrumento de transformação. E foi nesse entrelaçamento que se consolidou uma nova etapa do meu percurso acadêmico e político.
A partir dessa travessia, percebi que a pesquisa acadêmica não poderia estar dissociada da vida concreta. A indignação, que Paulo Freire tão bem nomeia como motor de ação, foi se convertendo em ferramenta teórico-metodológica. Passei a escrever movido pela urgência de mudar realidades, de nomear violências, de propor alternativas. E, assim, me aproximei da pós-graduação com a consciência de que era preciso continuar escrevendo, investigando, formando e me formando, sempre com o olhar voltado para as ausências históricas que me constituem e que insisto em tornar presença.
Carta 5 – Escrever com o Corpo Inteiro
O Mestrado em Ensino, concluído em 2020, representou um novo ponto de desvio na minha trajetória. Já não se tratava apenas de ensinar e aprender em sala de aula, mas de investigar, de produzir conhecimento a partir das experiências vividas e partilhadas. A pesquisa acadêmica, até então encarada com certo receio, passou a ser compreendida como extensão da docência, posso dizer que uma forma de narrar o mundo com compromisso ético e político. O mestrado me possibilitou estruturar aquilo que já pulsava em mim: a vontade de nomear as ausências, os silêncios, os apagamentos que atravessam a educação brasileira, especialmente quando se trata da população negra.
Foi justamente no dia da prova para o mestrado que conheci uma pessoa muito especial, que não se fez apenas uma amiga da jornada acadêmica, mas alguém que, aos poucos foi se tornado parte da minha própria história. Tornou-se família, presença constante, amparo nas horas difíceis e celebração nas conquistas. Não tive filhos, mas nela encontrei algo bem semelhante: um laço que ultrapassa o tempo e a sala de aula. Caminhamos lado a lado, dividindo sonhos, dúvidas, cansaços e conquistas. Fomos aprovados juntos no mestrado e mais tarde, no doutorado, e sempre unidos pelo mesmo gosto pelos estudos , pesquisa e pela mesma fé na educação como caminho de transformação.
Nesse contexto a escrita passou a ser vivida com o corpo inteiro, com a memória, com o afeto, com a indignação. As leituras se multiplicaram, os questionamentos também. Era como se cada linha escrita abrisse uma fresta por onde outras vozes pudessem entrar. Descobri, enfim, que pesquisar é escutar. E que escutar é também se reconhecer parte de uma trama maior.
Em 2025, inicio o Doutorado em Ensino com a certeza de que sigo comprometido com uma educação que não teme se emocionar, que não teme se posicionar, que não teme sonhar. Trago comigo as marcas de todas as etapas vividas, das salas de aula aos tribunais, das bibliotecas aos encontros de formação, das perdas às conquistas. E sigo acreditando que escrever cartas pedagógicas é mais do que narrar experiências: é resistir, é lembrar, é formar.
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