O ano de 1949 foi marcante. Marcou a criação Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN (liderado pelos Estados Unidos); a explosão atômica em Semipalatinsk (primeiro teste nuclear da Rússia) e o triunfo da revolução comunista em Pequim (proclamado por Mao Tsé-tung). Desde então, as relações e tensões entre Washington, Moscou e Pequim marcariam os noticiários e as preocupações da população mundial.[1]
1949 foi o segundo ano depois do início da Guerra Fria, o conflito mais tenso do século XX, embora não tenha se concretizado. O mundo vivia uma fase crítica em sua economia, pois não havia se recuperado da grande depressão (1929) e as principais potências mundiais foram arrasadas pelos custos da segunda grande guerra (1939-1944).
No Brasil, o dia 18 de setembro de 1949 marcou a transmissão da primeira emissora de televisão, a TV Tupi. O xadrez político no Brasil também mudou, com a eleição de Getúlio Vargas, em 1950, com larga vantagem.
No Nordeste, a população sertaneja, castigada pelas secas sucessivas, começou a migrar para as cidades. A década de 1950 marcou um êxodo de nordestinos a São Paulo, com milhares trocando o sertão pela metrópole. O cabo da enxada seria usado agora nas lavouras do sudeste e para bater massa na construção civil.[2] Os comoventes versos de Patativa do Assaré descrevem essa amarga experiência. Eles também falam da alma sertaneja. Esses versos melancólicos descrevem, em menor ou maior grau, a história de minha mãe.
Triste partida [3]
Setembro passou, com oitubro e novembro
Já tamo em dezembro.
Meu Deus, que é de nós?
Assim fala o pobre do seco Nordeste,
Com medo da peste,
Da fome feroz.
A treze do mês ele fez a experiença,
Perdeu sua crença
Nas pedra de sá.
Mas nôta experiença com gosto se agarra,
pensando na barra
Do alegre Natá.
Rompeu-se o Natá, porém barra não veio,
O só, bem vermeio,
Nasceu munto além.
Na copa da mata, buzina a...
Continuar leituraO ano de 1949 foi marcante. Marcou a criação Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN (liderado pelos Estados Unidos); a explosão atômica em Semipalatinsk (primeiro teste nuclear da Rússia) e o triunfo da revolução comunista em Pequim (proclamado por Mao Tsé-tung). Desde então, as relações e tensões entre Washington, Moscou e Pequim marcariam os noticiários e as preocupações da população mundial.[1]
1949 foi o segundo ano depois do início da Guerra Fria, o conflito mais tenso do século XX, embora não tenha se concretizado. O mundo vivia uma fase crítica em sua economia, pois não havia se recuperado da grande depressão (1929) e as principais potências mundiais foram arrasadas pelos custos da segunda grande guerra (1939-1944).
No Brasil, o dia 18 de setembro de 1949 marcou a transmissão da primeira emissora de televisão, a TV Tupi. O xadrez político no Brasil também mudou, com a eleição de Getúlio Vargas, em 1950, com larga vantagem.
No Nordeste, a população sertaneja, castigada pelas secas sucessivas, começou a migrar para as cidades. A década de 1950 marcou um êxodo de nordestinos a São Paulo, com milhares trocando o sertão pela metrópole. O cabo da enxada seria usado agora nas lavouras do sudeste e para bater massa na construção civil.[2] Os comoventes versos de Patativa do Assaré descrevem essa amarga experiência. Eles também falam da alma sertaneja. Esses versos melancólicos descrevem, em menor ou maior grau, a história de minha mãe.
Triste partida [3]
Setembro passou, com oitubro e novembro
Já tamo em dezembro.
Meu Deus, que é de nós?
Assim fala o pobre do seco Nordeste,
Com medo da peste,
Da fome feroz.
A treze do mês ele fez a experiença,
Perdeu sua crença
Nas pedra de sá.
Mas nôta experiença com gosto se agarra,
pensando na barra
Do alegre Natá.
Rompeu-se o Natá, porém barra não veio,
O só, bem vermeio,
Nasceu munto além.
Na copa da mata, buzina a cigarra,
Ninguém vê a barra,
Pois barra não tem.
Sem chuva na terra descamba janêro,
Depois, feverêro,
E o mêrmo verão.
Entonce o rocêro, pensando consigo,
Diz: isso é castigo!
Não chove mais não!
Apela pra maço, que é o mês preferido
Do Santo querido,
Senhô São José.
Mas nada de chuva! tá tudo sem jeito,
Lhe foge do peito
O resto da fé.
Agora pensando segui ôtra tria,
Chamando a famia
Começa a dizê:
Eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo,
Nós vamo a São Palo
Vivê ou morrê.
Nós vamo a São Palo, que a coisa tá feia;
Por terras aleia
Nós vamo vagá.
Se o nosso destino não fô tão mesquinho,
Pro mêrmo cantinho
Nós torna a vortá.
E vende o seu burro, o jumento e o cavalo,
Inté mêrmo o galo
Vendêro também,
Pois logo aparece feliz fazendêro,
Por pôco dinhêro
Lhe compra o que tem.
Em riba do carro se junta a famia;
Chegou o triste dia,
Já vai viajá.
A seca terrive, que tudo devora,
Lhe bota pra fora
Da terra natá.
O carro já corre no topo da serra.
Oiando pra terra,
Seu berço, seu lá,
Aquele nortista, partido de pena,
De longe inda acena:
Adeus, Ceará!
No dia seguinte, já tudo enfadado,
E o carro embalado,
Veloz a corrê,
Tão triste, coitado, falando saudoso,
Um fio choroso
Escrama, a dizê:
– De pena e sodade, papai, sei que morro!
Meu pobre cachorro,
Quem dá de comê?
Já ôto pergunta: – Mãezinha, e meu gato?
Com fome, sem trato,
Mimi vai morrê!
E a linda pequena, tremendo de medo:
– Mamãe, meus brinquedo!
Meu pé de fulô!
Meu pé de rosêra, coitado, ele seca!
E a minha boneca
Também lá ficou.
E assim vão dexando, com choro e gemido,
Do berço querido
O céu lindo e azu.
Os pai, pesaroso, nos fio pensando,
E o carro rodando
Na estrada do Su.
Chegaro em São Palo – sem cobre, quebrado.
O pobre, acanhado,
Percura um patrão.
Só vê cara estranha, da mais feia gente,
Tudo é diferente
Do caro torrão.
Trabaia dois ano, três ano e mais ano,
E sempre no prano
De um dia inda vim.
Mas nunca ele pode, só veve devendo,
E assim vai sofrendo
Tormento sem fim.
Se arguma notícia das banda do Norte
Tem ele por sorte
O gosto de uvi,
Lhe bate no peito sodade de móio,
E as água dos óio
Começa a caí.
Do mundo afastado, sofrendo desprezo,
Ali veve preso,
Devendo ao patrão.
O tempo rolando, vai dia, vem dia,
E aquela famia
Não vorta mais não!
Distante da terra tão seca mas boa,
Exposto à garoa,
À lama e ao paú,
Faz pena o nortista, tão forte, tão bravo,
Vivê como escravo
Nas terra do Su.
Patativa do Assaré
Embora minha mãe nunca tenha ido a São Paulo, também foi uma retirante. Sua jornada pessoal, profissional e familiar sempre foi desafiadora. Apesar disso, soube superar cada obstáculo, deixando o exemplo de força, coragem, excelência e dedicação em tudo que fez. Como homenagem, escrevi seus traços biográficos e algumas de suas memórias.
Uma menina curiosa
Mãe nasceu na Iara, atualmente um pequeno distrito de Barro, no sertão cearense. Este lugar já foi cidade, mas foi rebaixado a distrito, duas vezes. Mariquinha, ao longo da vida, também enfrentou mudanças, quase sempre negativas.
“Em 1963, foi publicado no Diário Oficial do Estado, a criação do município de Iara, desmembrando-o de Barro, ato assinado pelo vice-governador em exercício Joaquim de Figueiredo Correa. A condição para que permanecesse município seria que a classe política local nomeasse o prefeito. Os políticos não se entenderam a cerca dos nomes sugeridos, decidiram que aguardariam o período eleitoral para fazê-lo. Logo depois em 1964 veio o golpe militar que revogou todos os atos dos governos democráticos, dentre estes, a criação de novos municípios. Por esse motivo a Iara voltou, pela segunda vez, a condição de distrito.” [4]
Maria Francisca Diniz Barbosa nasceu em uma terça-feira, no dia 1º de novembro de 1949. Era a caçula dos filhos que se criaram. Seus irmãos eram Maria, José, Damião e Isabel, que morreu jovem. Mãe nutria grande amor por seus irmãos.
Seguindo o rito católico, ela foi batizada e seguiu os demais preceitos dessa religião. Por razões que desconheço, ela foi apelidada de Mariquinha, talvez por ser franzina.
Mariquinha viveu nas calmas paisagens do Sítio Santa Rita, onde seus avós tinham uma propriedade de porte médio. Outro sítio que sempre frequentava era o Mergulhão, onde também tinha parentes. Seu pai, João Vicente Bananeira, casado com Maria Águida de Jesus, eram pequenos agricultores, cuja faina era o roçado, as rezas na igreja e os festejos da comunidade.
Mãe era uma menina curiosa. Ela gostava dos animais e sentia pena deles. Mas, essa menina decidiu fugir de casa. O destino foi o sítio Jenipapeiro, no município de Milagres. Ali, ela cresceu prematuramente. Ainda adolescente, se tornou mãe adotiva de um garoto. Penso que a vida de mãe está entranhada com uma missão superior: criar filhos. Jonie Barbosa foi seu primeiro filho. Ele nasceu em 1966. Ele morava com seus pais, Edmilson e Comadre Maria, mas foi a mãe que terminou de criá-lo, ali no Jenipapeiro. Além dos filhos biológicos, mãe teve muitos afilhados. Seu carisma, boas relações com os vizinhos e ascensão financeira atraía muita gente.
Uma jovem indomável
Poucos teriam coragem de montar num burro brabo. Mãe fez isso, ainda na juventude. Ela tinha uma força física e vigor mental sem igual. Apesar dessa força, cresceu como uma bela jovem, em meio a outros rapazes e moças daquela região. Naquele tempo, a vida era mais simples, porém mais desafiadora.
Quando adolescente, a jovem franzina fugiu de casa porque o pai dela brigou por ela ter chegado tarde em casa. Saiu com a roupa do corpo e foi parar na casa de vó Gulora, em Milagres. Por opinião, não voltou para casa nunca mais. Foi morar com “padrinho” Edimilson Barbosa, a quem considerava um segundo pai. Ele não só terminou de criá-la, mas tornou-se seu melhor amigo. Segundo meu pai, Benedito Barbosa, minha mãe “andou horrores de uma cidade para outra a pé.”
Quando jovem, Mariquinha ia com frequência ao Açude Grande, a poucos quilômetros de sua casa. Ela lavava roupa e, para divertir-se, atravessava o açude a nado. Mãe nadava muito bem. Certa feita, a vi saltar no poço de Seu Danta, ao lado da casa de Seu Antônio, e nadar com desenvoltura, com mais de 50 anos de idade. Ela sempre dizia que o Açude Grande foi construído pelos escravos e era público. Quando o terreno foi comprado e a área cercada, ficou revoltada.
Essa característica iria acompanhá-la até o final da vida. O senso de justiça era um traço forte nela. Mãe também não tinha medos. Se os sentia, não demonstrava. Enfrentava qualquer obstáculo com a coragem de uma onça. Embora sempre fosse pacífica, pagando um boi para não entrar numa briga, pagava uma boiada para não sair.
Mulher empreendedora
Mãe foi uma mulher empreendedora. Seu desejo de vencer era motivado pelo preconceito que sentiu e ouvia acerca de seus pais. Decidiu que ninguém a humilharia por falta de dinheiro. Mãe casou-se com Benedito Barbosa, na igreja Matriz de Milagres. Ela tinha 27 anos na época. No caminho para a cidade, o carro atolou. As estradas até Milagres eram precárias, não havia energia elétrica e as chuvas eram frequentes. Várias pessoas desceram da condução e tentaram ajudar. O motorista, Sr. Valmir, pediu para trazerem galhos de árvores para colocar embaixo dos pneus. Um dos compadres de mãe, Manoel Baião, tinha fama de homem forte. Ele foi à mata. De repente, as pessoas ficaram surpresas. Ele trouxe árvores grossas arrancadas pela raiz. O cortejo seguiu, o casamento se consumou. Mãe contava que, quando era solteira, ouvia pai gritar com os bois na estrada em direção a Milagres, de sua casa. Na época, não havia tanto barulho como hoje. E pai, também, tinha uma potente voz. Da casa onde vivíamos, no sítio Santa Catarina, eu o ouvi gritar o burro jeitoso, enquanto arava o baixio. Parecia um estrondo. Após o casamento, mãe foi morar numa casa de taipa, no Sítio Santa Catarina, em Milagres.
Mãe decidiu abrir uma bodega. Enquanto o pai trabalhava na roça e na criação do gado, ela comercializava. Além de estivas e cereais, vendia aguardente e fumo. A bodega prosperou. Ela vivia bem. Ainda lembro, quando criança, da balança filizona na bancada da bodega. Eu brincava com os amigos Pedim, Ciço e Tóim. Um dia, meti a mão no saco de açúcar e saí correndo, comendo. Eram dias de fartura. Pai criava porcos e vendia a carne. Mãe, além da bodega, criava galinhas e porcos. Enquanto o pai era fascinado por terras e gado, a mãe gostava de dinheiro vivo. Ela amava o comércio. Foi uma das pessoas mais honestas que já conheci. Nunca se apropriou de um centavo de ninguém. Sempre pagou suas contas. Mesmo nos momentos mais críticos, honrou seus compromissos.
Marquinha foi mãe, agricultora, pecuarista, professora, comerciante, empreendedora. Teve comércio, escola, banca de verduras, de bombom. Sempre com muita garra, honestidade e alegria. O que apurava, valorizava. Graças a isso, Flaviano pode ter se tornado um empresário. Na adolescência, mãe vendeu uma grade de garrafas para ele matricular-se no curso de desenho e pintura do Instituto Universal Brasileiro. Meus irmãos também foram abençoados por sua generosidade e sacrifícios, em todas as suas trajetórias pessoais, familiares e nas crises.
Carrego dela o exemplo de “nunca ter visto um vendedor em nossa porta.” Além de honesta, mãe era uma pessoa boa. Em casa, ela dizia que, quando houvesse dois pães, devíamos “comer apenas um, pois alguém podia chegar” e querer comer. Seus netos e os garotos da vizinhança provaram isso, ao receber pequenos presentes, dinheiro e bombons.
Amiga leal
Mãe sempre foi uma amiga leal. Entre os amigos que ela mais recordava, estavam Socorro Bala, vendedora ambulante; Hilário, seu primo; Zé de Valmir, motorista da região; Dudu, um vaqueiro destemido; e vários outros.
Quando ela era comerciante, lá no sítio, era próxima do casal “velha moça e Seu Joaquim”. Esse casal não era alfabetizado. Quando iam à “rua” (Milagres), receber o aposento, eram enganados por não conhecerem dinheiro. Quando Seu Joaquim chegou, certa vez, na bodega de mãe, pagou a conta entregando todo o salário. Percebendo os riscos que corriam, mãe passou a fornecer os alimentos que eles precisavam ao longo do mês. Ela fez isso por um bom tempo, pois sabia que eles não conheciam o valor que tinham em mãos.
Religiosidade e superstição
Mãe, como sua geração, era uma católica praticante. Reverenciava várias personagens do catolicismo popular. Além do Padre Cícero Romão Batista, a quem fazia promessas, era devota de Frei Damião de Bozano, que acreditava realizar milagres. Os demais “santos” canonizados da Igreja Católica faziam parte do altar que sempre manteve em casa. Quando morava no sítio, ela celebrava a renovação do Sagrado Coração de Jesus, a cada ano. O rito era conduzido por Seu Moisés, que vinha do sítio Valdivino, o local mais desenvolvido da região. Apesar de ser católica, mãe era equilibrada em sua fé. Nunca notei extremos ou fanatismo em sua espiritualidade.
Mariquinha alegava receber avisos, interpretar sonhos e ver determinadas aparições. Lavava roupa de noite no açude e tinha medo da “caipora”, “caboclinhas” e das “lavadeiras”. Mãe contava a história de árvores mal-assombradas, com a oiticica barbuda, o grito da mata, luzes que brilhavam no baixio, etc. Apesar dessa credulidade, ela ia ao fundo das questões religiosas. Um exemplo é que, certa vez, acordou com meu pai dizendo que havia visto uma “alma com os braços abertos”, na estrada, próximo de casa. Ela o convidou a ir olhar de perto. Quando chegaram, a mãe notou que era apenas um pé de juá, com galhos abertos.
Mariquinha era uma mulher religiosa. Sua fé era nutrida pela leitura da Bíblia Sagrada. Ela também alimentava e desenvolvia sua fé ao ter contato com temas espirituais da literatura de cordel. Recordo que, na minha juventude, minha mãe tinha em casa o Livro de São Cipriano. Ela frequentemente contava certas histórias de Pedro e Nosso Senhor, quando andavam pelo mundo.
A vida é um presente do eterno. A Bíblia Sagrada, livro que ficava na sua sala de estar, começa dizendo isso. Mãe gostava de ler a Bíblia e tinha episódios exclusivos sobre a vida de nosso Senhor, São Pedro e os apóstolos. Um dos mais engraçados foi a multiplicação de pães e peixes, numa versão para crianças… O padre estava pregando quando entrou um bêbado na igreja. Ele se confundiu e disse: Jesus alimentou 5 pessoas com 5000 pães. O bêbado gritou: Assim é fácil. No dia seguinte, o padre corrigiu a informação. Disse aos fiéis: “Irmãos, eu errei no domingo. Jesus alimentou 5 mil homens com 5 pães. O bêbado, que estava presente, gritou novamente: Também, com o que sobrou de ontem!
Aventuras e desventuras
Mariquinha viveu muitas aventuras e desventuras ao longo de 74 anos. A maior aventura, sem dúvida, foi nos criar. O filho mais velho, José Flaviano Diniz Barbosa, nasceu em 1974; Francisco Francimar Diniz Barbosa, em 1975; Antônio Ribamar Diniz Barbosa, em 1977; Maria Irismar Diniz Barbosa, em 1979; e Ana Águida Diniz Barbosa, em 1982. Infelizmente, a mãe perdeu os gêmeos Cosme e Damião, que faleceram poucas horas após o nascimento. Estão sepultados no cemitério do Jenipapeiro.
Outra aventura a envolveu indiretamente. Ela contava que José, seu irmão, foi embora para o Pará, sem dar notícia por anos. Damião decidiu ir procurá-lo. Depois de algum tempo, acabou encontrando o “Mano”. Eles passaram toda a vida juntos, vivendo em várias cidades do estado. Anualmente, José visitava a mãe em Juazeiro do Norte. Desde a adolescência, eu e meus irmãos nos alegrávamos quando ele chegava. Nossa imaginação era povoada pelos relatos da região amazônica. Mãe ficava extremamente feliz pela companhia de seu irmão, por alguns dias.
Mãe dedicada
Mãe queria uma família unida. Cresci participando de almoços que ela organizava na Semana Santa. Todos os filhos vinham participar. Foi aí que passei a amar o peixe que ela preparava. Infelizmente, com o tempo, ela deixou de fazer, porque ela ficava sozinha esperando. Espero que nós nos unamos e voltemos a almoçar juntos, ao menos uma vez por ano. Sua doença reaproximou todos. Meu apelo é que continuemos juntos, até o fim.
Devemos tudo à nossa mãe. Nasci com uma deficiência no pé, mas sua fé a trouxe a Juazeiro. Deus me curou, pois ouviu sua prece. Flaviano cedo foi enviado para estudar em Milagres. Nem deu muito trabalho, por conta de doenças até a adolescência, quando se tornou um homem forte e bem-humorado. Maria recebeu uma banca no mercado para ganhar a vida. Águida, todo o amor e mimos de uma filha caçula (e a casa onde mora hoje, onde também funcionou a Origem); os gêmeos, que morreram poucas horas após o nascimento, as lágrimas de uma mãe que não pode criá-los. Seu ato de amor supremo aos filhos pode ser um grande incentivo para todos.
Mãe fez tudo por nós no sítio Santa Catarina e em Juazeiro, onde viemos morar em 1986, para continuar os estudos. Aqui ela, literalmente, “comeu o pão que o diabo amassou”, para nos manter seguros, alimentados e na escola. Houve ocasiões em que ela deixou de comer para que nós fôssemos alimentados para a escola.
Mãe tinha um instinto protetor em relação aos filhos. Me obrigava a levar minhas irmãs à escola, mesmo elas já grandes. Sempre nos aconselhava a “ter cuidado”. Deu certo: nenhum filho virou ladrão. Todos são gente de bem e trabalhadora. Espero que os netos façam o mesmo. Seu maior sonho era que nós estudássemos. Queria que eu fosse médico ou padre. Virei um pastor e escritor. Dediquei meu primeiro livro, dos 8 que escrevi, a ela. Quando fui matriculado no Ginásio Franciscanos, já tinha 9 anos e o padre não queria me aceitar. Ela prometeu que eu não reprovarei. O padre aceitou, dizendo que se eu reprovasse ou fosse à diretoria, seria expulso. Na época, ela não me disse isso. Foi uma grande lição de liderança. Lá em casa, todos somos líderes em nossos círculos de influência, devido às suas lições e exemplo.
No Ensino Médio, minha mãe ficou uma noite na fila para conseguir uma vaga no Segundo Grau para mim. Graças à sua persistência, fiz 3 graduações, 2 mestrados e visitei 12 países. Minha irmã é professora concursada e meus irmãos se destacam em suas áreas de atuação profissional.
Mariquinha era uma mulher espirituosa e inteligente. Leitora de cordéis desde a infância, ela criava seus próprios versos e dava emoção às histórias que ouviu de seu Zé Diniz, seu avô querido.
Poetisa amadora
Mariquinha amava a poesia. Ela leu inúmeros cordéis. Em casa, tinha uma caixa cheia. Com ela, adquirimos esse hábito de ler literatura de cordel. Além de ler, mãe emprestava seus cordéis a outras pessoas. Um vizinho nosso, o Dedé, sempre levava alguns para ler. Recordo de alguns títulos: O pavão misterioso, Princesa Teodora, O contador de mentira, A chegada de Lampião no inferno, O romance da princesa do reino do mar sem fim; A disputa de Bocage com um padre, A Morte, o testamento e o enterro de João Grilo, Encontro de Cancão de Fogo com Pedro Malazarte, etc.
Mariquinha também arriscava alguns versos, de vez em quando. Em seus cadernos e cadernetas, alguns versos sobre família e saudade ficaram registrados. Ela sempre fazia referência às cantorias, e citava nomes como Pedro Bandeira, João e Daldete Bandeira, e especialmente seu avô. José Diniz foi repentista, mas abandonou a profissão. Mãe deve ter aprendido com ele esse amor pelo verso, pois citava alguns que ouviu ele declamar.
Legado
Mãe tinha um sexto sentido, simpatizando com alguns e afastando outros na primeira mirada. Como toda sertaneja, era forte, teimosa, sistemática e durona. Em meio às perdas, injustiças e conflitos, permanecia como uma rocha em meio à tormenta. Mãe sofreu a vida toda e morreu sofrendo. Apesar disso, deixou um legado memorável para os filhos, compadres, afilhados (mais de 60), netos, amigos e vizinhos. Espero que possamos imitar seus bons exemplos. Talvez o maior seja o amor à família, ao trabalho e, sobretudo, à religião (e a Deus). Seus versos foram sua válvula de escape. A música (do Amado Batista), a terapia diária. Seu olhar baixo, às vezes distante, escondia as dores de uma mulher que soube enfrentar a vida com bravura. Ela conseguiu imprimir isso nos filhos.
Quem conviveu com Mariquinha sabe o valor que ela tem. Quem já montou em “burro brabo” (como ela fez), não pode ter medo de viver. Nas horas finais, as últimas palavras, antes de ir à UTI, ouvidas por Maria foram “meu Deus, meu Deus”. Antes da morte, não temos outro que nos possa acudir. Deus é o autor da vida e agradeço a Ele por ter trazido Mariquina a este mundo. Ela foi uma estrela radiante que iluminou muitas vidas.
_____________________
Seu filho, Ribamar Diniz.
Castanhal, PA, 09 de agosto de 2025.
Depoimentos:
Mãe ...
O que mais me vem a memória é um trecho da letra da música de Amado Batista, cantor do qual era fã número 1: “Fui seresteiro das noites, cantei vendo alvorecer, molhado com pingos da chuva, com flores pra lhe oferecer”. Sempre ouvia ela cantarolando lá do meu quarto...quando colocava sua banca de bombom na avenida para apurar dinheiro para nós alimentar, quando saia de madrugada, antes do sol nascer, pegando carona para buscar comida no sítio, quando saia para o mercado para vende verdura, quando fazia amendoim para vender, e do cheiro do amendoim torrado na caçarola não me esqueço, ou quando fazia cocada de coco e nós raspávamos o tacho, sem esperar nem esfriar, porque a fome e o desejo não esperam...
Os pingos da chuva sempre se misturavam a suas lágrimas invisíveis que ninguém acalentou ..., mas ela sabia oferecer flores a quem chegava em casa lá na rua da paz ... Ela moía o milho no moinho no quintal, preparava a pamonha e fazia buchada, quando a situação melhorava, para receber os nossos amigos, parentes, as noras, o genro e os netos... Para ouvir sempre as mesmas histórias, as anedotas, os versinhos que fazia de cabeça, contava e recontava com alegria...
Foi uma mulher humilde. Não exigia muito quando os almoços de domingo ficaram escassos, cada um já cuidava de si e de sua própria família ...Se sentava no sofá lendo os versos de cordel do João Grilo, olhava sua coleção de moedas, jogava o game do super Mario até zerar, era bastante persistente, só parava quando conseguia ...isso herdei dela, a teimosia e a persistência.
Ao entardecer estava sentada na calçada, conversando com as vizinhas, dona Maria, Dona Francisca, dona Joana, Assunção, e quem mais chegasse...sempre ouvindo suas fitas cassete, Menino da porteira, filho adotivo, de Sérgio Reis ou Onde estão os meus passos do cantor Barrerito....
Deixou uma história marcada de sofrimento, mas principalmente de resiliência...pensar em mãe é lembrar de ser forte todos os dias pelos nossos filhos e pela esperança de dias mais leves e mais bonitos ...A vida parece que nunca sorriu pra ela, mas aqui e ali, lhe abençoava, ouvindo suas preces, trazendo momentos de felicidade com os seus mais queridos ...
Ana Águida Diniz Barbosa
Referências:
[1] Leonídio Paulo Ferreira, “1949, primeiro ano da era perigosa em que vivemos”, disponível em: https://www.dn.pt/opiniao/1949-primeiro-ano-da-era-perigosa-em-que-vivemos. (Acesso: 08 de agosto de 2025).
[2] Veja mais detalhes em Marco Antonio Villa, Quando eu vim-me embora: história da migração nordestina para São Paulo (Rio de Janeiro: Leya, 2017).
[3] Patatitiva do Assaré, Cante lá que eu canto cá – Filosofia de um trovador nordestino, 5ª edição (Petrópolis: Editora Vozes, 1984).
[4] “De Cangati a Iara.” Disponível em: https://iara-historia-e-cultura.webnode.page
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