Projeto Vidas, Vozes e Saberem em um mundo chamas
Entrevista de Luciani dos Santos Fonseca
Entrevistada por Luiza Gallo
Porto Alegre, 8 de julho de 2025
Código da entrevista: PCSH_HV1485
Revisado por Nataniel Torres
P - Queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento. [intervenção]
R - Meu nome é Luciani dos Santos Fonseca, nascida em Pelotas, Rio Grande do Sul, em 15 do oito de 1971 e tenho 53 anos.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não, não tenho recordações, deixa eu pensar. Não, não lembro dessa recordação agora do dia do meu nascimento.
P - E seu nome, tem alguma história?
R - Inclusive, quando eu estava fazendo um acompanhamento, terapia, essa foi uma das perguntas que me incomodou muito. Porque a minha mãe já tinha falecido. E eu disse para o médico que eu não iria ter essa resposta. E ele disse assim: “Mas pergunte para o seu pai.” Eu digo: “Meu pai não vai saber essa resposta.” E aí ele me trouxe assim: “Ah, mas você é muito...” Quis dizer que eu não estava querendo. Mas como é que é o termo? Eu não lembro o termo que ele utilizou. Mas aí, então, eu fui buscar essa resposta com meu pai e, realmente, ele não tinha essa resposta. Então, tem coisas que a gente vai perdendo ao longo da vida. E eu acredito que tenha coisas assim da minha infância, da minha primeira infância, que ficaram registradas e que aconteceram. E que eu não vou ter mais, porque era minha mãe que detinha realmente essa questão do cuidado, enfim. E eu acho que, por conta também de ter tido uma mãe que... zelosa, cuidadosa... e eu tive uma irmã, o tempo que teria pra mim ter essa história de vida, eu acho que não aconteceu por conta do zelo e atenção que ela dava pra minha irmã, que tinha questões de saúde. E aí depois se perde. Acho que tem determinado tempo da vida pra gente buscar essas informações e ter curiosidade, né?
P - Como você...
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Entrevista de Luciani dos Santos Fonseca
Entrevistada por Luiza Gallo
Porto Alegre, 8 de julho de 2025
Código da entrevista: PCSH_HV1485
Revisado por Nataniel Torres
P - Queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento. [intervenção]
R - Meu nome é Luciani dos Santos Fonseca, nascida em Pelotas, Rio Grande do Sul, em 15 do oito de 1971 e tenho 53 anos.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não, não tenho recordações, deixa eu pensar. Não, não lembro dessa recordação agora do dia do meu nascimento.
P - E seu nome, tem alguma história?
R - Inclusive, quando eu estava fazendo um acompanhamento, terapia, essa foi uma das perguntas que me incomodou muito. Porque a minha mãe já tinha falecido. E eu disse para o médico que eu não iria ter essa resposta. E ele disse assim: “Mas pergunte para o seu pai.” Eu digo: “Meu pai não vai saber essa resposta.” E aí ele me trouxe assim: “Ah, mas você é muito...” Quis dizer que eu não estava querendo. Mas como é que é o termo? Eu não lembro o termo que ele utilizou. Mas aí, então, eu fui buscar essa resposta com meu pai e, realmente, ele não tinha essa resposta. Então, tem coisas que a gente vai perdendo ao longo da vida. E eu acredito que tenha coisas assim da minha infância, da minha primeira infância, que ficaram registradas e que aconteceram. E que eu não vou ter mais, porque era minha mãe que detinha realmente essa questão do cuidado, enfim. E eu acho que, por conta também de ter tido uma mãe que... zelosa, cuidadosa... e eu tive uma irmã, o tempo que teria pra mim ter essa história de vida, eu acho que não aconteceu por conta do zelo e atenção que ela dava pra minha irmã, que tinha questões de saúde. E aí depois se perde. Acho que tem determinado tempo da vida pra gente buscar essas informações e ter curiosidade, né?
P - Como você descreveria o jeito da sua mãe?
R - Minha mãe sempre foi uma pessoa muito acolhedora, uma pessoa alegre e expansiva. Literalmente mãe, não só minha mãe, ela foi mãe de muitos. Mãe de sobrinhos, mãe de irmãs, mãe das minhas amigas. E uma das coisas que eu reconheço na minha maturidade, porque, de certa forma, eu tinha ciúmes da minha mãe. Porque sempre haviam pessoas buscando ela, como acolher. Então, quando vocês me fizeram esse convite, acho que, de alguma forma, eu busco também essa vivência e eu lembro que foi um período da minha infância que a gente acolhia muito pessoas que buscavam, por exemplo, minha irmã faleceu de leucemia. Então, existiam grupos de estudo que iam pedir para fazer pesquisa. Então, minha casa vivia com estudantes de medicina. Daqui a pouco passavam os mórmons, aquelas meninas que faziam as missões, que não tinham referência. Lá estavam eles, lá em casa. Minha mãe fazia comida, trazia o carinho, o afeto, porque eles estavam longe. Então, a minha mãe era uma mulher expansiva, amorosa, cuidadosa, zelosa. Quando eu vim para Porto Alegre e quando eu saí de Pelotas... Eu saí de Pelotas já madura, com 30 anos. Quando voltar para casa, era aquele afeto e aquele carinho. Desde passar o lençol, pra deitar na cama, pra te ter a cama quentinha, que eu chegava de madrugada. Era comidinha gostosa, porque ela sabia que eu gostava. Então, eu acho que é isso. Minha mãe era afeto em pessoa. Afeto e acolhimento com todos. Eu, enquanto filha, claro, obviamente que eu tinha ciúmes. Então, eu acho que é na potência do afeto que a gente tem que aproxima as pessoas. Às vezes a gente não precisa ter o financeiro, a gente precisa estar aberta para ofertar o que tu tem. E aí a gente pensa, eu penso, o bem que eu quero para mim, eu quero para você também. Então, eu falar de Terezinha, é isso. Essa mulher que foi uma mulher de axé, que, para além disso... Antes de ser uma mulher de axé, ela sempre foi uma mulher batalhadora, uma mulher que, à frente do tempo dela, no sentido de poder buscar e poder dar qualidade, mas, acima de tudo, o cuidado que ela tinha. Comigo, filha, com os outros, com todos.
P - E seu pai?
R - Meu pai. Meu pai hoje está com 80 anos, é um homem jovem no sentido da longevidade que ele tem, do vigor que ele tem. 80 anos, um homem trabalhador, o verdadeiro, digamos, provedor. Um homem negro que, sem estudo, conseguiu também se colocar no trabalho. E eu costumo dizer que ele não teve estudo, mas ele tem um conhecimento. E te digo assim, falar dele fala de algumas características minhas assim também no sentido de que é lutar por direitos que traz essa minha formação sabe, se não é por onde vai. Eu diria que se ele tivesse tido formação ele seria um excelente advogado ele hoje a gente tem uma relação de resgate, de tentar se aproximar, porque como sempre eu tive um temperamento muito forte, um posicionamento crítico, então algumas coisas nos afastaram. E hoje, então, eu entendo que eu, enquanto mulher, digamos feminista, tem algumas coisas que eu não concordo. Então, meus pais se separaram depois do falecimento da minha irmã e a gente teve uma lacuna. E eu, muito imatura, não soube lidar e diferenciar o que era um relacionamento de homem e mulher e o que era um relacionamento de filha. E hoje também reconheço que, de certa forma, o cuidado dele, do que ele tinha para oferecer naquele momento, ele ofereceu. Mas ele é um homem muito potente, reconheço isso, de tudo que ele conquistou, de tudo que ele fez, ele conseguiu galgar o espaço dele. Ele é um homem íntegro, digno. Mas assim como a minha mãe, eu também tenho o dele. Acho que é essa força de buscar, de galgar o que é seu, de ocupar o meu espaço, de ser respeitada pelas pessoas. De acreditar do que tu realmente é capaz. O Fonseca se constitui também aqui na Luciani.
P - Qual é o nome dele?
R - Antônio.
P - E nesses primeiros anos da sua vida, você conheceu suas avós, seus avôs? Tem algum parente que foi muito importante nesse primeiro momento que você queira contar? Algum tio, primo?
R - Ah, eu acho que toda a minha família é importante para mim. Tem pessoas que são mais significativas no sentido de estarem mais próximos em determinados momentos da vida, né? Então, eu posso dizer, eu convivi com os meus avós, eu convivi com os meus bisavós. Isso é muito louco, porque eu tenho lembranças dos meus bisavós. Inclusive, eu tenho fotos do meu um aninho, dos meus bisavós. Tanto materno quanto paterno. E eu convivi parte da minha infância com a minha avó materna. Desculpa. Eu convivi parte da minha infância com a minha avó paterna. A mãe do meu pai. A avó Lídia. E a avó Lídia, então, sempre trabalhou de empregada doméstica. E por conta de minha mãe no hospital com a minha irmã, muito eu ficava com ela. Então, praticamente, ela morava nos fundos do trabalho. Então, em alguns momentos, eu ficava com ela porque não tinha com quem eu ficar. Que aí é o outro lado. A minha mãe estava com a minha irmã no hospital, mas o meu pai estava na vida. E aí, então, a avó Lídia foi uma figura muito importante no meu desenvolvimento, né?
P - Tem algum aprendizado, alguma passagem, alguma história com ela que você já represente bastante essa relação de vocês?
R - Eu acho que a aprendizagem não tem algo assim que eu lembre. Tem várias vivências, pequenas vivências que vêm, volta e meia vêm. Era de estar no trabalho dela, de poder comer coisas que em casa não tinha. Uma das coisas que tem um sabor muito afetivo pra mim é o arroz quando ficava bem soltinho. A batatinha frita, que outro dia eu fui num restaurante aqui que serve uma la minuta e que é a batata mesmo, não é essa batata congelada que ela tem. E eu ainda sentei e ainda disse assim: “Meu Deus, isso aqui tem um valor, me trouxe uma memória afetiva”, que é essa coisa assim, do cheirinho que ela sempre fazia. Eu poderia ter todas as outras comidas, mas quando eu ia na casa dela, ela fazia, era a chuleta, o arrozinho bem soltinho e as batatinhas fritas. Isso me traz assim. E aí tem pequenas coisinhas que às vezes vai lembrando e vai trazendo assim... “Olha a Lídia! Olha a Lídia!” Curiosidade com pacotinho. Sempre eu ia na casa dela, tinha algum presentinho e ela dizia: “Toma, toma, toma, toma!” Porque ela não tinha para todo mundo. Ela não tinha para os outros netos. Mas eu! E ela: “Toma, leva, leva! Não deixa ninguém ver, né?” De tomar, de comprar um refrigerante, assim, para mim tomar. Do leite condensado que ela às vezes me dava, do Tang. E de estar com ela, de estar com ela na casa dela, de estar quentinho, essa coisa do aconchego. E a minha avó, ela era muito amiga da minha avó materna. E elas saíam juntas, elas iam para bailes juntas. E isso elas deveriam ter uns 60, 70 anos. Então, elas eram vivas assim. E aí, contavam dos namorados.
P - As duas solteiras?
R - Separadas? Sim, separadas. Já viúvas, né? Mas uma coisa que, naquela época... Olha, as duas saindo para o baile e contavam. Depois a minha avó tinha um namorado lá, enfim. Quando ela fez 80 anos, se eu não me engano, foi feita uma festa para ela. Foi anos 80? Não, não foi anos 80. Foi antes dos 80. Ou foi anos 70? Os filhos se reuniram e fizeram uma grande festa. Essa fita cassete eu tenho vontade de transformar em DVD para distribuir para a família. Porque é uma recordação muito linda. Mas é isso. Sabia que se tinha dificuldade. Nós não éramos uma família de posses. Mas eu não vivi dificuldade. Eu não lembro de ter passado fome. Eu não lembro de dificuldade de não ter o que comer. Dificuldade de roupa. Usava muita roupa usada, porque vinha dos patrões. Mas também, e eu costumo dizer que, neste espaço, mesmo tendo essa relação de empregada doméstica, de “servência”, também tinha um respeito muito grande com ela. Essa família. Especificamente essa família com a qual ela trabalhou por muitos anos. E esse respeito não era só com ela, era com todos. Tanto que eu convivi com os filhos dos patrões. No final do verão, ia veranear, eu ia junto. Nunca teve uma relação que eu tenha me sentido discriminada. E eu acho que essas vivências é que fizeram que também eu pudesse olhar e querer estar em alguns outros espaços. Acho não, tenho certeza que essas vivências que, através da minha avó, eu pude ter, despertou em mim, sim, isso me pertence, eu quero. Eu quero poder estudar, eu quero poder vestir bem, eu quero poder ir e vir aonde eu quero. Então, a avó Lídia, eu acho que ela me trouxe isso, sabe, de poder acreditar que eu posso, que eu poderia estar e que alguns lugares me pertenciam, sim.
P - Você é neta mais velha?
R - Não, não. A minha avó Lídia, ela teve oito filhos. Então, tem uma tia minha, que é a mais velha, que ainda está viva hoje. Hoje estão vivos três filhos. Quatro, deixa eu ver: meu pai, minha tia Maria, tia Ana e o tio Zuza. Tem quatro filhos vivos. E a tia Maria e a tia Graça... cinco. São cinco filhos vivos. A tia Maria é mais velha. Consequentemente, eu tenho primas mais velhas. E essas primas moravam no interior de Pelotas. Então, tenho recordações de estar indo para o interior. Eram as férias que eu adorava, mas era uma precariedade que hoje eu vejo. Imagina, não tinha banheira, era cabungo. Trabalhava na lavoura, na plantação. Mas levava uma vida digna. Mas hoje, pensar na atualidade é pensar assim: como é que eu, criança, gostava de ir, né? Mas, claro, tinha os animais, tinha os açudes, tinha as plantações, que era uma novidade. Às vezes, nos finais de semana, as minhas outras tias iam pra fazer tachadas de doce.
P - O que é isso?
R - É doce cristalizado. Aí pega aquelas... que é o tacho. Tacho é uma panela, digamos, de fazer doce, assim, meio aberta e que fica mexendo. Aí se faz goiabada. Lá não era, era a pessegada, chimia, que são geleias, né? E isso tudo sempre junto com a minha avó, minha avó paterna. Já a minha avó materna, eu fui conviver com ela mais já adulta. E aí a lembrança afetiva era uma carne de panela. Tudo passa pela comida, né? É a carne de panela e uma saladinha que ela fazia. Aquela carne de panela na pressão, ficava tempos e tempos cozinhando e ficava bem molinha, com molho. E aí depois ela fazia uma maionesezinha que era uma delícia. Uma delícia. Tudo passa pela comida, porque também a comida é uma forma de cuidado. Talvez uma das mais antigas. E eu acho que é isso. Minha família tem muito isso da comida. E até porque, pelo menos, tem uma coisa gastronômica dessa questão, realmente, que eu acho que envolve os portugueses. Eu não sei. Não sei. Eu sei que a minha família é assim. “Ah, o que vamos fazer para comer?” Então, as minhas avós têm muito essa coisa de chegar na casa. Até porque eram muitas pessoas, muitos filhos, muitos netos. “O que é que tem? O que é que dá para ser feito?” Então, eu sempre morei. Minha casa lá em Pelotas era um chalé. Um chalezinho de madeira que os meus pais construíram, que era uma graça. Azulzinho, com as aberturas brancas. E eram, acho que, uns três cômodos. Eu e minha irmã, na sala, os meus pais no quarto e depois tinha a cozinha. E, nos fundos, tinha uma parte antiga que era onde a avó da minha mãe morou, tinha ficado no restante da casa, que tinha um irmão da minha mãe que morou ali um tempo com a companheira dele e mais os filhos. Era a época dos fogareiros, os fogareiros que se fazia comida, mas ele também aquecia. E eu lembro, então, na infância, a gente ficava na volta daquele fogareirinho, passando a mão assim pra se aquecer. E os meus pais construíram essa casinha ali. Onde eu fiquei e permaneci nesta casa até os meus 30 anos. Não nesta casa, não no chalé, mas nesta... Depois a gente construiu uma outra casa, enfim. E eu permaneci até 30 anos, até sair de lá e ir embora pra Santa Maria pra trabalhar. Quando me formo, eu vou pra Santa Maria. Então, hoje a casa existe. Tenho a casa lá em Pelotas. Hoje ela tá alugada. Foi a forma que eu achei melhor fazer. Mas ela é uma casa que ela foi se constituindo ao longo. De um chalezinho, a gente conseguiu depois fazer uma casa de material maior, foi arrumando. E isso começou quando meu pai estava em casa ainda e depois ele saindo de casa e eu dando continuidade junto com a minha mãe.
P - Ainda menina?
R - Não, eu já estava adulta, né? Eu saí de casa com 30 anos.
P - Ah, não, mas quando o seu pai sai, você ainda é criança.
R - Eu sou adolescente. Adolescente indo pra fase adulta. E aí teve os seus traumas, que eu acho que não faz sentido eu também trazer isso agora. E esse espaço lá em Pelotas, hoje eu vejo... E até porque eu tive que fazer um resgate de regularização após o falecimento da mãe. Por quê? Esse espaço era da avó dela. Minha bisavó. Deixou pra ela. Pra ela. Não foi pros outros netos, foi pra minha mãe. E aí tinham questões que nunca tinham sido regularizadas. E eu fui fazer isso após o falecimento da minha mãe. E, para fazer isso, eu precisei fazer toda uma busca de informações. E aí a gente vai entender um pouco do que é aquele espaço. Era um pátio, e a gente tinha uma nascente, que aos poucos ela foi secando. E aí aquilo ali se trazia, que é uma parte central de Pelotas, mas que é um morro. Então, tinha a vizinha, a dona Maria, que foi como se fosse minha avó também. Me cuidou muito, muito, muito. Foi como se fosse... Não, foi minha avó. E a dona Maria era conhecida como a Dona Maria do Morro, porque ela trabalhava descendo algumas coisas do morro. Então a gente foi entender que aquilo ali era um espaço também, não quilombola, mas era um espaço de pessoas que iam indo para aqueles espaços, comprando lotes, comprando lotes e se organizando. E aí eu fui entender a origem da minha bisavó, da minha mãe, que aquele espaço, provavelmente, era um espaço que teve alguma questão mais ancestral, porque tinha muitas flores de origem étnica. Por exemplo, o copo-de-leite. O copo-de-leite, eu vim a descobrir que ele é de origem africana. E lá tinha muito copo-de-leite. E, conversando com uma outra vizinha, a gente foi se dar conta, e ela também tinha histórias, mas isso na minha infância nunca foi dito, nunca foi falado, que provavelmente ali existiu... que provavelmente foi uma questão mais quilombola, mais ancestral, de território negro. Até porque depois, nessa rua, existia um clube. Clube Depois da Chuva. Foi um dos clubes negros da cidade de Pelotas. Então, tem algumas referências que teria que fazer um estudo maior, mas que trazem alguns elementos mais ancestrais, mais de identidade negra mesmo. E aí tem, então, essa casa que foi deixada pela bisavó.
P - E agora ela é sua?
R - Agora ela é minha, e foi uma coisa que eu quis realmente poder fazer, de reconhecimento pela minha mãe, pela história da família, enfim. Hoje, eu não sei o que eu faço com ela. Eu sei que eu não volto para Pelotas, eu não tenho interesse de voltar para Pelotas. Acho que não me pertence mais a vida lá. Eu sei que eu vou, eu tenho familiares, eu gosto de ir, eu sou bem acolhida, mas a minha vida não faz sentido mais lá. E aí eu tenho muito assim, o que é que eu faço, né? E aí, conversando com os meus tios, eles me tranquilizam muito pra mim ter autonomia e poder aproveitar da melhor maneira. Porque eu sempre tive muito receio, porque todo mundo tem a casa da Cassiano como um espaço de referência. Porque, como era uma casa central, então todo mundo que vinha e passava é na casa da Tereza, que eu vou lá fazer uma hora, eu tenho que fazer tal coisa, não sei o quê, é na casa da Tereza. Então, hoje isso tá aí e foi uma das vitórias que eu tive, e que eu considero uma vitória não só pra mim, mas pela minha mãe mesmo, que nunca conseguiu realmente legitimar esta casa, embora tenha vivido todo o tempo, legitimar esta casa como dela oficialmente. Então, eu, quanto filha, consegui fazer isso. E agora vamos ver o que vai se encaminhar daí.
P - Você quer falar da sua irmã?
R - Posso falar.
P - Como foi a chegada dela na sua vida, as transformações nessa família, a chegada de um novo membro?
R - Então, minha irmã chega, eu já tinha sete anos, meio que tive uma regressão com a chegada de outra criança querendo chupar bico, querendo usar sapato que não cabe em mim para usar sapato igual o dela. Mas a minha irmã foi uma criança assim... Parece que a gente fala das pessoas que partiram com um toque de... Meu Deus, as palavras estão fugindo. Parece que a gente vai falar das pessoas que partiram como se fossem endeusadas. Não, não é isso. São pessoas que realmente tiveram e fazem sentido da forma como passaram na tua vida. E a minha irmã sempre foi uma criança muito madura. Muito mais madura do que eu. Digamos que ela poderia ser essas crianças índigos que a gente fala. Poderia se dizer. Então, a minha irmã chega, eu já com sete anos, enfim, minha mãe trabalhando, minha mãe trabalhava... minha mãe fez muitas coisas, mas entre uma delas ela trabalhava como cabeleireira, maquiagem, essas coisas. Ela seria uma ótima empreendedora hoje, nos tempos de hoje, porque ela fazia a domicílio na época. Para grandes famílias, que as filhas iam para baile disso, porque era muito tempo dos bailes na cidade, aquela coisa da cidade tradicional, nome, sobrenome. Então, a minha mãe trabalhava com essas famílias. Ela ia, passava o dia, fazia unha, cabelo e tudo. E a minha irmã, então, quando a minha irmã nasce, ela para com todo o trabalho. Com dois anos, foi descoberto, então, que a minha irmã estava com leucemia. E aí foi alguns anos de batalha. Foram quatro anos, porque ela faleceu com seis. Foram quatro anos de batalha, tentando encontrar a cura, e que na época não existia. Então, minha mãe ficava no hospital, praticamente direto com a minha irmã. E aí a gente vai pensar na realidade do atendimento de saúde pública no passado. Minha irmã, como precisava, tinha imunidade baixa, às vezes precisava ficar em isolamento. Mas, naquele isolamento, minha mãe tinha tudo dentro daquele quarto. Ela fazia comida, ela costurava, porque, como se passava tempos e tempos no hospital, às vezes, quando a minha irmã tinha uma melhora, fechava a porta do quarto e ia pra casa. Ia pra casa, dava alguma recaída e voltava pro hospital. Então, grande parte também da minha infância foi dentro do hospital, porque eu saía da escola, que era próximo ao hospital, e ia para o hospital, ficava até o meu pai passar e me pegar e me levar para casa. E final de semana era na casa de um tio, de outro tio. Então, sempre foi muito assim. E a gente vai pensar muito nas realidades de hoje. “Criança não pode.” Claro, a gente sabe que tem que ter um cuidado, que é uma outra realidade. Que tem muita exposição, tem muita pedofilia, tem muita exploração. Mas era assim. “Luciani, tu vai sair assim, assim e assim, tu vai lá pra casa da tua tia.” Eu era uma criança de 11 anos, 12 anos. Mas a minha irmã, ela era uma criança muito além, perspicaz, boa na resposta, inteligente, e ela tinha seis anos. Ela enfrentou a doença como se fosse uma pessoa adulta. Eu tenho fotos, depois eu mostro para vocês. E, mesmo após o falecimento dela, são coisas assim, não me traz essa coisa do trauma da fala. Eu e a minha mãe ressignificamos essa passagem dela. O meu pai, não. Mas eu e a minha mãe, a gente sempre ressignificou no sentido de que “bom, ela foi uma criança realmente forte diante de transfusão, quimioterapia, radioterapia, e ela tava sempre sorrindo. Sempre.” Até o último momento, eu acho que ela esteve sorrindo. Eu lembro no último dia, quando ela realmente... Eu cheguei e ela, deitadinha na cama, e ela estava sorridente, ela olhou pra mim sorridente. Ela me chamava de Tiane. E ela já estava assim, que ela não conseguia, porque a barriguinha, hepatite, com as transfusões, então o fígado... Ela estava com a barriguinha estufadinha assim, e ela estava sorridente. Então, ela era uma criança assim, muito querida por todos também. E no hospital era uma revolução. No hospital era uma revolução, porque a minha mãe fazia tudo dentro do hospital. Então, ela sempre dava conta de poder ter uma renda mesmo dentro do hospital. Então, se era Páscoa, ela fazia coelhinhas pra vender pras enfermeiras, de pano, de meia. Ela comprava meias brancas e construía essas bonecas. Então, ela sempre tinha uma coisa que ela estava fazendo dentro do hospital. Mas é uma coisa assim que, falar sobre isso: “Como assim?” Hoje em dia, fechar a porta do quarto e ir pra casa e voltar pro hospital... “Meu Deus!” Não, né? Não. E aí tá. Ela vinha para tratamentos aqui no Clínicas, e na época recém estavam trabalhando a questão do... Como é que se chama? Transplante de medula óssea. Curitiba era pioneiro na época. Mas o caso dela ainda estava sendo analisado, enfim. E aí ela não resistiu, ela partiu, deixou-se as histórias dela. Mas era uma criança, assim, à frente do tempo.
P - E nesse momento da partida dela, como que vocês ficam?
R - Então, ela parte, fica eu, o pai e a mãe. Minha mãe, não vou saber precisar a que idade que ela estava, mas aí vêm os reflexos de anos guardados, de angústias, provavelmente da minha mãe, de situações vivenciadas, e a minha mãe descobre que teve um infarto jovem. E aí eu acho que muitas questões emocionais também. E aí ficamos os três. E aí eu acho que vem um desgaste também do casamento, né? E os meus pais acabam, depois de algum tempo, se separando muito. E uma das coisas que meu pai fala até hoje é que a minha mãe foi uma grande mulher. Ele reconhece. Mas ele não assume. Então, ele diz que ela que quis se separar. E, enfim, ela que quis porque ela cansou. Cansou, já tava maior, com a minha independência. E ela se separa. E aí acaba ficando só nós três. Eu não sei, tem coisas assim que eu, sinceramente, lembro dos fatos, mas as datas, mais ou menos assim, não lembro por quanto tempo mais eles estiveram casados. Teria que pegar documentos. E aí eles se separam. Foi uma separação bem difícil, porque foi uma separação litigiosa, por conta da minha mãe ter solicitado, e o meu pai não esperava. Então, muitos conflitos familiares, aonde teve esse meu distanciamento com meu pai. Mas uma das coisas que sempre teve foi a figura da minha mãe dizendo: ‘Procura o teu pai’, fazendo todo um elo de aproximação com o meu pai. E ele constituindo outra família lá, enfim... E ela sempre, mesmo eu adulta, ela sempre... ‘Teu pai, teu pai, teu pai...’ E aí fica só eu e ela. E foi um momento muito difícil, porque a gente tinha acabado... Acho que tinha ainda o processo de luto da minha irmã. Tinha um processo de luto ainda sendo trabalhado. E aí vem toda uma coisa que a minha mãe também se descobre enquanto mulher. Se descobre enquanto mulher, vai viver a vida dela. E eu em casa ainda. Sempre com ciúmes, porque aí eu não gostava dos namorados. Achava: ‘Ai, não, isso e aquilo.’ E eu era muito fechada, no sentido de... A casa sempre cheia, eu não posso olhar pra ela. A casa sempre cheia. E eu sempre no meu canto, sempre no meu quarto. Não gostava. O que eu gosto hoje? A casa cheia. Eu gosto daquilo que eu tinha na adolescência, mas eu não... Agora é o que eu quero. ‘Vem, vem que eu faço, que eu cuido.’ Muitas vezes eu me vejo reproduzindo tudo que ela, o legado que ela tinha, o carinho que ela tinha, a atenção. Eu percebo muito ela. Muito. E aí a mãe foi viver assim. E enquanto mulher eu fico bem feliz dela ter podido fazer essa vivência dela, esse resgate dela, de ter buscado a autonomia dela e de também fazer a história dela de outra forma. Porque até então meu pai tinha sido o primeiro namorado dela. E eu vejo o quanto ela investiu num casamento. Investiu num casamento, investiu em mim. Se não fosse ela, o incentivo dela, talvez eu não tivesse terminado a faculdade. De eu estar no trabalho e ela me mandar as marmitinhas pra mim almoçar. De eu chegar em casa da faculdade tarde, que ela tava esperando com alguma coisa. Eu cursei uma faculdade paga e sem ter condições, porque a gente tinha que sobreviver, né? Eu trabalhava na época. E era aquilo: ‘Faz um semestre, chega no semestre e ainda precisa pagar pra matricular pro outro.’ Ela falava com os irmãos dela, meu tio conseguia um dinheiro, aí eu pagava pro meu tio e não... Gente, foi uma loucura. E aí chegou uma época que eu disse: ‘Mãe, eu não vou, a gente tá se enrolando.’ Ela disse: ‘Não, tu já tá na metade e tu vai terminar.’ Então, a minha formação, a minha conquista é a conquista dela, foi a conquista dela também. Se não fosse por ela, por ela especificamente, eu não teria me formado. Por ela e pelos meus tios, que de alguma forma davam suporte para ela. Voltando, quando a minha mãe, então, estava com essa questão da minha irmã doente, enfim... Minha mãe sempre fazia as coisas pra complementar a renda. Por isso que eu disse que ela seria uma ótima empreendedora. E sempre contava com os irmãos. O meu tio... ela fazia croquetes. Fritava. O meu tio saía nos bailes da madrugada a vender. Nas portas. Terminava, ele buscava mais: ‘Me dá mais tanto, faz mais tanto.’ Então, eles passavam a noite assim. O meu tio Luiz Henrique acompanhava muito a minha mãe nessas questões das vendas. Então, ele vendia os croquetes, ela fazia e ele saía para vender. Assim como, no final de semana, fazia um mocotó para a venda. Então, ela sempre teve essa questão muito do empreendedorismo, que eu vejo hoje. E muito ligado também à gastronomia, à comida. Mas acho que o principal que eu vejo é a solidariedade entre os irmãos. ‘Eu não tenho, mas eu tenho isso, eu posso te ajudar.’ A minha casa, essa casa, quando ainda o meu pai estando presente, quando se começou, porque a gente morava no chalezinho, então, quando foi descoberta a doença da minha irmã, foi quando começamos a construir. Começamos, quando eles começaram a construir a casa, nossa casa de material. E essa casa também foi construída de uma forma solidária. Eram os amigos do meu pai indo, no final de semana, virar concreto. Eram as pessoas das famílias indo virar concreto. Então, a solidariedade sempre perpassou na família. E eu acho que isso me constituiu também, e eu me dou conta disso na minha formação, quando eu vou fazer serviço social. Porque não foi uma escolha imediata. Quando eu vou fazer esse serviço social, eu me dou conta dessa questão, desse movimento solidário. Mas que é isso, que é para todos, em diferentes relações. Porque, quando ia lá virar o concreto, tinha um amigo do meu pai que era dentista, tinha não sei quem que era não sei o quê, mas estávamos lá, estávamos todos lá. Então, quando eu acho que eu vou para o serviço social, eu me dou conta dessa questão, que é isso, dessa potência que é poder ser solidário e querer oportunizar para todos, que é a garantia dos direitos. Eu acho que estou misturando tudo.
P - É isso aí! O porquê do serviço social. Tem tudo a ver.
R - Mas que isso está muito ligado à minha família. Essa questão de... “De vamos, de temos, de partilha”, de conquistas. Se eu tenho também pode ter. Mas isso vem dessa relação da minha mãe com os irmãos. E também um pouco dos irmãos, mas mais da família da minha mãe. A família do meu pai tem essa relação de afetividade com os irmãos, mas essa coisa é muito presente na família da minha mãe.
P - E como foi o período dentro da faculdade?
R - Dentro da faculdade foi bem difícil, porque eu já ingressei tardiamente, muito por conta... Porque aí existia uma questão. Como a Pelotas foi berço da Escola Técnica, que hoje é o IFSUL, antigamente era a Escola Técnica Federal de Pelotas. Então, tinha muito aquela questão dos... ‘Ah, faz escola técnica’, porque tinha curso de quê? Era técnico em Química, técnico em Eletrônica, técnico em Telecomunicações. E o meu pai sempre teve muito desejo de que eu fizesse Telecomunicações, porque era a formação dele, porque outros primos já tinham feito. E eu ingresso na escola técnica e resolvo fazer até ali e me dou conta que não era aquilo que eu gostaria de fazer. E aí foi bem difícil, porque, quando eu disse que eu não queria fazer escola técnica, veio toda uma questão e que existia a preocupação do meu pai. ‘O que eu iria fazer então?’ E ele, do jeito dele, ele traduzia. Que ele não me queria fazendo trabalhos subordinados, no sentido de, ele não queria que eu fosse empregada doméstica, ele não queria que eu fosse babá, porque eram serviços que se tinham para pessoas negras. E ele já tinha saído daquela outra condição. Ele já tinha um emprego que já dava uma outra perspectiva para ele. Então, ele trazia essas falas muito preconceituosas. Mas eu também vejo a preocupação dele, que era a qualidade do estudo. O que ele estava querendo me dizer? ‘Estuda.’ Qualidade de estudo. Só que eu trabalho desde os, digamos, 13 anos de idade. 13, 14 anos, mais ou menos. E aí eu vou para a universidade, então, já bem tardiamente. E me encontro, então, fazendo serviço social. Por que aconteceu? O que aconteceu? Eu me matriculei para fazer matemática. Porque eu sabia que eu tinha que estudar. Porque aquilo estava na família. ‘Tem que estudar.’ E eu trabalhava de telefonista em uma empresa. E, neste meio tempo, eles me convidaram para trabalhar no RH. Então, eu trabalhava seis horas. Seria para mim cursar, trabalhar no turno da manhã, estudar no turno da tarde, e teria a noite livre. Só que, com este convite, eu iria trabalhar tempo integral. Então, não dava pra mim fazer a licenciatura em matemática. E aí eu faço uma reopção de curso, porque eu sabia que eu tinha que estudar. O desafio estava no estudar. Faço essa reopção de curso e coloco serviço social e jornalismo. Até hoje eu fico pensando: ‘Jornalismo?’ E entro pra serviço social e vou contar pra vocês que, no serviço social, eu descobri a minha vocação. Por quê? Porque, em uma das belas disciplinas, eu tive a recordação de que, quando eu brincava na infância, eu dizia que eu era assistente social.
P - Na infância?
R - Porque tinha uma assistente social que a minha tia trabalhava na casa dela. Eu não sei, acho que algum relato. Então, quando a gente brincava: ‘Ah, o que é que tu é?’ ‘Ah, eu sou assistente social.’ Eu não sei se era pela condição dela, o que era, mas ela era assistente social. E eu tive essa recordação. E nunca mais entrei e nunca mais pensei assim. Pensei em desistir pela condição financeira, mas não desisti do curso. Porque aí a gente vai entendendo o papel do profissional dentro da garantia dos direitos, de reconhecer potências, de reconhecer o sujeito na sua totalidade. Então, trabalhar dentro da assistência, pra mim, é sofrido, mas é muito gratificante. Talvez, em alguns casos, os ‘cases de sucesso’ a gente não é assim pra se ver. A gente vai se ver ao longo da vida. É diferente do engenheiro que foi lá e fez a construção, o arquiteto que fez, o dentista. Teve uma época que eu trabalhei com um dentista, ele vinha e dizia assim: ‘Olha aqui o dente, que bonito que ficou, que eu restaurei isso e aquilo.’ É palpável. Trabalhar na assistência, não. A gente tem que ir na essência do sujeito pra entender e extrair dele e tentar mostrar pra ele que, sim, tem potência. E como é que a gente faz isso no dia a dia, com as redes, com os serviços? É acreditando que aquele sujeito ali, ele tem a sua verdade, ele tem a sua história e ele pode constantemente construir isso ao longo da sua vida. E, trabalhando em comunidades periféricas mesmo, é difícil encontrar profissionais. Não é encontrar, é difícil ter profissionais que realmente olhem para aquela pessoa como potencial de transformação. Na sua essência mesmo. Sem julgamento. Porque a gente traz uma formação, mas, em alguns momentos, a gente vê que se perde. Porque não deu a resposta que você estava esperando. Porque o sistema não deu a condição que era necessária. E frustra. Mas perdi.
P - Difícil alguns casos de encontrar a essência das pessoas.
R - Mas eu já pulei lá, tu tinha me perguntado outra coisa.
P - Eu tinha te perguntado da assistência e da faculdade, mas é isso aí.
R - Tá, é então.
P - Pensando assim, nessa formação, você está há 25 anos dentro da assistência. Se você quiser contar um pouco dessa trajetória, como você entra nos seus primeiros trabalhos como assistente social, e os desafios, os aprendizados, e aí você vai tocando. No desenrolar, qualquer coisa eu paro e te faço pergunta.
R - Tá, tá bem assim?
P - É isso.
R - Pra você tá fazendo sentido?
P - Muito. Pra você tá fazendo sentido?
R - Tá, é que às vezes parece que eu me perco e foge.
P - Sim, mas é que eu acho que é muita coisa. É em contato com coisas que a gente não tá tão habituada.
R - Não, eu acho que é isso. O quanto a gente impacta enquanto profissional na vida de algumas pessoas. E eu, enquanto mulher negra, hoje eu vejo que estar no meu trabalho e atuar, eu sei que tem um impacto. Ainda mais em territórios vulnerabilizados, onde a grande predominância é a população negra mesmo. E eu sei o quanto faz diferença ter um profissional negro. E uma das coisas que eu sempre falo, os espaços, quando eu saí da atuação que eu estava, no centro de referência, para assumir o Projeto Calamidade, ainda uma das coisas que eu disse assim: ‘Não, só a única exigência que eu gostaria é que colocasse uma profissional negra no meu lugar.’ Porque esse espaço já tem a identidade, já teve em outros momentos, mas eu sei que é o espaço que precisa. Mas o quanto isso impacta, até dos jovens. Então, eu sempre fui referência, trabalhei como referência de serviços de convivência, de ingresso de serviços de convivência para adolescentes. Então, sempre próximo dos jovens. E isso impacta, sim. Acho que tem uma das situações de quando eu vim para Porto Alegre atuar como assistente social, a primeira comunidade que eu trabalhei tinha uma jovem, uma jovem que, na época, era uma jovem adolescente e que era, e que fazia parte da comunidade. Então, estava sempre inserida nas atividades do centro social. E essa jovem foi trabalhar de estagiária, então, na obra social. Depois ela fez vestibular, passou para o serviço social, e hoje ela é minha colega de trabalho. E ela diz: ‘Eu sou assistente social porque eu te conheci. Se eu sou assistente social foi porque eu te conheci.’ Mas eu acho que ela me viu, acredito, enquanto essa mulher negra, potente. Ocupando um espaço que talvez ela entendesse. E ela é uma ótima profissional hoje, que fez toda uma caminhada que eu me alegro e fico feliz de escutar e saber que dali saiu essa potência, dessa mulher que é independente hoje, com a sua família, com uma outra perspectiva que talvez não tivesse acontecido. Não pela profissão, mas essa referência. E aí eu sempre falo, quando eu saio do centro de referência: ‘Tem que ter, tem que deixar uma mulher negra aqui nesse espaço.’ Eu sempre falo das cotas, tem que ter a parcela, que não é propriamente as cotas, que são as ações afirmativas que se fazem necessárias e que um tempo atrás a gente não tinha e agora se tem. Mas a atuação profissional, acho que a minha atuação profissional começou muito cedo. Então, iniciei lá, acho que eu tinha uns 13, 14 anos. Eu era office boy de uma escola de educação infantil. Imagina. Escola de educação infantil particular, que era o quê? As senhoras essas que a minha mãe arrumava, as filhas lá, elas abriram uma escola. E era no centro de Pelotas. Então, eu, muito jovem, já circulava sozinha. Já tinha essa autonomia de ir e vir, enfim. Então, eu estudava no turno da manhã e à tarde eu ia pra lá, pra fazer os serviços de office boy. Leva aqui, vai no banco. E sempre foi uma coisa que eu sempre quis ter, era a minha independência. Nunca aprovada pelo pai, porque achava que eu ia parar de estudar. E incentivada pela mãe. Era uma forma também de eu poder garantir as coisas de adolescente, eu acho que um pouco como hoje. Da independência de poder comprar o que gostava, não aceitar o que estava dando. Porque era isso. O tênis era aquele porque estava dentro do orçamento. A roupa era aquela porque estava dentro do orçamento. E aí eu fui trabalhar nessa escolinha e permaneci um tempo ali, tá? E depois saí. Saí porque eu tive uma questão de saúde, não sabia o que era, sofria de síncope, e que eu só vim descobrindo na fase adulta o que de fato era. Porque, naquele período, eu tinha desmaios, e os neurologistas diziam que era devido ao desenvolvimento. Até que eu desmaiei no banco, onde era a empresa que meu pai trabalhava. Essa era a companhia onde meu pai trabalhava. E aí disseram pra ele: ‘Olha, tua filha desmaiou no banco com dinheiro.’ E aí ele fez toda uma questão pra mim sair com a minha mãe, porque era aquilo. O meu pai nunca me bateu. Ele fazia com que a minha mãe fizesse as correções. E aí a minha mãe disse: ‘Não, vai sair porque é uma responsabilidade grande, não tem necessidade.’ Continuei sofrendo de síncope, nunca descobriram o que era. Então, do nada: pum, desmaia. E nunca se descobriu. Simplesmente, do nada, eu desmaiava. Desmaiava na rua, desmaiava em festa. [intervenção] Assim, dos mais variados locais. E os médicos, o neurologista: ‘Talvez na adolescência, talvez está num processo de desenvolvimento muito acelerado, enfim.’ E eu, de fato, só fui descobrir quando eu vim morar em Porto Alegre, isso por meados de 2007, por aí, que eu apresentei episódios. E aí eu fui no médico, em consulta com um cardiologista, e trouxe toda essa história, e ele achou pertinente investigar. E aí a gente investigou, fez todos os exames, e realmente eu tive algumas alterações nos exames. E aí ele me disse: ‘Não, é que tu sofre de síncope. Neste momento, não tem um tratamento. Tem é quando tu sentir, porque a gente sente alguns sintomas assim, tipo: ah, vou desmaiar. É tu sentar, procurar como faz as tuas pernas, enfim.’ E desde então, não desmaiei mais. Porque eu sinto. Então, eu já digo pra quem tá próximo de mim: ‘Olha, se eu desmaiar, só me faz assim.’ Então, não desmaiei, porque é isso. Às vezes eu sinto que eu vou ter. E aí eu identifico também que são coisas que me deixam mais angustiadas, mais tensas. Então, eu procuro controlar e perceber realmente mesmo como é que tá o meu corpo. E a sensação. E nunca mais tive. Senti já, mas se controla. Então, foi isso.
P - E o seu trabalho como assistente social ainda começa em Pelotas?
R - Não, meu trabalho como assistente social começou em Santa Maria.
P - Ah, que você resolve sair de casa. Como se deu esse momento?
R - Então, até então eu trabalhava em Pelotas, fiz toda a minha formação sempre trabalhando. Um período eu fiz... Voltando à questão do trabalho, saí dessa escolinha e fui trabalhar depois em uma farmácia como empacotadora. Na mesma farmácia, era uma farmácia que tinha perfumaria e que tinha uma loja de produtos femininos em cima, lingerie, que era uma loja bem conceituada na época na cidade. Aí saio deste espaço, vou trabalhar na parte da perfumaria, com grandes marcas, de maquiagens. Saio da perfumaria, subo para a parte de cima da loja para trabalhar no crediário, vendedora, telefonista e auxiliar de RH. Aí teve uma boa trajetória até ingressar na faculdade. Quando ingresso na faculdade, então faço questão do curso de serviço social, eu saio do trabalho e vou procurar um estágio num hospital que ficava a algumas quadras da minha casa, que hoje é o Hospital da Universidade, que é a FAU, que ficava a poucas quadras de casa. Consegui um estágio, então, curricular e extracurricular, porque ganhava também, e fiquei então fazendo esse estágio no hospital. Então, no estágio a gente fazia as abordagens com os pacientes internados, em alguns casos tentava localizar familiares, organizar a alta. E ali permaneci por um bom tempo até ser contratada como administrativo. De estagiária eu passei para auxiliar administrativo, permaneci um tempo e depois fui desvinculada por conta de ter que fazer os estágios curriculares da faculdade. Aí consegui um estágio na RBS TV, na filial de Pelotas. E fiquei lá até concluir a minha formatura trabalhando de estagiária. Eu passei a contratada também e fiquei trabalhando lá até me formar. Após me formar, tinha aquele sonho: ‘Um dia eu vou trabalhar na Fundação da RBS.’ Mas não é bem assim. Só que trabalhava com captação de... Na verdade, trabalhava num setor que era operações comerciais. A equipe vendia mídia e a gente colocava, operava o sistema pra colocar, pra sair nos comerciais. Mas trabalhava com metas. E aquilo era, pra mim, muito conflitante com a minha formação. E aí, em Pelotas, assim, na época, o mercado de trabalho não era muito valorizado para o serviço social, por ter o polo ali da universidade, e as ofertas também muito escassas. Até que uma colega minha me disse: ‘Olha, eu fiz um processo seletivo para um município do interior de Santa Maria. Eu não vou porque eu vou para um outro. Quem sabe tu manda o teu currículo?’ E aí eu fiz o meu currículo e mandei. E aí eu fiz uma entrevista, uma conversa, e dessa conversa eles pediram o material, eu mandei, e aí a secretária disse: ‘Olha, a gente vai te contratar, só que a gente precisa que tu esteja aqui pra assinar.’ Tinha um prazo. Eu tinha que ir no outro dia. Aí conversei com meu pai, na época, disse: ‘Olha, eu preciso ir pra Santa Maria, isso, isso e isso.’ No outro dia, prontamente, a gente saiu. Faltei o trabalho na empresa, a gente saiu, fomos a Santa Maria, quer dizer, a São Pedro do Sul. E eu não conhecia ninguém para aquela região. Fomos a São Pedro do Sul, chegamos lá, fui na secretaria, assinei os documentos: ‘Tá, agora vamos ver onde que eu vou ficar.’ Município pequeno, eu disse, não se tinha, não existia a JK, essas coisas. Existia um prédio que tinha uma sala comercial. E aí eu pensei: ‘Bom, o que que eu faço agora?’ E meu pai muito preocupado, onde eu ia ficar. E eu disse: ‘Não, vamos voltar e as coisas vão se resolver.’ Voltamos pra Pelotas, sendo que na semana seguinte eu já tinha que estar nesse espaço. E aí eu disse: ‘Então, bom, vou ver com alguns conhecidos que já moraram e já viajaram.’ Coisa que o pessoal, que era da escola técnica, que viajava, que saía. E aí descobri que um tinha já morado em Santa Maria e conhecia um pensionato. E assim: ‘Tá’, liguei, acertei com a senhora o pensionato. Na semana seguinte, eu desci na rodoviária e fui direto para o pensionato. Foi isso. Então, eu ficava indo de Santa Maria pra São Pedro do Sul. Eu tinha um contrato de 20 horas. De segunda a quarta era concentrado. De segunda a quarta essas 20 horas. Por não ter a família perto e distância de 5 horas, eu me deslocava... Aí eu ficava até quarta. Quarta-feira, nos primeiros meses, eu me mandava para Pelotas. Aí ficava em Pelotas até domingo, voltava no último ônibus, segunda de manhã já ia direto para o trabalho. E assim foi, um bom tempo, até eu conseguir um outro trabalho. E aí eu comecei a trabalhar na Prefeitura de Santa Maria. Eles estavam implantando um projeto que era para atendimento a crianças que sofreram abuso e exploração sexual. Então, eu já tinha a carga horária preenchida. E aí eu passo a ir para Pelotas ao final de semana. Até 2006. Aí não, aí lá, por um tempo, termina esse projeto, que foi o Acolher. Eu consigo um outro trabalho, que é para fazer atendimento com os funcionários de uma rede de mercados, que era da cidade e do interior. Então, de segunda à quarta eu permanecia nessa instituição, trabalhando, e de quarta em diante eu viajava para toda a fronteira oeste: São Borja, Santa Maria, Uruguaiana, Livramento, Dom Pedrito. Fazia... toda a volta. Nisso, eu comecei a fazer um pós, vinha para Porto Alegre no final de semana, e aí Porto Alegre traz essa coisa assim de que mais oportunidades. Já fica mais próximo a Pelotas. Lá era cinco horas, aqui é três horas. Sempre tinha um indo e vindo. Pega uma carona. Minha prima já morava aqui, tinham tias aqui. Aí, o que que tu faz? Fica pensando e digo: ‘Ai, eu acho que isso já tinha se passado cinco anos eu em Santa Maria.’ Como essa instituição que eu trabalhava, elas tinham atividades aqui, eu conversei com um dos irmãos da época, o que tinha me contratado lá no início, e pedi pra ele que, quando tivesse uma oportunidade, eu pudesse estar vindo. E aí foi o que aconteceu, surgiu essa oportunidade em 2006, e aí eu pedi demissão de lá e vim pra cá. Pedi transferência da outra que eu prestava trabalho e também. E aí, então, começa a minha trajetória aqui em Porto Alegre, nessa organização que ficava ali na Vila Ipiranga, essa comunidade.
P - O que você fazia?
R - Eu fazia atendimento dos moradores para acesso a direitos. Mas ele era específico para atendimento de saúde, tinha atendimento pediátrico, tinha atendimento odontológico, e a parte do serviço social seria a articulação com a rede de serviços da região, inserção em serviços de convivência e acesso a atendimento às famílias. Permaneci ali por um bom tempo e depois fui desvinculada porque eles estariam fechando algumas atividades. Atuei num projeto social que era um projeto esportivo também, que era vinculado ao serviço que atendia crianças e adolescentes e desenvolvia atividades dentro da Universidade Federal da Católica, quer dizer, dentro da PUC, que era com a Faculdade de Educação Física. Esse projeto foi extinto, mas atendia uma grande parte deles ali da região do Partenon, da região Oeste, trabalhava com as comunidades periféricas. Fiquei nesse projeto. Eu saí em 2009, cheguei em 2006, então lá nessas instituições foi até 2009. Em 2009 eu saio, continuo com o meu trabalho. Quando chega em 2010, eles assumiram um contrato com a Prefeitura para atuação e implantação do Sistema Único de Assistência Social. E eu faço parte, então, da equipe que vai implantar o Sistema Único de Assistência em Porto Alegre. Então, tem um marco aqui, dentro deste serviço de assistência. Então, por isso que eu digo que eu passei por alguns territórios de Porto Alegre. Eu iniciei na Zona Leste, depois eu vim para a região Eixo Baltazar, depois eu saí, volto para Ípica, região Cruzeiro, e enquanto assistente social vou para Santa Rosa, atuando enquanto assistente social. Então, a gente vê diferentes realidades de territórios. Uns mais potentes, outros não tanto, e a potência que eu me refiro é a participação popular mesmo. E aí a gente vai ver pessoas mais atuantes, população mais atuante, mais politizadas, com entendimento mais dos seus direitos, e outros não, mais fragilizados e várias negativas do poder público. Onde eu permaneço até ser convidada para trabalhar na Calamidade.
P - Ah, então foi bastante tempo. Até ser convidada.
R - Sim, é praticamente o que eu trabalhei. Só que nesses meios-tempos teve outras. De 2009 ali que eu saí, que eu trabalhei no CRAS. Eu passo das pedras e saí. Porque como é contrato. Antes era uma entidade, uma das mantenedoras da PUC, que foi até 2009. Eu saí um ano antes deles terminarem o contrato com a prefeitura. Neste período que eu saí de um ano, eu fui trabalhar na universidade. Foi quando eu voltei para Pelotas e trabalhei na Universidade Federal de Pelotas, na PRAE, que faz a avaliação dos alunos para benefícios sociais da universidade. E ali eu trabalhei quatro meses, e que para mim foi um resgate. Voltar para Pelotas enquanto profissional, rever alguns professores que estavam trabalhando como colegas, rever a minha vida, porque foi reviver, e também de entender que não pertence mais, acho que é até aqui. Nesse período que eu fiquei na casa de primos, de amigos, fui girando ali. Minha casa já estava alugada há bastante tempo, cada semana tinha um para matar a saudade. E aí eu me dou conta de coisas que a gente vive e que vivia, não sei se dá para dizer, num processo de alienação, mas que a gente vai se dar conta que eram processos violentos. Eu digo: ‘Meu Deus, eu lembrei de uma situação de uma jovem que sempre morou próxima da minha casa e que sempre falavam que ela tinha um relacionamento com o pai.’ E eu fui lembrar isso quando eu tava atuando. Eu disse: ‘Meu Deus, que horror isso! Isso era exploração. Fazer essa relação. Isso era exploração sexual que essa menina sofria pelo pai. Porque se tinha esse relato, porque tinha alguma coisa.’ E eu digo: ‘Meu Deus, como é que isso nunca foi visto desta forma?’ E outras tantas coisas, essa aí foi uma das que me impactou muito, porque quando eu passei na rua, eu vi um familiar e me trouxe a história daquela família. E eu digo: ‘Meu Deus, tá, eu não poderia me culpar, porque naquela época eu não tinha nem formação, mas e quantas outras tantas situações a gente acaba por não ter conhecimento e que aquela família ela nunca foi olhada, que aquela jovem, aquela mulher.’ E, para além disso, era uma questão de trabalho infantil, porque ela saía para vender sorvete no estádio de futebol, ela saía para vender pipoca na frente de uma escola particular, ela estava sempre lá. Então, olha quanta exposição que essa mulher, essa mulher hoje, essa criança cresceu. E outras tantas coisas que nesse período de três, quatro meses foram vindo assim, eu digo: ‘Meu Deus do céu, o quanto eu tinha mudado. O quanto sair de Pelotas me potencializou, não só profissionalmente.’ Eu sempre digo: ‘Tem coisas que acontecem, que são sofridas, que a gente não sabe muito, mas que constituem a gente.’ Essa vivência com a minha irmã, as pendências todas com a minha mãe, as pendências não, as vivências que a gente teve das relações familiares, mas também das potências, isso constitui. Tem coisas que a gente quer falar, tem coisas que a gente não vai querer falar. Mas eu fico pensando se talvez eu tivesse ficado lá, se eu seria essa mulher que eu sou hoje. Eu não me vejo. Eu, Luciani, não consigo imaginar o que seria. Talvez eu pudesse ter sido uma mulher submissa, uma mulher mais conformada com a vida, uma mulher sem perspectiva. E aí eu vou para Pelotas, então volto para cá. Então a minha vida sempre foi permeada de vários saberes e olhares diferentes da profissão. Eu já atuei na saúde, eu já atuei na educação, aqui também no Instituto Federal, com o mesmo processo de avaliação de ingressos. Então, é saber de histórias de pessoas que estão buscando, estudo com a qualificação, ou no mercado de trabalho. Então, eu acho que eu sou multi na questão do olhar do trabalho. E aí, atualmente, agora eu estou trabalhando, que está sendo um desafio imenso, que é trabalhar com familiares de pessoas autistas.
P - Isso é depois da Calamidade, né?
R - Depois da Calamidade.
P - E aí, como você é chamada para este trabalho, durante o ano passado?
R - Quando começam as... Então, Calamidade começa, e eu atuando como técnica, então, recebendo essas famílias, porque o território aqui da Zona Norte, especificamente o Santa Rosa, onde eu estava atuando, um território muito vulnerável no sentido de ofertas. A gente tem poucas organizações, as organizações que prestam serviço de assistência não são tão grandes quanto algumas, então os recursos são menores. Também vejo que não existe um olhar para o território, e aí eu falo de políticas públicas mesmo, de sistema do Estado como um todo, tanto Prefeitura quanto Estado mesmo, em oferta de serviços. Hoje o CRAS tem um número de pessoas que deveriam ser referenciadas por território. E aqui a gente tem um CRAS para muitas mil famílias, algo que não vai de encontro com a política. Então, se amplia em outros espaços, mas aqui não. Mas aí também tem isso que eu trago, que é um pouco do movimento que as pessoas fazem, de conformidade com algumas coisas. E aí, quando entram as questões mais políticas dentro da política partidária, que acaba enfraquecendo a população, e aí esse serviço que já é estrangulado para o atendimento, ele, com a pandemia, acaba que muitos acabam acolhendo seus familiares. É um território que também parcialmente foi atingido. Então, a gente tem um território que foi atingido. Pessoas que migram para este território porque estão na casa de familiares, na casa de amigos.
P - Porque estavam em uma zona que foi ainda mais...
R - Estavam em uma zona que foi atingida. E, além de algumas escolas e outros espaços que abrem para fazer acolhimento dessas pessoas. E ali, então, eu lembro que no sábado, no primeiro sábado, onde as pessoas estavam já sendo acolhidas nesses espaços, a minha vizinha... Era um sábado e eu estava aqui. E a minha vizinha me liga: ‘Lu, eu gostaria de ir ajudar, mas eu não sei por onde começar’, ela me disse. E a gente se paralisa às vezes. E aí vem aquele choque que te faz, te tira da tua zona de conforto. E eu acho que ela também foi esse choque. Porque eu disse pra ela assim: ‘Eu não sei, mas eu posso ver pra ti. Porque eu não vou me envolver. Porque segunda-feira eu tenho que trabalhar e eu provavelmente vou trabalhar nisso’, eu disse pra ela. Aí tá, prontamente. Fala com um, fala com outro: ‘Olha, tá abrindo um alojamento aqui na escola Porto Novo, que é aqui próximo.’ Aí eu falei pra ela, e aí ela pediu então que... ‘Tu não pode me acompanhar? Porque aí tu conhece as pessoas, enfim, então fica mais fácil.’ E aí eu fui acompanhar ela, não saí mais. Aí já cheguei lá, encontrei um conhecido, um outro. E aí tu vai escutando as histórias, o que estão precisando. E aí, nisso, eu já saí de lá com uma demanda. Porque as pessoas estavam chegando, não tinham toalhas, precisavam tomar banho, precisavam de roupas. E aí a gente já começa a movimentar a rede de amigos. Já voltei no outro dia. Já era domingo. Já voltei no outro dia. E aí, na segunda, foi designado um rodízio da equipe pra trabalhar. Pra fazer atividade, pra ir pro abrigo. E, neste momento, não se tinha claro o que cada um faz. Não se tinha. Cada abrigo foi se organizando da maneira que se entendia que era e de acordo com a realidade de cada território. Só que essa escola que eu fui, eles estavam muito organizados. Eles tinham planilha de quem chegou, de quem saiu, de necessidades. Essa diretora, um enorme barrigão, gestante. Com tudo sob controle. Então, quando foi designado pela secretaria que os profissionais iriam, era pra gente fazer os registros das pessoas que estavam chegando. Então, ficava ali atendendo, enfim. Mas muito assim: ‘Vão pra estarem lá. O serviço público tem que estar lá.’ Mas quem gerenciava era os voluntários. Era os voluntários. Eu tive a oportunidade de entrar e ser bem acolhida e fazer parte da equipe. Então, tinha as reuniões de amanhã, todo mundo no pátio da escola: ‘O que vão fazer, o que vai ser hoje, o que não vai ser, qual é a necessidade.’ Cada um identificava. Depois, toda vez que trocava o turno, eles estavam organizados por turnos. Mas teve outros lugares que foi um caos, que não existia nenhuma organização. Isso do meu ponto de vista, é óbvio. Ficamos até que veio uma orientação de que os profissionais não iriam mais para os abrigos.
P - Do estado?
R - Do município. Que não precisava mais.
P - Isso estava em que momento?
R - Estava bem no início. Calamidade. Calamidade chega no Rio Grande do Sul, acho que de uma forma abrupta, que a gente viveu esse momento, e eu posso dizer que foi um momento bem histórico a Calamidade aqui no Sul, e eu acho que, não sei nacionalmente, mas ela é histórica e fez a gente se dar conta da questão climática, o que devemos realmente poder se dar conta e poder melhorar e poder contribuir para que isso não aconteça de novamente, ou que, se aconteça, estejamos mais preparados para enfrentar. Ela chegou, então, realmente desorganizando tudo. Eu costumo dizer que a água veio trazendo este movimento. Ela veio com força. Ela chegou, então, e... Eu vejo assim que ninguém esperava. Ninguém, o governo não esperava, a população não esperava, porque teve pessoas que saíram... Essa coisa de sair dentro do barco é achar que realmente ia dar conta, porque a gente tem uma região que é... anualmente é atingida, que é as ilhas. Só que esta enchente veio de forma que atingiu territórios que nunca tinham sido, nunca tinham passado. E aí teve muita resistência das pessoas saírem das suas casas por acharem que ‘não, não vai acontecer, está dentro do controle’. E eu acho que a mídia também trazia isso, que estava dentro do controle. Não sinalizava assim. Os primeiros dias não sinalizavam muito essa... O governo também não trazia elementos mais concretos de que estava agravada a situação.
P - Quando você entendeu que estava agravada a situação?
R - Eu entendi que estava agravada a situação quando eu cheguei neste abrigo, que eu entendi que estava agravado, porque quando nós saímos dali, nós saímos para ir no mercado e buscar algumas coisas para levar para o abrigo. E como o mercado ficava muito próximo do Sarandi, e que a água estava subindo, e tinha um boato que tinha estourado o duto, a tal da bomba tinha estourado. Enfim, eu estava dentro do mercado. E no mercado era uma situação de guerra. A gente olhava para as prateleiras e não tinha água. Não tinha, porque as pessoas levavam tudo abarrotado. E eu digo: “Meu Deus, realmente a coisa está…” E a gente escuta aqueles zumzumzum: “Estourou o dique, estourou o dique, estourou o dique”. E aí a gente se dá conta. Eu digo: “Gurias, a gente tem que sair daqui, porque, se estourou, a gente não sabe onde a água vai chegar.” Então a gente sai do mercado com aquele zumzumzum, e aqui próximo à rótula Manoel Elias já tinha uns carros. Eu digo: “Gente, se esses carros estão parados aqui, o pessoal já está fugindo.” Então fica um momento, foi um momento de pânico, assim, porque, de fato, a gente não sabia o que tinha acontecido. E já estava a água subindo. E, depois disso, claro, aqui onde eu resido não tem essa questão, não sofri com a água no sentido de entrar. Mas a gente teve outras coisas, que foi a luz, a própria água mesmo. Peraí, será que foi a água? A água que faltou? Faltou, porque a gente buscava de galão. É, faltou. E aí não tinha água nem no mercado. Então, a gente conseguiu um galão para comida, beber. E aí ficava correndo com quem tinha poços artesianos. Então, quer dizer, não fui atingida diretamente, mas, indiretamente, toda a população de Porto Alegre foi atingida. Toda a população. Porque é isso. Faltou alimento, faltou água, faltou luz. Mas, de fato, eu entendi que aquilo era um caos quando eu saí do mercado, estava no mercado e aconteceu toda essa situação.’
P - Isso era tipo dia 4, 5?
R - Se eu não me engano era dia 5 que foi, no sábado.
P - De maio.
R - 5 de maio.
P - E aí quando você vai pra lá e começa a atuar, você volta pra sua casa ou você dorme lá?
R - Não.
P - Como é isso?
R - Não. Fazia atuação. No final de semana, foi uma forma assim: eu ia, ajudei, contribuí, voltei pra minha casa. Segunda-feira, eu ia no meu horário de trabalho. E até porque era uma situação pesada pra gente... É o processo de luto das pessoas. Perdendo as suas coisas. Trabalhava no meu horário normal e voltava. Ou eu estava em atendimento no CRAS. Até um determinado momento, a gente ia para o espaço sem muito o que ofertar, só mesmo o acolhimento, e voltava para o CRAS. Até que foi, então: “Não, os trabalhadores vão continuar dentro do espaço para atender as pessoas que estão procurando serviços.” Que é essas pessoas que não são do território, não foram para abrigo, mas que estão procurando: “Tô sem documento”, porque perderam, “tô sem roupa”, “tô na casa da minha amiga”, “preciso de cesta básica pra contribuir”, “tô sem trabalho”, “não tenho de onde”, “mas tô ficando na casa de alguém.” Então, as demandas, elas foram as mais diversas. Até que vem... E aí, mesmo estando dentro do CRAS, uma angústia muito grande. E eu lembro de uma situação que eu atendi um rapaz, entre tantas, que isso, eu não vou lembrar qual região que ele era, mas ele tinha sido encaminhado para um abrigo na Zona Sul, e ele estava acompanhado com a irmã dele, que morava no território. Ele tinha sido encaminhado para um abrigo da Zona Sul, e lá no abrigo este, ele, com mais um grupo, resolveu que eles tinham dinheiro que daria para alocar um espaço, quando eles entenderam que não teriam muito, achando que as coisas iam se resolver dentro de uma semana. Então, aquele dinheiro daria para eles alugarem e ficarem mais confortáveis. E aí ele sai deste abrigo com um grupo de pessoas que conheciam, que era do território onde ele morava, vão para uma outra cidade aqui próximo, locam esse espaço e o dinheiro termina. E continua a calamidade. E ele tenta retornar para este abrigo que ele já tinha passado, não consegue, vem, tenta ficar com a irmã. Só que a irmã não tem condições e estrutura para recebê-lo. E aí ele aparece no atendimento, contando toda essa história, trazendo essa narrativa e dizendo que, durante o dia, ele estava ficando na rua, com toda a chuva que rolava ainda, e à noite ele tinha dormido uma noite com a irmã e outra noite ele tinha ficado na rua. E era um rapaz trabalhador. Se eu não me engano, ele trabalhava de segurança de uma terceirizada de um acervo, um arquivo público aqui do Estado. Mas ele era segurança. E aí a gente vai articular o espaço para ele retornar. Não, não tem. O município não disponibilizava um espaço para ele retornar. E aí eu entro num conflito muito grande. O espaço onde eles estavam, porque eram todos espaços privados, cedidos. O abrigo não te comportava mais. Que ele retornasse para aquele. Outros não. Aí existia uma central telefônica do município, que, mesmo enquanto técnica, eu tinha que ligar, pedir a vaga. Não disponibilizava, porque ainda também estava num processo de organização. E isso me deu uma angústia tão grande, uma impotência profissional, que quando veio o convite, se eu tinha interesse de fazer parte da equipe, queria trabalhar especificamente com os abrigos de Calamidade, que seria um contrato temporário, que seria para coordenar as equipes, então, que seria um processo temporário. E aí eu me pergunto: que sentido isso ia fazer para mim? Entre angústias e medos, eu resolvi abraçar a oportunidade. Porque, como eu disse, a água atingiu todos nós, de diferentes formas. E como eu estava tão incomodada diante das respostas, como poder compreender mais e poder contribuir mais só estando junto mesmo, né? E aí eu fechei os olhos e aceitei fazer esse trabalho. Foi um processo bem sofrido, bem doloroso, no sentido que se fica muito impotente quando há o envolvimento político, quando a gente enxerga as demandas das devolutivas, mas a resposta tem que ser para a mídia, para o poder público. A resposta nunca é diretamente... Ela é para amenizar, eu acho que é isso. Ela é uma resposta para amenizar, não para combater de fato. Então, foi bom para a Luciani profissionalmente, porque me traz a compreensão das relações de trabalho, das relações de força. Não traz a compreensão, fortalece a vivência. Ela me fez perceber isso profissionalmente, no sentido de que a gente sabe que existe. Mas tem coisas que eu senti na pele. Até o racismo estrutural. E que a gente sabe que tá ali. Mas tu vivenciar assim, diretamente...
P - Você lembra das situações?
R - Lembro.
P - Você pode falar?
R - Acho que vai sair, porque não é sobre isso, especificamente sobre o racismo. O que eu falo, assim, nesse contexto que eu acabei e vejo que eu que foi o desafio do profissional, foi essas relações... Como é que é a palavra? Bom, mas poder estar indo para essa função me fez fazer parte de um processo de supervisão, mas também de gestão, de ser propositiva das ações, e que muitas vezes elas travavam no sentido de que o município não tinha uma política específica. Está dentro da política, mas não tinha ação para combate de emergência como deveria ter, de alta complexidade. Então, trabalhar com este novo gerava muito embate. Respostas que tinham que ser dadas hoje para amanhã. Por exemplo, precisava-se, quando as águas começam a baixar, precisava-se as escolas serem desocupadas para as crianças voltarem. Por quê? Em determinadas comunidades, a escola existia uma parcela da população que não foi atingida pela calamidade, que queria que seu filho voltasse a frequentar a escola. E outra que estava dentro da escola e não tinha para onde ir. Então tinha diversas tensões em espaços de acolhimento. Muitas tensões. Eu, por exemplo, participei de uma que a gente precisava fazer o mapeamento daquelas famílias, quem tinha condições de ir pra casa, quem não tinha, o que que necessitava, tinha perdido, não tinha perdido, e liberar o espaço da escola. Era essa a função dos técnicos. Equipe de assistentes sociais e psicólogos.
P - Desabrigar?
R - Exatamente, trabalhar com a desmobilização dos abrigos. E, ao mesmo tempo, entender a necessidade que se tinha de moradia. Porque tinham perdido. Inicialmente era moradia. Mas é que veio muita tona outras questões que também eram necessárias ter o olhar.
P - Tipo?
R - Famílias que tinham situações de violência, idosos sozinhos. Aquilo virou uma extensão, uma casa. Os espaços eram extensões das casas. Então, eles tinham dinâmica das suas casas. Os conflitos estavam instaurados ali. Era a família brigando. Era um abusador, um assediador. Era a violência doméstica. Era a violência contra a mulher. Era o abandono do incapaz. Tudo isso dentro desse espaço, pessoas comuns, às vezes, gerenciando tudo isso. Voluntários gerenciando esses conflitos que apareciam. E que não eram conflitos que tinham sido criados lá, são coisas que já estão aí. E aí, os técnicos também entrando. Então, várias vezes a gente teve que fazer encaminhamento, conselho tutelar, chamar o conselho tutelar, porque eram crianças ficando sozinhas nos espaços, e não poderia, responsável saindo. Por quê? Isso é uma dinâmica da família. A gente teve que chamar algumas vezes a brigada, venda de drogas, ameaças. Nós sofremos ameaças. Em alguns momentos, sim, por impor regras de convivência, porque a gente tem que trabalhar a convivência. Então, eu só vejo que, na verdade, os espaços só potencializaram o que, de fato, não se mostra. De fato, não se tem respostas. Se faz, mas se deveria se fazer muito mais. E aí a gente vai pegar o quê? População de rua também. Que é a nossa cidade. E outras pessoas que não eram da rua, esse rapaz que acabou ficando em situação de rua. E que, com a minha saída, eu não sei o desdobramento. Mas hoje a gente tem uma parcela que vem tentando higienizar a cidade e não dando condição de fato para a superação. Sei que agora o município está com uma ação específica para acolhimento às pessoas em situação de rua. E essas pessoas, pelo número, cresceram. Sempre existia a Operação Inverno, mas agora parece que eles dobraram e estão com atendimento até noturno. Mas passando a Operação Inverno, qual é a condição realmente que a gente vai dar? Mas é isso, os abrigos tinham todas as particularidades. Tem as questões solidárias, sim. Tem o bonito, sim. Mas não foi só o bonito que apareceu. Não foi. Várias crianças foram abusadas. A gente tem. Teve situações de abuso. E não foi uma. Foi mais de uma.
P - Eu queria te perguntar como você Luciani, vivia essa situação trabalhando e como era para você voltar para casa?
R - Como esse foi um desafio pessoal, eu senti que eu deveria ir para a Calamidade, sim. Eu senti que eu deveria fazer alguma coisa. Porque se a vida estava me trazendo um momento que eu estava me sentindo inquieta profissionalmente, eu entendi que era um desafio que eu, Luciani, tinha que assumir comigo, enquanto ser humano. E aí eu vou para a Calamidade, então, com esse universo aí de coisas novas acontecendo, de espaços que eu tinha que me fazer presente. E, ao mesmo tempo, eu me sentia tão... Embora tivesse um desgaste muito grande mentalmente. Mentalmente, assim, ó... Existia um desgaste muito grande, porque eu chegava em casa, a gente continuava trabalhando e planejando a desmobilização dos abrigos, pra onde ia tal equipe, e como também eu tinha que acolher esta equipe, porque eram eles que trabalhavam com as famílias. Quando eu tinha que dar retornos pra que eles pudessem fazer os encaminhamentos. Então, eu tinha que dialogar com a gestão do município. Pra tá vendo. E aí a gente vê que é o que eu queria falar, que eu não tô conseguindo. E que pra mim, assim, foi um... que eu senti que às vezes tinha um desrespeito, uma soberba das pessoas. Com os trabalhadores da ponta. De acharem que não estavam dando. Mas quem tá na gestão vive uma situação, quem tá na base é outra. E eu sempre procurei ter um cuidado com a equipe que estava sobre a minha supervisão, de poder acolher eles, porque muitas vezes foi frustrante a gente não ter respostas. Para aquela pessoa ou para o serviço, a gente não tinha respostas. Então, muitas vezes foi frustrante. E eu sei isso porque a equipe me relatava dessa impotência. E eu também sentia. E eu também sentia. Numa outra proporção. Pode repetir?
P - Como você voltava pra casa?
R - Voltava pra casa.
P - Tipo, sua cabeça tava lá? Você teve algum momento de choro? Ou ficou mais retraída? Como você lidou com seus afetos?
R - O momento de voltar pra casa, eu acho que eu sempre tive muito acolhimento da equipe: acolhimento e reconhecimento. Então, isso me fortalecia muito. Quando o teu colega chega e te pergunta como é que tá, nota que tu tá, o que houve, enfim. Existia muito acolhimento, mas existia uma cobrança muito grande. Então, o que a gente faz? Usa de estratégias. Muitas vezes eu chegava em casa e tinha que continuar trabalhando. E virava. Mas são rituais que a gente cria com a própria natureza. Às vezes eu atravessava a praça de pé no chão, com os meus pés na grama, eu sentava embaixo de uma árvore. Eu sempre tenho o ritual de me conectar quando eu sinto que os negócios estão meio pesados, enfim. Eu sempre, antes de entrar na minha casa, eu dou um espairecida. E eu acho que a rede de apoio é fundamental. Aí eu tenho a minha família, os meus amigos que fazem a minha escuta e que também vão me norteando, não deixam a gente entrar num processo de adoecimento mental. Embora, não teria como, na sua totalidade. Mas não deixar entrar num estágio mais crítico. Sinalizando, ir te convidando: “Vamos fazer isso, hoje tu precisa parar e não olhar pra isso”. Fazendo que a gente se dê conta de que precisa recarregar as baterias pra dar continuidade. Então, tem sempre essa rede de apoio. Mas é isso, eu vinha pra casa às vezes, assim. Parava no meio do caminho, sento, olho, contemplo, me reconecto. No final de semana, um solzinho, uma caminhadinha onde tem um colorido, que tem uma vibração. Eu acho que isso é a minha conexão. Leitura, oração, música. Música é a reza. E se renovar para o dia anterior, e sempre sem muita expectativa. Vou deixar acontecer para ver o que vai ser as demandas. Claro, tem coisas que eram planejadas, mas vamos deixar. Se alinhar para ver o que as coisas iam acontecendo da rotina, porque era muito dinâmico. Chegava no abrigo, o abrigo estava bem, estava tudo tranquilo, daqui a pouco tinha um tumulto, tinha alguma situação. Era o Ministério Público entrando, querendo saber dados de quantas pessoas tinham, porque a figura do poder público dentro do espaço passou a ser os técnicos que eram contratados. As referências, mas o que vocês estão fazendo aqui? E aí também entender e procurar dizer para eles, ‘bom, nós estamos aqui representando, mas respostas não somos nós que temos que dar.’ Esse também foi um desafio. Então, constantemente a gente estava sendo colocado, ‘bom, quantas pessoas? Mas por que está isso? Por que está aquilo?’ Olha, a nossa atividade é esta. A nossa equipe trabalha nessa perspectiva da desmobilização. O restante é com gestor público. As mais variadas histórias...
P - Tem alguma que...
R - Que tenha marcado mais? Se eu disser que tem alguma que marcou mais, eu vou estar mentindo, porque todas são muito complexas. Todas. Acho que em determinado momento elas marcam de uma forma. Vou pegar uma que é uma própria negativa do sistema. Chega pra nós uma idosa que já tinha passado por diversos espaços de acolhimento, sai de um, vai pro outro, aí aquele outro vai fechar, porque era assim, entendeu? Tava ali, aquele vai fechar, vai pro outro, onde tem vaga, vai pra cá, vai pra lá, e aí vai afunilando, porque assim, nesse fechar, algumas pessoas já vão se encaminhando pra outros espaços, e aí vai ficando só quem realmente não tem. E um dos técnicos, porque são narrativas que os técnicos me traziam. ‘Olha, Luciana, a gente tá com tal situação assim, assim, assim, como é que a gente faz?’ Até que chegou uma história de uma idosa que já tinha passado por um espaço, por outros abrigos, e que tinha um filho, e que o filho não estava na cidade, e que estava com o cartão dela. Ah, a princípio tu pensa, ‘bom, se ela tem cartão, tem benefícios, isso e aquilo.’ E aí ela traz que, então, ela morava numa escola pública. Ela morava numa escola pública. E os colegas, os profissionais, foram fazer uma visita domiciliar, e essa escola pública foi atingida pela calamidade e ela estava presa. Não sei, não lembro agora corretamente como que ela foi tirada de lá, mas ela poderia ter morrido afogada. Porque a parte que ela ocupava é como se fosse um porão, sem iluminação, sem ventilação, uma escola pública, e lá ela trabalhava como serviço gerais. Criou o filho nesse espaço. Os colegas foram fazer visita domiciliar, se apavoraram com as condições que a idosa morava. Quando questionado para a diretora, eles me disseram assim: a gente perguntou assim, mas a senhora sabia? Ah, eu não tenho nada a ver com isso. Quantos profissionais passaram por esse espaço e não viram a situação dessa idosa? Quantos? Aí a gente começa a mexer. A gente não sabe, não conseguimos entender qual foi a transitiva que foi feita. Mas ela era funcionária. Ela deveria ser funcionária pública. Ela deveria ser funcionária pública. Os seus direitos todos garantidos. Então tinham coisas ali, assim, ó... E aí a gente fica pensando o processo da conivência das pessoas também. Como é que... Elas foram 30 anos, não foi um diretor de escola, não foi... E os outros profissionais que nunca viram, nunca fizeram nada, se fecharam. Então, quer dizer assim, foi tirado o direito dela de trabalhadora, de ser humano. E é uma senhora baixinha, toda arrumadinha, todo dia lá com o batonzinho, pega os cachorrinhos dela e saia pra... Sabe? E com sorriso no rosto. E aí, às vezes, tipo assim, será que ela sabe tudo? Será que ela compreende tudo isso? Essa foi uma, mas tem tantas outras. Os idosos também. Muitas histórias, não sei. Acho que... Na íntegra, sim, eu consigo lembrar desta. Depois teve outras que eu vivenciei juntas, de levar uma idosa para um outro espaço de acolhimento, ela tentar fugir do carro, abrir a porta do carro e sair correndo e entrar no fórum e dizer que nós estávamos sequestrando ela. E aí a gente tem que fazer toda uma conversa e entenderem que sim. Ela parou, o carro parou no sinal, ela abre a porta do carro e sai correndo e é bem na frente do fórum. E ela entra fórum adentro, dizendo que a equipe estava sequestrando ela. Porque aonde ela morava não tinha condições, ela precisava ficar num abrigo, mas já com o processo de saúde mental não entendendo. Neste dia, ela quis atirar pedra na colega, ela agrediu uma outra. E aí a gente conseguiu, então, todo num convencimento, colocar ela no carro para levar ela para esse outro espaço. Assim, o trajeto a gente deveria levar uns 30 minutos para levar ela. A gente levou em torno de duas horas e meia para chegar no local, se não foi mais porque ela em surto. Acabou que ela evadiu do espaço, a gente não... Ela ficou um, dois dias, com muitas questões persecutórias. Mas eu, uma idosa, que eu tinha vontade de saber: qual é a condição dela? Porque ela não tinha nem condição de voltar pra casa. Então também tem muitas histórias que se perderam. E que talvez ficaram até mais agravadas. E aí, a questão da água, que eu digo, ela bateu. E aí eu acho que tem dias, tinha dias de trabalho que eu senti ela batendo. Batendo aqui. De sufoco, de não ter respostas. E aí eu dizia assim: hoje a água tá batendo, tá? Que ela subiu num nível mais. Que era as pessoas que, era a narrativa deles diante do que passaram. Que eles me diziam assim: eu fiquei com as mãos pra fora, eu fiquei em cima da casa. Que era aquela coisa sem recurso. E eu dizia assim: hoje a água tá batendo, tá batendo de uma forma que tá sufocando, tá trazendo a instabilidade. E para as colegas de trabalho, quando eu aceitei o convite, todo mundo disse assim: “Mas que loucura! Que loucura tu tá fazendo! Tu vai sair de um trabalho que tá estável, tu tem domínio”, enfim... E eu disse assim: “Gente, a água tá vindo pra pedir mudanças pra todos nós. Ela tá mexendo com todo mundo, mas no sentido de quê? Vamos mexer, mas vamos contribuir e vamos fazer essa limpeza que é necessário ser feita. Ela veio, trouxe, baixou, começa a aparecer toda essa sujeira toda, aí vão para o rescaldo, vão para a limpeza, vamos realmente contribuir”. Então, eu me sinto grata de ter feito parte desse processo, porque é um processo histórico. Sem muito por onde ir, sem muita orientação, mas hoje eu vejo que dentro da política de assistência se traz uma outra conversa de acordo com as situações climáticas, que é isso. Hoje a gente teve, aqui a gente teve a água, mas teve desmoronamento na serra. Daqui a pouco vai ser queimadas. É o vento. Agora mesmo teve vento a não sei quantos quilômetros que o interior se perdeu algumas casas. Até teve uma situação com dois mortos. Então, vejo que ela veio com esse movimento aqui no Rio Grande do Sul. Mas ela veio com essa coisa assim, e eu me sinto realmente bem privilegiada de ter sido convidada, de ter sido desafiada a contribuir profissionalmente com essa temática em prol do ser humano. Eu ganhei muito enquanto pessoa. Quando a gente fala ganhar, não é o ganhar financeiro. É o ganhar enquanto pessoa. Acho que a gente... me sinto mais potente diante de ter vivenciado situações que as pessoas conseguiram superar. Então, de tudo que eles viveram, de todas as coisas que eu pude circular e ver, não tem o que a gente não possa. Não tem o que a gente não possa superar. Dói. Dói muito. Se perde muito. Mas se ressignifica. Eu acho que essas pessoas que passaram pela calamidade vão precisar se ressignificar a partir das suas histórias. Porque não são mais as mesmas antes da calamidade, perante a calamidade e pós-calamidade. Porque eu não vou ser. E elas acreditam que não. E aí a gente pega pessoas que também é. Pessoas que trabalhavam com pessoas da calamidade e que também foram atingidas na calamidade, e que já trabalhavam com isso. E aí eu vou lembrar de uma grande irmã e amiga que ela fala assim, e ela passou, e ela trabalha na região das ilhas, e ela disse assim: “O que eu vou reclamar se as pessoas que eu trabalho passam isso todo ano? Sim, tem a dor, tem a dor. Mas diante do que eles viveram e vivem constantemente, o que eu passei, minha família está bem”. Então a gente vai se recuperar. É poder ver dentro do rescaldo da calamidade o que a gente vai extrair. O que a gente vai extrair do rescaldo da calamidade. Por quê? Vem a sujeira, e o que a gente faz? Tem coisa ali que não é lixo. Tá sujo. Dá pra aproveitar? Tem muita coisa que se aproveita do lixo. Aí a gente vai entrar na questão ambiental, que também tem a ver com a questão climática e ambiental, que do lixo se faz luxo, tem coisas potentes. Então, assim como tem ali, eu acho que é isso, as pessoas também vão descobrir as suas potencialidades vindo da calamidade. São novas descobertas. Eu conheço pessoas que costuravam e não estão costurando mais, porque perderam seus equipamentos. Poderiam ter voltado? Algumas pessoas voltaram. Não, se permitiu fazer outra coisa. Até que a vida peça mudança novamente. E eu acho que comigo também foi assim. A vida me pediu mudança e eu fui. Terminou com a Calamidade, o que eu faço? Tive que ‘ir pra pista’, como eu digo. Procurar trabalho. Por quê? E ela tá me trazendo o quê? Novas possibilidades. Estou trabalhando com pessoas, com famílias e crianças autistas. Na verdade, o trabalho é dentro da educação, município, política da educação, atendimento a crianças autistas, do ensino fundamental. Então, eu faço trabalho com as famílias. Quer dizer, essa mudança também aconteceu para mim. Que eu digo, esse movimento das águas é isso, é o movimento das águas. Ela vem, ela vai, ela vem, ela vai. E dentro desse movimento, cada um vai descobrir o seu potencial. Tem pessoas que eu conheço que voltaram para os seus estados, população nordestina, imigrantes, resolveram mudar de estado. E essa minha amiga que eu disse também. Costurava, fazia maravilhas. “Não, não quero mais”. Foi se descobrindo um novo fazer.
P - Quanto tempo você ficou atendendo?
R - Seis meses. Foram seis meses esse período da Calamidade.
P - Posso dizer uma última pergunta em relação a isso? Se você consegue acessar a paisagem desse momento, assim, os cheiros, as cores, esse entorno, o que tinha, as mudanças nessa paisagem, os sons.
R - Era tão caótico, guria. Teve um dia que eu saí e fui no bairro Sarandi. Logo que a água baixou, eu peguei e passei no bairro. Acho que eu fui encontrar a equipe que estava numa ação. Porque aí eu ficava circulando. E quando eu entrei, e é um lugar que eu costumo ir, eu entrei na rua principal. É como se eu tivesse entrado em uma outra dimensão. Foi como se eu tivesse levado um soco no peito. Um cheiro muito forte. Daquele lodo, daquela... E as pessoas... E como se fosse um campo de guerra. As pessoas tirando as coisas de dentro de casa e botando na rua, na avenida. Então era um cenário de guerra, porque eram móveis quebrados, as pessoas não tinham onde botar, não tinha coleta ainda. Mas é uma sensação de guerra. De guerra. Isso quando as águas baixaram no Sarandi e também quando tu chegava, às vezes, nos abrigos. Campo de concentração. Porque aí cada um fazia suas barraquinhas. Às vezes muito juntinhas. Não traziam sensações boas. Eram bem inseguras. Reportava essa insegurança do momento, essa insegurança do momento. Teve um abrigo que, um dia, nós estávamos atendendo, um espaço bem grande, e que eu me dei conta de que a equipe poderia estar em risco porque eles estavam fazendo as avaliações para ver quem teria critério para ir para um determinado abrigo. Eu não sei se eu devo falar assim, mas era o abrigo... Eu vou falar porque... Teve esse dia, então, que nós estávamos em um grande abrigo fazendo as avaliações com critérios para ver quem são as famílias que teriam o perfil para ir para um abrigo, um centro humanitário, que era esse espaço que tinha feito essa parceria com o governo do estado, que estava gerenciado pela OIM. Então, tinha uma expectativa muito grande das famílias, que acreditavam que quem fosse para este espaço ia ganhar moradia, ia ganhar sua casa. E os técnicos estavam fazendo essas avaliações no espaço onde tinham umas trezentas e poucas pessoas. Então, nesse contexto, a gente encontra as mais variadas formas de estratégia de sobrevivência das pessoas. Elas vão omitir dados, elas vão tentar garantir o que necessitam. Então, tu via famílias que tinham feito um cadastro no início, que era uma composição familiar, e, daqui a pouco, já não era mais uma composição familiar. “Ah, eu me separei.” Então ali tu casava e se separava no mesmo tempo. Era uma dinamicidade nas relações que se estabeleciam ali nesses espaços. E aí esse espaço era um espaço onde às vezes a gente não tinha nem por onde circular. E sabia-se que tinha facções, que é isso, o sistema, de alguma forma, ele vai encurralando as pessoas e as pessoas vão se arranjando com suas estratégias. “Bom, se aqui tá mais tranquilo pra mim fazer o meu comércio, eu vou estar lá dentro.” E tinha. E a gente começou, os técnicos começaram, então, a fazer essas avaliações, que era só avaliação, um questionário que tinha que responder pra estar dentro dos critérios, pra gente poder fazer encaminhamento pra secretaria. E ali os técnicos, em alguns momentos, sofreram um processo de violência, de pressão psicológica, de assédio. E o assédio até de colegas. Hierarquicamente. E aí eu estava... Aquela hora parou. Acho que era a palavra assédio. Assédio que não me vinha. E eles... E eu me dei conta de que nós estávamos num espaço que era uma sala e que existia um corredor cheio de pequenos... de cabaninhas, barraquinhas, que eles tapavam, eles faziam com paletes e cobriam a volta com cobertor ou com lona. Então, por exemplo, eu estava ali, eu entrava naquela barraquinha, eu tinha minha cama, eu tinha as minhas coisas. Então cada um tentava deixar o espaço o mais privado possível. E começaram a bater nas paredes como forma de pressão. E a gritar. “Porque se eu não ganhar, eu vou isso. Se eu não ganhar, eu vou aquilo. Se eu não for...” E eu me dei conta, e eu digo assim: “Mas os técnicos, a gente tá correndo risco aqui, porque se eles tiverem que encurralar, eles vão encurralar.” Mas, ao mesmo tempo em que eu sei que essas coisas podem acontecer, por já estar trabalhando numa lógica de comunidade, eu já estava preocupada com a equipe. E aí eu saí, fui na frente e articulei outro espaço, liguei para a minha coordenadora e supervisão e disse assim: “Olha, lá onde nós estamos não tem condições de ficar, a gente vai ter que conseguir outro espaço.” E foram dois dias de trabalho assim. Então eram espaços pesados. Então não tinha como a gente sentir coisas boas. Quando é que a gente sentia coisas boas? Quando tu atendia uma família, ela te contava a história e a gente conseguia ver e perceber que havia uma possibilidade de mudança, que era questão temporária. De uma organização, de oportunidades, um auxílio-moradia para que ela pudesse se organizar novamente. Era nas entrelinhas que eu acho que acontecia essa sensação prazerosa, porque cheiro… não tinha. Olhar não era nada agradável. Para mim, Luciani, eu não conseguia enxergar, a não ser o ato solidário das pessoas. Porque os espaços não eram... não eram legais.
P - E aí você vai para esse outro trabalho, com toda essa bagagem, e o que você faz hoje?
R - Na verdade, eu fiquei um tempo em casa me curando.
P - Precisou?
R - Sim, diante de toda a perversidade que se teve de vivência no trabalho, das relações, que é isso. Esse assédio, essa palavra que eu falei agora, já esqueci de novo.
P - O assédio?
R - O assédio, mas eu falei há pouco. Abuso? Fugiu de novo. Na verdade, foi um trabalho sofrido, pesado. Foi um trabalho sofrido, pesado e adoecedor. Foi assim que eu encerrei a atividade no Calamidade. Eu me senti adoecida, adoecida por não ter respostas, adoecida pelas relações estabelecidas, adoecida pela relação de poder institucional com vários atravessamentos, e eu me dando conta, então, enquanto mulher negra, do racismo estrutural, de um colega teu não reconhecer e não colocar o teu nome de um documento, sendo que fazia parte da tua equipe, da equipe a qual você supervisionava, na hora de apresentar os dados que já estavam coletados, não coloca o teu nome. E eu acho que também é essa coisa da idealização, de achar que você vai estar lá na ponta, você vai estar lá em cima e vai conseguir contribuir de uma outra forma. Mas se o sistema não é o que eles querem, não adianta, tu pode trazer, tu pode propor. E o sistema público, eu vejo que enquanto ficar nesta terceirização, essa precarização, a gente fica muito à mercê. Tem ótimos profissionais na assistência, tem ótimos profissionais, tem colegas maravilhosos. Eu acho que quem trabalha dentro da assistência, da política de assistência, é porque realmente gosta e enxerga o sujeito. Porque se a gente for pelo sistema, sistema da política, não que ela está direcionada lá, não. São com as condições e realidades de cada município, o que que entende. E de recursos, os profissionais vão ter condição de trabalhar. E aí a gente vai. Às vezes a gente vê as pessoas assim: “Ah, pô, isso aqui é a Bolsa Família, enfim.” Mas é minimamente o que ele tem. Porque se ele tiver outras oportunidades, ele vai agarrar. Ele vai estar lá pra fazer acontecer. De alguma forma, isso vai despertar. Eu tenho certeza que tem pessoas que tiveram oportunidades dentro da Calamidade que talvez, se estivessem no seu território, na sua moradia, não teriam tido. Com certeza a gente pode pegar algum case de sucesso, ou mais de um, que surgiu da Calamidade. E aí eu passei por esse processo de cura, porque eu não poderia voltar para minha função anterior. Eu não poderia voltar, por questões trabalhistas, e eu precisava sobreviver.
P - Mas esse processo de cura se deu como?
R - Refletindo, terapia. Processo muito de procurar entender esse momento que eu busquei. Porque foi eu que busquei. Eu busquei. E que eu também precisava enfrentar. E de me reconhecer, realmente, sim, eu sou capaz. “Tu é capaz”. E de superar, ressignificar. E aí eu fiquei quatro meses em casa, trabalhando só com uma outra atividade enquanto assistente social e procurando essa inserção no mercado de trabalho. E foi quando surgiu agora, então, trabalhando com jovens do ensino fundamental autistas. Está sendo outro desafio. Então, é nessa lógica que eu fico pensando. Que o movimento é esse. Não ficar. E que eu estou nesse desafio. E pronta para qualquer outro que venha. Porque é isso. Acho que a vida é isso. E é difícil falar isso, porque às vezes a gente... E é uma coisa que me faz pensar na minha mãe, e que uma vez ela me disse. Quando eu vim de Santa Maria para cá, minha mãe me disse assim: “Minha filha, tá, agora tu tá indo para Porto Alegre, vê se tu para neste lugar. Não, vê se agora tu fica neste lugar.” E por muito tempo eu me questionei. Mas ela vivia uma outra realidade, que não é a mesma minha, que era ficar naquele lugar. Era estudar, trabalhar, casar, ter uma profissão e ficar eternamente no mesmo trabalho. Era pra isso que eles educavam, ter um emprego estável. Não existe mais isso. A estabilidade é emocional, ela é da gente, as buscas são nossas. Então, hoje eu estou lá e assim eu vou me descobrindo e vou me constituindo. Em todas essas passagens. Então, hoje não me preocupa mais. Entrar, fazer, contribuir. Não faz mais sentido? Vou para onde vai me fazer sentido. Não faz mais sentido aqui? Vou para onde vai me fazer sentido. Mas por um tempo foi assim. Então, quando encerro o contrato, eu disse assim: “Bom, agora eu preciso de um momento de cura”, que é isso. Os sofrimentos que trouxe, essas vivências, essas imagens, esses cheiros, né? A falta de perspectiva em alguns momentos. É esse processo de cura que eu digo. Então, eu fiquei num momento bem introspectivo mesmo. Os amigos que gostam, que eu sou festeira, eu gosto. De recolhimento. De procurar pensar assim: “E agora? Como que vai? E por onde vai, por onde não vai?” E eu acho que agora eu também estou pensando numa caminhada que me leve para alguma coisa, já para a maturidade. Que tragam coisas que vão continuar fazendo sentido para mim. Porém, de uma forma mais tranquila não vai ser, porque na assistência não é. De uma forma mais assim, que realmente eu possa estar mais alinhada na minha vida profissional com a minha vida pessoal.
P - E Lu, pensando nesses anos todos de trabalho, você consegue pensar e contar para a gente como a zona periférica, e muitas vezes negra, é atingida por essa calamidade? As diferenças nesses espaços, nesses territórios?
R - Então, eu acho que falar também um pouco do que se reflete a calamidade, não só a calamidade na questão ambiental, e também pensar um pouquinho na questão do racismo ambiental. Que é isso, né? Quem atinge, quem foi a parcela dessa população que foi atendida, que estão nessas periferias. A gente teve, a gente pode dizer assim, a gente teve públicos tradicionais sendo atingidos. A gente tem quilombos urbanos aqui, que foram atingidos. A gente tem a própria região da Zona Norte, é uma região com número expressivo de população negra e que já são negados de muitos direitos, como eu já tinha falado anteriormente, oferta de serviço, poucas ofertas de serviços. Então, pensar que essa questão que vem com a enchente, ela atende a agravar mais a condição desta população. E aí a gente vai falar de uma população que aqui nesse território da Norte não temos quilombos, mas a gente tem alguma população, sabe-se que tem população tradicionais. A gente tem um forte número de imigrantes. A minha atuação dentro da Calamidade se deu mais no contexto da Zona Norte, uma região na qual eu já atuava, já conhecia algumas coordenações de espaços, de entidades que prestam trabalho e acolhimento a famílias, crianças e adolescentes, já conhecia bem a rede de serviços da saúde, das políticas intersetoriais, assim como um todo. Mas a gente podendo pensar, então, sobre qual é o reflexo da calamidade dentro do racismo ambiental atrás do território norte. A gente tem, nesse território, existe população imigrantes, tanto venezuelanos, haitianos, senegaleses, mas de ser uma população negra que já é negado constantemente as necessidades. Falta de estrutura, saneamento, moradia. Tudo que se atravessa pela questão da negativa, perpassa também pela questão da calamidade, do racismo ambiental.
P - E aí eu vou te perguntar sobre o seu lazer. O que você gosta de fazer no seu tempo livre, sem trabalho, na vida, amigos? Você gosta de se reunir? Como é sua vida em lazer?
R - Eu gosto muito, muito, muito, muito de curtir uma praia, um sol. Gosto de viajar, de conhecer novas pessoas, culturas, saberes, de trocar conhecimento. É isso que eu gosto de fazer. Não precisa ter nada formulado. Eu saio aqui sábado de manhã, vou para a Feira da Redenção, lá eu tomo um café, daqui a pouco já estou conversando com alguém como se eu tivesse conhecido há mil anos. Então, assim, eu gosto de viajar sozinha, mas também gosto de viajar acompanhada. Mas nada com o roteiro muito certo. Não gosto de roteiro, não me coloca roteiro, não. Tem que deixar as coisas fluírem. Então, é isso, eu gosto de conhecer, eu gosto de pessoas, eu gosto de estar na comunicação. Eu gosto de uma música, de um samba, de uma cervejinha, de uma espumante. Eu gosto disso. De interação. É isso que eu gosto de estar. Me conecto muito com o público jovem. Eu acho que eu tenho uma alma jovem. Às vezes, rabugentinha. Às vezes, é necessário o meu recolhimento. Mas me conecto e aprendo. Então, eu acho que é isso. Quando eu sou referência de serviço de adolescente, como eu aprendo com eles as dinâmicas. Desse novo formato de interação social. Então, eu gosto de estar no movimento da coisa. É isso que eu gosto de fazer. E, se estiver em casa, estou com a família, gosto de estar com a família. Acho que tem que falar. Eu já disse lá no início, minha família é muito unida. E eu, Luciani, sendo hoje só eu, não tendo irmãos. É isso. Os meus primos são os meus irmãos. Então, se eu não tô com um, eu tô com outro. Se eu não tô com um, eu tô com outro. Tem as amigas que vão chegando. Tem algumas pessoas que a minha mãe também deixou de responsáveis. ‘Não deixa ela.’ Aí elas dizem assim: ‘Eu sou tua irmã por obrigação, porque a tua mãe me deixou de responsabilidade.’ Mas eram as minhas amigas que a minha mãe acolheu. Então, às vezes, quando as amigas se brigavam, a minha mãe dizia assim: ‘Guria, não briguem. São só vocês, porque a minha amiga já tinha perdido a mãe dela. São só vocês. Vocês têm que ser amigas. Você não pode brigar.’ Então, assim, entre todo esse caos que é as relações familiares, sociais, é isso. Eu gosto de ter os meus amigos próximo de mim. Embora alguns tenham lacunas. Mas, quando a gente se encontra, parece que não existiu. A vida tá longe, tá fora, mas tá perto. Porque a gente cria as referências pra quem a gente pode ligar, pra quem a gente pode se abrir de fato. Sem máscaras. E eu tenho muitas dessas pessoas. Então, assim, ó, tem sempre alguém me convidando pra alguma coisa: ‘Vem pra cá, vamos isso, vamos aquilo, vamos aquele outro.’ Porque existe essa conexão. Então, quando eu tô em casa, realmente, eu tô porque eu quero. E porque a gente precisa se reconectar. E porque tem dias que tu quer mesmo ficar do teu jeito. E aí, é isso. Eu tenho uma prima. Prima-irmã. Desde que eu vim pra Porto Alegre, a gente convive juntas. A gente se auxilia muito. Eu vim pra cá, ela tinha um bebê de um aninho e pouco. E que eu, de alguma forma, também contribuí nessa criação. Então, no último feriado, ela disse pra mim: ‘Vem almoçar.’ E eu disse: ‘Ai, não vou. Hoje eu quero ficar o dia deitada.’ E, daqui a pouco, entrou o pratinho da comidinha pra mim. Então, respeita o teu momento, mas também tô te cuidando. Então, é isso. E é o que a gente procura fazer com todos que se aproximam. Mas, claro que tem dias, como o ser humano, a gente não tá tão bem, dá as tretas, dá os bate-bocas, mas cada um se reconhece: ‘Olha...’ E vai indo. E assim é as minhas relações também. Se tiver que dizer a verdade, a gente diz. Às vezes dói. Como também me dizem. Dói. Mas é tudo por crescimento. De cada uma de nós.
P - E o Andrew você quer falar
R - Ah, o Andrew é um bebezão. Olha, não posso falar. O guri vai ficar furioso falando isso. Não, porque ele já é um homem. Não, eu acho que, assim, a gente tem que entender qual é o momento, que forma as coisas se apresentam na vida da gente. Então, eu sou uma mulher que não casei e não tive filhos. E como que eu vejo que eu desenvolvo a maternidade? Eu desenvolvo a maternidade de diversas formas. Eu pude acompanhar o crescimento do filho da minha prima, que me reconhece como uma figura também de mãe. Eu tenho vários afilhados que amo, todos eles, uns já adultos, com as suas vidas, encaminhados. Amo todos igualmente. No meu trabalho, acho que eu também exerço a maternidade em alguns momentos. Então, dizem assim: ‘Tu não quis ter filhos.’ Eu digo: ‘Eu não tive filhos biológicos.’ Quando a gente acolhe alguma situação de algum familiar, de algum amigo, com compreensão, com zelo, com cuidado, também estou exercendo a minha maternidade. Então, isso é uma questão que, pra mim, não ter problema, não ter tido filhos. A gente ressignifica. Eu tinha falado na maternidade, mas eu queria falar outra coisa também dessa questão de ressignificar. E eu acho que isso também a minha mãe pôde viver um pouco com o Andrew, porque ela foi avó. Ele reconhece a minha mãe como avó. E que a minha mãe não teve essa oportunidade de ter os netos, mas ela teve. E não só ele, outras crianças também que passavam pela casa. Mas ele, especificamente, ficou um tempo morando com ela. É a gente saber realmente olhar pro que se tem. Porque, senão, a gente fica muito olhando pro outro e não reconhece o que de fato a gente tem.
P - Quais são seus sonhos?
R - Sonhos? E aí, falar de sonhos... Desejos. Desejos. Não sei, sonho é tão forte, parece que é alguma coisa que tu tem é que batalhar, batalhar, batalhar, batalhar. Prefiro acreditar em desejos. Pra mim, pessoalmente? Eu acho que eu tenho alguns desejos. Ah, eles não são ambiciosos. Eu não tenho, acho que eu não nasci com aquela ambição, aquela coisa assim. Já tive no passado: ‘Ai, eu quero ter tal coisa, eu quero isso, eu quero aquilo.’ Mas talvez não vá fazer sentido, não vejo que faça sentido mais pra mim. Então, tipo assim, ó, a minha casinha atende à minha necessidade, e a gente vai pra questão do consumismo. Eu acho que já fui muito mais consumista, não que eu não seja ainda, mas acho que eu tenho um outro tipo de consumo, que é um consumo mais consciente, que é um consumo que realmente eu vou acabar, porque realmente eu vou fazer uso. Mas sonhos, sonhos, sonhos? Bom, pessoalmente. Profissionalmente, é fazer o mestrado. Eu quero poder fazer um mestrado. Penso, em alguns momentos, já fazer uma migração para trabalhar com saúde mental. Isso profissionalmente. Acho que algumas coisas vêm aguçando, e trabalhar saúde mental, especificamente da população negra. Neste viés de saúde da população negra. Pessoal, profissional. Pessoal é isso: ter saúde. Saúde e paz. Saúde, paz, tranquilidade, discernimento para poder dar continuidade nesses anseios que vão trazendo. Que não é o sonho, sonho, sonho. São esses desejos. Por quê? É, sim, uma mulher que quer acessar alguns espaços que eu ainda não consegui. Por exemplo, agora mesmo, ano que vem, eu vou fazer 55 anos. Tenho o desejo de fazer uma viagem internacional. Mas num lugar que realmente me conecte com a minha ancestralidade. E aí eu não quero fazer isso sozinha, eu quero poder fazer com pessoas que fazem sentido pra mim. Esta é uma viagem que, pra mim, ela não vai ser só pra mim. Vai ser uma viagem de conexão. Então, eu quero poder fazer com pessoas da minha família, com amigos. Então, eu tenho falado para alguns amigos que eu gostaria de me dar de aniversário. E é isso. Eu acho que não são grandes sonhos, sonhos, sonhos. Falar de sonhos, eu acho que, assim, são pequenas vontades, pequenas coisas que a gente vai fazendo e que vai dando alento no coração, vai fazendo aquele afago: que legal, consegui fazer isso. Eu consegui trocar meu apartamento por um apartamentinho maior, com uma sacadinha. Mas que eu possa também deixar essa perspectiva de mundo mais... não é essa a palavra... essa perspectiva do mundo mais... que eu possa deixar essa perspectiva para esse mundo mais igual, igualitário. São pequenos desejos e eles vão se costurando com toda a minha vida. De alguma forma, vai me norteando: por onde eu devo permear? Por onde eu devo ir? E aí me faz lembrar de um professor meu, muito marcante da faculdade. Então, quando eu faço o meu TCC, que era sobre famílias e comunidade, e venho de uma dureza de uma jornada de trabalho e faculdade. E naquela época, a gente tendo que trabalhar e estudar, a gente sabe que não é fácil. Então, algumas coisas, entregando trabalho atrasado, te culpando porque tu sabe que poderia fazer melhor e não conseguia. E, no dia que eu fiz a defesa do meu TCC, esse professor disse: ‘Vocês ainda vão ouvir falar dessa mulher.’ E eu vejo o quanto ele me via, o quanto esse professor me via, e que eu só estou me vendo agora. Depois de 25 anos, tem coisas que eu ainda estou me vendo. E é isso. Então, toda essa minha trajetória de vida, eu acredito que qualquer ser humano pode fazer. Esses pequenos sonhos, eles podem se realizar. E a grandeza quem dá somos nós. Ele pode ser muito pequeno para mim, mas para ti ele é valioso, ele é enorme. Então... ‘Ah, o que é um apartamento pequenininho?’ Para mim foi uma grande conquista. ‘O que é o trabalho tal? O que é a realização profissional de tu pegar um certificado?’ Cada passo precisa ser vibrado e celebrado. Cada passo da vida, vibrado e celebrado. Pode não ter sido planejado, mas a gente tem que vibrar. Algumas coisas a gente planeja, outras, elas vão acontecendo. Elas vão acontecendo no sentido de que a gente precisa aproveitar as oportunidades. Então, o que as pessoas precisam é de oportunidades. Se eu for falar das famílias que eu trabalho, muitas delas precisam de oportunidades concretas. Oportunidades. E elas vão dar sua resposta. Elas vão dar.
P - Como foi para você sentar aqui no seu sofá, deixar a gente entrar na sua casa e se lembrar de tudo isso, compartilhar algumas passagens da sua vida com a gente?
R - Desafiante. Muito desafiante. Porque é olhar para a tua história e se dar conta de que algumas coisas a gente não lembra. Que algumas coisas a gente bloqueia, mas que a gente também tem uma história bem significativa, bem bonita. E é isso, é se permitir as fragilidades, porque aqui estar com vocês também mexe com as minhas fragilidades. É me despir. E tem espaços que a gente consegue se blindar, se proteger. E estar diante de vocês, pessoas que eu não conhecia, é me despir. E para um trabalho que é me despir para a população geral, para a humanidade. E confesso que eu não sei como, mas está acontecendo. Porque é também eu enxergar essa mulher que é potente, mas que tem medo. Tem medo. Abraça o desafio, vai lá e faz, mas tem medo. E uma das coisas que eu sempre digo: ‘Eu prefiro ir com medo do que eu não saber lidar com o que eu não fiz.’ Então, eu prefiro fazer, passar e vencer o medo, do que saber que eu perdi uma oportunidade. Então, está sendo uma oportunidade que eu resolvi abraçar. E que eu sei que vai me preparar para o que virá a seguinte.
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