Projeto Vidas, Vozes e saberem em um mundo em chamas
Entrevista de Márcia Morais Molina
Entrevistada por Luiza Gallo
Porto Alegre, 03 de julho de 2025
Código PCSH_HV1481
Revisão: Nataniel Torres
P - Márcia, primeiro eu quero te agradecer por nos receber aqui, onde você trabalha, aqui em Porto Alegre, e topar contar um pouquinho da sua história pra gente. Eu queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Tá certo. Acho que, em primeiro lugar, eu que agradeço também o contato. A gente fica muito feliz aqui na Unisinos de poder compartilhar essa história. Eu sou Márcia Morais Molina. Sou nascida no interior do estado do Rio Grande do Sul, em São Luiz Gonzaga, no dia 1º de novembro de 1975. E esse ano, então, completo 50 anos. Estou chegando na primeira metade de um centenário. Muitas histórias, muitas experiências.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Mais ou menos. Foi meio tenso, porque, como eu disse, faz quase 50 anos. Meus pais, eles eram recém-casados. Eles moravam numa outra cidade aqui no Rio Grande do Sul, chamada Quaraí. Meu pai foi militar por muitos anos e eles quiseram, então, que eu nascesse na cidade deles. Então, eles foram pra lá pra eu nascer. E parece que eu estava enrolada no cordão umbilical, e aí foi bem tenso meu nascimento. E o hospital, assim, há uns 50 anos atrás, não era um hospital equipado, então disse que foi bem tenso, mas deu tudo certo. Então, estamos aqui.
P - E qual é a história do seu nome? Tem alguma história por trás?
R - A história do meu nome não tem exatamente um nome por trás, mas minha mãe compartilhou comigo quando eu estava grávida, que se eu fosse menino, eu me chamaria Eduardo. E aí, quando eu descobri que eu estava grávida de um menino, eu coloquei o nome de Eduardo no meu filho.
P - Que lindo! E como que você descreveria os seus pais? O jeitinho deles pensando na infância?
R - A primeira...
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Entrevista de Márcia Morais Molina
Entrevistada por Luiza Gallo
Porto Alegre, 03 de julho de 2025
Código PCSH_HV1481
Revisão: Nataniel Torres
P - Márcia, primeiro eu quero te agradecer por nos receber aqui, onde você trabalha, aqui em Porto Alegre, e topar contar um pouquinho da sua história pra gente. Eu queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Tá certo. Acho que, em primeiro lugar, eu que agradeço também o contato. A gente fica muito feliz aqui na Unisinos de poder compartilhar essa história. Eu sou Márcia Morais Molina. Sou nascida no interior do estado do Rio Grande do Sul, em São Luiz Gonzaga, no dia 1º de novembro de 1975. E esse ano, então, completo 50 anos. Estou chegando na primeira metade de um centenário. Muitas histórias, muitas experiências.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Mais ou menos. Foi meio tenso, porque, como eu disse, faz quase 50 anos. Meus pais, eles eram recém-casados. Eles moravam numa outra cidade aqui no Rio Grande do Sul, chamada Quaraí. Meu pai foi militar por muitos anos e eles quiseram, então, que eu nascesse na cidade deles. Então, eles foram pra lá pra eu nascer. E parece que eu estava enrolada no cordão umbilical, e aí foi bem tenso meu nascimento. E o hospital, assim, há uns 50 anos atrás, não era um hospital equipado, então disse que foi bem tenso, mas deu tudo certo. Então, estamos aqui.
P - E qual é a história do seu nome? Tem alguma história por trás?
R - A história do meu nome não tem exatamente um nome por trás, mas minha mãe compartilhou comigo quando eu estava grávida, que se eu fosse menino, eu me chamaria Eduardo. E aí, quando eu descobri que eu estava grávida de um menino, eu coloquei o nome de Eduardo no meu filho.
P - Que lindo! E como que você descreveria os seus pais? O jeitinho deles pensando na infância?
R - A primeira coisa que eu, quando penso nos meus pais, é que eu tenho eles como um exemplo de casal, assim, incrível. Eles estão casados, fizeram 50 anos de casados esse ano. E eles são aquele tipo de pessoas que eles vivem a vida, eles aproveitam, eles viajam muito, são muito ativos. Meu pai é um senhor de 75 anos que corre, que a minha mãe sai, participa de cursos, ela quase se formou em história da arte, então ela é muito ligada à parte artística. Eu tenho certeza que foi ela que me passou toda essa carga, referências, esse gosto pela arte desde muito cedo. Ela me incentivou a ir a teatros, a museus, a assistir concertos, desde cedo. A minha avó era uma pianista lá de São Luiz Gonzaga que ensinava a cidade toda. Ela participou da inauguração da rádio da cidade, da primeira rádio São Luís, lá minha avó entrou tocando o hino nacional. Então, essa é a minha família. Pelo lado da minha mãe, sempre teve muita ligação com a arte, com todas as formas de arte. A minha mãe também, desde pequenininhos, nos fotografava, nos dirigia. Então, tenho certeza que eu peguei isso dela. O meu pai já é um homem mais sério. Minha mãe, digamos, eles são complementares um ao outro. A minha mãe, o meu pai, então, é uma pessoa mais séria, mas assim, é aquele sério por fora, mas que por dentro é a manteiga derretida. É uma pessoa, assim, já mais razão e a minha mãe mais coração, mas eles se complementam e eu vejo que um, assim, não consegue ver muito distante do outro. Eles são um casalzinho que fazem tudo junto, viajam, estão sempre viajando, estão sempre mandando, ontem mesmo eu recebi ele no grupo da família, eles mandando um videozinho assim: “Olha nosso próximo destino, já estamos estudando o próximo destino”. Então eu acho lindo, eles sempre incentivam muito a gente a não focar em ter coisas materiais e sim em experiências, então viagens, conhecer novas culturas, se relacionar com pessoas diferentes, aprender novas línguas, é isso. A gente tem bem forte isso na família como um todo.
P - E como eles se conheceram? Você sabe essa história?
R - É, eles se conheceram na cidade deles. Eles têm três anos de diferença. Eles se conheceram nos bailinhos, nas festas da cidade, começaram a namorar. E o meu pai, com 16 anos, ele teve que ir embora da cidade, porque ele passou lá no concurso, ele foi pra Campinas, seguiu a carreira militar. E eles namoraram por sete anos, indo e voltando. Então, meu pai saiu de Campinas, foi pra Resende. E aí, quando ele se formou na academia militar das Agulhas Negras, eles casaram e vieram morar, então, em Quaraí. E aí, em seguida, eu já nasci. Eu sou a filha mais velha.
P - E você tem quantos irmãos, irmãs?
R - Eu tenho mais um irmão do meio, o Leonardo, e eu tenho uma irmã caçula, a Letícia.
P - E como é a relação com eles?
R - Maravilhosa também. A única pena é que a minha irmã mora em São Paulo, meu irmão mora em Gramado, então a gente está um pouco distante. Mas é muito boa, a gente cresceu juntos viajando por todo o Brasil, até fora do Brasil a gente morou com a minha família, com o meu pai, por conta do trabalho dele. E eu acho que isso uniu muito a gente, porque a gente ficava no máximo um, dois anos numa cidade e já tinha que mudar pra outra. Então, a gente tem, digamos assim, essa dor de não ter crescido num lugar, de não ter feito aqueles amigos de infância, mas ao mesmo tempo a gente tem, os nossos amigos são os irmãos, então a gente se uniu muito. E cresceu junto, viajando e seguindo a família. Depois a gente acabou cada um indo para o seu caminho.
P - E era uma casa musical a sua?
R - Nossa! Muito musical.
P - O que vocês ouviam?
R - A minha mãe é muito eclética. É muito eclética. Mas a bronca do meu pai com a minha mãe é que ela coloca a música muito alta. Então, assim, a gente chega no prédio dela, onde ela mora hoje, e às vezes eu escuto de longe, assim, e eu falo: “Nossa, minha mãe está exagerando um pouco”, porque ela escuta tudo. É do dia, mas ela escuta muita música clássica, muita MPB. Ela recentemente fez um curso, inclusive, sobre história da música, então ela estava fazendo todo um... aprendendo ali, questões ligadas à música, daí eu não sei te dizer com mais detalhes, mas ela é muito musical.
P - E como que a história da cidade onde você nasceu, se você puder contar um pouquinho como foi esse momento, a sua chegada nessa família, em que momento eles estavam?
R - Bom, eles eram recém-casados, eu não cheguei nunca a morar na cidade que eu nasci, eu só realmente nasci ali, 15 dias depois eu já estava de volta para essa outra cidade que eles moravam. Mas a minha família, vô, primos, tios, moravam todos na mesma cidade, uma cidadezinha bem pequena do interior e que eu tinha os dois lados da família ali. Como o meu pai se mudava muito, eles, a minha mãe e o meu pai decidiram que todos os natais, ano novo, a gente ia passar com a família, então a gente estava às vezes morando em Brasília. E aí a gente descia de carro com os três filhos. Eram três dias de viagem parando até chegar em São Luiz Gonzaga para passar Natal, para passar Ano Novo com os primos. Era uma festa, porque ficava todo mundo meio que junto na casa da minha avó. Doze netos na época. Mas era uma delícia, a gente brincava meio que todo mundo junto. E no interior, assim, com muita liberdade, muita tranquilidade. Era um momento até que eu relaxava muito, porque como eu sempre estava vindo de cidades grandes, Rio de Janeiro, Brasília, ali a gente tinha aquela liberdade que a cidade grande não dá pra gente, então era muito bom. E aí eu fiquei assim, a gente teve essa vida até os meus 17 anos, que daí depois meus avós adoeceram, faleceram, e a gente perdeu um pouco desse vínculo, eu acabo vendo os meus tios, meus primos, mas até quando eles vêm para a capital, que daí a gente se encontra, no final de ano, geralmente se encontra na praia ou aqui na capital, muito pouco hoje em dia eu vou até a minha cidade, justamente porque eu perdi um pouco desse vínculo, mas eu não perdi vínculo familiar, eu tenho grupo de WhatsApp com meus primos, por exemplo, com esses 12, que agora até tem mais, chegaram outros depois, mas essa leva meio que da mesma idade, então a gente tem contato, a gente acompanha muito o crescimento dos filhos dos nossos primos, a gente gosta de parabenizar quando é aniversário de um, de outro. Aí esses dias meu filho quebrou o dedo, aí coloquei lá a foto dele com o dedinho quebrado, então a gente compartilha todos os momentos, aí o outro conquistou uma coisa lá no torneio de futebol. Então a gente gosta muito de estar próximo de uma outra maneira hoje, que não é tão física, mas é conectado pelos grupos, pela internet, pelas redes sociais.
P - E lembrando na sua infância, assim, e acho que como você foi falando, muitos lugares, a gente vai passar por alguns deles, mas quando vocês voltavam para São Luiz Gonzaga, como que era o entorno, o bairro, vocês brincavam na rua, como que era essa paisagem?
R - A gente saía de uma cidade de carro. A grande maioria das nossas viagens eram de carro. Era uma aventura. A gente, inclusive a minha mãe e meu pai, eles gostavam de mostrar. “A gente tá saindo do Cerrado, agora a gente tá entrando no Sudeste. Aqui é Minas Gerais, aqui é São Paulo”. E aí começavam a trazer as coisas típicas, daquela região, daquela paisagem. Até mesmo de comida, assim. A gente ia descendo. “Agora a gente tá no Paraná”. E assim a gente ia. E quando a gente chegava em São Luiz Gonzaga, bom, São Luiz Gonzaga é terra vermelha, então a gente ficava um bom tempo, assim, para depois tirar do pé aquela terra que impregna no tênis branco, roupa clara, assim, ela pega uma terra vermelha que é característica da região. A casa da minha avó é uma casa muito... Ainda tenho um tio que mora na casa. Então é uma casa muito grande. Conseguia abrigar todos os meus outros tios. Nem todos moravam em Santos Gonzaga, mas em cidades. Depois, quando eles casaram, foram morar em cidades próximas. Aí na época do Natal, Ano Novo, ficava todo mundo ali. Eram duas casas, são ainda duas casas, uma do lado da outra, com um pátio, assim, enorme, com árvores, até galinheiro uma época tinha. Eu me lembro, o meu vô, ele era fazendeiro, então, às vezes ele trazia ovelhinhas, coisinhas da fazenda, assim, pra casa. Então, a gente também tinha muito costume de ir na fazenda. A fazenda fica na área rural ali, numa casa centenária de pedra. A gente ficava lá, assim. Era outro mundo. Porque a gente vinha de uma cidade completamente diferente, grande, para esse mundo com contato com natureza, com plantação, com criação de animais. Então, a gente aproveitava muito. Até tenho muita saudade desse tempo, porque a gente vai tomando o rumo da vida e acaba. Tem coisas que ficam na infância e deixam saudade.
P - Tem algum cheiro específico dessa época?
R - Aqui a gente tem uma fruta que vocês chamam de tangerina, que é a bergamota. E meu vô tinha plantação de bergamota, laranja, e uma das coisas que eu mais gostava de comer, parecia que tinha um gostinho diferente. Era comer uma laranja do pé, eu achava muito bonito. A minha irmã uma vez até questionou o meu pai: “Mas a laranja nasce assim na árvore?” Porque ela só via no supermercado. Então era muito legal pegar e colher do pé, comer ali junto com a família. Cheirinho de chimarrão, porque aqui a gente tem um costume maior. Meus pais sempre tiveram esse costume. Onde eles moravam, eles tinham o hábito do chimarrão, mas assim, não era uma coisa como aqui no Rio Grande do Sul, é sagrado, quem mora aqui tem o hábito, é quase que um hábito diário, a pessoa acorda já, meio da manhã já faz, então na família, a gente ficava mais na família da minha avó e do meu avô materno. E lá era direto chimarrão. A minha avó também fazia pãezinhos, coisinhas muito caseiras que só ela sabia fazer. A gente lamenta hoje que ninguém ficou com a receita de tal biscoitinho e coisinhas que ela fazia. Volta e meia a gente fala. Então esses cheirinhos de casa de vó que me lembram são as comidinhas, são as frutinhas colhidas, trazidas lá da fazenda. E churrasco, que é uma coisa também muito típica nossa aqui. Acho que os melhores churrascos que eu já comi na minha vida também são desse tempo.
P - E Sete Povos, o que é essa história?
R - Sete Povos das Missões são sete cidades que compõem essa região que é a região missioneira. Então tem ali as ruínas de São Miguel que fazem parte do patrimônio histórico. É uma região que foi colonizada. A gente tinha ali muitos jesuítas que colonizaram essa região. E acabou, então, se tornando uma região bem importante. Ela faz parte desse patrimônio. São sete cidades que formam os sete povos das missões. E uma delas é São Luiz Gonzaga.
P - E tem alguma característica específica dessa cidade? Algum costume, hábito?
R - Tem uma característica que é uma espécie de uma cruz que é dupla. A gente imagina a cruz, ela é aquela parte maior e tem uma segunda partezinha vertical, horizontal também menorzinha. Onde tem uma das cidades dos sete povos tem essa cruz. Esses dias eu fui num estabelecimento aqui em Porto Alegre, fui pagar e olhei a caixa e tinha essa cruz. Aí perguntei pra ela: “De onde que tu és? Porque eu sou dos Sete Povos e te reconheci pela cruz”. Aí ela disse: “Sou de São Luiz Gonzaga”. Falei: “Eu também”. Então a gente reconhece, às vezes as pessoas usam como pingente, tem na sua casa a cruz.
P - E o que esse símbolo representa?
R - É essa colonização mesmo jesuíta que aconteceu nessa região.
P - E brincadeiras de infância? Vocês brincavam?
R - Muito, muito, muito. Brincadeira mesmo. De correr… A gente gostava muito de ir pra parte de trás da casa da minha avó, mas também, assim, como eram muitas crianças, a gente... Depois do almoço, assim, meu avô colocava todo mundo dentro de uma caçamba que ele tinha lá de um carro e levava a gente para um clube. E aí deixava a gente brincar lá a tarde inteira. Eu acho que para eles poderem ter um momento de descanso, muita gritaria, muita criança junto. Então a gente ficava muito também, além da casa, a gente gostava muito de ir para o clube, que tinha piscina. Daí a gente ficava muito também no clube. Voltava do clube, minha avó tinha feito lá pastel, torrada, que a gente chama aqui no Rio Grande do Sul o misto quente de torrada. Então, a gente fazia aquele lanche, aí todo mundo tomava banho, aí todo mundo já estava cansado para o outro dia ser mais ou menos a mesma coisa. Mas muita brincadeira de rua, muita brincadeira de rua: amarelinha, pique-pega. A gente brincava muito com giz no chão. Eu não me lembro da gente ficar sentado dentro de casa sem fazer nada. A gente estava sempre fazendo alguma coisa na rua. Acho que só quando chovia mesmo que a gente ficava mais dentro de casa. Mas, assim, também inventando coisas. Muito difícil. Era uma infância, assim, que hoje em dia até se perdeu muito. Que são essas brincadeiras na rua.
P - E como foi o desenrolar dessas cidades que vocês foram andando?
R - Olha, Luíza, assim, quando a gente saiu de Quaraí, a gente foi para o Rio de Janeiro, para o interior, para Resende. Eu vou tentar me lembrar desse percurso. De Resende, se eu não me engano, a gente foi para o Paraná, para uma cidade do interior. Depois dessa cidade, a gente voltamos pra Resende. Essa foi a minha primeira infância, assim. E de Resende, fomos pro Rio, capital. Daí, eu tô pensando assim, tô tentando lembrar pelas escolas. Então, primeiro e segundo ano eu fiz na capital, no Rio de Janeiro. O terceiro ano...
P - Do colegial?
R - É o primeiro ano do primeiro grau, na época que era. Na verdade, eu fiz o primeiro ano e o segundo ano só metade, porque a outra metade eu fiz em Brasília. Aí voltamos para o Rio de Janeiro, terceiro ano no Rio de Janeiro. Quarto e quinto ano, quarta e quinta série, foi em Uruguaiana, que é aqui no interior do Rio Grande do Sul. Depois a gente voltou para Brasília, foi para o Rio de novo. Aí eu estava adolescente, a gente morou ali na Urca, na Praia Vermelha. Ali foram momentos que eu tive da minha vida maravilhosos. E aí viemos para o Rio Grande do Sul. Do Rio Grande do Sul, a gente veio para Santo Ângelo, que é uma cidade que faz parte dos Sete Povos, que é do lado de São Luiz Gonzaga. A gente veio justamente para ter esse contato com a família, mas a gente ficou menos de um ano ali. E aí meu pai veio pra Porto Alegre, de Porto Alegre de voltar. Eles voltaram pra Brasília, eu fiquei morando sozinha aqui, já tava em época de universidade. E aí, de Brasília, meu pai foi pros Estados Unidos. E aí eu fui junto. Daí eu quis aproveitar a oportunidade de conhecer um país novo, ter uma vivência fora do Brasil. Eles voltaram pra Brasília e eu voltei pra Porto Alegre. E daqui eu não saí mais. Daqui eu tô desde que eu voltei, então, dos Estados Unidos.
P - Caramba! É bastante.
R - Não sei se eu falei certo, porque eu posso ter me perdido. É muita mudança, muita andança.
P - E como que era isso, assim? Às vezes, quando você se encontrava nesse local, imagino que estava saindo de novo.
R - Tem dois lados, tem dois lados. Tem o lado bom, que é sempre uma festa chegar num lugar novo, conhecer a cultura daquele lugar. É sempre tudo uma novidade. Agora tem o lado ruim, que é deixar as amizades. Algumas amizades até acompanhavam a gente. O pai era colega do outro, aí a gente era amigo daquela pessoa e essa pessoa mudava com a gente para a mesma cidade, mas às vezes a gente ia e tinha que começar tudo de novo. Tem esse lado positivo, que é um lado que abre a cabeça da gente, são muitas paisagens, muitas coisas que vão vindo assim e vão te trazendo referências diferentes. Eu tenho muita facilidade de me relacionar com as pessoas, justamente porque cada vez que eu tive que me mudar, eu tive que começar tudo de novo e tive que também exercitar um pouco daquele desapego, inclusive material, porque a gente tinha que se mudar para outro lugar e não dava para levar tudo. Então, algumas coisas eu consegui manter. Minha mãe diz: “Eu não acredito que tu tenha isso ainda”. Eu digo: “Eu consegui botar dentro de um bauzinho e levar comigo”, mas muita coisa a gente teve que ir deixando também. Então, para mim essa coisa de memória, de valorizar isso é muito forte. Muito forte, principalmente a parte das fotografias, que essa sim a gente conseguiu sempre carregar com a gente, que nos remetem a esses lugares diferentes, essas paisagens diferentes, aquelas experiências que a gente teve naquele lugar.
P - Teve algum objeto, alguma coisinha que você sempre levou?
R - Eu tenho um objeto que eu tenho desde os meus 12 anos, que eu ganhei de uma dessas tias, que era esposa de um colega do meu pai, que ela me presenteou no meu aniversário lá em Brasília. E eu me lembro que ela disse pra mim, muitos me chamaram de Marcinha, então ela disse: “Marcinha, isso aqui é porque tu tá ficando mocinha”. E é um porta-jóias, e eu tenho ele até hoje. E esses dias eu mandei foto pra ela, eu falei: “Olha aqui, tia, eu tenho o teu porta-jóias que tu me deu até hoje”. Tava lá em Brasília, a gente já andou por tudo que é lugar. E ele tá intacto. Ele é de porcelana, ele é um bibelô, assim, é lindo.
P - Uau!
R - Esse aí eu consegui trazer. E, claro, coisinhas que eu ganhei da minha avó, bijuterias, coisinhas mais objetos. Eu acho que, tirando esse, o mais antigo que eu tenho é esse objeto.
P - E pensando, então, na primeira infância, que escola ou que lugar, algum professor, professora que foi mais marcante para você desses lugares?
R - Luiza, eu não lembro. Professor, não. Porque cada ano era uma escola diferente. Eu lembro, sim, aí uma professora, quando eu tinha nove anos, que era professora de piano, não da escola em si, que me ensinou, então, a tocar piano. Eu nunca consegui ter um tempo suficiente com a minha avó para ela me ensinar. Eu queria muito aprender porque é uma coisa que a família inteira toca. E aí foi a tia Rosinha, lá em Uruguaiana, que eu tive essas aulas. E uma coisa que eu estava lembrando esses dias com a minha mãe, eu falei: “Lembra que eu tinha 9, 10 anos e eu ia sozinha com a vizinha, com a coleguinha, para a aula de piano?”. E não era tão pertinho, mas era tão tranquilo assim da gente caminhar na cidade. Era uma cidade... Ainda é uma cidade interior. Então deve ser ainda muito tranquilo lá, mas isso há 40 anos atrás. A gente ia na aula de piano a pé na Tia Rosinha e no final do ano tinha aqueles concertos, as audições. Então, assim, eu lembro muito dessa professora. Lembro também de um professor, assim, buscando, já estava mais adolescente no Rio de Janeiro, que ele era, ele tinha deficiência visual. Então, ele só, e ele é professor de música, sempre coisas ligadas à música são as que mais me marcaram. E ele gostava muito, dizia: “Canta pra mim, porque eu gosto de ouvir tua voz”. E ele dizia que eu tinha a voz bonita pra cantar. E eu nunca levei isso adiante. Eu tenho muita vontade hoje de fazer uma aula de canto, educar. Mas ele dizia: “Vai fazer uma aula, vai aprender a usar tua voz”, porque ele gostava muito que eu cantasse pra ele. Então, também, foi no Rio de Janeiro, professor de música.
P - E dessas cidades assim, Brasília, Rio de Janeiro, que você voltava aqui agora em Porto Alegre, Uruguaiana, o que ficou assim, tem algum lugar que foi mais, que tem recordações mais quentinhas, assim, de aconchegantes?
R - Cada lugar tem uma recordação maravilhosa. Eu sempre nutri muito carinho por todos os lugares que eu passei, até porque eu fiz boas amizades nesses lugares. Algumas eu trago até hoje para a minha vida. Quando eu penso assim: Uruguaiana, uma cidade que quando eu penso nela, eu penso numa liberdade que também a gente morava numa vila militar. E a gente tinha todo o interior da vila pra brincar. Então, a gente abria a porta dos fundos de casa e dava pra o interior dessa vila. E ali estavam todas as crianças. E eram todas as crianças de tudo que a idade misturava, brincava. Era uma loucura, era muito bom. Então, foi ali que eu me lembro que a gente subia árvore, subia até quase no telhado, de tanto que a gente aprontava. Ali a gente teve cachorro, a gente teve uma liberdade, que eu acho que eu não tive mais depois. Mesma coisa em Brasília, a gente morava, pra quem conhece Brasília a gente morava numa daquelas superquadras, então a mesma coisa, descia e já encontrava todo o pessoal ali embaixo. E era também muita gente, muita brincadeira. Ali eu já estava entrando na adolescência, então já participava de festinhas. Era todo final de semana uma festinha na casa de alguém. Aconteciam muitas festinhas, como festas juninas, coisas assim, na própria quadra, para todo mundo. Meus pais também sempre tiveram muito esse cuidado de cada lugar que a gente morou, de a gente ser sócio de um clube, para a gente ter um lugar para ir, final de semana, piscina, encontrar as pessoas, socializar, poder socializar. E acho que era uma época também que a gente socializava mais, não tinha esse negócio de ficar em casa jogando na frente de telas, era uma televisão só na casa, videocassete. Ver filme era uma coisa de final de semana, era uma coisa bem mais humanizada. E o Rio de Janeiro, quando eu fui para o Rio de Janeiro, eu morei diversas vezes lá. Numa delas eu morei na Urca, na Praia Vermelha. E a mesma coisa, descia, tinha o clube, então tu encontrava todo mundo ali. E uma das coisas que mais eu tenho carinho eram as festinhas de domingo. No final de todo o domingo, seis, sete da noite, tinha uma festinha que eu não sei porque que se chamava Pepsi. Mas era Pepsi. “Vamos pra Pepsi”, dançava passinho. Era na época da lambada, então assim, era muito bom. Era uma época assim que quando a gente lembra hoje, era muito legal. Eu ia com os meus irmãos. E cada um encontrava sua turminha ali e 10 da noite terminava, a gente voltava e passava a semana inteira só esperando pelo domingo, porque era muito legal.
P - E aí aqui em Porto Alegre você vem fazer universidade?
R - A gente morou aqui, eu cheguei a pegar os anos finais na escola aqui e aí entrei na universidade e aí meus pais, de novo, mudaram para Brasília e eu fiquei aqui, fiquei morando sozinha.
P - E como foi esse momento de escolha, de curso, essas transformações da juventude, como foi esse momento para você?
R - Eu sempre fui uma pessoa muito ligada à comunicação, então eu fiz comunicação social. Então eu passei em comunicação, fiz aqui em Porto Alegre teatro, fiz sempre essas coisas ligadas, a área da comunicação, a área das artes. E já não dava mais, já não cabia mais que eu abandonasse tudo. Nessa época, inclusive, eu já namorava meu marido, então também foi um dos fatores de eu querer ficar. Porque ia ser muito difícil, quase que praticamente mudar completamente e iniciar de novo já numa fase mais adulta. Quando tu é criança, tu é um pouquinho mais resiliente. Mas chega um momento da tua vida que tu já quer começar a criar certas raízes. Então, eu decidi ficar aqui. Eu fiquei aqui morando sozinha durante uns dois anos, até que meu pai me ligou e disse: “Olha, estamos nos mudando ano que vem para os Estados Unidos. Então, estou te fazendo convite”. O marido, que era meu namorado, e ele me deu o maior apoio, ele falou: “Vai porque vai que esse namoro não dá certo e eu não quero ser a razão de perder uma oportunidade tão legal de estudar fora”. E aí, Luiza, eu estava aqui na época cursando comunicação e eu já estava apaixonada pelas disciplinas de fotografia, de audiovisual, de cinema, já estava flertando muito com essa área. Eu não trabalhava ainda com nada disso. E quando eu cheguei nos Estados Unidos, eu fiz lá aquela prova para ser aceita lá na faculdade. E foi bem, como a gente vê no filme, receber aquela carta, você foi aprovada e tal. Aí fui lá conversar com uma pessoa que faz tua matrícula. Aí é ali que tu decide teu curso. E aí, nesse momento, eles me falaram, a gente tem um departamento aqui de fotografia. Eu falei: “É isso?” Eu quero fazer fotografia. E aí a minha irmã fez marketing, meu irmão fez relações. estudos internacionais e eu fiz fotojornalismo, moda e retrato. Tudo na área da fotografia lá. A gente morou no ano de 2000, de 2001 e 2002 na região metropolitana de Washington DC, ali na capital. E se você se der conta, peguei o 11 de setembro lá. Tavam...
P - Total?
R - Sim. A gente tava lá.
P - Como foi?
R - Muito tenso. Isso foi uma parte da nossa vida lá que foi bem complicada. Eu tava indo pra faculdade naquele momento, eu tava dentro de um ônibus.
P - Você lembra do dia?
R - Sim, completamente. Eu tinha levantado muito cedo aquele dia, porque eu era babysitter. Então, naquele dia em especial, uma das mães me chamou pra ir bem cedo pra ela sair pra fazer um exame médico. Então, eu estava lá com a menina, estava com a criança, então até me atrasei para ir para a faculdade. Então, quando ela chegou, eu peguei o ônibus e fui. E foi no ônibus que eu fiquei sabendo, porque no ônibus começou todo um burburinho de pessoas e tal. E eu me lembro do motorista, que ele ficava olhando para trás e perguntando e falando e preocupado. E aí eu comecei a me ligar nos assuntos, só que por um momento me entrou aquela negação assim do que eu estava entendendo, eu comecei a duvidar do meu inglês, porque eu comecei a ouvir os Estados Unidos estão sendo atacados, eu pensei: “Não, não é isso, eu estou entendendo errado”, mas eu vi que tinha alguma coisa que não estava muito certa. E aí, na época, a gente tinha aqueles celulares ainda da Nokia, e eu recebi uma ligação. Era o meu namorado, ele me perguntando: “Está tudo bem?”. Eu digo: “O que está acontecendo exatamente? Porque eu estou dentro de um ônibus, está tendo um alvoroço aqui dentro, eu não estou entendendo, eu só estou entendendo que os Estados Unidos estão sendo atacados”. Ele disse: Então, aconteceu isso, isso e isso. Bateu lá um avião na primeira torre e parece que já tinha batido também no Pentágono, que era onde eu morava”. Meu pai, inclusive, ouviu. Meu pai estava como se fosse um anexo militar ao Pentágono. Meu pai, com todas as outras pessoas que trabalhavam ali, eles estavam acompanhando a estação de Nova York quando eles ouviram a explosão. E daí eles viram depois todo o prédio pegando fogo. Enfim, a gente vivenciou isso muito de perto. Então, lógico, voltei para minha casa, toda a minha família foi se reunindo ali, mãe, estava todo mundo fora de casa naquele momento, foi todo mundo voltando e se reunindo de novo em casa até a gente entender o que estava acontecendo porque também assim, a gente ligava a televisão: “Ah, tem ainda não sei quantos aviões no ar, ninguém sabe para onde eles estão indo”, daqui a pouco caiu um ali pertinho na Pensilvânia que estava se dirigindo pra Washington. Então foi bem tenso e começou toda a família, todos os amigos aqui do Brasil a tentar contato com a gente pra ver se tava tudo bem. Lógico, a gente ficou bem, mas assim, em termos psicológicos, a gente ficou um tanto quanto mexido num primeiro momento, eram muitos aviões e aqueles caças, aquelas coisas americanas passando assim o tempo todo. Então a gente ficava assim… Foi um momento delicado. Eu fazia fotojornalismo na época e comecei a fotografar. Fui ali na região do Pentágono fazer fotos. Fui a Nova Iorque duas vezes. Meu pai me levou numa… Pra tirar foto lá dos escombros das torres. Depois, quando fez seis meses, eu voltei de novo pra poder... Eles fizeram uma homenagem, colocaram luzes. Então eu fui lá fotografar as luzes, as homenagens. O Marco Zero já estava limpo, então fui lá tudo fazer meio que um acompanhamento do que ficou de escombros, depois como é que ficou ali mais limpo. Nunca mais voltei a Nova York depois disso. Eu sei que tem hoje uma nova construção lá, quero muito um dia voltar e retornar a esse local. Mas foi muito marcante na minha vida. E foi aí que as coisas começaram a se direcionar para eu trabalhar com fotografia, porque daí essas fotografias, quando eu cheguei no Brasil, reverberaram bastante. Eu fiz muitas entrevistas e saiu na mídia. Volta e meia ainda me chamam para falar, para mostrar essas fotografias. E aí é ali que eu comecei a trabalhar com fotografia e nunca mais eu parei.
P - Te deu sentido ali.
R - É. Só que eu fiz fotojornalismo, essa foi uma experiência fotojornalística, mas o que mais realmente me impulsionou aqui no Brasil foi trabalhar com moda, com publicidade. Parece que dentro de um estúdio eu estou mais tranquila. A parte do fotojornalismo que eu gosto são as viagens, é ver culturas diferentes, conhecer coisas diferentes. Agora, essa coisa mais tensa que eu passei, eu não quero passar de novo, porque é muito triste a gente vendo ali muitas fotos de pessoas que estavam desaparecidas, famílias ainda procurando, anúncios. Um dos dias que eu estava lá, eles anunciavam que tinham encontrado partes de alguém, dos escombros. Aquilo ali mexe comigo. Esse tipo de coisa mexe muito comigo. Eu acho que acabei, eu mesma, criando uma coisa assim. “Fiz isso, mas agora... Vou olhar para a parte artística, uma parte mais lúdica, que é o que eu gosto, essa coisa da criatividade”. E aqui eu me sinto nesse lugar. É uma fotografia de moda, mas ela é sempre mais lúdica, mais subjetiva, não aquela fotografia comercial demais, que a intenção dela é realmente uma venda, mas é aquela fotografia que tem linguagem mais artística. É esse trabalho que realmente hoje eu faço mais, que eu me dedico.
P - Bom, você estava contando do 11 de setembro. Queria só, antes da gente voltar para o Brasil e Porto Alegre, saber como foi esses dias seguintes desse atentado, como vocês retomam a vida, se isso é possível, como foi essa experiência para você?
R - A gente vai retomando, as coisas vão sendo liberadas, mas a gente percebeu que o nível de segurança nos Estados Unidos aumentou de uma forma absurda. Qualquer viagem que a gente fosse fazer, a gente era duplamente, triplamente checado em relação às nossas coisas. Antes a gente já passava por todas as partes ali de checagem de bagagem e eu já tive momentos assim antes de entrar no avião, todo mundo aqui abre bagagem de mão, olha tudo de novo. Ficou bem, assim, absurdamente em alerta. Por conta de possíveis novos ataques. Mas fomos retomando. Eu consegui, inclusive, finalizar meu curso lá. E por conta dessas fotos, eu fui o que a gente chama aqui no Brasil de aluno laureado, recebi no meu certificado, um selo, que é aluno de honra, honor student, recebi uma carta do diretor, do reitor, dizendo que meus minhas informações, todos os meus registros ficarão sempre guardados lá naquela faculdade e tal, por conta de ter tido um bom desempenho. Então, teve um lado ruim, mas assim, em termos de carreira, foi onde eu me encontrei, onde eu realmente comecei a me desenvolver mais e que isso acabou abrindo… [intervenção]
R - Foi aí que as coisas se abriram, abriram portas, oportunidades. Eu mesma, a gente também faz esse movimento próprio, se direciona para esses lugares. E aí foi que eu comecei a trabalhar com fotografia e fui me encontrando dentro da fotografia.
P - E aí como que desenrola? Você volta para o Brasil, você ainda fica mais um ano lá.
R - Mais um ano. Tem duas coisas marcantes, que a gente chegou lá em 2000, esses ataques foram em 2001 e a gente ainda ficou mais um ano, então a gente voltou para cá em 2002. Eu peguei duas coisas bem marcantes nessa época, que eu posso dizer que foi primeiro essa questão do 11 de setembro, que a gente pegou o antes e o depois. A gente tem até como comparar como era antes e como ficou depois. Inclusive, quando eu fiz esse trabalho fotográfico, ele durou seis meses e eu coloquei exatamente isso na descrição. Eu quero pegar a essência desses seis primeiros meses porque depois a coisa vai evoluindo e vai mudando. Eu pegava muita gente na rua protestando, tinha adesivos que todo mundo colava no carro, nas suas casas, dizendo que eles eram orgulhosos de serem americanos e que eram fortes, aquela coisa toda. Tu vê a bandeira espalhada por todo o país. Muito forte isso, essa coisa patriótica. E na fotografia, eu estudei fotografia analógica aqui no Brasil. Aí eu cheguei lá, quando eu entrei nas minhas primeiras aulas, eu tinha aula de fotografia analógica, mas eu também comecei a ter aula de fotografia digital, de Photoshop. Então, assim, até minha professora de fotografia analógica, ela era minha colega de fotografia digital. Porque eu peguei também essa transição do analógico pro digital. Então foram duas coisas que eu acho que foram bem marcantes na minha vida, a transição do analógico, eu gosto de contar muito isso meus alunos, eles adoram, eu digo, gente eu peguei a transição, eu me lembro que era interessante, em algumas disciplinas a gente tinha que revelar, inclusive todas essas fotos que eu fiz lá do 11 de setembro, eu fiz com filme, com uma outra lógica de pensamento, porque eu levava três, quatro filmes na minha bolsa. E aí eu pensava muito antes de dar um clique, não ficava. E eu mesma revelei, podia ter estragado tudo, perdido todos os registros históricos ali, mas não. Eu consegui, deu tudo certo. Mas era outra lógica, a gente realmente pensava muito antes de fazer a fotografia. Hoje não. Hoje tem celular, equipamento digital, assim, com cartões, pode ir trocando, dá ali milhares de fotos. Então, gosto muito de compartilhar essas experiências hoje em dia com meus alunos.
P - E esse retorno, como que você decide vir pra cá, pra voltar pro Porto Alegre? Como que desenrola a sua vida aqui?
R - Eu, nesse tempo que eu fiquei lá, eu mantive sempre contato com o meu namorado. E ele foi me visitar lá três vezes e na última vez ele falou: “A gente tinha tempo pra voltar”, então a gente já sabia que a gente ia voltar. Era o tempo que meu pai ia a trabalho pra lá. Então, quando tava próximo desse tempo acabar, eu me lembro que ele foi e ele falou: “Volta pra Porto Alegre?”. E aí que ele me pediu em casamento, eu aceitei. E aí eu voltei pra casar e tô casada então desde 2002.
P - Uau!
R - Faz muito tempo.
P - E aqui você já começa a trabalhar logo que você retorna?
R - Praticamente sim. O primeiro local que eu comecei a trabalhar aqui foi num ex, que infelizmente fechou estúdio de fotografia, com um dos maiores fotógrafos do Brasil, o Marcus Luconi, que eu tive a felicidade de receber ele esse semestre aqui na Unisinos para compartilhar todas as histórias que a gente vivenciou juntos. Era uma época de ouro, porque ainda se faziam os catálogos impressos e a Kromak, que é esse local que eu comecei a trabalhar, ela atendia o Brasil inteiro, a gente fazia catálogos para todas as marcas e aí o Marcus, eu mandei meu currículo para o Marcus, o Marcus recebeu, entrou em contato comigo, pediu para fazer uma entrevista, eu fiz a entrevista e ele em seguida me contratou, então eu era assistente dele. Eu acompanhei ele em diversas viagens. Eu aprendi muito, muito, muito. Acho que foi, assim, primordial essa experiência que eu tive de mercado com ele, com toda a equipe nesse local. Depois, eu me inscrevi num curso de fotografia aqui em Porto Alegre. Mesmo eu sendo formada e tudo, eu queria conhecer os fotógrafos, os estudantes de fotografia, a galera que estava nesse meio. Então eu falei: “Eu vou me inscrever num curso”. Daí eu me lembro que foi numa escola chamada Câmera Viajante. E eu me lembro também que o professor, o dono da escola, fazia uma entrevista para saber se a gente estava no nível zero ou se a gente já tinha algum conhecimento para ele colocar a gente em alguma turma específica. E eu falei: “Olha, eu sou formada, estou chegando dos Estados Unidos”. Aí eu mostrei para ele, inclusive, as fotos do 11 de setembro. E eu me lembro que ele disse assim: “Eu estou cancelando a tua matrícula agora. Não, porque eu não quero que tu... Eu quero que tu venha para cá trabalhar como professora”. Só que daí ele começou a me colocar como monitora dele nas aulas. Então eu ia junto ver como é que era, porque eu não sabia dar aula. E quando ele viu que eu estava pronta, começou a me largar ali sozinha com a turma, e assim que eu comecei a dar aula.
P - E você sempre quis ser professora ou a coisa aconteceu?
R - Não, aconteceu, foi bem, mas eu gostei muito da experiência. Eu sempre fui uma pessoa que me relaciono muito bem com as pessoas, eu me conecto muito bem. Então foi muito prazeroso estar ali compartilhando experiências, é uma troca. Quando a gente dá aula, a gente não tá só ensinando, a gente tá sempre também trocando e aprendendo, então aquilo se tornou tão bacana, comecei a conhecer muita gente aqui em Porto Alegre desse meio, aí dali foram as coisas foram evoluindo, mas começou assim essa sala de aula, então também sou muito grata nessas pessoas que me deram esse espaço pra crescer, pra me encontrar e evoluir. Na Unisinos eu cheguei em 2008, então aqui eu já estou há mais de 17 anos.
P - E você lembra do primeiro dia de aula?
R - Na Unisinos ou lá na Câmara Viajante? Sim, e foi muito engraçado que no intervalo uma das alunas veio e falou assim: “Relaxa, relaxa, tu tá te beliscando”. Ela disse que eu cruzava o braço e dava umas beliscadas. Então, sem eu me dar conta, tava um pouco tensa. Mas eu fiz muitas palestras pra falar do 11 de setembro, quando eu cheguei em Porto Alegre. E aí foi indo. A gente vai perdendo medo de falar em público e de conversar com as pessoas. Apesar de eu sempre me colocar mais do lado de trás das câmeras. Mas, assim, se tiver que falar, se tiver que... Sala de aula já é um público pequenininho ali, mas é. A gente tem que falar, a gente tem que manter a audiência também conectada com a gente, enfim. Então, é um exercício.
P - E seu casamento, como que foi? Teve festa?
R - Teve festa, casamento, como é o casamento que a gente conhece como tradicional. Foi uma correria. O meu vestido foi feito em dois meses. A gente quis casar, a gente ficou tanto tempo longe que a gente quis casar. Então, muita coisa a gente foi organizando meio que à distância, mas casei na igreja. Não na igreja que eu queria, porque não dava mais, não tinha lugar, mas eu casei na igreja. Veio toda a minha família de São Luiz Gonzaga, das outras cidades ali, todo o pessoal do interior veio. Fizemos festa. Foi lindo. Fizemos lua de mel. Daí eu fui pro Nordeste. Eu falei pro meu marido: “Agora eu quero o Brasil. Então, eu quero praia. Não quero mais saber de outros lugares. Eu quero curtir o Brasil”, que eu tava com saudade das comidinhas, do nosso climinha também brasileiro. E foi assim.
P - E aí logo vocês foram morar juntos?
R - Sim, a gente casou e já começou a morar juntos e estamos juntos aí. Nem sei, perdi as contas. 2002, a gente tá em 2025, vai fazer 23 anos, é isso?
P - É, acho que sim.
R - Já me perdi nas contas.
P - 23 anos.
R - Isso aí.
P - E aí, queria saber, assim, nessa experiência como professora, então você dava aula primeiro, começou na?
R - Câmera Viajante.
P - Câmera Viajante. Depois, logo, você vem pra cá? Pra Unisinos?
R - Não, fui pro Senac. Fiquei dois anos no Senac. No Senac eu fiquei de 2005 a 2007, foi ótimo, porque é ali que eu me encontrei na área da moda também, justamente para ter passado pela Kromak ali, com o Marcus Luconi. Ali me deu bagagem para poder chegar no Senac e movimentar essa parte, que não tinha nenhum professor. Todos os cursos que eu fui dar aula aqui em Porto Alegre, nunca tinha alguém da moda, então ali tinha uma lacuna. Então, eu comecei a preencher isso por causa da experiência que eu tive na Kromak. Então, eu movimentei muito isso ali no Senac. Eu fui coordenadora de curso ali no Senac e do Senac, sim, eu vim para a Unisinos.
P - E aí tem alguma aula marcante, alguma história com algum aluno que você queira contar pra gente de algum momento, alguma pergunta, algum aluno que você se lembra e foi muito marcante?
R - Eu tenho uma relação com os meus alunos tão legal, eu vejo que eles brilham o olho. A gente sempre fala que a aula de fotografia é um momento... Eles me falam isso. É o momento da semana que eles vêm felizes para a universidade, que eles vêm, assim, eles não enxergam como uma aula, mas eles enxergam, assim, aquele momento que eles estão aprendendo, mas que eles estão com a câmera na mão, a gente vai para a rua, a gente vem para o estúdio. Eu estou sempre me movimentando muito com eles. Olha, já passou por mim tanta gente incrível, já passaram pessoas, inclusive, com deficiências visuais por uma disciplina de fotografia. Uma menina que nasceu sem nunca ter visto e ela conseguiu fazer fotos. Eu fui, inclusive, a primeira modelo dela porque ela me pegava, ela me tocava no meu rosto, ela tirava distância e aí ela clicava no modo automático. E ali ela fez os registros, então essa foi uma aula muito marcante. E acho que momentos marcantes são aqueles momentos que a gente é convidado para ser, paraninfo, professor homenageado, que eles entram, que eles fazem aquela festa, tiram a gente da sala de aula, fantasiam a gente, colocam faixinha. Então, ano passado, eu fui homenageada de uma turma muito querida, da turma de Publicidade e Propaganda, que a minha faixinha, geralmente eles colocam professor homenageado e tal, e eles botaram “mestra da luz”, sabe? É umas coisas engraçadas assim e que são especiais, muito especiais.
P - Tem alguma atividade marcante que você já propôs assim na sala ou de sair para a rua que você queria compartilhar?
R - Tem, tem uma atividade que não só ela transcendeu a sala de aula com os alunos, foi para a formação docente, várias vezes. Eu tenho uma atividade que eu faço, eu gosto muito do conceito do flâneur, que é sair sem ter compromisso, ir registrando, e eu uso muito nas minhas aulas, vamos fazer no tal dia uma atividade em que vocês não vão ficar juntos, a gente vai percorrer o campus, mas cada um com a sua câmera, com o seu mundo, com o seu percurso, se conectando com as coisas, tentando ver o que ninguém tá vendo ou o que tu passa todo dia ali na correria e não vê. E isso se tornou um exercício levado até para os professores. Eu já fiz essa atividade umas três vezes com os professores da Unisinos para a gente se conectar e se reconectar, principalmente depois da pandemia a gente sentiu uma necessidade muito grande de retornar ao campus e de se reconectar ao espaço. E foi por meio, então, da fotografia e desse exercício. A gente saía e a gente descobria coisas no campus que a gente nunca tinha visto ou que a gente mal tinha parado para olhar. E todo mundo sempre fala que esse exercício é muito gostoso. E eu faço isso também nas minhas viagens. Eu gosto, quando eu viajo, de ter um tempo no local que eu estou para olhar. Atualmente eu ando até escrevendo sobre a minha experiência, não só mais fotografando. Eu tenho colocado tudo que eu penso, que eu vi, que eu senti. Estou em fase de construção de um diário, do que não coube na foto, que é o nome do meu diário. Porque são coisas que não cabem numa foto, que são sentimentos, as coisas que tu vive ali no momento. A gente registra, mas tem coisa ali que não coube. Então, eu escrevo sobre tudo que eu vivenciei naquele momento. Então, eu gosto muito disso, de criar essas memórias, de registrar, sou muito ligada às imagens, justamente porque eu acho que elas têm um poder, assim, de contar a sua história, mas também te reconectar com aquele momento, com aquela experiência. É tão importante. Eu gosto de mostrar muito para o meu filho também as fotos. Volta e meia eu estou lá mostrando para ele, até para ele não esquecer algumas experiências. Desde pequenininho a gente leva ele pra viajar, nem que seja aqui mesmo, próximo de casa a gente faz. “Vamos tomar um café hoje numa outra cidade”. Daí a gente sai, procura um café colonial, assim, próximo da nossa cidade, só pra gente sair, pra gente olhar uma paisagem diferente. Eu brinco com ele também, assim: “Estou com déficit de natureza. Vamos para algum lugar mais afastado da cidade para correr, para respirar um arzinho mais puro”. É isso.
P - E tem alguma dessas viagens que você pensa e gostaria de contar para a gente, assim, desse diário, do que não couber as fotos?
R - As nossas viagens, eu e o meu marido, a gente adora, a gente sempre está planejando uma viagem e a gente tem uma característica, a gente é muito parceiro na hora de fazer, de fechar ali. Ele é uma pessoa muito do planejamento, ele trabalha com isso, análise de dados e tudo mais. Ele é da área de TI, então ele faz roteiro. E é engraçado que ele faz roteiro já pensando em mim, na posição que o sol vai estar para eu tirar a melhor foto do melhor ângulo. Olha que loucura, mas é isso mesmo. Então assim, a gente foi, por exemplo, para o Grand Canyon em 2018. E ele disse, a gente não pode chegar lá no tal horário porque o sol vai estar contra a luz e aí tu vai pegar... Já te conheço, não vai gostar das fotos. Então assim, ele já sabe onde é que vai estar os... é um planejamento mesmo. E ele sabe que eu vou querer ficar ali um tempo fotografando, então vai montando assim. E a gente tem uma característica de fazer road trips. A gente aluga carro e vai. A gente sabe mais ou menos onde que vai passar, mas “para aqui, que eu gostei daqui”, então a gente vai fazendo muita viagem de carro. Muita, é a nossa característica, assim, pegar carro E agora a gente pega o pequeno junto, coloca. Então, ano passado a gente conseguiu fazer uma bem legal que foi aqui pelo Chile, pelas Cordilheiras. Meu filho tinha acabado de estudar sobre a Cordilheira dos Andes. E eu falei pra ele, “tu não tem ideia do tamanho que é a Cordilheira. Tu vai ter uma ideia de um pedacinho dela”. E aí a gente conseguiu fazer uma viagem toda ali pela Cordilheira. Foram cinco dias assim, passando de carro, indo em lugares pouco explorados turisticamente, mas a gente acha isso... Aquilo para mim é viver, em busca dessas experiências, dessas paisagens, essa conexão com esse mundo todo pra gente explorar, é o que me move. Eu tô sempre em busca dessas paisagens novas, dessas experiências. É a experiência de uma comidinha nova, de uma bebidinha, de uma paisagem diferente, de uma vestimenta diferente. Então, é isso.
P - E sempre com a câmera na mão?
R - Sempre. Sempre. Sempre com a câmera na mão.
P - E você tem alguma preferência de câmera? De fotografia? Tipo pessoas, paisagem, dia a dia?
R - Eu gosto muito das paisagens, mas eu acho que o que contam as histórias ali são as pessoas. Então, é legal a gente ficar ligado nas pessoas pra ver quem que tá ali naquele local trazendo informação daquele local. Então, tento fazer isso. Eu não gosto daquela foto de paisagem que tem aquele monte de turista na frente, mas eu gosto daquela foto que tenha a pessoa do local com uma vestimenta bem típica do local. E eu gosto muito de incluir isso, até eu consigo pegar uns retratinhos, às vezes, assim, que eu acho muito legal. Uma vez a gente estava no Peru, eu não tinha ido a meu filho, e a gente foi num sítio arqueológico Inca e tal, e estavam chegando ali um pessoal para fazer um ritual, e eles estavam vestidos todos com uma vestimenta bem típica ali da época dos Incas, e eu me lembro que eu peguei uma teleobjetiva e fiz os retratos ficaram muito legais, muito legais, porque ali é que deu força para contar a história do lugar, não só a paisagem, mas as pessoas que estão ali é que fazem aquele lugar viver, pulsar.
P - E seu filho, como foi a chegada dele? Você sempre quis ser mãe, como foi?
R - Sim, sempre quis ser mãe, mas foi muito difícil. Esse é um capítulo até, digamos que, doloroso, porque eu tive que fazer muitos tratamentos, eu não consegui engravidar, eu tenho endometriose e, por conta da endometriose, muitas, muitas dificuldades, muitas questões físicas E em 2013 eu acabei engravidando junto com a minha irmã e infelizmente eu perdi esse primeiro bebê. E a minha obstetra na época, que é uma pessoa incrível, ela disse pra mim: Se tu quer ser mãe, a gente vai ter que procurar ajuda de fertilização, alguma coisa que vá trazer logo”, porque eu já estava com 37 anos. Então, eu fiz a fertilização. E Luiza foi difícil também. Todas as coisas que podiam dar de sintomas, o ovário que podia ficar, crescer e tal, deu todas as complicações. E quando eu fiquei grávida, eu fiquei grávida no início de gêmeos, só que um dos gêmeos parou de se desenvolver. Então eu tive que passar para uma cirurgia, o meu filho, o Eduardo ficou 80% descolado, todos os médicos, todo mundo disse “não tem mais o que fazer. A única coisa é que a gente vai tentar entrar por videolaparoscopia pra limpar, pra tirar, pra ver se não mexer nele ali”. Mas ele tava ali dentro de uma infecção, porque o outro parou de se desenvolveu e tudo, né. Tivemos que fazer umas cirurgias pressas. Corria um risco muito grande de vida ali, de ter uma hemorragia interna. A cirurgia que era pra durar em torno de 45 minutos, uma hora, durou mais de três. Lembro que a minha família ficou muito assustada. E o médico, dois, três dias depois que eu fiz a cirurgia, que ele pediu, vem no consultório. Doutor João Michelon, um anjo pra mim, na minha vida. Ele me recebeu no consultório, assim, lamentando. E aí quando ele foi ver se estava tudo bem com a cirurgia, com o pós cirúrgico, o rostinho dele iluminou, sabe? Senti que tinha alguma coisa diferente. E aí ele foi esboçando um sorrisinho. Falei: “O que foi doutor? Está tão bom esse pós cirúrgico?” “Calma aí que eu tô só vendo”, e aí foi vendo daqui a pouco ele só colocou o coraçãozinho da criança e ele disse assim: “É quase um milagre, mas a gente conseguiu aqui”. Então na época a gente não sabia ainda o nome nem sabia que que vinha então foi uma criança assim celebrada comemorada foi uma vitória, a vida ali venceu. Desculpa mas me emociono quando eu falo sobre isso. E a coincidência mais linda dessa vida é que há dois anos atrás eu estava dando aula e na chamada eu vi o nome de Luiza Miquelon e eu perguntei para ela: O que você é, doutor João?”. E ela disse: “É meu pai”. Eu disse: “Eu não acredito. Amo meu pai com todo o amor que eu posso ter nessa vida, porque eu não sei se tu sabe”, eu contei pra ela a história e ela disse que não sabia, ficou emocionada, achou lindo. Chegou em casa, falou pra ele. E durante todos esses anos a gente tem contato, eu e o doutor João, eu mando fotos do Dudu, a gente, todos os médicos na época até apelidaram: “É o nosso Highlander”. E aí o doutor veio até aqui na Unisinos pra me ver. Ele tem esse carinho também pela história. E na época que aconteceu isso, ele disse que eu tinha sido o segundo caso da vida dele, que é tão raro isso de acontecer, que eu tinha sido, não sei quantos anos, o segundo caso. E aí quando chegou o dia do meu aniversário, vocês não vão acreditar nessa história, mas é real, ele me mandou assim: “Oi, vi que é teu aniversário hoje e hoje também é o aniversário da Luiza, da minha filha. Parabéns para você, estou muito feliz que a Luiza está contigo na universidade. Que bacana! Ela está adorando as aulas de fotografia”. Ela é da psicologia, ela veio fazer essa disciplina como eletiva. E aí, quando eu encontrei a Luiza durante a semana, a Luiza falou assim: “Professora, sabe que eu no dia do nosso aniversário sonhei com um irmão?” Eu falei: “É, Luiza?”, ela “sim”. E aí eu comentei com meu pai. Falei: “Olha que engraçado, sonhei que eu tinha um irmão”. E aí ele disse: “Eu nunca te contei Luiza, mas o meu primeiro caso, que aconteceu igual o da professora Márcia, foi com a esposa dele. A Luiza também deveria ter tido um irmão”. Foi então uma coincidência assim, uma coisa muito incrível. A gente viveu juntos isso e aí a gente voltou a se reconectar, a se falar, volta e meia a gente troca mensagens, ele quer saber como é que tá o Eduardo, o Dudu. A gente chama ele de Dudu e tá indo, tá crescendo, é lindo. Puxou acho que a mamãe, gosta de música, toca guitarra, é bem falante também. Então, teve um final muito feliz.
P - Como foi o dia do nascimento dele?
R - Foi lindo, foi tudo tranquilo. Depois que a gente passou por esse momento, assim, eu nunca mais tive nenhum problema. Ele nasceu enorme, ele nasceu com quatro quilos e duzentos, ele nasceu um super bebê, sempre muito saudável, sempre grande, inteligente. Começou a falar muito cedo, muito, surpreendia as pessoas as coisas que ele falava desde cedo. E nos acompanha aí agora nas viagens, ele é nosso companheirinho.
P - E como foi a pandemia, Márcia, você como professora, como foi esse momento pessoalmente para você e também profissional, de ter que se reinventar, enfim?
R - Foi tudo muito inesperado. A gente teve que aprender a dar aula, principalmente eu na área da fotografia, meio que da noite para o dia, numa plataforma digital. Os alunos, alguns não tinham conseguido nem pegar uma câmera, a universidade fechou. Foi um momento complicado nesse sentido, mas a gente, pelo menos em casa, familiar, assim, deu tudo certo, nos apoiamos. O Dudu também tinha suas aulinhas online, então eu entrava com ele ali para ir ajudando. Foi um pouco complicado porque ele estava na época da alfabetização. Eu não sou professora de anos iniciais, não sabia alfabetizar, mas usei assim, digamos, minha intuição. Conseguiu, ele se alfabetizou tranquilo ali. Eu acho que o que aconteceu comigo aconteceu com todo mundo. A gente ficou muito preocupado com todas as pessoas familiares, com o que estava acontecendo. E foi tenso a gente ficar enclausurado, sem poder sair, sem poder fazer as coisas, mas foi necessário também. Quando a gente podia, a gente pegava o carro, saía, passeava, ia para outra cidade só para olhar o entorno, se dava para pegar um cafezinho, alguma coisa para fazer isso meio que ao ar livre, procurar algum lugar com parque aberto, pelo menos para sair, espairecer um pouco. Eu acabei, no final do ano de 2020, sair do bairro que eu morava e voltei para o bairro que eu moro atualmente, que é o Menino Deus, que foi um bairro que foi afetado pelas enchentes, porque foi o bairro que, quando eu casei, eu fui morar. Então, eu sempre gostei do Menino Deus. É o bairro onde a minha mãe mora, é o bairro onde a minha sogra e o meu sogro moram também. Meu pai e minha mãe moram no Menino Deus. E resolvemos voltar. Fazia mais sentido pra gente, então em 2020 a gente também fez uma mudança de apartamento, saiu de um prédio que não tinha tanta infraestrutura, a gente sentiu falta também de ter um lugar pra descer, pra criança correr um pouquinho, brincar, ter um parquinho, alguma coisa que no outro apartamento não tinha, então acabou impulsionando a gente a fazer essa mudança.
P - Pensando isso que a pandemia foi algo muito universal, assim, e aí um outro momento que vocês tiveram que parar um pouco foi as enchentes. Como foi esse momento, se você puder relembrar, assim, os primeiros dias de chuva, sensações, se até então era chuva, quando vocês começaram a perceber que a coisa estava ficando um pouco mais séria?
R - É, começou a chover, choveu forte, veio muita chuva de uma vez só e eu tava, a minha rua ali começou a descer, eu moro, a minha rua não é bem plana, ela vai subindo. Então, toda aquela água começou a descer de uma forma que eu nunca tinha visto. Eu tenho até foto do meu filho esperando a van, que ele ia de van pra escola. E eu dizia: “Olha só, tá com muita água aqui”, mas eu não imaginei que fosse parar. Não imaginei que aquilo fosse aumentar. Então não parou mais de chover, ficou chovendo por muitos dias, muita água em pouco tempo. E aí, não só Porto Alegre, foi quase todo o Rio Grande do Sul nessa condição. Foi uma coisa muito inimaginável. Daí não tem rio que suporte, como absorver toda essa água. E o meu bairro, então, foi um bairro atingido um pouquinho... Dias depois, justamente porque as casas de bomba ali da minha região não funcionaram. Dizem, daí os especialistas, que foi tanta água que tapou ali a parte toda de motores que pararam de funcionar e daí toda a água, toda essa rede pluvial, ela acabou invadindo boa parte ali do centro histórico, da zona norte, do Menino Deus, zona sul, assim, ficou boa parte embaixo de toda essa água, lama, sujeira. Eu moro muito próxima a um hospital. E a gente ouvia e via as pessoas sendo retiradas, o hospital ficou embaixo d'água também. Então, as pessoas tiveram que ser removidas do hospital, serem transferidas. Da minha janela também passavam muitos helicópteros o tempo todo. Eu moro muito próxima à orla do Guaíba, do outro lado a gente tem outras cidades que foram duramente também atingidas. Eldorado do Sul é uma delas, que inclusive vocês devem ter visto que vieram pessoas de fora, o Pedro Scooby, com toda aquela turma de surfistas, eles atuaram muito nessa cidade. Então eles pegavam pessoas da cidade e traziam aqui para a orla do Guaíba. Atravessavam o lago e traziam essas pessoas resgatadas. Era um trabalho, assim, contínuo de dias e dias e dias. Então, foi horrível pra nós, foi como se a gente estivesse vivendo uma segunda pandemia. Porque a gente também teve que sair de casa. A gente tem sorte de ter um apartamento na praia da minha mãe, então minha mãe também mora próxima e a gente precisou sair de casa. A água chegou muito próxima da minha rua e no momento que ela chegou ali sim, na quadra onde moro, a energia foi desligada, então a gente não tinha nem energia elétrica e nem água, porque daí a caixa d'água não funciona, então a gente foi obrigado a sair de casa. E aí fomos todos para a praia. A praia não foi um lugar atingido, então a gente conseguiu ficar alguns dias por lá. E foi a partir daí, Luiza, que eu comecei a ter contato com ex-alunos, pessoas ligadas ao jornalismo aqui, em relação às questões das fotografias. Foi aí que a gente começou a desenvolver também um trabalho, primeiramente um protocolo. A gente, eu e alguns alunos, a gente se juntou para fazer alguma coisa. Vamos escrever um protocolo, vamos ensinar as pessoas a não colocarem fora, porque apareceu na televisão uma reportagem de uma repórter com um álbum intacto só que estava sujo, lamentando que o álbum seria descartado. E eu na hora pensei: “Não, pelo amor de Deus, essas fotos podem ser recuperadas”. Então comecei a entrar em contato com esses alunos e a partir disso se criou uma rede enorme. A gente foi indo, foi ajudando as pessoas.
P - Como que foi esse trabalho? O que você fez?
R - Primeiramente foi isso, foi escrever um protocolo por etapas, ensinando as pessoas a pegarem essas fotos, a colocarem na água, a secar de forma correta, fazer toda uma parte para tentar recuperar essas imagens. E a partir disso, pessoas próximas de mim entraram em contato. “Perdi tudo, me ajuda”. E aí outros alunos começaram a... a gente tinha aulas online, então eu comecei a compartilhar essas histórias. Aí um aluno meu entrou em contato comigo: “Vamos fazer alguma coisa, professora?” Foi assim que surgiu a ideia. Eu falei: “Vamos. Já estou fazendo, mas a gente pode fazer isso de uma forma mais ampliada, abrindo para a comunidade”. Então, foi conversado aqui com as coordenações, todo mundo. A Unisinos já estava super engajada. Já estava fornecendo, aqui virou um ponto em Porto Alegre, a cozinha fornecia o tempo inteiro os alunos da gastronomia produziam comida, quentinhas, lanches para serem distribuídos e o campo de Porto Alegre recebeu milhares de pessoas. As pessoas ficaram lá porque São Leopoldo foi uma cidade, eu nem sei te dizer quanto por cento atingida, mas eu sei que é um número altíssimo, e aí essas pessoas não tinham para onde ir, elas foram para o campus de São Leopoldo, lá de Porto Alegre, da Unisinos, desculpa, as pessoas foram para o campus da Unisinos em São Leopoldo, ficaram lá acampadas em ginásios, então saíam daqui as comidas, as coisas, vieram todos os canais de televisão cobrir isso aqui dentro da Unisinos. A gente aqui em Porto Alegre teve então essa ação de fazer coleta de fotografias, de restaurar, de devolver parte dessas histórias para as pessoas. Também tivemos ações como eletrônicos, muitos eletrônicos recuperados e devolvidos. E foi uma ação de um time gigante, linda, que a gente conseguiu devolver um pouquinho para a comunidade. Acho que quem está na universidade tem esse compromisso de olhar para a nossa sociedade, para a nossa comunidade e devolver o que a gente puder para eles. Foi bem importante esse trabalho, bem marcante na minha vida. A gente teve visitas desde o presidente da república, diversos políticos, todo mundo muito solidário à situação. Não teve quem tenha ficado nesse momento insensível. Acho que o Brasil inteiro se mobilizou com doações. Muitas pessoas vieram de fato para cá para ajudar. Então, assim, é algo que a gente não vai esquecer essa ajuda. A gente é muito grato por toda a ajuda que a gente recebeu.
P - Eu queria que você pudesse recuperar, assim, na memória, esse contato mesmo de quando vocês abrem para receber pessoas e como foi esse processo dentro do laboratório, recuperando essas imagens, entendendo a grandeza disso para a vida dessas pessoas, se tem alguma história marcante que alguém tenha te contado ou o que representou essa recuperação dessa imagem, enfim.
R - A gente não sabia fazer isso, Luiza? Isso tudo foi feito, a gente aprendeu fazendo. Então, a primeira pessoa que eu ajudei foi uma conhecida minha. Falei pra ela, fiz um protocolo baseado no que eu estudei. Nunca tinha passado por uma situação dessa pra ter, de fato, uma experiência sólida pra comprovar. Mas a gente sabe que fotografias analógicas elas nascem da água, então elas podem ser lavadas. Pra começar. Então as fotografias mais antigas, impressas da maneira tradicional, analógica, tinham um potencial muito grande de serem recuperadas. E aí essa conhecida trouxe uma sacola enorme das fotografias que ela tinha deixado num depósito, porque ela estava fazendo um curso fora do Brasil. Então esse depósito foi inundado, ela perdeu um monte de coisa. E eram, digamos, todas as fotografias dela que ela tinha, trouxe fotografias do pai, dela pequena, toda a história trouxe, a gente conseguiu recuperar muita coisa. Ela junto, inclusive, ela foi uma pessoa que não só trouxe, como participou de toda a recuperação do próprio material. A partir disso, a gente começou a abrir para outras pessoas, para a comunidade trazer, e o pessoal, a gente teve até que limitar, porque o pessoal, coitados, eles perdiam tudo. Daí eles queriam trazer muita coisa, a gente não dava conta. Então a gente tinha que contar também com voluntários, alunos voluntários, a gente abriu esse voluntariado para alunos até fora da Unisinos, tiveram alunos de outras universidades que vieram atuar aqui com a gente. Mas uma história que me pegou, que eu chorei inclusive, foi um momento assim que acho que me caiu a ficha de forma muito sensível, um senhor que eu estimo ter entre 75 e 80 anos, um senhor médico. Ele chegou aqui no final de tarde, eu estava trabalhando ali, eu estava fazendo a recuperação das imagens e ele chegou com a filha e com o filho, cada um com caixas e caixas de fotografias. E eles vieram entregar e aí ele contou pra nós que ele tinha perdido a esposa há pouquíssimos meses e que aqueles ali eram as recordações da esposa, da mãe daquelas duas pessoas que estavam ali e que ela era uma pessoa muito carinhosa, ele falou: “Porque ela não só... A gente não só te trouxe fotos, mas ela fazia os álbuns da família com cartinhas, com bilhetinhos, então tá tudo aqui”. E claro, naquele primeiro momento me tocou bastante, mas quando eu comecei a trabalhar nesse material, eu comecei a chegar nessas cartinhas, eu tenho ali algumas, eu consegui recuperar até algumas cartinhas, que estavam tão dentro de envelopinhos assim, que a gente conseguiu tirar e elas sobreviveram. Então a gente conseguiu recuperar boa parte dessas fotos. Essas fotos ficaram todas com muitas marcas, elas não ficaram perfeitas, elas têm marcas, marcas da enchente. Mas a gente conseguiu devolver muito dessa história para essas pessoas. E aí quando ele veio buscar, ele ficou muito emocionado com as cartas, que ele já fazia até tempo que eu não lia isso. A gente via datas ali de década de 90, que ela viajou e mandou a carta para os filhos para dizer que estava bem na viagem, coisas assim, histórias de família, histórias bem emocionantes. E mais emocionante ainda, pelo menos para mim, é poder devolver isso para essa pessoa. E aí ele ficou muito, muito grato, muito emocionado. Aí todo mundo chorou junto. Foi um momento bem importante de ver que o que a gente estava fazendo é muito caro para as pessoas. Tu consegue recuperar coisas materiais, mas você não consegue recuperar a sua história por meio das fotografias perdidas. Se perdeu e não tem um negativo, não tem outra forma, é muito triste, muito doloroso perder essas recordações, esses registros, essa parte da história que te reconecta. Eu acho que passar por situações assim é sempre muito delicado. Num primeiro momento a gente fica até incrédulo, desde os ataques terroristas do 11 de setembro, a pandemia, a gente num primeiro momento não tem dimensão do que aquilo representa. A gente vai, acho que, tomando consciência conforme a gente vai se deparando com a realidade, do dia a dia, vai vendo realmente o quanto aquilo está atingindo, principalmente quando começa a atingir pessoas próximas da gente, aí eu acho que a gente dá aquele chacoalhão e a gente cai a ficha, mas é o mesmo sentimento. É aquele sentimento de impotência, de tristeza, de às vezes até a gente pensar e começar a se questionar sobre a humanidade, para onde a gente está indo, qual é o mundo que a gente quer deixar para as nossas crianças, porque agora eu tenho um filho. Me preocupo muito com essas questões todas, que volta e meia estão aparecendo. São acontecimentos que vão entristecendo bastante a gente, que vão preocupando, mas que também me fazem querer fazer algo para mudar, porque tentar recuperar essas fotos, tentar me envolver. Eu não me envolvi somente com as fotos aqui na Unisinos, como eu sou professora do curso de moda, eu tive também um projeto com uma outra professora, a gente fabricou mantinhas, pantufinhas e toquinhas para crianças que se encontram em abrigos, enfim, que têm essa vulnerabilidade. Nem sei te dizer quantas, a gente conseguiu lotar um porta-malas de um carro, entregou para um abrigo e deixamos o inverno de algumas crianças mais quentinhos e eu também consegui arrecadar no meu prédio muitos mantimentos, eu coloquei lá no grupo do prédio, gente podem concentrar aqui coisas, então o pessoal começou no meu, eu tenho foto da montanha de coisas que a gente arrecadou no meu prédio E eu fiz questão que meu filho ajudasse a levar nos bombeiros, a descarregar, ajudar os bombeiros a atirar para ele poder se engajar, também ver, para ele poder entender essa lógica que o mundo é assim, mas a gente pode se envolver de uma forma mais humana, a gente pode tentar criar esse olhar empático, ajudar o que a gente pode ajudar. Então é isso, a gente se entristece, mas a gente também tenta reagir, fazer alguma coisa, eu pelo menos sempre estou. Eu acho que lá no 11 de setembro, minha primeira reação foi esses registros, foi a forma que eu consegui, digamos, reagir em relação à situação, foi criar memória, registro do acontecimento. Na pandemia, são outras formas, porque aquilo atingiu a gente de uma forma diferente, mas eu acho que daí a minha reação foi mais em relação a ter um cuidado com a criança que eu tô dentro de casa, principalmente mental, de ter essa saúde mental, de não nos abalarmos, de nos fortalecermos enquanto família e tomar todos os cuidados, não visitar vovó, vovô, usar as máscaras, seguir os protocolos todos, de lavar as mãos e tudo mais. A gente nunca colocou em risco, eu tenho a minha consciência tranquila, eu nunca coloquei a vida de ninguém em risco. Eu nunca frequentei um lugar que eu pudesse contrair Covid e levar para alguém. E a gente sabe de muitas histórias que aconteceram assim, as pessoas meio na inocência fizeram isso e acabou depois que a história não teve um final tão feliz. E agora com a enchente a gente conseguiu se mobilizar, ajudar, recolher roupas, produzir roupas também. Eu sei que tinha muita demanda de material de limpeza pedir especificamente para as pessoas trazerem materiais de limpeza porque a gente precisava limpar os locais também antes de mobiliar. Então, é isso, a gente tenta sempre reagir de alguma forma, algum cuidado. Para essa situação, a gente sempre tem que olhar para ela e ter algum tipo de olhar e um olhar cuidadoso, eu acho que é isso.
P - Quanto tempo a cidade ficou em alerta? Os abrigos ficaram ativos?
R - Olha, eu acho que a gente ficou um mês, assim, porque demorou muito para a água baixar, para essa da rede pluvial também dar vazão e era cenário de guerra. A gente passava pelas ruas e era todo mundo tirando tudo que tinha apodrecido dentro de casa, montanhas e montanhas e montanhas e montanhas de entulho pela cidade inteira. A escola do meu filho também ficou submersa, meu filho também foi atingido, a escola dele demorou para voltar porque pegou até o segundo andar da escola dele, a escola dele ficava, que agora ele até mudou de escola, ficava ali no centro histórico. Então, ele ficou muito triste com a escola submersa e próxima ali. A escola dele foi um local onde a prefeitura fez um grande depósito desses entulhos, porque aonde vai colocar tudo isso? Então, tinham locais na cidade que parecia guerra, parecia que tinha caído uma bomba na cidade, porque quem foi atingido perdeu tudo dentro de casa, não tinha o que recuperar, e tinha só que tirar tudo dentro de casa, limpar, reformar e começar do zero.
P - Essa paisagem foi recuperada da cidade?
R - Alguns lugares acredito que sim, outros ainda a gente tem a sequela disso. Eu posso destacar como recuperado locais como parques. Eu tenho um parque próximo da minha casa que a natureza se regenera. Então, vai ali no parque hoje e parece que nada aconteceu. E logo que isso aconteceu, o parque ficou também todo embaixo dessa água, dessa rede pluvial, e a gente perdeu muitas árvores. E a gente está atualmente na cidade tendo uma consequência que é a perda de árvores que apodreceram com a enchente. Então mesmo um ano depois da enchente, volta e meia, a gente tem árvores que caem na cidade. Na frente da minha casa caiu uma árvore enorme na época e muita árvore que está com a raiz comprometida, com toda a parte de estrutura. Então, a gente ainda vai ter um bom tempo para reconstruir tudo isso, mas eu vejo que estamos indo. Mas muitas lojas que ficavam nesses locais fecharam e não estão ali para alugar, ninguém aluga aquele local. Todo mundo com medo de passar de novo por uma nova enchente. A gente teve agora, recentemente, um novo episódio de chuvas que deixou todo mundo muito... alerta, porque a cota dos rios aumentou, a gente teve lugares ali na região, na zona sul de Porto Alegre, que realmente a água transbordou. Então a gente começou: “De novo esse pesadelo? Meu Deus, será que a gente vai viver tudo isso de novo?” Por sorte dessa vez não choveu tanto e algumas dessas casas tem bomba finalmente estão funcionando. Mas tem muito, aí por parte de governos e tudo mais, tem muita coisa para ser feita, muita coisa. Então é mais do que necessário, mais do que na hora da gente ver também não só a população fazendo algo, não só a população se mobilizando, mas também por parte dos nossos políticos. A gente precisa ter respostas e a gente precisa ter, quando chover, não ter mais medo de sair de casa. Agora o que acontece em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, quando chove as pessoas têm medo de sair de casa porque elas não sabem o que vai acontecer na cidade. A cidade ela fica colapsada quando tem chuva forte. Nós não estamos ainda, não podemos dizer, estamos tranquilos, está tudo resolvido. Eu nunca mais fui para o centro, por exemplo. Desde que aconteceu a enchente, pouco eu passo ali pelo centro, então eu nem sei te dizer como é que está ali. Nunca mais andei ali pelo mercado público, lá daquela região. Eu sei que tiveram que trocar piso, das praças, a gente tinha ali pisos de centenários e agora colocaram outro tipo de material. Tá indo. Mas assim, a nossa maior preocupação é se as casas de bomba vão funcionar? Vão construir os diques que tem aí previsto pra conter essa água? Porque a gente sabe que vai vir mais chuva desse tipo. O mundo tá mostrando isso dia a dia. A gente tá vendo não só aqui, mas em outras localidades, que a gente está com uma questão climática muito forte. Então, a gente aguarda. Tem toda uma questão de assoreamento dos rios aqui. Veio muita coisa desses rios que ficou aqui acumulado. Então, precisa ser retirada essa areia, essa coisa que ficou ali, senão vai transbordar de novo. Quando vier uma chuva realmente mais forte. A gente ainda tem muito receio e medo de que volte tudo de novo acontecer.
P - E como foi para você, e acho que depois de um ano ainda... A gente te procura por conta disso também. Esse trabalho que você fez de recuperação dessas fotos, a fotografia que é algo tão marcante pessoalmente pra você. O que isso representa na sua vida, assim, pessoalmente? Qual a importância disso pra você hoje? Você consegue ter essa dimensão?
R - Com certeza, pelas histórias que eu vi sendo recuperadas ali. Eu vou destacar uma em especial, que foi uma colaboradora da Unisinos, que foi atingida, mora em São Leopoldo, que me contou que tinha pouquíssimas fotos dela da infância, porque ela se mudou, perderam, não tinha o hábito de tirar muitas fotos quando criança. E aí ela me entregou, eu consegui recuperar as fotos e ela ficou muito grata e a gente foi convidado inclusive dentro da Unisinos a compartilhar essas histórias, e uma das falas dela foi eu: “Hoje posso mostrar para os meus filhos, depois para os meus netos as minhas recordações de infância graças a esse projeto”, que foram muitas pessoas, muitas mãos envolvidas. Claro que foi um projeto que eu coordenei, que surgiu dessa conversa com um aluno, mas ele não teria sido possível sem os vários voluntários que a gente tem, desde alunos até funcionários da própria Unisinos, que trabalham diretamente com o laboratório de fotografia, abrindo mão de estar em casa ou de fazer alguma outra coisa, para estar literalmente ali lavando as fotos. Fotos que chegavam para a gente, que vinham praticamente de uma água super poluída. Então, a gente tinha que ter muito cuidado também para não contrair algum tipo de leptospirose, alguma coisa. Mas a vontade de ajudar e a vontade de devolver isso para as pessoas, esse sentimento de devolver algo, eu acho que ele acaba sendo maior e mais satisfatório até do que para quem recebe, não sei. É tão grande a minha satisfação de poder devolver algo importante para aquela pessoa, que a minha sensação é que eu fico mais feliz do que estar recebendo, sabe? Então, é isso, Luiza.
P - Vou te fazer uma pergunta bem íntima. Você já chegou a sonhar com isso ou sonhar mesmo?
R - Com certeza, na época eu sonhava que eu estava fazendo e recuperando fotografias. Não saía da minha cabeça. Ficava ali naquele processo sem desligar. E a gente tinha uma planilha que a gente ia colocando ali: “Hoje chegou aqui uma senhora, trouxe uma sacola com em torno de 70”, às vezes muita foto grudada. Então a gente, os números que a gente tem é tudo em torno, porque muita coisa grudada, muita coisa que a gente até não conseguiu, muita coisa a gente teve que, infelizmente, descartar. Mas sonhava que eu estava fazendo, que eu estava contando, que eu não desligava aquilo nem um pouquinho. Impressionante.
P - E seu filho soube?
R - Soube, muito orgulhoso ele acompanhava. Muitas entrevistas foram para a televisão, então ele ficava lá acompanhando e orgulhoso. E aí eu contei para ele que eu ia vir hoje aqui conversar com vocês, contei para ele do Museu da Pessoa, mostrei para ele. E ele falou assim para mim: “Nossa mamãe, você é minha heroína”. Fiquei bastante emocionada quando ele falou. Daí ele falou assim pra mim: “Eu posso contar pra minha prof hoje que você vai dar essa entrevista e que você vai falar desse projeto?” Eu falei: “Claro, pode falar pra professora”. Ele: “Não, eu vou falar”, porque ele fica muito orgulhoso. Ele falou que eu era a heroína dele. Ai, já ganhei a vida.
P - Quais são os seus sonhos?
R - Olha, meu maior sonho é ver meu filho realizado, é crescer uma pessoa feliz, crescer num mundo justo. Pra ele e pra todos. Eu acho que não almejo nada mais do que a felicidade dele e do entorno. Que ele viva numa cidade justa, boa para viver, agradável. Não adianta só ele estar bem, se todo o entorno não estiver, então acho que é esse o equilíbrio. Ele se realizar, se encontrar, ter realmente orgulho dos pais. Meu marido também sempre deu bastante apoio nesse sentido, para eu poder fazer tudo isso. Eu saía de casa e vinha para cá recuperar fotos e a própria criança estava em casa sem poder ir para a escola, porque a escola estava se recuperando também. Mas eles todos entenderam muito isso e apoiaram. Então, esse é o meu maior sonho, é ver a felicidade dele, ele se encontrar e se tornar uma pessoa que também possa no futuro, se caso necessário, usar toda essa bagagem, todo esse exemplo que ele tem desde pequeno. Que ele também, quando for a hora dele, saiba o que fazer.
P - E como foi voltar às aulas e acolher esses estudantes também? Fico pensando nesse momento.
R - Muitos estudantes foram atingidos. Muitos estudantes tiveram... A gente recebeu uma lista de pessoas que tiveram a casa… Muitos dos estudantes nossos são de Canoas, de bairros que foram completamente devastados. Estudantes de São Leopoldo que também tiveram perdas. A gente tentou fazer também, dentro da Unisinos, eu participei de muitas vaquinhas. Era para o aluno tal. Aluno, por exemplo, “esse aluno teve bebezinho recentemente e perdeu todas as coisas da criança”. Então, algumas histórias nos tocavam por conta de criança envolvida e tal. E aí então, nossa, eu participei de muita coisa nesse sentido, doando também até dinheiro para as pessoas conseguirem comprar insumos, alimentos e tudo mais. A gente acolheu, como a gente pôde, e a turma também soube entender isso. Num primeiro momento a gente adaptou às aulas. Então essa aula que a gente estava trabalhando antes era uma coisa, depois a gente transformou a aula para fazer toca, cachecol e pantufa. A gente simplesmente chegou para a turma e disse:“Não faz mais sentido a gente estar vivendo o que a gente está vivendo, pessoas passando pelo que estão passando e a gente ficar pensando agora em fazer figurino para fotografar e tal. Vamos recalcular a rota aqui da disciplina, vamos comprar tecido, vamos atrás de patrocínio de tecido e vamos fazer o que é possível fazer”. Então, essa professora, a Prof. Thais, que era minha dupla nessa disciplina, ela conseguiu moldes de pantufinhas que são fáceis de fazer, de costurar. As mantinhas a gente fez tudo num tecido que era só cortar, as toquinhas também os alunos conseguiram moldes rápidos, fáceis e pronto, a gente conseguiu produzir, conseguiu recalcular muitas dessas disciplinas para a comunidade mesmo. Não retomou a aula como era antes, mas a gente deu essa readaptada em muitas das disciplinas, porque não fazia, não tinha nem clima para a gente retomar certos assuntos. Isso, a gente terminou o semestre como deu. Sempre adaptando para a gente não ser insensível, não era momento ali de fazer fotografia de maquiagem, disso, daquilo. Não, agora é o momento da gente se doar.
P - E, Márcia, você gostaria de contar alguma passagem, alguma história ou de algum momento que eu não tenha te perguntado? Ou de alguma pessoa?
R - Olha, é muita coisa. Acho que eu consegui falar a grande parte da minha vida, da minha vivência. Mas, além de tudo, eu sou mãe de uma gatinha e ela, surpreendentemente, já vai fazer 22 anos, é uma senhorinha. Então, é o meu orgulhinho também, porque eu cuido tão bem daquele gatinho que tá lá firme, forte. Vai fechar agora 22 anos, tá com 21, vai pra 22, a Tita, também é minha filhinha de quatro patas e tá comigo praticamente desde que eu casei. Mal casei, eu já peguei a gatinha e até hoje ela tá comigo e tá super bem. Levei ela na pet, esses dias disseram ela tá ótima, só tá com coisas de senhorinha, não escuta, mas tá ótima. Vai longe ainda! Então fico feliz. Eu acho que a docência, de uma maneira, é muito linda essa entrega que a gente faz em sala de aula, essas trocas todas que a gente tem, isso nos mantém conectados, humanos, a gente consegue… Eu sou uma pessoa muito aberta com os meus alunos. Então eles sempre me trazem as suas histórias de vida, eu sempre, quando posso, eu falo alguma coisa para motivar de alguma forma e isso nos rejuvenesce também, porque conviver com a geração assim que está a mil, entrando na faculdade, com mil sonhos, mil coisas assim, é muito gratificante fazer parte. Amo dar aula. Amo. Tanto que essa provocação veio de um aluno: “Vamos fazer alguma coisa, professora?” “Vamos”. É lindo ver o quanto a gente pode trocar. Então, eu amo dar aula, amo a sala de aula, eu fico feliz em poder colocar esses projetos e fico feliz que a universidade também nos proporcionou espaço, a gente teve todo um apoio com espaço aqui dentro da universidade. Então isso é muito gratificante.
P - E você gostaria de deixar alguma mensagem pensando nas próximas gerações ou para as pessoas que vão ver sua história ou para si mesma?
R - Uma mensagem? Eu acho que olhar. Olhar de verdade. Eu sempre sou uma pessoa muito do olhar. Acho que o fotógrafo tem isso. De olhar por outros ângulos, mas olhar de verdade. Para si mesmo também, eu sempre falo para o meu filho assim: “Se a gente também não está bem, a gente não consegue estar bem para o outro”. Então é se olhar em primeiro lugar, com carinho, com empatia também, para estar bem, para poder olhar para os outros com carinho, com empatia, com cuidado, não para os outros, mas para o entorno, para a cidade de onde a gente vive. Eu acho que tem muita responsabilidade coletiva em tudo isso. A gente não pode tirar a nossa responsabilidade. Nós temos que ser responsáveis também. Tem uma parcela de responsabilidade que é individual. E eu acho que é tudo uma questão realmente de perspectiva, de sensibilidade. No momento que a gente olha de verdade, eu acho que a gente se conecta, a gente sente, e a gente se coloca no lugar, e a gente entende. E aí eu acho que fazer o que acha que deve fazer. Se sente que deve fazer algo, que faça, que isso pode mudar o dia daquela pessoa. Alguma coisa pode mudar para positivo. Isso vai gerar, vai desencadear, com certeza, um movimento. E eu acho que é isso que a gente precisa atualmente, de pessoas que têm um olhar mais cuidadoso, um olhar quase que maternal para as coisas e que, eu sempre falo também, para o meu filho, para os meus alunos: “Gente, é movimento, a vida é movimento, não dá para ficar parado. Vocês também têm que ir ao encontro das coisas, não esperar só que as coisas cheguem”. Então, de alguma forma, tudo se encaixa, as coisas chegam, mas desde que a gente esteja atento e se movimentando.
P - Como foi para você dividir um pouco dessas suas histórias com a gente?
R - Foi incrível! Passamos aqui por momentos emocionantes, mas é uma história de uma vida repleta de experiências. E foi muito gostoso. É muito bom compartilhar, quem sabe também inspirar outras pessoas, outras gerações. Então, fico muito grata, agradeço muito que vocês me convidaram para participar.
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