VLI – Estação de Memória: Porto & Pesca
Entrevista de Cleide Gomes Reis
Entrevistada por Ane Alves
Guarujá, 15/08/2025
Entrevista nº: VLI_HV001
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrito por Arielle Oliveira Paro
Revisada por Ane Alves
P/1- Primeiro obrigada por receber a gente aqui na sua casa. E pra começar eu gostaria que a senhora se apresentasse falando seu nome completo, a data de nascimento e o local.
R- Cleide Gomes Reis, 31/07/1962.
P/1- E a senhora nasceu em qual cidade?
R- Cidade de Santos.
P/1- Dona Cleide, qual a primeira lembrança da infância que vem na cabeça da senhora?
R- Quando meu pai faleceu. Eu tinha cinco anos.
P/1- E a senhora sabe por que seu nome é Cleide?
R- Não… minha mãe e meu pai colocaram.
P/1- E nunca te contaram porque escolheram esse nome?
R- Não. Porque a minha família é tudo com C, só a mais velha que é Maria Elizabeth. É Cleia, Carlos, Clóvis, Cleonice e Cleide.
P/1- E eles contaram pra senhora? Alguém contou como foi o dia do nascimento?
R- Ah, minha mãe falou que foi um dia 31, de 1962, um dia ensolarado. Às três da tarde que eu nasci. Na Santa Casa de Santos.
P/1- E os seus pais, eles nasceram aqui em Santos mesmo?
R- Não. Meu pai nasceu em Pernambuco, parente do Luiz Gonzaga, rei da Sanfona. E minha mãe de Paraty, estado do Rio.
P/1- E a senhora sabe por que o seu pai veio pra cá?
R- Ele primeiro foi morar em Santos, casou em Santos, na Santa Antônio do Embaré, e depois comprou aqui em Vicente de Carvalho. Veio pra cá.
P/1- E a sua mãe veio como?
R- Com ele também.
P/1- Então, eles se casaram... Como eles se conheceram?
R- Aí eu não sei.
P/1- Não sabe?
R- Não.
P/1- Mas ela era de Paraty e eles casaram?
R- Em Santos.
P/1- A senhora sabe como sua mãe veio de Paraty pra Santos?
R- Não. Não porque... Eu sou a mais nova, né? Quem sabe são minhas irmãs mais velhas.
P/1- São quantos irmãos?
R- Éramos em sete e agora são três. Só tem três vivos? Os outros já...
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Entrevista de Cleide Gomes Reis
Entrevistada por Ane Alves
Guarujá, 15/08/2025
Entrevista nº: VLI_HV001
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrito por Arielle Oliveira Paro
Revisada por Ane Alves
P/1- Primeiro obrigada por receber a gente aqui na sua casa. E pra começar eu gostaria que a senhora se apresentasse falando seu nome completo, a data de nascimento e o local.
R- Cleide Gomes Reis, 31/07/1962.
P/1- E a senhora nasceu em qual cidade?
R- Cidade de Santos.
P/1- Dona Cleide, qual a primeira lembrança da infância que vem na cabeça da senhora?
R- Quando meu pai faleceu. Eu tinha cinco anos.
P/1- E a senhora sabe por que seu nome é Cleide?
R- Não… minha mãe e meu pai colocaram.
P/1- E nunca te contaram porque escolheram esse nome?
R- Não. Porque a minha família é tudo com C, só a mais velha que é Maria Elizabeth. É Cleia, Carlos, Clóvis, Cleonice e Cleide.
P/1- E eles contaram pra senhora? Alguém contou como foi o dia do nascimento?
R- Ah, minha mãe falou que foi um dia 31, de 1962, um dia ensolarado. Às três da tarde que eu nasci. Na Santa Casa de Santos.
P/1- E os seus pais, eles nasceram aqui em Santos mesmo?
R- Não. Meu pai nasceu em Pernambuco, parente do Luiz Gonzaga, rei da Sanfona. E minha mãe de Paraty, estado do Rio.
P/1- E a senhora sabe por que o seu pai veio pra cá?
R- Ele primeiro foi morar em Santos, casou em Santos, na Santa Antônio do Embaré, e depois comprou aqui em Vicente de Carvalho. Veio pra cá.
P/1- E a sua mãe veio como?
R- Com ele também.
P/1- Então, eles se casaram... Como eles se conheceram?
R- Aí eu não sei.
P/1- Não sabe?
R- Não.
P/1- Mas ela era de Paraty e eles casaram?
R- Em Santos.
P/1- A senhora sabe como sua mãe veio de Paraty pra Santos?
R- Não. Não porque... Eu sou a mais nova, né? Quem sabe são minhas irmãs mais velhas.
P/1- São quantos irmãos?
R- Éramos em sete e agora são três. Só tem três vivos? Os outros já descansaram.
P/1- A senhora estava falando que eles casaram lá em Santos. Eles casaram, moraram um tempo lá.
R- Depois vieram pra cá. Aí meu pai comprou aqui.
P/1- Então a senhora também nasceu lá. Lembra com quantos anos veio pra cá?
R- Eu só nasci em Santos, eu sempre morei aqui.
P/1- Nessa casa?
R- É, era diferente, né? De lá pra cá, durante esses anos teve reforma, tudo, né? Porque meu pai tinha outros terrenos, aí minha mãe vendeu pra fazer melhoria aqui. A minha avó faleceu, eu tinha 12 anos.
P/1- Dona Cleide, a senhora ia falar dos seus avós. A senhora ia me contar dos seus avós. A senhora teve contato com seus avós?
R- Só minha avó. Meu avô não, porque quando eu nasci, ele já tinha falecido. E minha avó faleceu, eu tinha 12 anos de idade. Ela morava aqui perto.
P/1- Essa avó era a materna ou a paterna?
R- Paterna. Os avós, por parte de mãe, eu não conheci nenhum.
P/1- E aí, a sua avó, ela veio de...
R- Pernambuco.
P/1- Na mesma época que o seu pai veio?
R- Isso. Meu pai tinha mais irmão. Já faleceram todos. Minha avó, meus tios e meu pai. Então, agora é só irmão e sobrinho.
P/1- E como que era essa casa, esse bairro aqui, quando a senhora... A senhora veio bem bebezinha, mas quando a senhora começou a crescer?
R- É, não tinha asfalto, tinha vala, cerca. A casa era de madeira, que a gente encerava, né? Era totalmente diferente. Depois minha mãe reformou, aí fez uma melhoria. Aqui, se você cavar aqui, um metro abaixo, tem água. Porque tudo isso aqui era mangue. Eu brincava na rua, tudo, quando criança, não passava quase carro. Carro aqui quem tinha, era a coisa mais difícil, moto, essas coisas. Era lambreta, né? Antigamente. Tinha lambreta. Meu pai tinha um carro, mas minha mãe nunca gostou de dirigir, pegou e vendeu o carro. Você quer que eu fale das minhas irmãs?
P/1- Sim, eu quero que você conte como vocês brincavam. Você é a mais nova, mas tinha uma diferença muito grande, ou você chegou a brincar com seus irmãos?
R- De dois em dois anos. Só a mais velha que tem 80. Tem eu, tem uma que é cabeleireira, tem o meu irmão Clóvis, que faleceu atropelado aqui em Vicente de Carvalho. Depois o Carlos, depois a Cléia, que faleceu de câncer. O Carlos também já faleceu, era diabético. E a Bete, que é a minha irmã mais velha. Aí, só tem três. Eu, a Tita, que é cabeleireira, e a Bete, que também é viúva. Mas a profissão, eu era professora. Depois virei letrista, trabalhei em plataforma de perfuração de petróleo. Meu pai era da Petrobrás, chefe dos motoristas. Minha mãe do lar. A Tita sempre cabeleireira. O Clóvis trabalhava na Estiva, no cais, em Santos. O Carlos era caminhoneiro. A Cléia, professora, com três faculdades. E a Bete costureira, e do lar também.
P/1- E quando vocês eram pequenos aqui nessa casa, do que vocês brincavam?
R- Ah, de amarelinha, de pedrinha, bolinha, jogava bola na rua. Eu brincava mais porque eu sempre fui a caçula. Minha irmãs eram mais velhas.
P/1- E vocês brincavam aqui no Mangue?
R- Aqui não, quando eu nasci não era mais mangue. Não, era muitos anos atrás. Eu já nasci já na cidade. E aí, eu estudava numa escola aqui, no Oswaldo Cruz, aí eu fui para a base aérea, aí eu melhorei. Aí comecei a praticar esporte, e melhorei na escola também. Aí, com 18, eu comecei a dar aula. Comecei a dar aula na Enseada, Praia das Astúrias, Cavariane.
P/1- Mas a senhora começou a estudar junto com seus irmãos, na mesma escola?
R- Não, eles estudaram em escolas diferentes.
P/1- E a senhora gostava da escola?
R- Gostava.
P/1- E já tinha sonho de ser professora?
R- Não, o capitão da base aérea que falou: é bom você fazer o magistério. Aí, eu comecei porque minha irmã era professora, eu acompanhava ela nas aulas. E eu sempre gostei muito de criança. Sempre trabalhei muito bem com criança. Mas, o Estado sempre pagou mal. Aí, eu tive um problema na coluna, em 1987. Aí, entrei numa escola aqui em Vicente de Carvalho, para trabalhar dois anos, trabalhei quatro. Aí, fui pro Caruara, no sítio. Aí, o que aconteceu? Não me pagaram. Eu coloquei na justiça, até hoje não recebi, como professora. Aí, depois veio o câncer da minha mãe. Aí, eu falei, vou trabalhar num lugar na natureza. Porque mãe é mãe, né? Perder um filho, perder uma mãe é muito triste. Aí, eu comecei a trabalhar na pesca, foi em 1987. Não, 1987 não, 1987 eu entrei na faculdade. Foi em 1997, é. Aí, eu entrei na pesca e fiquei. Aí, eu trabalhava pro restaurante lá no Caruara. E depois de 16 anos eu comecei a trabalhar pro restaurante em São Paulo.
P/1- Eu só quero saber algumas coisinhas antes da gente chegar na pesca. Queria que a senhora contasse como era dar aula. Era para educação infantil, né?
R- Ah, uma delícia.
P/1- Você falou que sempre gostou de criança. Conta alguma lembrança boa da época que dava aula.
R- Ah, eu sempre tive muita prática com criança. Então, a gente dava aula de educação física e dava todas as matérias. E a gente estuda, entra a psicologia, didática. E dar aula não é para qualquer um, é dom. Porque cada criança é cada criança. Os problemas são diferentes. Eu sempre trabalhei em escola pública. Então, com 30, 40 crianças numa sala de aula, você tem que saber lidar. Porque criança, sabe como que é. Atualmente parece que tá pior nas escolas, né? Tá bem pior. Mas na minha época, “a tia chegou.” Aí, tem o jeito da professora falar, tratamento. Entendeu? A professora também vai conhecendo de um a um. Um a um. Os problemas também que eles têm. A gente passa a ser psicóloga também. E o aprendizado é assim: a criança vem pra gente… Geralmente eu trabalhei com primeira e segunda série. Vem igual uma folha de sulfite em branco. E a gente preenche. Só que atualmente eu critico muito a forma que estão ensinando às crianças. Porque é muito computador, muita internet. A criança está perdendo… Eu sei porque eu tenho criança na família. Está perdendo aquela infância, que é brincar, conhecer a natureza. Muitas coisas as crianças estão perdendo. Eu peguei essa época ainda boa. Eu parei por motivo do Estado pagar mal. Aí, eu falei: peraí, sou professora e ganho uma mixaria? Não quero mais, não. Aí, eu peguei e parei.
P/1- E a senhora dava aula aqui na região?
R- Comecei lá na Enseada, trabalhei nas Astúrias, trabalhei em várias escolas aqui em Vicente de Carvalho, Napoleão, a última foi o Judoca lá do Caruara.
P/1- Encontrava os alunos assim, no final de semana, indo no supermercado?
R- Ah, sim. Eu tenho aluno que já é avô. Meus alunos já são adultos.
P/1- E aí a senhora encontra, vira e mexe um aluno por aí.
R - Encontro.
P/1- Como que é esse encontro?
R- Ah, eles: “Olha, a minha professora.” Eles tinham, o quê? Sete anos de idade, seis, sete anos de idade. Uns se dão bem e outros se dão mal. Aqueles que obedecem à professora, se dão bem. E também vai da criação dos pais, porque a gente dá aula, ensina a criança a ser uma boa pessoa. E, às vezes, a criança... os pais não acompanham.
P/1- Tem algum aluno que marcou a senhora? Alguma história bonita que sabe de algum aluno?
R- Não, porque eu sempre gostei de todos, assim, né? E são tudo pais de família, avô, entendeu? Encontro, assim, de repente, “oi, oba.” “Oi, professora.” Mas, graças a Deus, eu sempre gostei muito de trabalhar com criança. Infelizmente, o nosso governo sacrifica, porque a gente passa a ser mãe, pai, psicóloga. A gente passa a ser muita coisa. E você olha no holerite e fala: meu Deus do céu. É muita exigência. O que o Estado paga não dá nem pra pessoa andar bem vestida. Porque o aluno repara. “Pô, minha professora está indo com a mesma roupa para a escola.” Um exemplo. “Ó, está usando o mesmo calçado.” O Estado nunca deu essa condição. E eu não era efetiva. Quando eu peguei carga horária, foi em 1987, eu jogando vôlei, minha coluna travou. Por isso que eu tive que ficar dois anos sem trabalhar. E em 1987 foi quando a Xuxa começou. Aí, eu só ficava deitada assistindo a Xuxa.
P/1- Mas a senhora jogava vôlei por lazer?
R- Não, eu sempre gostei. Não profissional, por lazer. Porque lá na base tem quadra, tem piscina. Eu fiz natação com o Guaracy, que é o dono da Moby Dick no Guarujá. E vôlei a gente jogava com os amigos, conhecidos.
P/1- Aí, quando a sua mãe adoeceu, a senhora parou de ser professora pra ficar mais próxima dela?
R- Sim.
P/1- E aí, a senhora começou a trabalhar com a pesca?
R- Foi.
P/1- Mas a senhora, antes de decidir assim: ah, eu vou ficar mais perto da minha mãe, vou trabalhar... A senhora já tinha algum contato com a pesca?
R- Não. É porque eu comecei achando que era temporária. Aí, daqui a pouco, continuei. Eu não tinha barco.
P/1- Como foi esse começo? De onde surgiu assim: vou pescar.
R- A minha irmã tem um sítio. E lá perto tem mangue. Então, eu ia no mangue pra pegar um caranguejo, ia no mangue pegar ostra. Lá tem a parte... No portão tem água doce, tem peixe d'água doce e tem o mar d'água salgada. Então, eu ia sempre pescar de varinha por lazer. Aí, eles não encontravam ninguém que pegava marisco. Aí, eu comecei a pegar, só que eu pegava uma lata. E eis a questão, a pesca a gente tem despesa, com gasolina e óleo, que não é pouco. Que nem meu motor tá pifado, meu barco estragou, precisa de reforma. Motor não compensa eu arrumar, compensa eu comprar outro.
P/1- Nesse começo lá, tinha barco no sítio? Ou a senhora comprou um barco?
R- Tinha um emprestado.
P/1- Tinha um emprestado?
R- É. Um barco, mas não era muito bom, muito pesado. Porque além do barco, você tem que carregar ele até o rio, né?
P/1- E a senhora ia sozinha?
R- Eu ia com uma pessoa.
P/1- Sempre com uma pessoa, pescar era sempre acompanhada?
R- É, mas depois eu fiquei sozinha. Aí, eu comecei ir sozinha. Aí, eu andava lá pelo meio dos matos sozinha. Aí, comecei a conhecer o pessoal daqui. Aí, me cadastrei na Colônia e comecei a pescar. Agora, só que o meu motor pifou. Meu barco tá aqui do lado. É o Mercury 3.3. E eu, agora com esse problema de saúde, não vou poder trabalhar, então vou ter que ficar... Não tô ligando pra motor nem barco, só depois que eu melhorar de saúde, que eu vou voltar a pescar. Se o patrão quiser também, porque eu vou ficar uns meses, uns quatro meses sem poder trabalhar.
P/1- Então, no começo, a senhora pescava de vara, mais por lazer?
R- Mais por lazer.
P/1- Eu tenho uma curiosidade, quando pescava de vara, o que colocava na vara de isca?
R- No começo, colocava minhoca, camarão, miolo de pão. Inclusive, minha irmã tem um sítio no Iriri, que tem dois poços de peixe. Aí, de vez em quando, eu vou lá pescar de varinha.
P/1- Pra matar a saudade.
R- É. Agora eu tô sem tempo pra falar a verdade, porque esse problema de saúde, eu tá cuidando de criança também, eu tô sem tempo. Eu tô indo pro mar uma vez por semana, enquanto eu não fizer a cirurgia. Eu tô pagando pro rapaz me levar e me buscar.
P/1-
Porque o barco da senhora tá...
R- Não, porque meu motor pifou. E pelo preço que queriam no conserto, compensa eu comprar um novo.
P/1- Qual que é o nome do barco da senhora? Tem um nome?
R- É Mercury 3.3.
P/1- Ah, esse é o nome do barco?
R- Não. O meu barco é Melody.
P/1- É, porque eu sempre vejo que colocam o nome assim, no barco.
R - É, Melody.
P/1- E como que a senhora escolheu esse nome?
R- Não foi eu, eu já comprei ele com esse nome. E o motor é Mercury 3.3. É o menor, que eu não posso carregar muito peso, por causa da coluna.
P/1- Dona Cleide, explica pra gente como que pesca marisco?
R- Com a mão.
P/1- Com a mão?
R- É. Com a mão. É bem complicado, difícil. Eu demoro mais ou menos uma hora, dependendo do lugar, uma hora e meia pra você encher uma lata. Eu pego quatro latas, cinco latas. De um em um. De um em um.
P/1- Aí depois que pega o marisco, a senhora vende esses mariscos?
R- Aí o rapaz combina comigo, vai de carro levar pra São Paulo. O motorista. Ou ele passa aqui em casa, pega aqui, ou eu levo pra tal lugar. São vários restaurantes, então às vezes eu levo na mãe do rapaz de São Paulo, levo lá no restaurante, e o motorista vai direto pra São Paulo.
P/1- Mas quando a senhora pega ele, tem que fazer algum tratamento antes de ir pra São Paulo?
R- Lavar.
P/1- Só lavar?
R- Lavar e limpar. Eu já mando limpo. Com casca. E às vezes tem gente que pede pra mim, “me dá sem casca porque eu não sei limpar.” Porque pra limpar tem que ser de um por um. De um em um. Eu trabalho com bico de ouro. Que o da praia tem areia dentro. Mas o restaurante vem de avião, vem de cativeiro, a ostra e o marisco.
P/1- A senhora pesca ostra também?
R- Eu pesco, mas eu não vendo. Porque vem lá de Cananéia, vem de avião. Motorista pega no aeroporto de São Paulo.
P/1- E bico de ouro é uma espécie de...
R- Marisco.
P/1- Quais espécies que tem, que a senhora pega?
R- Tem unha de velho, tem... eles chamam de perna-a-perna, mexilhão. Tem um... não é marisco, mas tem uma conchinha, vôngole, né? Esse eu não pego. Eu pego mais o marisco mesmo.
P/1- E como que a senhora conseguiu fazer esses acordos com esses restaurantes em São Paulo?
R- Então, como a minha irmã morava lá no sítio, eles estavam precisando e não tinha gente para trabalhar. Aí, eu comecei a tirar, mas lá pedia pouco. Aí, depois de 16 anos eu desisti, porque paga mal. Por exemplo, eu ganhava R$ 80,00, de vez em quando, duas, três vezes por semana. Só que aí você tira… Eu não tinha moto. Você tira o dinheiro da condução. Se você vai de barco, tem a gasolina e o óleo. E eu tinha que chegar até lá, Caruara. Quer dizer, eu tava trabalhando de graça, não tava compensando. E era muito exigente. Aí, eu peguei e falei: não, não quero mais. Mas eu trabalho para a mesma família. A minha patroa mora nos Estados Unidos, o ex-marido dela que toma conta, que é tenente da polícia florestal, aposentado. E esse eu trabalho atualmente para o irmão dela e às vezes para a mãe dele. Entendeu?
P/1- Eu queria voltar um pouquinho. Que a gente falou da senhora na escola, começou a estudar… Eu queria saber um pouco da juventude e também da infância, assim, porque como mora aqui perto da praia... A senhora era uma moça travessa, assim, que faltava na escola pra ir pra praia?
R- Não, isso nunca, porque os pais eram rígidos. Não fazia isso. A minha brincadeira era na rua, no quintal de casa. Depois de adulta… Eu desmaiei na escola da base numa brincadeira com um rapaz, cortou o supercílio, eu bati com a cabeça na mesa. Eu tinha o quê? Dezoito anos. Agora, em 2021, caiu uma jaca na minha cabeça, cortou a minha boca, eu tive fratura craniana. Lá no sítio, uma jaca enorme caiu na minha cabeça, eu desmaiei na hora, me levaram para o hospital da Bertioga.
P/1- A senhora estava andando normal assim?
R- Não. Tinha um rapaz tirando jaca. E eu fui fazer a besteira de pegar. Aí, eu desmaiei. Aí, eu fui para o hospital da Bertioga, duas vezes para o pronto-socorro daqui e duas vezes para o Santo Amaro. Perdi meu irmão em 2019 e uma tia. 2021 houve esse acidente. Agora, na escola, eu brincava como uma criança normal, porque tem o horário de educação física. Ah, eu sempre participava de tudo. Aí, na época eu era mais jovem, aí eu virei manequim, virei uma porção de coisa, fiz uma porção de coisa.
P/1- Conta essa história de manequim?
R- É, manequim é diversão entre amigos. Sempre me chamavam, porque eu me vestia muito bem, gostava de dançar, tudo, usava salto alto. Então, sempre o pessoal me chamava para participar de desfile. Gostava de dançar.
P/1- E com a família, o que vocês faziam no momento de lazer, na sua infância, adolescência? Vocês iam à praia?
R- Eu, quando criança, graças a Deus, tinha gente pra me levar pro zoológico de São Paulo, minhas irmãs levavam pra circo, pra praia, porque eu não podia sair sozinha, né? Criança sempre tem que estar acompanhada. E eu passeava, ia para o sítio, ia para a fazenda lá em Itatiba, o clube de fazenda de Itatiba. Praia aqui, era assim, More Bug. Eu era mori bugueira. Aprendi a nadar porque em Águas de Lindóia, eu me afoguei, eu vi os adultos pulando e eu pulei. Aí, gritaram lá, meu irmão me puxou e me tirou do fundo da piscina, em Água de Lindoia.
P/1- Vocês foram pra uma viagem?
R- É, pra viajar. Aí, depois disso, eu comecei a fazer natação. Foi onde eu aprendi a nadar. Pra mim tirar a carteira da marinha, teve o teste, tinha que nadar, tinha que boiar e passar na prova escrita. Porque pra gente trabalhar no mar tem que ter habilitação, igual carro, moto, tem que ter habilitação pra barco também.
P/1- E aí, esse treinamento de aprender a nadar é pra poder tirar a habilitação?
R- Não, eu aprendi a nadar porque eu me afoguei numa piscina quando criança.
P/1- Mas você pode tirar habilitação...
R- Mas pra você trabalhar na pesca, tem que passar pela marinha. E a marinha, quer que você nade, boie. Então, eu aprendi a nadar não por causa da carteira de pesca, eu já sabia nadar antes. Mas como eu precisava da carteira pop, da Marinha, então pra mim foi moleza. Na Marinha, na minha turma, eu passei em primeiro lugar.
P/1- E esse barco que a senhora tem, a senhora já teve quantos barcos?
R- Ah, eu tive dois de madeira, que apodreceu, eu joguei fora. Tive um de alumínio que eu deixei lá na Colônia, se acabou, eu joguei fora. E esse agora precisa de uma reforma. Esse é esporte-recreio, que eu tenho agora, é de fibra. Mas agora, dependendo da minha saúde, eu não sei se eu vou poder voltar a trabalhar.
P/1- Dona Cleide, a senhora sente que já sofreu algum preconceito por ser mulher e estar na pesca?
R- Não, porque o pessoal fica abismado. Como eu fui atleta, eu sempre fui uma pessoa pública, eu dava aula em várias escolas. Pessoal, “puxa vida essa menina. Como que ela consegue? Que perigo, ela no meio do mato sozinha.” Mas só que eles não sabem que eu fui atleta. Eu não sei, eu sempre gostei da natureza. Sempre gostei. Nunca dei de cara com onça, mas já vi capivara, já vi cobra. Caranguejo lá. Os animais, é só não mexer com eles. Eu, se eu visse uma onça, nunca mais eu iria. Porque tem, né?
P/1- Mas a senhora não entra sozinha?
R- Entro sozinha, eu fico sozinha. O motorista vai me levar e depois vai me buscar. Eu fico lá sozinha.
P/1- Ele leva até lá e a senhora pega o barquinho?
R- Não, ele me leva até onde eu vou tirar o marisco, fico lá, marco um horário, aí ele vai lá me buscar. Mas passa outros barcos, às vezes, passa outros barcos também. Às vezes tem outras pessoas trabalhando também. Entendeu? O risco, eu já quase me afundei na lama, é perigoso. Você se machucar, minha coluna já travou duas vezes, no mangue. Um galho entrar nos olhos, você tropeçar na raiz de uma árvore e cair. Entendeu? Mosquitos, já teve abelha, um bocado de abelha, eu andando no barco, as abelhas me atacando. E eu não parei porque eu entro com roupa, toca, só fica a mão e o rosto de fora, né?
P/1- Vai de bota?
R- De bota. Agora, a bota só é ruim pra andar dentro do mangue. Então, eu corto ela. Aqui. Porque se você tá com bota por aqui, ela enche de lama, você não consegue trabalhar. E a roupa é por causa do mosquito. Porque tem o porvinha, tem a mutuca. É terrível. No verão, então, é demais. E quanto a cobra, a gente fica de olho. Porque a cobra, ela se enfia no buraco do caranguejo.
P1 - Nunca teve nenhuma picada?
R – Picada, não. Não, eu encontro sim, tô assim, daqui a pouco… É só não mexer com ela. Dizem que as cobras do mangue é cobra d'água, não tem tanto perigo, diz que incha, mas não tem perigo. Mas se tá no meio do mato, pode aparecer qualquer cobra, né?
P/1- Eu queria saber como funciona…. A senhora é cadastrada na Colonia, né? É Z3 que fala?
R- Z3.
P/1- Queria saber como que se faz para se cadastrar e como que funciona depois que se cadastra lá?
R- Então, você precisa levar todos os documentos, tem que ir no cartório para autenticar os documentos. A pessoa paga uma taxa anual e o INPS são oito parcelas. O INPS é pouquinho que paga. E a colônia, quem tem barco tem que pagar pra guardar o barco. E quem tem quartinho tem que pagar o quartinho. Entendeu? Não é muito, mas tem que pagar.
P/1- E qual que é os benefícios que tem sendo cadastrada na Colônia?
R- Depois de um ano na pesca, a pessoa tem o defeso. Depois de um ano.
P/1- A pessoa tem o quê? Desculpa, não entendi.
R- Recebe defeso. Por exemplo, camarão é três meses, você não pode trabalhar, por isso o governo paga um salário mínimo. Mas o pescador, ele ganha mais trabalhando. Aí, tem o defeso do camarão, defeso do peixe, defeso do marisco.
P/1- Que é esse salário que ganha se por acaso acontecer algum problema e tiver que ficar sem trabalhar?
R- Não, esse já é outra coisa. Aí é o INSS. O defeso da pesca é onde o pescador é proibido de trabalhar. Então, durante os meses que o governo paga o salário, o pescador não pode sair pra pescar.
P/1- Mas por quê?
R- É seguro- defeso.
P/1- Mas eu queria entender melhor isso. Ele fala assim, eu vou pagar pra você não ir pescar, mas por que ele tá pagando pra você não ir pescar?
R- Pra natureza se recompor. Entendeu? Por exemplo, o camarão tá no defeso. Durante aqueles meses que o camarão tá no defeso, não pode ir pescar. Aí, para tudo. Nem os funcionários ganham, nem o…
P/1- Mas aí ele paga um salário e quando o pescador tá trabalhando ganha mais?
R- Trabalhando ganha muito mais. E do peixe também. Tem o peixe, tem o caranguejo, tem o marisco.
P/1- E a senhora começou a pescar em que ano?
R- Ah, quando eu era criança eu pegava marisco no Guaiuba, mas não me lembro o ano. Depois de um tempo eu comecei a pescar, fui pescar em Boracéia.
P/1- Mas a senhora sempre teve esse defeso?
R- Não, só depois que eu entrei na colônia dos pescadores. Mas até então, e falta de comunicação. Durante três anos que eu estava na Colônia, não me falaram que tinha direito a defeso. Então, eu não recebia. Eu fiquei três anos sem receber defeso. Aí, um amigo meu falou: Cleide, você recebe defeso? Eu falei: eu não, nunca ninguém me falou nada. Aí, que eu procurei no INSS para receber. Falta de comunicação da Colônia. E também teve um problema, em 2019, não me pagaram defeso. Eu já vinha recebendo defeso, antes de 2019. Não me pagaram e o INPS não pagou. Algumas pessoas receberam, outras não. Na colônia tem advogada particular, não adiantou nada. Até agora não pagaram o defeso de 2019. Eu liguei para 135, eles falaram assim: ah, é que faltou documento. Aonde que faltou documento? Faz tanto tempo que eu já me aposentei. Como que falta documento? Se anteriormente eu já estava... Porque é assim, a gente sempre tinha que levar os documentos ou na colônia ou no INPS. Então, essa história que eles falam que faltou documento, onde faltou? Com advogada particular. A colônia sempre teve todos os meus documentos.
Tá até… Parece que é no Maranhão, tá tendo problema porque teve golpe. Já passou, já foi televisionado. Teve o golpe de 2019. Muita gente aqui não recebeu, muita gente pro lado do Maranhão não recebeu.
P/1- Aí eles falam: não pode pescar… Vamos supor, camarão e vocês não podem sair pra pescar, mas também não recebem nada.
R- Não pode porque a gente trabalha como autônomo. Não é fichado. Não pode pescar porque se a marinha pegar, aí é multa, prende o barco. É problema. Já várias pessoas já foram pegas. É que nem o caranguejo, tá no defeso. Aí, a ambiental pega com caranguejo, aí é problema. Ou tem que fazer serviço comunitário, toma uma multa, aprende o barco, quando é peixe ela prende a rede de pesca. Tem vários fatores.
P/1- E eu queria saber, desde quando você começou a pescar e atualmente, você sente que tem diferença? Tipo, marisco, antes tinha mais, agora tem menos?
R- Tinha mais. É uma boa pergunta. O que acontece? As firmas… O maior Porto é o de Santos, as firmas estão destruindo o mangue... Ilha Barnabé. Aqui vai sair o viaduto. O prefeito de Santos vai fazer o túnel. Já tiraram um monte de gente das palafitas. Eles estão tirando espaço da gente trabalhar. Além de que vai acabando. Então, tá bem complicado. E não para de construir, o Porto todo, já está longe já a construção. E aí, muitas vezes eles proíbem o pescador de pescar em determinado lugar, e acaba com o mangue. Eles estavam vendo se iriam indenizar a gente, mas até agora ninguém falou, porque está na justiça. É que vocês não vão andar no mar, mas se vocês verem como estão construindo firma, e essas firmas não são brasileiras, estão acabando com o mangue, detonando. E a gente não pode fazer nada, não pode falar nada.
P/1- Dona Cleide, desde que a senhora começou, saiu de professora para fazer a pesca. Sempre viveu só da pesca, ou quando está na época do defeso, que a senhora não pode pescar alguma coisa, a senhora faz outra atividade?
R- Eu fazia letreiro, placas e faixas. Letrista. Porque eu fiz desenho industrial na base, técnico de desenho industrial. Aí, na época, um político precisava de letrista. Eu fiz desenho industrial. Aí, precisava de letrista. Aí, eu falei: mas eu não sou letrista, sou desenhista. Aí, ele falou: faz um teste. Aí, eu peguei e fiz um teste e comecei a fazer letreiro, em muro, pano... Não. Muro, pano... De vez em quando alguém pede, por exemplo, o dono da padaria, às vezes, pede uma faixa. Aí eu pego e faço. E nunca parei também. E eu ficava muito no sítio lá com a minha irmã também. A gente nunca para. Sempre tem atividade.
P/1- E é só a senhora que trabalha com pesca na família ou tem mais alguém?
R- Não. Na minha família é só... Tem cabeleireira, professora, que já faleceu. E a minha irmã mais velha é viúva. Meus irmãos, meus sobrinhos são caminhoneiros. E as crianças estão aí, estudando.
P/1- A senhora falou que quando era criança fazia as coisas sempre acompanhada, não podia sair sozinha, criança não pode sair sozinha. E a senhora lembra quando a senhora começou a sair sozinha?
R- Eu já era maior, mas a minha mãe tinha que... A gente sempre teve telefone em casa, tinha que falar com quem estava e tinha horário pra chegar.
P/1- E a senhora lembra quando começou a sair sozinha, o que a senhora fazia?
R- Então, eu trabalhei em plataforma pra perfuração de petróleo, a Nobara, na época, aí eu me tornei mais independente, porque eu ganhava melhor que professora. Aí, comecei a conhecer pessoas, comecei a passear, mas sempre com alguém conhecido, porque até então eu não conhecia muita coisa, não tinha o hábito de sair para os lugares. Graças a Deus sempre frequentei lugar bom. Eu ia para São Paulo, lá para 25 de março, o Brás, porque minha irmã precisava, às vezes, que eu fosse lá resolver alguma coisa da escola dela, como ela era professora. Aí, eu aprendi.
P/1- E me conta um pouco desse trabalho da Petrobrás.
R- Da Petrobrás não, o meu pai. Ele faleceu, eu tinha cinco anos. Esse trabalho que eu trabalhei na plataforma, foi alguns meses, que era a construção da plataforma. E acabou a construção, as plataformas foram para o Iraque, para o Irã, sei lá. E aí, eu voltei a dar aula.
P/1- Mas como que era? Que trabalho que a senhora fazia?
R- Trabalhava no escritório. Auxiliar administrativo, fazia pagamento, chamava a ambulância quando um peão se machucava.
P/1- Acontecia muito isso?
R- É, eu trabalhava dentro de um contêiner, com ar-condicionado e tudo. E era no alto, então eu sabia tudo que estava acontecendo na obra.
P/1- Tinha muitos acidentes?
R- Tinha. Caía, se machucava, porque é só ferro, né? Aí, eu trabalhava até com um argentino, que era o meu chefe lá. Chegava no final de semana, eu fazia o pagamento das peãozadas. Eu falava um pouco de inglês, avisava os gringos quando ia ter reunião, essas coisas. Quando não sabia, olhava no dicionário. Na época foi bom. Tinha restaurante, tudo dentro da firma. Mas os donos não eram brasileiros, não. Nessa época foi boa. Tudo que é bom dura pouco.
P/1- E a senhora lembra de algum acidente muito chocante que aconteceu lá? Algum fato bem marcante dessa época?
R- É pessoa que cai, tropeça, se machuca. De vez em quando acontecia. Era fundo duplo, às vezes eu vigiava onde que estava tal pessoa, se estava no fundo duplo, se estava… em que lado que o peão estava. Entendeu? Eu só tinha que saber tudo.
P/1- E foi nessa época que a senhora começou... Foi seu primeiro emprego lá?
R- Foi. Pra mim foi, mas parece que eu já tinha dado algumas aulinhas antes.
P/1- E foi nessa época que a senhora começou, financeiramente, a ter mais dinheiro para passear?
R- É, para me vestir.
P/1- E quais eram as diversões? Sair com os amigos, namorados?
R-Namorado, pouco. Mas, assim... mais Gonzaga. Já ouviu falar? Em Santos, no bairro do Bixiga.
P/1- Ia se divertir em São Paulo também? E quando ia pra São Paulo voltava no mesmo dia?
R- É, às vezes ficava lá em algum lugar, voltava no dia seguinte. Porque sempre teve metrô de manhã. As baladas de São Paulo vai até de manhã. Então, de manhã eu vinha embora. Mas quando a gente é nova, parece que... Eu era nova, vou na esquina. Eu marcava com o pessoal de Santos e encontrava todo mundo lá no Bixiga. Era como se fosse ali na esquina, não tava nem aí. Pessoa, quando tá com dinheiro, né? Naquela época não tinha van, andava de táxi. E a idade, balada, diversão, muito bom.
P/1- A senhora lembra o nome de alguma balada que ia lá no Bixiga, em São Paulo?
R- Não, o nome eu não lembro. Eu lembro que tinha o Teatro Sérgio Cardoso, por ali. Depois tinha a Estação Santana, uma vez eu estive lá. Em São Paulo eu conheço a Sé, o Brás. Mas diversão, assim... Também não foi tantas vezes, foi algumas vezes que eu fui para São Paulo. Mais era Santos. Santos era o Gonzaga e Ilha Porchat. Mas, para falar a verdade, Santos tem diversão do começo ao fim. Desde aqui, do Ferryboat até o Ilha Porchat Clube tem diversão. Todo lugar tem barzinho, tem vários cinemas. Eu ia muito pra cinema também. Aqui onde eu moro já não tem essas coisas. O Guarujá já é lugar mais pra rico, porque o Guarujá, a praia é pra quem pode, não para quem quer. Custo de vida é bem mais alto. Você vai no mercado lá no Guarujá e vai no mercado aqui, tem muita diferença de preço.
P/1- E hoje em dia, o que a senhora faz para se divertir?
R- Nada. Não posso. É do lar. Do lar, cuidando da saúde, às vezes cuidando do meu sobrinho, das sobrinhas. Porque eu não tenho pai nem mãe, né? A minha irmã que faleceu, eu ficava mais com ela. A minha irmã mais velha tem 80 anos, é doente, só sai com os filhos. E a outra minha irmã tem a filha também que operou. Aí, eu tomo conta... Tô indo ficar com a minha sobrinha porque ela fez cirurgia esses dias, e ela não pode fazer esforço, lá tem escadaria, tudo. Aí, eu vou no mercado, faço compra pra ela, vejo se ela está precisando de alguma coisa, lavo uma roupa, faço uma comida. Ajudar. Porque a gente não sabe o dia de amanhã. Ela é enfermeira, eu posso precisar dela. Já precisei. E não posso diversão, eu não aguento sair à noite, eu não aguento bebida. Depois que eu tive fratura craniana, se eu beber um copo de cerveja, eu fico zonza. Agora eu tô com problema de pressão, não posso beber.
P/1- E a senhora estava falando que vai precisar fazer outra cirurgia, né?
R- Vou. Tem que tirar, porque ele tá... Ele fechou mais, mas tá infeccionado. Por isso eu tô tomando uma porção de remédio. Eu passei mal, foi no dia dos pais, domingo. E tive que tomar remédio, injeção. Aí o médico passou umas injeções pra mim também. O pior que tá eu, tá minha sobrinha com pressão alta.
P/1- Dona Cleide, agora que a senhora está nesse momento delicado da saúde, vai fazer essa cirurgia, a senhora não tá conseguindo pescar, né?
R- Não. Eu tô indo de teimosa e necessidade. Porque aqui são duas casas. Tá vendo? Lá atrás é outra. Eu pago a água e luz das duas casas. Tem que pagar imposto, tem alimentação, remédio.
P/1- E tudo isso tá saindo desse pouco que a senhora tá conseguindo ir pescar?
R- Não. O que eu ganho é pra pagar as contas de casa, celular, água, luz. E o da pesca, pra mim, comprar a mistura, fazer uma compra de mercado. Porque o salário mínimo não dá pra nada. Pega num dia, no outro já não tem mais. E o que eu ganho na pesca, eu ganho uma vez por semana. Então, aí eu compro mistura, ajudo a minha irmã, que se separou do marido também, e ajudo a minha sobrinha. Tem que fazer ginástica com o dinheiro.
P/1- Eu queria saber se tem alguma coisa que eu não perguntei e a senhora gostaria de contar pra gente, deixar registrado na sua história de vida.
R- Não, porque eu tenho um lado triste, de perda de mãe. Que foi 10 anos minha mãe doente. E eu perdi minha irmã, fez um ano agora em abril, perdi um irmão, perdi uma tia. Então, eu não gostaria de comentar. Porque o câncer… Ninguém está livre disso. Tem um mês que eu soube que uma sobrinha minha foi curada. E eu como moro sozinha, eu penso e falo: Deus, me dê força pra passar tudo que eu já passei nessa vida. Só pedindo força pra Deus. Que sem ele a gente não... Acordo, obrigado, Jesus. Infelizmente, nós estamos vivendo num mundo ruim. As pessoas estão ruins, as pessoas não ajudam os outros. As pessoas são maldosas. Se não tem nada, as pessoas têm inveja. Se você tem uma moto, se você tem uma bicicleta, se você comprou uma roupa, tá complicado. Você sabe disso, né? Passa nas novelas, né? A Globo passa tudo. As histórias. Que, inclusive, tá passando, da Odete Roitman, tudo. As pessoas só se dão com a gente por interesse. O que a gente pode oferecer de bom. Experiência própria, porque com a fratura craniana que eu tive, eu não tive ajuda de ninguém. Só de uma amiga para me levar para o pronto-socorro para me internar no Hospital Santo Amaro. Porque eu vivia aqui com uma tontura, dor de cabeça, tudo eu fazia zonza. Tentei afastamento pelo SUS, não consegui porque estava na época do Covid. A gente não podia ir pra lugar nenhum. E graças a Deus, Deus me deu força, eu me virei. Tive que voltar a trabalhar mesmo depois da fratura, porque o INPS não me afastou. Eu coloquei advogada particular, fui em Santos, não consegui. Fui pelo Guarujá, não consegui. Não tive ajuda de ninguém. Então eu conto só com a fé que eu tenho em Deus. Porque no ser humano tá complicado. É muito ruim a gente precisar dos outros. Eu já passei por essa experiência. E eu sempre ajudei os outros. Mas na hora que eu mais precisei... Mas graças a Deus, Deus me deu força. Aí, de vez em quando eu vou na igreja. Eu oro todo dia antes de dormir, quando acordo, agradeço a Deus. E muita fé. Porque nós não somos nada. Você vê, médico morre, a Preta Gil morreu, morreu aquele cantor há poucos dias. Porque quando fala em morte, só fala: “tiroteio que teve no Rio de Janeiro. São Paulo, o cara que matou a mulher.” Você liga a televisão, é só isso. Então, isso pode acontecer na minha família, pode acontecer na família de qualquer um.
P/1- Eu queria fazer mais uma pergunta para a senhora. Como que vocês se reúnem e organizam a festa de São Pedro, a festa dos pescadores? Pelo que eu entendi, vocês fazem todos os anos, né?
R- É, quem faz é o pessoal lá da colônia.
P/1- A senhora ia me contar como que é organizada a festa dos pescadores, que vocês fazem uma ves por ano.
R- Então, o pessoal da colônia, lá, que organiza. Um vai pegar bambu pra decorar, outro põe as bandeirinhas. E eles que organizam lá.
P/1- A senhora não tem nenhuma participação?
R- Não. Ajudo. Faltou vasilha, eu vim aqui pegar. Se precisar ajudar a servir, eu ajudo. Entendeu? Mas não é uma obrigação nossa, é uma obrigação deles lá. Eles são funcionários, eles ganham pra estar lá. Então, eles que fazem tudo lá. Aquele rapaz que me apresentou pra você, ele compra os peixes mais em conta, em Santos, pra poder fazer a festa daqui.
P/1- E a senhora falou dessas empresas que estão construindo bastante, acabam atrapalhando os pescadores. Vocês têm alguma contrapartida dessas empresas? Alguma ajuda?
R- Não. Nós tivemos quando teve um incêndio na Alemoa. Mas está na justiça para elas indenizar. Quem é daqui, quem trabalha aqui. Mas até agora nada. O outro demorou cinco anos pra eles indenizar a gente.
P/1- Outro acidente?
R- É, que foi o incêndio que teve na Alemoa. Caiu muito produto.
P/1- Alemoa é uma empresa?
R- É. Trabalha com petróleo, essas coisas. Pegou fogo, ficou nove dias. Foi um produto da Alemanha que conseguiu apagar o incêndio. Senão acabava com tudo aqui.
P/1- A senhora lembra em que ano foi isso?
R-Tem uns oito anos.
P/1- E vocês ficaram quanto tempo sem poder pescar?
R- Aí, eles colocaram assim... “Monte Cabrão não pode pescar durante três meses. Caruara não podia pescar durante três meses. Ilha Barnabé não podia pescar durante alguns meses.” Eles fizeram um mapa e explicaram onde a gente não poderia pescar. Entendeu? Aí, indenizaram a gente com um salário mínimo.
P/1- Durante esses meses?
R- Durante um ano.
P/1- Durante um ano?
R- É. Agora esse de agora, tá na justiça. Aí, a gente não sabe, coisa com a justiça, a gente nunca sabe. Promotora, tudo. Uma promotora que está resolvendo. Porque, na verdade, essas firmas que pagam e essas firmas são estrangeiras. Eles pagam muito dinheiro para construir, para destruir a natureza, essas firmas estrangeiras pagam muito dinheiro. Agora, para onde vai esse dinheiro, eu não sei.
P/1- E como que foi a pescaria aqui na época da Covid, Dona Cleide?
R- Ah, ficou bem restrito. Ficou ruim. Ficou complicado porque a gente não podia trabalhar. Se o restaurante não pode funcionar, eu não posso entregar o marisco. Aí, fiquei sem trabalhar. E não tinha me aposentado ainda. Ficou bem complicado. Depois começou o delivery, né? Aí melhorou, mas bem pouquinho. Foi triste, mas foi geral.
P/1- A senhora só vende o marisco para o restaurante?
R- Só. E para quem eu conheço. Para alguma conhecida minha que fala: “traz um pouquinho para mim.” Aí eu pego. Mas atualmente só trabalho para um restaurante.
P/1- E para a família, vocês comem também?
R- A família, quando eu dou, eles comem. Eu não estou podendo comer essas coisas porque eu descobri que eu sou alérgica ao ômega 3, e marisco é carregado. Eu sou alérgica à cação, arraia. Ainda eu gosto de peixe, mas, infelizmente, não… Quando é um parati, uma tainha, pescada, perna de moça, que é peixe leve, até como. Mas, dependendo do peixe, eu não posso nem chegar perto. Enquanto eu estiver com problema de saúde, camarão, marisco, ostra, essas coisas eu não como.
P/1- E quais são os seus sonhos hoje em dia, Dona Cleide?
R- Ter paz. A única coisa que pra mim é triste, é eu ter trabalhado tanto e não ser reconhecida. Professora, 16 anos, trabalhei em plataforma, trabalhei de letrista, trabalhei na pesca. E me aposentar com um salário? É uma vergonha. Nunca peguei PIS, PASEP do Estado. Vou no banco, não tem nada. Os direitos da gente, trabalhista, a gente coloca na justiça, o governo não paga. Fazer o quê? E aí, a gente vive em regime de prisão, porque se você não tem dinheiro, você não pode se locomover. Se eu não tiver dinheiro pra gasolina da minha moto, eu não posso me locomover. Entendeu? Isso é de modo geral. Mas é Brasil. Eu moro numa casa que não é minha. A casa era dos meus pais. Quando vender, cada um tem sua parte. Tem que dividir pra cinco. Minhas irmãs têm casa, a única que não tem sou eu. Mas enquanto não venderem, eu tô por aqui.
P/1- E a senhora mora aqui com quem?
R- Sozinha. Minha irmã vem pra cá quando ela vem trabalhar. Essa semana ela não pôde vir porque a filha fez cirurgia. Semana que vem eu acho que ela vem. Ela se separou e tem que cuidar de duas crianças, que são netos. Então, ela vem pra cá ficar quinta, sexta, sábado. Depois vai embora, e na outra semana ela vem, fica quinta, sexta, sábado, e vai embora. Assim. Agora, sonho, a gente na minha idade, quando a gente tá doente, a gente só quer saúde, só. Eu era uma pessoa que eu fazia de tudo, eu pintava, e sempre fazia de tudo, muita coisa. E hoje eu me vejo com esse problema, é triste. E ainda mais o bico que eu faço, não vou poder fazer, que é contato com a lama. O médico falou, você não pode trabalhar. Mas eu tenho que sobreviver. É o que eu falei, o que eu ganho é para pagar as contas de casa. Então, o bico é que me ajuda. E eu ainda ajudo a minha irmã, que ela aposentou com um salário também, mas ela faz os bicos dela. E a minha sobrinha também eu ajudo. Eu não reclamo da vida porque tem gente pior. Tem gente que é materialista, mata, rouba, por causa de situação financeira. Eu não. Eu dou graça a Deus aos meus pais ainda ter deixado uma moradia.
P/1- E lá na Colônia vocês costumam sair junto pra pescar?
R- Não, porque quase todo mundo é casado e eu sou solteira. Esse rapaz que me leva é casado, mas a mulher dele deixa ele me levar porque eu pago R$100,00 pra ele me levar e me buscar. O camarão tá fraco, ele não tá conseguindo pegar. Só que ele é aposentado também. Mas ele sempre fez um biquinho dele também pra ganhar dinheiro.
P/1- E daqui aonde a senhora vai pescar que ele leva é muito longe?
R- Não, muito, muito não. Mas de barco, da colônia pra lá, uns 20 minutos.
P/1- Qual que é o lugar que a senhora pesca hoje?
R- É Ilha Barnabé. Eu pescava às vezes no Monte Cabrão, eu pescava no Caruara, só que os mariscos de lá também acabou, que o pessoal do Perequê pega muito. Acabou os mariscos de lá. E assim, a gente vai procurando onde tem e a gente vai indo.
P/1- Mas não tem esse negócio de território? Tipo, a senhora chegar num lugar pra pescar e já tem um pescador lá e fala: não, aqui sou eu que pesco? Tem alguma coisa assim?
R- Não, não. Não, porque no mar não tem dono. Qualquer pessoa pode ir no mar e pegar marisco. É que a gente... É muito pouca gente que pega marisco. Pro lado do Perequê tem muita gente que pega marisco. Aqui são poucos. “Deus me livre! A lama, não sei o quê...” O cara pesca de rede, mas ninguém gosta de ir pro mangue. Lá da Colônia é só eu. Eu e o Quimba. Tem mais um rapaz que pega. Ele também já é aposentado. Ele tem problema no braço, tira a marisco com uma mão só. E tem na Ilha Diana, só que o pessoal da Ilha Diana também não tá querendo mais tirar marisco. Monte Cabrão, Ilha Diana, Perequê, Caruara. Eu tô tentando ver se eu arrumo outra coisa pra fazer pra sair do mangue, por causa da minha saúde. Não é porque eu não gosto, eu gosto, mas pela minha idade, com o problema que eu tô, eu tô vendo que eu vou ter que parar mesmo.
P/1- E aqui nessa região tem alguma associação, alguma coisa pra fazer curso?
R- Não.
P/1- Não tem nenhuma contrapartida das empresas nesse sentido?
R- Tem, às vezes eles falam. Falaram que ia ter no Monte Cabrão. Às vezes eles inventam na Colônia, mas às vezes eles fazem isso pra não pagar o pescador. Aí, o povo se revolta e fala: eu não vou fazer. Ah, tem criação, fazer criação de peixe. Mas o pescador não quer criar peixe em caixa d'água. O pescador quer pescar no mar. Então, tá complicado. Eu vou ter que parar por motivo de saúde. Não porque eu queira. E também porque a natureza tem que se recompor. Se você fica um tempo sem tirar o marisco, ele nasce tudo de novo. Todo lugar é assim. Tem que dar um tempo, como eu, vou aproveitar para me tratar e depois de alguns anos, não sei se eu vou voltar. Mas eu posso trabalhar com outra coisa. Ou aprender a viver com pouco. Sobreviver. Que na verdade, a gente não vive, a gente sobrevive. Fé em Deus.
P/1- Obrigada, Dona Cleide.
R- Imagina.
P/1- Por receber a gente, dar essa entrevista de vida. Eu queria saber como que foi pra senhora contar um pouquinho, uma parte da sua vida pra gente.
R- É bom pra vocês saberem. Para saberem que a vida da gente não é um mar de rosas. A vida da gente… Carregar quatro, cinco sacos nas costas. Aqui é uma coisa, se você filmar quando eu saio do mangue, é toda enlameada dos pés à cabeça. Terrível. O banho é no mar, até para vir para casa, tem que tomar um banho no mar. Aí, leva a roupa, se troca lá na Colônia, pra chegar em casa pra tomar outro banho de água doce.
P/1- O que o mar representa pra senhora?
R- A natureza é maravilhosa. A natureza é linda. É o ser humano que estraga. Destrói a natureza. Deus fez tudo perfeito, o céu, o mar. O ser humano que é imperfeito.
P/1- Obrigada, eu agradeço o nome do Museu da Pessoa. Toda a atenção que a senhora está dando pra gente.
R- Imagina, se precisar de alguma coisa... Agora, a nossa história é muita coisa, não dá para contar.
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