Projeto Conte Sua História
Entrevista de Antônio Nóbrega
Entrevistado por Lucas Torigoe (P/1) e Ane Alves (P/2)
São Paulo, 15 de agosto de 2025
Entrevista código PCSH_HV1483
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Obrigado por você tá aqui primeiro com a gente, novamente. E vamos começar pela primeira pergunta,então. Como é que surgiu o interesse seu pela cultura popular na sua vida? Como é que se deu isso?
R - Bem, eu sou um recifense, um pernambucano, deveria dizer eu, de Recife. E meu pai era médico. Foi um médico sanitarista. E durante os oito primeiros anos da minha vida, eu vivi em vários interiores de Pernambuco, onde meu pai clinicava, fazendo itinerância. Fui para Recife e acho que nos primeiros anos da década de 60 e estudei no Colégio Marista. Quando eu cheguei em Recife, meu pai percebeu que eu tinha vocação musical porque eu ficava batucando muito nas coisas, principalmente na hora das refeições. E ele então ele disse: “Esse cabra eu acho que tem jeito para música”. E no centro de saúde em que ele clinicava, havia um funcionário que tinha uma irmã que era musicista da orquestra sinfônica de Recife, dona Belinha, que era uma senhora muito muito curiosa, porque ela era daquelas pessoas que tem uma, a gente diz “cacunda”, uma corcunda um pouco exacerbada. E me lembro dela andando pela aquela casa aí, casa antiga lá do bairro de Recife. Tive aulas de violino com ela durante um período e depois com um catalão chamado Luiz Solé. E meu pai também incentivou a música não só a para o filho primogênito - eu sou o primogênito e único homem - mas ele também incentivou a música, o estudo da música das minhas irmãs. Então, uma tocava violoncelo, outra tocava piano, duas tocavam piano, uma tocava flauta, de maneira que tínhamos um conjuntozinho doméstico em casa que tocávamos toda festa de médico, ele nos levava. O conjunto chamava-se “Os Irmãos Almeida”. Por que os Irmãos Almeida? Porque na cidade lá de...
Continuar leituraProjeto Conte Sua História
Entrevista de Antônio Nóbrega
Entrevistado por Lucas Torigoe (P/1) e Ane Alves (P/2)
São Paulo, 15 de agosto de 2025
Entrevista código PCSH_HV1483
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Obrigado por você tá aqui primeiro com a gente, novamente. E vamos começar pela primeira pergunta,então. Como é que surgiu o interesse seu pela cultura popular na sua vida? Como é que se deu isso?
R - Bem, eu sou um recifense, um pernambucano, deveria dizer eu, de Recife. E meu pai era médico. Foi um médico sanitarista. E durante os oito primeiros anos da minha vida, eu vivi em vários interiores de Pernambuco, onde meu pai clinicava, fazendo itinerância. Fui para Recife e acho que nos primeiros anos da década de 60 e estudei no Colégio Marista. Quando eu cheguei em Recife, meu pai percebeu que eu tinha vocação musical porque eu ficava batucando muito nas coisas, principalmente na hora das refeições. E ele então ele disse: “Esse cabra eu acho que tem jeito para música”. E no centro de saúde em que ele clinicava, havia um funcionário que tinha uma irmã que era musicista da orquestra sinfônica de Recife, dona Belinha, que era uma senhora muito muito curiosa, porque ela era daquelas pessoas que tem uma, a gente diz “cacunda”, uma corcunda um pouco exacerbada. E me lembro dela andando pela aquela casa aí, casa antiga lá do bairro de Recife. Tive aulas de violino com ela durante um período e depois com um catalão chamado Luiz Solé. E meu pai também incentivou a música não só a para o filho primogênito - eu sou o primogênito e único homem - mas ele também incentivou a música, o estudo da música das minhas irmãs. Então, uma tocava violoncelo, outra tocava piano, duas tocavam piano, uma tocava flauta, de maneira que tínhamos um conjuntozinho doméstico em casa que tocávamos toda festa de médico, ele nos levava. O conjunto chamava-se “Os Irmãos Almeida”. Por que os Irmãos Almeida? Porque na cidade lá de Recife tinha um grupo que fazia muito sucesso de música, mas era uma música mais de rock chamado o grupo “Os Primos”. Aí meu pai pegou a cola e disse: "Não, vocês vão ser os irmãos, os irmãos Almeida”, como ele tinha o nome Almeida. Mas todo esse preâmbulo é para dizer que eu comecei a cultivar a música muito cedo com o violino. E curiosamente me apaixonei pelo instrumento. E até hoje esse instrumento me acompanha e lá se vão o quê? Quase uns 65 anos que eu praticamente todo dia eu tô violino. Eu hoje já fiz a minha prática. E faço com muita alegria porque a cada vez que eu estudo violino, eu sempre encontro um lugarzinho, uma coisa nova para desenvolver. O músico, uma certa feita, um músico já não nonagenário, o músico alemão que tocava oboé, ele também quando viajava para todo lugar, onde ele tivesse, quando dava o fim da tarde, ele saía e ia pegar o instrumento, tocava. E ele dizia sempre para mim: "Olha, toda vez que eu pego no instrumento, eu já com essa idade eu descubro alguma coisinha que eu ainda não tinha descoberto”. Isso é verdade. A arte faculta isso pra gente. Aliás, eu acho essa dimensão que a arte tem, uma das coisas maravilhosas. Porque primeiro nos entretém. Descobrindo uma coisa, é um é um som que você nunca tinha tirado, é uma afinação ali naquela passagem que é muito difícil que você conseguiu. E além desse prazer, no campo científico. São conexões neuronais que estão sendo feitas. Então, esse homem “nonagentário” e eu com 73 anos, nos beneficiamos também disso em termos de termos uma aptidão um pouco mais maior para falar, para entender as coisas, justamente por essa prática diária que não precisa ser necessariamente tocando instrumento, mas pode ser pela literatura, pode ser pela dança, tudo isso abastece muito a nossa maquinaria neuronal. Pois bem, então esse grupo tocávamos o quê? Tocávamos música, um pouco daquelas que ouvimos conservatório, tocávamos músicas que ouvíamos na rádio e aí estavam um samba, estava Jovem Guarda, estava Beatles. Então era uma maçaroca danada que nós interpretávamos, como eu dizia a você, justamente nas festas ligadas à medicina onde meu pai atuava. Em 1971, então o escritor Ariano Suassuna, e agora eu chego propriamente à sua pergunta, 1971, me convida para o quinteto para fazer parte, uma parte no grupo Quinteto Armorial. Era um grupo que, assim como Orquestra Armorial de Câmara, iria também fazer parte do movimento. E ele sabendo que eu tocava violino, então me convidou para ocupar então o cargo de violinista. E a partir desse momento então, aceitei naturalmente tinha 19 anos, fazia o curso de direito e ainda continuava os estudos de violino. E aí, então eu me deparei com um universo que até então não tinha visitado, sequer conhecia, que era o que eu chamo os mundo cultural popular, porque eu estudava no conservatório, como eu disse, então eu incursionava, eu tinha experiência pelo mundo da música clássica erudita e ao mesmo tempo, pelo grupo caseiro, eu tocava música popular que escutava nas rádios e na jovem televisão. Nessa época tinha o programa Jovem Guarda com Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, vocês não eram nem nascidos nessa ocasião. E aí eu de uma maneira assim repentina, eu fui tomado pela notícia de que havia mundo cultural além desses dos que eu conhecia, que eu frequentava. E mas onde é que eu encontro as expressões, as manifestações desse mundo cultural? Porque se hoje até onde estou gravando aqui em São Paulo, até em São Paulo as pessoas já ouviram o falar de maracatu, de rabeca, de Pif, de cavalo marinho naquela época, bem em São Paulo não chegava esses nomes, chegava muito raramente, mas mesmo em Recife eram nomes que estavam restritos ao período do carnaval, por exemplo, São João. E aí, então, o conceito do Movimento Armorial era o seguinte, a criação de uma arte erudita brasileira a partir das raízes populares. Era justamente essas raízes populares que eu queria conhecer. Então, foi a partir desse momento que eu comecei a visitar os morros de Recife. Diferentemente o Rio de Janeiro, os morros em Recife são chamados Alto Zé do Pinho. Zé do Pinho era um valentão... Muito desses… Morro da Conceição, em homenagem à Nossa Senhora da Conceição. Então é nesses lugares onde muitas das manifestações populares se domiciliam. Os caboclinhos, os maracatus. E aí durante um vasto, um extenso período da minha vida, eu visitei regularmente esses grupos, não só para conhecer teoricamente, mas também conhecer através do meu corpo, experienciar. Então eu ia para, por exemplo, visitar o Caboclinho Sete Flechas e eu chegava lá e me enturmava com os participantes os integrantes do Caboclinho. E durante aquela noite eu participava dos ensaios e aprendendo os passos, ia entendendo a música, música dos caboclinhos. Isso citei o caboclinhos, mas isso eu fiz em relação ao maracatu, por exemplo, eu ia um maracatu de baque virado e além então de eu tentar aprender aquele gestual, eu também buscava a me adestrar no toque das zabumbas, como era chamada na época, o alfaia, o Ganzá. Depois também eu ia assistir cantadores lá no mercado de São José, que era o mercado onde cantadores se apresentavam, onde vendedores da literatura de cordel também estavam por lá. E eu ia lá e ficava escutando aquele pessoal, levava um gravadorzinho, chegava em casa, começava a estudar aquilo. Então eu digo hoje que eu era uma espécie de um franco aprendedor daquele universo. E que foi muito variado e muito intenso. Porque Pernambuco é um… e especialmente Recife. Nós temos lá o grupo do caboclinhos, temos os mais o caboclinho, por exemplo, além da dança, tem três ritmos através dos quais os integrantes fazem as suas danças, o ritmo de guerra, o ritmo de perré, o baiano, ainda tem o ritmo de macumba. Então você imagine que só o aprendizado desse ritmo, desses ritmos é uma é um estudo. Depois tem a dança. Aí eu vou então para o Maracatu. Aí tem o Maracatu de baque virado, como eu falei, e tem o de baque solto, que é o da zona da mata pernambucana. Então isso inclusive é mais denso de expressões, porque ele tem a poesia, a poesia improvisada, tem os embates, os certames, as pelejas. Tem a dança, tem as saídas, tem o cortejo. Bem, foi um período muito longo. Eu me incursionei por esses estudos durante toda a década de 70. foi muito mesmo intenso mesmo. Mais ou menos hoje eu vejo como se uma pessoa dos 19, 20 anos, como muitos fizeram, pegasse a mochila: “Eu vou sair do mundo aqui. Eu vou para a Europa, vou pra América Latina e só volto daqui a 10 anos”. Eu fiz isso só que dentro do meu cercado, dentro do meu quintal. Muito bem. E então isso aí me ajudou muito na construção. Me ajudou não, se tornou a base referencial dos meus espetáculos. A gente tava conversando ali antes do nosso encontro aqui e a Ana falou que assistiu um dos meus espetáculos. Certamente ela deve ter notado essas referências do desse mundo cultural popular brasileiro nesses espetáculos. Então, os meus espetáculos foram sempre construídos a partir desse legado, mas a partir também do outro legado meu. Porque sendo uma pessoa que cursou universidade, pelo menos parte dela, estudou música no conservatório, então o seu trabalho só poderia ser o reflexo desse desses dois universos, dessas transfusões, que existem no que eu faço. E a partir desse momento, então, eu comecei a me interessar também para buscar entender como é que essas manifestações se formaram. Porque eu via ritmos tão bem constituídos, manifestações tão bem organizadas, com todos a sequência da movimentação. Quando saía para um desfile no carnaval, tinha todo um ritual, tá entendendo? Aquilo não foi da noite pro dia, aquilo também não era, aquilo não era muito menos espontâneo. “Ah, vamos organizar”, não. Aquilo é uma coisa que tinha sido decantado ao longo dos séculos. E aí então comecei a estudar esse universo. Mas se a gente pode responder essa questão, eu posso voltar a falar mais para o final. Então começou assim a minha a minha história com o mundo cultural popular.
P/1 - Antes de passar para outra a outra pergunta, me diz uma coisa, para além do Recife, o senhor nessa época do Armorial também foi para outros lugares de Pernambuco ou ficou mais ali?
R - Bem, para além de Pernambuco, eu visitei sim outros lugares do Nordeste,
primeiramente o Nordeste. Depois quando eu vim a São Paulo, a partir de um projeto que eu fiz com um cineasta carioca, o Belisário Franca, então fizemos uma pesquisa, uma itinerância de estudo e gravação por quase todo o Brasil. O resultado desse trabalho foi apresentado em algumas televisões. Ainda hoje, as televisões vez por outra apresentam… Me lembro que a TV Futura apresentou algumas vezes. Mas deixa eu voltar então para ser mais específico, mais particular em sua pergunta. Eu visitei sobretudo os estados do Ceará e especialmente a região do Cariri, a região do Crato, Cariri, onde se concentram os reisados, cantadores, folheteiros, o Maneiro-pau. E eu também tenho antecedentes cearenses. Meu pai é da cidade Lavras da Mangabeira, que é próxima ali à região do Cariri. Então, foi também os ternos de pífano dos irmãos Aniceto, por exemplo. Então, tudo foi nesse período aí desses desses 10 anos. Visitei também o estado de Alagoas para conhecer os reisados, os guerreiros, os tocadores de rabeca. E tudo isso foi se somando. Na Paraíba também, os mamulengueiros. Agora o centro mesmo maior foi Pernambuco. Primeiro porque eu morava na e particularmente Recife, tinha tudo Recife tinha Ciranda, tinha pastoril, o velho de pastoril, tem um que chamado de pastoril profano, tinha um pastoril religioso. De certa maneira Pernambuco correspondeu durante muito tempo a uma grande capitania. Onde estava, sem querer menosprezar, diminuir os outros estados, como Alagoas, mas aquilo tudo fazia parte de uma grande área. Eram duas grandes áreas, a capitania de Pernambuco e a capitania da Bahia, cujo epicentro, cujo coração financeiro é a extração canavieira. E por conta disso, e até eu sem você ter me perguntado, eu até respondo uma questão que às vezes me fazem, que é a seguinte: por que a região nordestina é tão rica em manifestações culturais, diferentemente de outras regiões do Brasil? Isso é uma verdade, sim, mas é uma verdade factual, compreensível historicamente. Por quê? Porque foi nessas regiões onde onde a máquina econômica primeiro começou a funcionar devido à extração canavieira. Então isso quer dizer o quê? Mais escravizados, mais índios domesticados, como se dizia, e mais portugueses das classes do mundo rural português. Então isso fez com que a máquina, não só econômica, mas a máquina cultural começasse a girar, trabalhar mais cedo. Então essas formas se desenvolveram com mais antecedência do que a dizer mais porque, por exemplo, o ciclo da cana de açúcar só ocorre em finais do século XVIII. O ciclo da mineração também. Então, nessas regiões começa a máquina econômica e a máquina cultural a ficarem mais densas, um século e meio depois. Os ciclos econômicos também foram muito importantes na formação e desenvolvimento do mundo cultural popular. Por quê? Porque quando um ciclo, por exemplo, o ciclo canavieiro se exauria: “A cana aqui já não tá dando mais nas Antilhas, tá sendo melhor para exportar. O que eu faço com a mão de obra que agora fica ociosa? Eu vendo para, mando para outras regiões”. O ciclo seguinte foi o da mineração. Então esse pessoal, sobretudo os escravizados e mestiços que eram obrigados quase como à diáspora interna a ir para outras regiões, não somente levavam seus corpos fatigados, marcados pela dureza do trabalho, como também já levava uma memória cultural que se ia gestando. Então isso representa, isso é uma das razões pelas quais a gente tem, por exemplo, Bumba Meu Boi no Nordeste, Bumba Meu Boi no Sudeste, porque houve essa itinerância, das camadas populares, entre outros fatores que talvez dê tempo de eu falar aqui.
P - E eu juro que passo pra próxima pergunta, mas só mais duas, se o senhor me permite. Essa aqui é com relação ao senhor, ao puxar na memória nessa época de franco aprendedor, o senhor se lembra algum dia ou alguma expressão cultural que te marcou muito assim, que venha na sua memória agora? Imagino que tenha várias, mas um momento.
R- Olhe, momento, enfim, todas me marcaram bastante. Porque eu me encontrei muito com os mestres dessas manifestações. Então, eu tive uma relação também afetuosa de amizade, como por exemplo o passista de frevo pernambucano, como é o nome dele? Nascimento do Passo, o maior passista pernambucano era um amazonense. Tem uma história muito curiosa, contando rapidamente aqui. Ele era meninote e ele pegou um avião, um navio desse, tinha oito, avião por aí, entrou clandestinamente em Manaus, num navio de cabotagem, desses que paravam em vários portos do litoral brasileiro, pegar pessoas e pegar também mantimentos. E quando chega aí no porto Recife, ele sai da toca e vai fazer um passeio pela cidade com interesse, evidentemente, em voltar logo para sua toca. E aí quando ele retorna, o navio não via nem mais a fumaça do do rapaz. E aí ele fica lá e curiosamente ele primeiro ele não tinha somente desconhecido e desconhecedor daquela realidade. Aí ele então vive de engraxar sapato, de carregar coisas perto do porto. Até que um dia uma família de um alemão o contrata para ele ser uma espécie de um guardião da casa, um caseiro da casa, e uma casa que ficava aos fundos de um dos clubes de frevo de Recife. Então ele escuta aquela música e ele teria sido um menino que também incursionara pela brincadeira do boi amazonense, o menino do boi que ele chama. Então ele tinha quando criança tinha justamente também exercitado na dança. É uma pessoa vocacionada. Tinha interesse pela dança. E é desse conluio, seja esse menino que vai se tornar com o tempo o grande passista pernambucano, aquele que mais representa o frevo da cidade de Recife. Pois bem, então ter essa figura, então foi uma pessoa que eu me afeiçoei muito. Outro foi o Mestre Salustiano, que aqui eu acho que em São Paulo, o nome dele chegou a aparecer em alguns momentos, que foi uma pessoa também muito importante lá pra cultura do mundo cultural popular, foi muito amigo de Ariano. Então, com ele também, já num período já bem posterior ao meu conhecimento, Nascimento do Passo, eu visitei muito na cidade de Tabajara, ali pertinho de Recife, onde ele morava, acompanhava a brincadeira. Depois, o próprio filho dele, o Pedrinho Salustiano, veio tornar-se integrante do meu grupo e a gente viajou juntos, ele como um dos jovens que dançava. Então são, eu tenho memórias assim bastante boas de todo e muito desses brincantes. Ainda hoje, por exemplo, eu sou muito amigo de um jovem que eu vi dançando com 3, 4, 5 anos, que é o herdeiro do Zé Alfaiate, do Caboclinho Sete Flechas. Ao longo dos anos, eu tive vários mestres populares e, por exemplo, o Caboclinho Sete Flechas, uma pessoa que eu tive como mestre foi o Zé Alfaiate. Ele durante as horas vagas era alfaiate, porque ele se dedicava mais ao caboclinho durante todo os dias de sua vida, fazendo os adereços, as roupas dos caboclinhos que iam desfilar no período carnavalesco. Um filho dele que eu conheci com 3 anos de idade, hoje é quem o representa, porque ele faleceu, é o Paulinho Sete Flechas. Esse menino, então eu tive aula com ele e quando ele tinha 15 anos. Hoje é um, acho que ela tem mais de 50 anos.
P/1 - A última pergunta antes da gente passar, que por coincidência eu trouxe aqui a minha cópia.
R - Quinteto Armorial. E tá novinho esse.
P - Não sei se o senhor quer, se ajudar alguma coisa na memória, mas tem até o senhor aqui atrás, bem novinho mesmo. O Senhor falou…
R - Tá bem bem conservado esse, rapaz… Pouquíssimo… Muito bom. Bacana.
P/1 - Na capa é “Do Romance ao Galope Nordestino".
R - Essa aqui é uma gravura, inclusive do artista plástico Gilvan Samico. Na verdade é uma xilogravura. Eu acho que essa é. E se bem que ele fez uma pintura com esse tema que eu acho que é Alexandrina e o Pássaro de Fogo, que até uma homenagem a Stravinski. Ele tem um álbum chamado “Pássaro de Fogo".
P/1 - E há uma, quem ouve, às vezes fala que há uma ligação com alguns temas até medievais da Europa. Essa ligação, o senhor foi aprendendo, entendendo nesse momento também nessa pesquisa? Como é que isso entra na sua arte?
R - Há algumas relações entre a música que fazíamos com a música medieval europeia. E nesse LP que chamava Long Play, tem, eu acho que é a sonoridade. A sonoridade remete um pouco… Por exemplo, a música medieval ainda não tinha o violino, ela tinha o que nós chamamos, ela tinha um violino preliminar, um violino ainda de menos recursos, que é o equivalente da rabeca. Então, os dois têm a mesma sonoridade. A viola dedilhada de cordas duplas, um instrumento também comum na música medieval europeia. Aqui tem, por exemplo, um bendito, uma música religiosa das romarias, tem um um romance. Um romance é uma narrativa em versos que conta uma história dramática, uma história épica, uma história cômica e que também é de nascimento antes do 1500. São histórias que remetem ao ciclo de Carlos Magno. Carlos Magno nasceu ainda no primeiro milênio. Mas as histórias, os feitos de Carlos Magno reverberaram de tal forma que ainda já ainda em meados do 1500 se cantavam se contavam histórias ligadas ao mundo de Carlos Magno. E tem também músicas que remetem especificamente ao a ao mundo cultural nordestino, o repente, por exemplo, que é um o próprio nome repente remete a um tipo de poesia que é tirada de improviso. Daí o nome “repente”. O Mourão também não era nenhuma homenagem ao ex-vice-presidente, longe disso. Mourão é o nome de uma forma poética. Depois eu posso falar até um pouquinho sobre isso. Mas é um nome árabe e que vem daquelas estacas, não sei se vocês já visitaram o Nordeste, nas fazendas eles colocam as estacas de madeira e arames ou arame farpado que vão ser. Então aquele pino ali chama-se mourão. Eu não sei de onde nasceu. Então essa forma poética que tem como referência essa estaca.
P/1 - Última pergunta mesmo, tá? Eu juro que agora a gente troca. Essa sonoridade que você falou, quanto que ela é criada e quanto que ela é retirada de uma raiz…
R - Uma cópia.
P/1 - É uma cópia, se o senhor…
R - Não, tô entendendo. Olhe, ela é quase toda uma reinterpretação, não tem propriamente uma repetição ipsis litteris daquilo que a gente escutou. O objetivo então do nosso trabalho no campo da música, da música armorial, era uma reinterpretação, uma ressignificação, uma recriação. O compositor mais importante do grupo não fui eu, foi o Antônio José Madureira. Ele foi o autor de 60, 70% das obras veiculadas pelos nossos quatro álbuns. E essa dinâmica consistia em quê? Primeiro o próprio agrupamento. Esse agrupamento não existe no mundo popular, mas os instrumentos existem. Por exemplo, uma viola dedilhada, um violão, uma flauta, um violino e um marimbau, que é uma espécie de berimbau tocado de maneira horizontal. Ao invés de uma cabaça, ele tinha duas latas aqui que funcionavam como caixa de ressonância. E aqui você tinha então uma vareta e um vidrinho, uma moeda que você dava então as notas. Então você tinha uma escala. Depois então a gente construiu um que não tinha mais as latas, mas sim tinha uma caixa de ressonância, um corpo aqui, um fosse um o quê? Uma coluna quadrada com a boca aqui pra ressonância e duas cordas. Então tem uns instrumentos, mas foi utilizado pelo quinteto e depois esse instrumento foi utilizado por um outro artista lá no Nordeste, mas não praticamente ficou nisso. Então esse instrumento era utilizado muito pelos músicos de feira. As feiras, nos mercados nordestinos se via muito. Os pedintes, os cegos. Sobretudo tocando aquele instrumento e cantando ao mesmo tempo que se acompanhavam. A viola por conta do mundo dos cantadores. O violão nem se fala, uma presença marcante na música. Então com isso a gente conseguiu um timbre muito diferenciado. Muito diferenciado por um lado, porque ele não tinha nenhum conjunto com essa formação e ele era uma síntese de vários. E viajamos muito, podemos dizer que tivemos muito êxito na nossa história. E viemos muito a São Paulo, lançamos aqui, os LPs foram lançados aqui, fizemos duas excursões pela América Latina. E éramos bastante prestigiados no sentido que tinha um público muito que nos acompanhava quando viajávamos. Mas depois eu deixei o grupo em 1980, época em que também ele deixou de existir naquela sua formação. Aí tornou-se, mudou… O Madureira, então começou a dirigir um grupo chamado de Romançal. Eu comecei a partir desse momento, dos anos 80, a criar os meus espetáculos pessoais que criava, dirigia e atuava. E foi um momento também que coincidiu com a minha vinda aqui para São Paulo.
P/1 - Acho que uma boa ponte, porque justamente você falando muito da música, mas você hoje é conhecido como multiartista e como é que dá sua relação com outras expressões artísticas, onde que você foi começando a explorar a arte de outra forma, você já começou um pouco a falar, mas enfim.
R - Então, quando eu comecei a me afeiçoar e aprender com os artistas populares, eu não fiz uma seleção do que eu aprendia. Um pouco consciente mesmo, intuitivo e tomado pelo desejo de dominar aquele universo. Então, quando eu me vi, eu tinha um acervo de recursos no campo da dança, no campo do canto, no campo do conhecimento das formas poéticas da canção e vi que aquilo tudo era um bom passaporte, era uma boa referência para a criação dos meus espetáculos. E eu fui sempre ávido em conhecer, em estudar, em me apresentar. A cada momento, eu fui reunindo esses conhecimentos e criando os espetáculos. E muito desses espetáculos obedeceram a determinadas fases. Por exemplo, teve um momento que eu me dediquei muito ao teatro, porque eu construí um personagem chamado Tonheta, que era baseado muito nos bufões, nos palhaços. Não são palavras das mais adequadas para esse personagem. No mundo popular se chamam Mateus, Mateus de Bumba Meu Boi, Velho de Pastoril. Então eu fui aprendendo muito com eles, os trejeitos corporais, as maneiras de dançar, os chistes que eles falavam, e com o meu conhecimento também do cômico não popular, isso quer dizer Chaplin, cômicos como, por exemplo, Totó, não sei se ouvi falar que é uma coisa muito boa, Cantinflas. Então tudo isso fazia parte da minha bagagem. E o meu personagem de Tonheta até um pouco, uma síntese, não digo, mas uma soma rezada por mim. Os personagens também da literatura de cordel, os chamados amarelinhos. E criamos dois espetáculos. Eu digo porque esses dois espetáculos foram criados por mim, Rosane, o Bráulio Tavares, um escritor e poeta paraibano que mora no Rio. E o primeiro deles com a colaboração do Romero de Andrade Lima. Colaboração extensa, porque ele foi autor dos figurinos, foi quem nos dirigiu. Então, esses dois espetáculos, o primeiro chamou-se Brincante e o segundo, Segundas Histórias, foram criados a partir do personagem Tonheta, cujas histórias, cujo cujas facécias, cujas aventuras eram contadas por um casal de artistas mambembes chamado João Sidurino e Rosalina de Jesus. Então, na verdade, eram somente nós dois como intérpretes, eu e Rosane, e que contávamos a história desse Tonheta. Então, como o personagem Tonheta é um personagem masculino, então naturalmente eu fazia o Tonheta e aí tinha todo um jogo de cena, que era um certo momento era o João Sidurino, mas essa certa altura era Tonheta. Aí nesse momento Rosane contava a história. Então, quer dizer, a gente se utilizava da dramaturgia para contar. Então isso a minha minha formação de dramaturgia não veio do mundo popular, mas as referências de personagem da música que eu fazia dos cantos, tudo vindo lá. Então assim, é uma transfusão que dentro da minha dimensão acho que realizei satisfatoriamente. Então foram dois espetáculos. Aí depois eu entro no mundo do show. Não… Aí teve a dança, teve um espetáculo de dança que eu fiz “No Reino do Meio-dia” que estreou no num num festival chamado Carlton Dance Festival. Imagine, Carlton era uma marca de cigarro. Imagina o nome de cigarro, isso foi em 1989. Não tá muito longe. Você veja como a gente andou e muito nesse aspecto. Então, o festival internacional foi no Sérgio Cardoso que eu me apresentei, era um solo de dança, 1 hora 20 eu sozinho, e então que quer dizer uma vertente dos meus conhecimentos. O Tonheta já era uma vertente teatral. E teve um período da minha vida em que eu me dediquei, isso já na no no século XXI, acho que por 2000, os começos do século, eu me dediquei muito à dança, criei vários espetáculos de dança, criei uma companhia. E espetáculo “Humus”, espetáculo “Pai”, “Passo”. Esses são os que eu me lembro. Teve também espetáculos que eu dediquei a determinadas manifestações culturais como frevo, um espetáculo chamado “Nove de Frevereiro”. E bem, teve outros dedicados, por exemplo, aos trabalhos de Mário de Andrade, chamado “Na Pancada do Ganzá”. E assim por dentro foram muitos. Tem sido muitos espetáculos, porque ainda ainda tô criando alguns deles. E na verdade isso é o que faz a gente ter alegria pela vida. A gente tá sempre com a chama, o ímpeto da criação, do movimento. Isso nos ajuda muito a fazer com que a vida seja mais prazerosa, mais edificante, mais gostosa.
P/1 - E uma curiosidade, por que você pensou já em montar espetáculos? Porque você vinha de fazer CDs, LPs no caso, da onde surgiu essa ideia de fazer uma coisa que é ao vivo?
R - Bem, primeiro porque eu comecei a me dedicar à dança, aprendendo com os artistas populares. Aí o pessoal dizia que eu dançava bem. “Eita, você dá uns pulos, dá uns pinote”. Aí eu vi aquele personagem do cavalo marinho, aprendia aquele negócio. Aí a cabeça começou a fabricar ideias, histórias, canções. O meu primeiro espetáculo, ainda participando do quinteto, eu estreei em Recife, no teatro Santa Isabel, acho que em 1977, chamada “A Bandeira do Divino”. Até tinha uma canção também, mas não era na época, mais próximo ali até do Ivan Lin. Não tenho nada uma coisa a ver com a outra, mas curiosamente eu montei um espetáculo. Então veio esse fogo. Talvez também a minha a minha infância ou juventude com o conjunto familiar que eu não, eu cantava com as minhas irmãs, mas aqui eu também eu recitava poemas. Ah, velho, eu no Marista, quando era marista, eu ganhei dois concursos de de poesia e de e de canto assim, com 13, 14 anos eu cantei. Um ano, eu ganhei isso com a música calhambeque de Roberto Carlos e no outro ano eu ganhei com Arrastão de Elis Regina. “Hoje tem arrastão”. Não sei ouvir essa música cantada… Aquele bração. E ganhei ainda no campo da poesia com o poema de Vinícius de Moraes. Como é? O operário em construção. “Era ele que ia casas onde antes só havia chão. Como um pássaro sem saas, ele subia com as casas que lhe brotavam da mão. Mas tudo desconhecia de sua grande missão. Não sabia, por exemplo, que a casa de um homem era um templo, um templo sem religião, como tampouco sabia que a casa que ele fazia”, e assim vai. É um problema longuíssimo que eu decorei todo e se eu reanimar aquele vai surgir quase tudo. Então, eu acho que esse esse impulso, essa animosidade em relação à arte foi cultivado desde jovem. Então, depois que eu aprendi aquele negócio, aí eu só fui seguir. Aí houve uma coisa muito interessante que foi o casamento desse mundo intuitivo, desse mundo emocional, sensorial, com o mundo intelectual. Quando eu comecei a ver nesse mundo cultural uma coisa rica e comecei a fazer perguntas. Mas ora bolas, por que isso é tão mal conhecido? Por que é que isso não chega, não tem uma dimensão maior no país? Isso foi mais um elemento de me impulsionar a prosseguir com com essa história, porque muita gente pergunta, mas eu me dei uma vez numa fila, não vou dizer quem foi que me fez essa pergunta, são uns 10 anos atrás, tava numa fila de teatro e um grande produtor me perguntou: "Mas Nóbrega, você ainda continua com essa coisa de folclore?” “Olha para aí. Nem a palavra folclore eu gosto. Eu acho uma palavra muito errônea para dar nome a esse mundo cultural popular”. Mas eu levei isso no riso. Porque se eu continuo ainda trabalhando dentro desse universo, é porque eu vejo raízes profundas. Errado ou certo, mas eu ainda enquanto eu encontrar razões que me fazem criar e estudar esse universo, eu vou fazer e não vejo isso como nenhuma assim como uma vertente de cultura. Isso é uma coisa que eu gostaria de assinalar até nessa conversa que eu acho que essa dicotomia assim de cultura popular para um lado de uma cultura erudita, uma cultura, isso não faz, isso não é bom para a cultura no Brasil. Eu acho que a gente tem que buscar no mundo cultural popular uma dimensão brasileira. Assim como certas formas já são. Por exemplo, o samba. Veja o samba, qual é a origem do samba? Entre os ingredientes estão as cantigas e as formas de dança do Recôncavo baiano. Os baianos que vieram para o Brasil no final do século, em busca de trabalho e por outras razões trouxeram para o Rio de Janeiro a memória desses cantos, dessa maneira de dançar, que se juntou aos cantos e danças de origem africana banto, e deram no samba. Então o samba, enquanto gênero, nasce no Rio de Janeiro. Mas as formas de samba não nascem no Rio de Janeiro. Os sambas rurais são vários. O coco é um samba. A gente vai, por exemplo, às vezes diz: "Ó, o samba é de coco." Se você vai, por exemplo, ao Maracatu rural, o pessoal disse: "Vamos para uma sambada de maracatu". Vamos para um samba de maracatu. Samba é uma palavra de uma extensão muito vasta. É festa, é brincadeira, é pagode, é música, é poesia. Por exemplo, as formas poéticas usadas no Maracatu rural são chamadas de quê? Samba de quatro. O que é o samba de quatro? É a quadrinha. Samba de seis é a cestilha. Samba de 10 é a décima de sete sílabas. Então você vê, a presença de uma palavra que quando emigrou, quando chegou aqui pelos emigrados do Nordeste brasileiro, deu a origem na casa, inclusive de uma baiana, da famosa tia Ciata, na cidade nova do Rio de Janeiro, há uma forma que com o tempo veio se chamar que não com o tempo que não nasceu por conta de do registro que o João da Baiana fez o Donga, o Donga fez no famoso “Pelo telefone” e que hoje é um gênero, como o baião. Por exemplo, o baião às vezes diz o baião de Luiz Gonzaga. Não, o baião não é Luiz Gonzaga. O gênero se legitimou com Luiz Gonzaga, mas o ritmo “tum tum tum. Eu vou mostrar para você”. Esse ritmo é anterior a Luiz Gonzaga. Muito anterior. É um ritmo presente nos batuques, coco de roda. Essa célula rítmica, ela é muito presente na música brasileira e nordestina especialmente. Então, o que é que Luiz Gonzaga faz? Ele legitima um gênero a partir de quê? Do uso de uma sanfona, de uma zabumba e de um triângulo. Uma forma que não era usada no nordeste, este era um folezinho aqui, zabumba tocando. O triângulo foi bem posterior, ele coloca uma sanfona, quer dizer, nessa sanfona, ele começa a impregnar o seu tocar com harmonias novas, com harmonias que vem já do mundo cultural não popular, que já vem de outra vertente. Então o pessoal do samba, o pessoal do baião são pessoas que mantém já uma ligação, uma conversa com o mundo cultural, não só popular. Eles fazem de certa forma a mesma coisa que nós fazemos oficialmente com movimento armorial e já faziam isso com anterioridade. Então o movimento armorial é muito interessante enquanto postulado, “ó, vamos tomar conhecimento disso. Precisamos acender essa ideia, retomar essa ideia de uma arte brasileira em consonância com as raízes populares”. Mas se a gente olhar direitinho, o choro já tinha feito isso. O Guimarães Rosa, de certa forma, já tinha feito isso com a sua obra literária. Cecília Meireles já tinha feito isso com o Romanceiro da Inconfidência. Então, o chamado de ariano era reenfatizar uma questão que já uma situação, contexto cultural do Brasil que já também havia medrado, já havia aparecido nas vozes de alguns criadores de Pixinguinha, Villa Lobos, etc.
P/1 - E fazer isso no Recife?
R - E fazer isso com a dimensão sobretudo nordestina. E no nosso trabalho a dimensão é muito sertaneja, porque como o homem, Ariano era um homem sertaneja, então as referência que ele nos passava, ele não era um músico, mas era uma pessoa de era uma pessoa muito musical e de muitas referências musicais. Então se você fizer uma um estudo cronológico das músicas do Quinteto, você vai ver que ele começa no sertão, mas ele chega no litoral. Ele se abre muito para o litoral. E por conta até da trajetória do próprio Ariano, por conta da nossa presença, que somos pessoas do litoral. E nenhum de nós nasceu num sertão, embora eu tenha familiares sertanejo, eu visitava para lá, mas a minha formação em termos de mundo cultural popular é mais litorânea. O que quer dizer ter uma presença africana maior do que a do sertão.
P/1 - Um parênteses assim, porque eu lembro que a primeira vez que eu ouvi, eu falei com o professor que eu cresci em Pesqueira, eu não consigo tirar que o interior de Pernambuco é tem essa sonoridade. Então é muito que o senhor falou, eu acho.
R - É, exatamente.
P/1 - Voltando aqui, então…
R - Mas isso veja, tem uma questão até que essa questão que você tá levantando é muito boa, porque até no Sudeste às vezes as pessoas fazem grupos de música armorial e às vezes obedece ao instrumental nordestino. Quando a gente pode, é uma opção também, mas quando Ariano dizia e repito com ele, uma música brasileira referenciada nas raízes populares, não quer dizer somente nas raízes populares de nordestina. Por exemplo, a gente tem instrumentos que são próprios do mundo cultural popular, mas do Sul e do Sudeste, e que devemos utilizar. E numa visão mais arrojada ainda, eu acho que também o instrumento é um porta-voz. A música, a linguagem, isso é que é importante. Por exemplo, a linguagem do jazz, você pode tocar jazz com qualquer instrumento, desde que domine a linguagem. A música de Bach ou a música erudita, você pode dominar desde que domina a linguagem. Aquela linguagem você aprende no conservatório. A linguagem do jazz você aprende praticando jazz. E a linguagem do choro você aprende praticando choro. São linguagens específicas. O violino existe na música árabe, mas ele é tocado de uma forma completamente diferente dessas. Por quê? Porque ele, o músico, emergiu dentro daquela forma de tocar. E isso é que eu chamo, que nós devíamos chamar de diversidade cultural. Hoje a diversidade cultural, por exemplo, que às vezes chamam, está muito restrita ao mundo cultural do ocidente e da música popular. Para se dar uma citação moderna aqui, por exemplo, você vê agora os festivais, um The Town, às vezes quando fala em música, cultura musical, a música universal, os ritmos são o rock, o heavy metal são os que têm primazia. E os ritmos e no Brasil, aqueles que têm uma ligação com eles, o rap, o funk. Não, tudo bem, mas o problema é o seguinte, aqui existe um acervo, um bolsão de outros ritmos que sim caracterizariam a diversidade cultural brasileira que não estão contemplados nesses festivais. Tem o Baião, tem o Frevo, tem o Carimbó, tem imensidade e ritmos que ainda nem são conhecidos. Eu tenho muitas canções, por exemplo, dentro da rítmica do caboclinho, que é um ritmo maravilhoso para fazer canções. Tem um também do ritmo de guerra. Tac tac. “Sou Pataxó Xavante Cariri, Ianomâmi, sou Tupi Guarani, sou Carajá, sou Pancararu”. É um ritmo de guerra. Então esses ritmos ainda são pulsantes. E no meu entender, uma das razões pelas quais eu tenho o Instituto Brincante, pelas quais eu dou curso de poesia é para fomentar as novas gerações, essas formas poéticas. O pop maracatu rural, faço canções na dimensão desses ritmos. Apenas elas não serem muito divulgadas, mas tudo bem, isso já é já é outra questão. Então, esses festivais, eles propõem uma música chamada universal ou qualquer coisa ou internacional, mas de uma determinada faixa. A tal da diversidade é um conceito mal empregado, faz parte de um de uma de um de um universo de certa homogeneidade cultural. Onde está a indústria cultural, etc.
P/1 - Essa coisa de regional e nacional ou regional e universal, como é que você olha essa questão?
R - Olha, eu tô utilizando ultimamente um termo que Mário de Andrade usava muito, a gente precisa “desgeograficar” o Brasil. Então, o que nós entendemos por regional é onde aqueles elementos constitucionais da cultura brasileira mais se firmaram. Mas na verdade eles estão presentes em todo o Brasil. Sabe por quê? Porque nós tivemos o quê? 75% dos escravizados que vieram para o Brasil durante os três séculos primeiro foram do grupo Banto da região Congo-Angola. Foi, foram os escravizados banto que foram para extração canavieira, para mineração, para o cafezal. Quando os portugueses invadiram, acharam, encontraram qualquer um desses termos, o conjunto deles pode ser colocado o Brasil, o que seria o Brasil no futuro, eles encontraram em todo o litoral, em toda a faixa litorânea, um grupo indígen da grande família Tupi, do grande povo Tupi, distribuído em várias populações, mas com afinidades culturais, a ponto de terem cosmovisões, línguas, as mesmas, com pequenas diferenças. Então, vejam, havia uma unidade na diversidade dos povos que estavam presentes no litoral, na grande faixa litorânea do Brasil. Havia uma unidade cultural dos povos escravizados. E uma coisa que é importante a gente entender é que nós às vezes colocamos a presença portuguesa na formação cultural do Brasil como se fosse um grande bloco. Mas não é um grande bloco. Portugal já no 1500 era uma sociedade dividida em classes. Existia a classe da aristocracia, ou seja, a classe dominante, dominante no sentido do poder econômico, etc., que era aristocracia, a igreja que tinha um poder muito grande, ainda tem. E a burguesia mercantil que começava dar o ar de sua graça, a razão pelo qual aconteceu a empresa da navegação. E no outro lado existiam as castas populares que eram praticamente campesinas, era meio rural, quase toda analfabeta. E esse povo então tinha uma cultura também que era resquício de quê? Da cultura romana, cultura grega, cultura dos celtas, dos iberos, dos bárbaros. E foi criando a cultura que ficou no campo. E é esse pessoal que vai trazer o mundo cultural, que vai se juntar com a cultura dos tupis, com a cultura dos bantos durante esses três primeiros séculos e vai gerar isso que a gente chama da cultura popular brasileira, de um acervo, de um húmus, como é que eu gosto de usar? Daqui a pouco vem a palavra de um lastro, de um lastro de cultura que não pode ser chamado de folclórico, porque a palavra folclórico quando foi inventada dizia respeito às manifestações que estavam se extinguindo, aquela sabedoria do povo que a gente tem de registrar, documentar, porque vai acabar, como de fato na Europa com a revolução industrial se acabou, porque o pessoal começou a sair do campo para essa cidade e essa cultura praticamente reduziu-se a nada ou então ficou naqueles grupos que as que repetem, como por exemplo os ranchos folclóricos portugueses, por exemplo. Então, generalizando, é claro, mas há o diagnóstico é esse. No Brasil não, não é uma cultura para ser guardada em museu, não é uma cultura para ser preservada, é uma cultura para ser vivida, é uma cultura para ser trazida para o mundo em que vive. E o maior exemplo disso ocorre no dia a dia. O samba foi isso, o baião, os cultos, a religiosidade africana, a religiosidade indígena, a religiosidade umbanda. Então, é um Brasil que tem uma corrente de cultura viva, que não é nada de folclore. Que a gente tem uma corrente de cultura aqui viva e tem uma outra que é europeia, que é ocidental, que se chama de erudita, que é outro conceito errôneo, porque uma cultura das classes populares pode ser uma cultura erudita. Ou seja, a cultura erudita é uma cultura complexa. De onde vem a palavra erudito vem extrude, não rude, então, muito bem. Então você pega, por exemplo, um galope a beira mar, velho, uma estrofe de 10, uma estrofe de 10 versos com rimas que ocorre entre o primeiro, o quarto e o quinto, o segundo e o terceiro, o sexto, sétimo e o 10º e oitavo e o nono. Então, todo martelo agalopado tem que ter essa rima e que tem que ter uma prosódia onde se acentua no terceiro e no que “pa pa pá p pa pa pá p pa pa pá. Certo dia eu subi numa zelação, fui ao céu e prendi as nebulosas, apaguei as estrelas luminosas dos planetas, parei a rotação. E São Pedro, notando a confusão, foi dizendo a Jesus numa entrevista: ‘Castiguemos, Senhor, esse egoísta que atreveu-se a apagar o nosso planeta.’ E Jesus disse a São Pedro: ‘Não se meta, que isso é só brincadeira’, disse artista”. Então você veja o que eu fiz aqui é uma estrofe com todos esses ingredientes que eu acabei de citar. Isso para você é tão erudito quanto soneto para a maioria das pessoas que estão me escutando. Então quer dizer, essa derivação, “isso aqui erudito”. Não tem, não tem muito sentido. Essa é uma das razões pelas quais eu tô também escrevendo esse meu livro para postular essas ideias. Como também estou postulando certas ideias como essa da diversidade cultural. “O Brasil é um país de muita diversidade cultural”. É, tem muita diversidade, mas também tem uma unidade cultural. Vou dar exemplo, por exemplo, batuque são o batuque aqui de Piracicaba tem elementos mais próximos do que divergentes do batuque lá do tambor de crioula do Maranhão. Ou seja, repetindo, tem elementos mais similares do que divergente no tambor. Lá são tambores batidos com as mãos, tem a umbigada, tem a roda, tem a quadrinha. O nome é diferente. Certas as cantigas quando eles fazem o texto diz respeito àquela realidade, mas as estruturas são as mesmas. Por que isso? Por conta da presença banto, da presença do português que deu unidade. Então a gente tem uma diversidade com unidade ou uma unidade com diversidade. Mas eu acho que essa entrevista não é para dar aula para ninguém. Tô citando isso aqui apenas como um elemento aqui da razão pela qual eu também me interesso por essa cultura. E vejo que ela tem um papel na cultura brasileira, porque se a gente dizimar, se apagar esse universo, a gente vai ficar com quê? A gente vai ficar com a cultura dita internacional, universal vai trazendo para cá. E eu acho que ela não é suficiente para as nossas necessidades culturais. Então eu acho que depois o seguinte, é um acervo de muita riqueza, de muito dinamismo educacional e criativo. Para educação, por exemplo, você as formas da poesia populares são muito interessantes para o cultivo dentro do contexto da sala de aula, da brincadeira, da convivialidade, da própria dança também. E não, é claro que não é o momento aqui o motivo de explicar cada coisinha dessa nos seus pormenores, mas fica aqui o conceito de que elas têm propriedades suficientes para serem utilizadas nessas dimensões.
P - Isso que você acabou de falar tem a ver com ter criado um instituto. Como é que foi isso? Quando? Por que você criou o Brincante, no caso, pelo qual você é bastante conhecido. Mas conta essa história pra gente, por favor.
R - Então, o Brincante foi um espetáculo que criamos, como eu já citei aqui na nossa conversa, em 1992, e o estreamos no primeiro festival internacional de teatro de Curitiba. E aí depois de termos tido êxito lá no festival, viemos para São Paulo e procuramos um local para se apresentar e aí só nos ofereciam o meio de semana, quarta, quinta. E a gente um pouco empolgado, um pouco, sei lá, superestimado, quer dizer, otimizado pela vitória lá no festival de Curitiba, achou meio um desaforo. Um teatro de fim de semana que a gente sabe que isso foi principalmente para pessoas desconhecidas ou pouco conhecidas. Aí foi a gente andando, “vamos criar um espetáculo, vamos fundar um teatro”. Aí nessa brincadeira, a gente andando aqui pela vila, descobrimos praticamente onde é hoje o Brincante, dois galpões que foram abandonados e lá eles criavam o quê? Era vidros que você faz estampa, faz imagens em vidros. Coisas dessa natureza. Então tinham vidros coloridos, pequenos vidros. Desenhos em vidros, faziam coisas dessa natureza. E aí procuramos saber quem era o dono. Aí encontramos o dono. Aí não tinha ninguém naquela época que quisesse alugar o plano cruzado. Deixou todo mundo à bancarrota, todo mundo não, mas muita gente. Aí alugamos e ele deu assim seis meses pra gente ajeitar o prédio e só começar a pagar seis meses depois. Aí foi quando a gente criou lá, não sei como um dia nós não tínhamos, conseguimos uma par de amigos, um grande arquiteto, o Sawaya, tô me esquecendo dos nomes hoje, que era um professor da faculdade de arquitetura, uma grande amiga nossa, Maria Amélia Sawaya, que era esposa dele, também nos ajudou. Enfim, ficamos devendo aqui a acolá tal e aí estreamos em novembro. Nós nos apresentamos no festival em abril e depois de 4 meses, então cinco, seis meses, nos apresentamos dia 23 de novembro. E aí a partir dessas apresentações começou a haver interesse das pessoas em tomar conhecimento daquelas danças, daquelas formas poéticas que nós utilizávamos no espetáculo. E aí comecei a dar pequenos cursos, Roseane também, e a coisa foi crescendo, foi crescendo e ganhou então a dimensão que tem hoje, que tem o Instituto Brincante. E é isso. E de lá para cá, o que a gente tem procurado fazer? Tem procurado passar essas formas. Por exemplo, eu dou um curso de poesia onde eu codifiquei, organizei as várias formas poéticas utilizadas pelos poetas. E então passo essas formas para as pessoas. Então, indico forma de maneira de melodizá-las, e assim por diante. E é interessante até porque essas formas poéticas às vezes as pessoas, que até uma um bom motivo aqui para para eu falar, as pessoas às vezes me perguntam: "Mas Nóbrega, como é que você vê essa questão de você trazer isso que é do Nordeste e implanta aqui em São Paulo? E não fica estranho? Você não tá também usurpando algo que é de um grupo social?”. Eu digo: “Rapaz, olhe, é muito diferente a minha maneira de pensar, porque existe o seguinte, especificamente na poesia, isso eu posso dizer na dança também, essas formas, as estruturas dela, elas transcendem o mundo cultural popular”. Eu vou dar um exemplo para vocês. Eu falei aqui há pouco de décima de 10 sílabas, mas existe uma forma poética chamada décima de sete sílabas. Quando eu digo 10, é o quê? Uma estrofe de 10 versos, que ao invés daquela que ser 10 tem sete. Essa estrofe, a 17 sílabas, o primeiro documento dela, o documento mais antigo, é de 1509, encontrada na biblioteca de Salamanca, por um estudioso espanhol. Você veja, há mais de cinco séculos durante o período, um dos mais bonitos da literatura espanhola, foi chamado século de ouro espanhol. Então essa estrofe poética viaja durante cinco séculos e vai bater com os costados no Nordeste. Você, por exemplo, escuta no Maracatu, no samba de Maracatu, um poeta como João Paulo, recitando, tirando, dialogando com outro poeta em décima de sete sílabas, uma décima que foi utilizada por quem? Lope de Vega, o grande dramaturgo espanhol, Calderón de La Barca, um outro, Miguel de Cervantes. De quem é essa estrofe? Bem, o nome tá associado a um poeta lá que pouco se sabe da vida dele ou nada se sabe da vida dele, que em certo momento criou, eu digo, criou entre aspas, porque, por exemplo, você pega Gil Vicente, 50 anos antes já utilizava formas estrofes de nove versos que eram muito próximas àquela. Então, quer dizer, Vicente, poeta da Ibéria. Então, essas formas ali, elas estavam se gestando. Um dia, por decorrência dessas anteriores, se cria aquela. Vai ver que outros poetas também criaram aquilo, porque era uma coisa que desembocava facilmente. Assim como a embolada nordestina é uma forma que vem da quadrinha. Então, essas coisas. E você não pode dizer quem inventou embolada. Sei, mas vem ali. Agora se você encontra um documento com o cara que escreveu primeiro, faz dizer que aquele cara, mas talvez não tenha sido ele. Mas bem, mas ali tem uma estrutura. Dentro dessa estrutura, João Paulo fala das coisas do Nordeste, fala das coisas da cabeça dele. Lope de Vega, Calderón de La Barca e eu e outros poetas falamos das nossas coisas. Eu falo das minhas angústias, das minhas alegrias, das minhas situações aqui em São Paulo, mas dentro daquela estrutura como uma quadrinha também. Então, na verdade ela não pertence a ninguém. Não tô roubando ninguém, nem eles roubaram de ninguém. Eu tô dando vida apenas a uma forma que é muito legal para fazer canções. Então você pega, por exemplo, as canções de Luiz Gonzaga, velho, é de uma riqueza de formas poéticas que a gente não estuda nas universidades, já tô passando até por outro assunto mas que devia, por exemplo, se estudar, eu falo tudo isso aqui dessas formas poéticas, mas isso eu duvido e tá aqui, coloco minha cara a bofete, se algum curso de literatura brasileira sabe dessa história de que a décima de sete sílabas que nasce lá no setor espanhol frequenta o mundo cultural popular. Eu acho isso uma história e é fácil entender como se processou isso. Não foi assim ó: “Pega lá e o bom Deus diz: ‘Toma cá, meu filho. Usa essa estrofezinha no seu repente’". Não, velho, uma história muito bonita que eu pesquisei, eu tenho uma versão dessa história. Pode haver outras. Mas então você vê, o estado que eu acho que pode ser que tenha alguma entidade cultural, não quero também ser aqui tolo, e dizer que somente eu sei dessas coisas, outras pessoas também devem saber, mas não, a gente não tem uma estrutura, a gente não institucionaliza. Dentro da universidade brasileira, dentro dos centros culturais, por exemplo, os cursos de literatura deviam ter todos eles um departamento, uma seção dedicada à poesia do mundo cultural popular, literatura de cordel, formas poéticas. Devia ser obrigatório porque isso faz parte do Brasil, não faz parte de outro universo, não. Agora coloca dentro da coisa não música, coisa regional é coisa folclórica. Aí, velho, aí dá nisso. O acervo poético popular brasileiro é muito rico. E essa riqueza se deu no Nordeste. Porque há uma distância realmente muito grande entre a construção poética que foi feita no Nordeste, sobretudo no sertão. Quando o resto do Brasil, praticamente nas outras regiões do Brasil, a poesia popular ficou circunscrita ao verso de sete sílabas, a redondilha maior, sempre utilizada na quadra, ou então em poemas em que as rimas se dão entre o segundo, entre os versos pares. São poucas, são muito pequenas as diferenças, as nuances, desse tipo de poesia, de estrofação no nordeste. Então existe é um celeiro de formas que se deu por conta da formação, sobretudo histórica que se deu no Nordeste e particularmente no sertão. Por conta de quê? Por conta do deslocamento de famílias para o sertão nordestino, na busca de criação de fazendas. Principalmente a família dos Nunes. [intervenção] Na região sertaneja, ali na confluência do estado de Pernambuco, da Paraíba, do Rio Grande do Norte, sertão do Pajeú, é onde a poesia popular nordestino-brasileira mais floresceu. E foi uma região para onde se deslocaram sertanistas e famílias mesmo, de Pernambuco, que iam dar início ao criatório, à criação de bovinos. E se fala até inclusive de que algumas dessas famílias eram cristãos novos. O grupo de judeus que por conta de depois da saída dos holandeses, a expulsão dos holandeses, então o governo pernambucano também expulsa os judeus. E muitos desses judeus ou alguns deles então partem para o sertão. E nos parece que a família dos Nunes da Costa são responsáveis pela implantação da décima de sete sílabas, que era cultivada em Pernambuco nos chamados outeiros poéticos, certames que existiam ligados às noviças nos mosteiros. Essa é uma história longa que eu não quero pormenorizar, mas o fato é o seguinte, é que essa décima de sete sílabas, ela tem quando ela chega com os Agostinhos Nunes da Costa, elas têm um poder revolucionário muito grande. Porque essa décima de sete sílabas, ela começa a ser utilizada dentro de outras formas. Por exemplo, em vez de décima de sete sílabas, começa a ser utilizada essa estrofes com cinco sílabas. Na época se chamava, por exemplo, de parcela. O cego Aderaldo tem poemas com essa forma. Depois outros poetas começaram a utilizar com a décima de 10 sílabas, que é o martelo agalopado. Depois a 10ª de 11 sílabas. Depois outras formas também poéticas foram trazidas, como por exemplo, a oitava ou quadrão, que é uma forma que foi utilizada até pelos poetas românticos como Castro Alves. Então, foi um local de muitas transfusões poéticas, porque haviam pessoas que não eram só do mundo popular, que tinham também uma memória, que tinham do mundo cultural, não repetindo, não só das camadas populares e que isso é muito importante. Porque é a partir de um certo momento no Brasil, isso ocorre principalmente depois da chegada dos portugueses. A família real quando vem para o Brasil, em que a família abre os portos para as nações estrangeiras. Então o Brasil começa a se depositar nesse momento a partir de outras informações culturais. E isso vai ampliar as possibilidades do mundo cultural popular que foi criado. Então aquilo vai ser diferentemente do que às vezes eu penso que a cultura da que o mundo, que a indústria cultural às vezes tem um papel, está tendo um papel de dizimar, de desfavorecer o mundo cultural popular. Nesse momento eu acho que foi um enriquecimento como do choro, por exemplo. O choro só existiu a partir da presença no Brasil da polca, a polca que era de origem da Tchecoslováquia que vai pra França, da França para Portugal e Portugal chega do Brasil. Então, o encontro da forma da polca com os ritmos populares, com as melodias populares, vai dar no choro, como também em Recife, por exemplo, para a banda marcial, a banda das corporações militares. E a banda das corporações militares é uma produção europeia, ela vai dar no Brasil a partir do encontro com a Rítmica Popular no frevo. Então essa junção sempre ocorreu. O mundo cultural, a certa altura, até os seus 300 anos, ele funciona basicamente da Casa de Engenho para fora, como se fosse nos terreiros, nos quintais, nos becos, nas vielas. A partir do século XIX, esse mundo cultural começa a se encontrar com o mundo vindo da Europa. E aí outras, o próprio samba, por exemplo, atuar o samba primordial, o samba mais comum é uma toada, é uma cantiga simples. Mas quando você pega um samba de Cartola, um samba de Nelson do Cavaquinho, a harmonização com a qual isso faz as suas melodias não vem do mundo popular. Aquele vem do mundo de outra influência e que é muito benfazeja, gente, porque são dois mundos que se encontram, trocam ideias que nascem. Isso existe na cultura. Por exemplo, o funk eu acho que representa um pouco isso. Todas essas formas no geral tem um pouco disso. Eu não acho que a indústria cultural é de toda maligna, ela tem elementos muito importantes. Eu me lembro até, por exemplo, até no movimento armorial, teve um momento que a gente tinha muita raiva da guitarra e falava mal da guitarra, porque a guitarra era um erro nosso, porque a guitarra é um instrumento. Hoje eu em qualquer show meu a guitarra. Agora o seguinte, o que eu coloco na guitarra, por uma questão de opção, é uma sonoridade dentro da sonoridade da minha música. A guitarra vai fazer um ritmo de frevo, vai fazer um ritmo de samba ou o que for, porque a música que eu escolhi, mas ela pode fazer outro tipo de música. Então, o que eu defendo é que a gente devia ter um pouco mais essa visão de como a gente tem um acervo cultural muito rico, de fazer isso vir à tona e de que seja mais presente no mundo cultural que a gente vive, nos The Town’s, nos Rock in Rio e etc. Pois bem, mas então essa poesia lá teve um florescimento muito grande e daí várias formas, várias modalidades poéticas nasceram a partir disso. Algumas delas já citei aqui. As setilhas são tantas essas formas. E variações dessas formas. A embolada, por exemplo, o mundo da embolada é de uma riqueza muito grande. A embolada vem de uma quadrinha, uma estrofe de sete sílabas. E a embolada é uma estrofe em qual o primeiro começa com quatro, depois as outras são de sete sílabas. "Ó meus senhores, vou contar minha odisseia. Viajei no pé da ideia pra contar esse cantar. No outro dia a besta fera apareceu, (sete), minha alma estremeceu (sete), eu fiquei para me acabar. Aí pensei…” Então a embolada é uma coisa nativa, mas ela só teria existido a partir da quadrinha que é ibérica. Então é isso que tá em jogo.
P - E o seu livro para essa última pergunta, você já tá escrevendo há bastante tempo, pelo que parece. Mas por que você começou a escrever esse livro? Qual que é, do que ele se trata? Qual é o objetivo dele?
R - Olha, eu acho que esse livro nasce de uma espécie de uma angústia interior. Então, eu criei laços muito profundos com o mundo cultural e que talvez até me atrapalhem, porque eu criei laços afetivos e laços afetivos são perigosos. Porque às vezes a afeição nos cega, às vezes o discernimento. Então, pelo fato de eu ter numa idade muito jovem, me afeiçoado muito a essas formas de dança, essas formas de poesia, isso me impregnou muito desse universo e eu tenho que ter um certo cuidado em que eu não torne muito obsessivo, que fui até numa certa época. Então eu procuro relativizar isso que eu me impregnei tanto. Através do conhecimento, estudando para ver até onde a minha afeição produz conceitos corretos até uns conceitos distorcidos, devido a essa ligação emocional que eu tenho com esse mundo cultural. Então isso gera uma angústia, um conflito interior. Então eu comecei a estudar e continuo estudando porque cada vez, à medida que eu fui estudando, eu vi como se diz o buraco era mais embaixo. Porque não se escreve muito sobre isso dentro da perspectiva que eu estou escrevendo, ou seja, se refletindo, quer dizer, e depois o seguinte, com a experiência in loco, muitas vezes se escreve a partir de livros, livros geram livros, livros geram livros. Então, como é muito da feição acadêmica, você escreve muito a partir da pesquisa livresca, muito embora se faça também naturalmente pesquisas in loco. Mas eu tive então uma pesquisa tão ampla, visitei tantos sítios, tantos grupos que eu vi que esse conjunto de informação, de estudo, em contato com o estudo teórico, poderia trazer uma ideia nova, por menor que fosse. Então, é isso que eu procuro responder. Até que ponto essa veemência com a qual eu falo em relação ao mundo cultural popular da sua presença na educação, na música brasileira, até que ponto isso tem razão? Até que ponto isso não é uma produção apenas do espírito de Nóbrega, da angústia de Nóbrega. Então eu só posso resolver isso através do que eu falar. E eu noto o seguinte, que na medida que eu falo em uma palestra ou outra, eu sempre falo sobre um recorte. E eu já estudei tanto que eu a falar daquele recorte, eu de certa forma aprofundo um pouco mais, torno mais complexo e eu sinto que as pessoas não me seguem. Não tô diminuindo as pessoas, mas é porque eu fiquei muito feito Dom Quixote que ficou muito impregnado da cavalaria. Então eu começo a aprofundar aquilo, mas eu olho assim pra minha retaguarda e falo assim: “Ó, mas esse pessoal não tá acompanhando o que eu tô falando, porque eu tô…” Então é fruto de uma de você fala de uma loucura. Até certo ponto de uma loucura. Mas a gente tem que ser fiel um pouco à loucura nossa. Porque até o momento eu não tenho brigado com ninguém, não tenho espancado ninguém, sou uma pessoa até muito bem sucedido com as amizades, então não me acho um louco sadio, até certo ponto. Então é por isso que eu tô tentando dar voz a essa angústia, esse conflito e quiçá, Oxalá isso traga alguma notícia interessante sobre esse mundo cultural de que eu falo tanto. Então, a minha perspectiva é essa. E mais para frente, quem sabe a gente volta aqui, eu volto aqui para conversar especificamente sobre esse livro. Caso eu muito proximamente conclua esse desgraçado.
Recolher