Projeto Vidas, Vozes e Saberes
Entrevista de Antonieta Felmanas
Entrevistada por: Karen Worcman (P/1), Bruna Oliveira (P/2) e Luiza Gallo (P/3)
São Paulo, 06 de fevereiro de 2025.
Código: PCSH_HV1444
Revisão: Nataniel Torres
P/1 - E aí a gente vai começar de uma maneira muito simples. Eu vou te pedir para me dizer seu nome completo, data e local de nascimento.
R - Antonieta Felmanas. Nasci em 1º de maio de 1940, no Cazaquistão, numa cidade chamada Bulaev. Bulaev era o lugar onde os burgueses eram deportados, era na Sibéria, antigamente era a Sibéria, e onde os burgueses, as famílias burguesas russas, da Rússia nessa época, eram deportadas. E aí os russos só entraram a partir de 1936, na Lituânia, que é o lugar onde a minha família morava. Então, eles deportaram minha mãe em 1940, ela estava grávida. Ela achou que ninguém ia deportar uma mulher grávida, meu pai se escondeu, ela ficou na casa para receber os russos. E eles disseram “você tem meia hora para fazer uma valise e ir embora”. E assim ela foi. E ela, depois de 14 dias de trem, esses trens de carga, ela chegou nesse chamado “Kolkhoz”, que eram uns lugares de trabalho, e lá ela ficou até que o meu pai, a família do meu pai, que era muito rica lá daquela região, conseguiu corromper a polícia e trazer minha mãe e a mim de volta. E foi quando os nazistas estavam já se preparando para invadir, e aí eu fui dada para ser guardada mediante pagamento de dois baldes de ouro para uma família cristã, a qual ficou com medo, acabou ficando com medo de ficar comigo depois de um tempo, e me deu para os colonos, para, enfim, gente do campo, e lá eu fiquei até o fim da guerra.
P/1 - Vamos voltar um pouquinho. Essa família da sua mãe, do seu pai na Lituânia, o que você sabe sobre a história deles? Quem eram eles? Como se chamavam? Vamos começar de um jeito simples.
R - Então, o nome deles era Raichel, esse era o sobrenome, meu avô Leib, minha avó Léa, meu pai Raichel....
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Entrevista de Antonieta Felmanas
Entrevistada por: Karen Worcman (P/1), Bruna Oliveira (P/2) e Luiza Gallo (P/3)
São Paulo, 06 de fevereiro de 2025.
Código: PCSH_HV1444
Revisão: Nataniel Torres
P/1 - E aí a gente vai começar de uma maneira muito simples. Eu vou te pedir para me dizer seu nome completo, data e local de nascimento.
R - Antonieta Felmanas. Nasci em 1º de maio de 1940, no Cazaquistão, numa cidade chamada Bulaev. Bulaev era o lugar onde os burgueses eram deportados, era na Sibéria, antigamente era a Sibéria, e onde os burgueses, as famílias burguesas russas, da Rússia nessa época, eram deportadas. E aí os russos só entraram a partir de 1936, na Lituânia, que é o lugar onde a minha família morava. Então, eles deportaram minha mãe em 1940, ela estava grávida. Ela achou que ninguém ia deportar uma mulher grávida, meu pai se escondeu, ela ficou na casa para receber os russos. E eles disseram “você tem meia hora para fazer uma valise e ir embora”. E assim ela foi. E ela, depois de 14 dias de trem, esses trens de carga, ela chegou nesse chamado “Kolkhoz”, que eram uns lugares de trabalho, e lá ela ficou até que o meu pai, a família do meu pai, que era muito rica lá daquela região, conseguiu corromper a polícia e trazer minha mãe e a mim de volta. E foi quando os nazistas estavam já se preparando para invadir, e aí eu fui dada para ser guardada mediante pagamento de dois baldes de ouro para uma família cristã, a qual ficou com medo, acabou ficando com medo de ficar comigo depois de um tempo, e me deu para os colonos, para, enfim, gente do campo, e lá eu fiquei até o fim da guerra.
P/1 - Vamos voltar um pouquinho. Essa família da sua mãe, do seu pai na Lituânia, o que você sabe sobre a história deles? Quem eram eles? Como se chamavam? Vamos começar de um jeito simples.
R - Então, o nome deles era Raichel, esse era o sobrenome, meu avô Leib, minha avó Léa, meu pai Raichel. Minha mãe Rinda, tudo isso eu soube muitos anos depois. Eu soube essa história ao longo, a partir dos 20 anos, dos meus 19, 20 anos de idade, até que eu já era avó. Eu soube mais dessa história quando fui para Israel, e lá a pessoa que me acompanhou desde que nasci, a única sobrevivente de toda a família, me contou. Quer dizer, que eu, na verdade, estou contando para você aquilo que me contaram. As lembranças são outra coisa.
P/1 - Quem é essa pessoa?
R - Essa pessoa é Rifka.
P/1 - Por que ela te acompanhou?
R - Ela era prima do meu pai biológico. Ela tinha 16 anos quando entraram os nazistas, ela tinha 16 anos mais do que eu. E os meus pais… Bom, meu pai foi logo assassinado, minha mãe foi para o gueto, com os pais dela, com os meus avós paternos. E quando eles já foram levados para serem mortos, porque eles não foram para o campo de concentração. Lá eles foram, cavaram e depois mataram eles e jogavam nessas covas. E quando isso tudo estava para acontecer, a minha prima com os três, essa prima do meu pai, Rifka, de 16 anos, com os três irmãos dela um pouco mais velhos, disseram “nós vamos fugir, a gente não vai morrer que nem ovelha”. “E eu prometo…”, ela disse, assim ela me contou, “eu prometo a você…”, falando para a minha mãe biológica, “se eu me salvar, eu salvo a tua filha, eu resgato a tua filha”.
P/1 - E eu queria entender um pouquinho mais, agora que você conhece a história, os russos deportaram a sua mãe?
R - A minha mãe, como vários outros burgueses.
P/1 - Porque eram burgueses?
R - Sim, porque o que eles faziam? Eles mandavam para a Sibéria, tiravam a casa, os bens, tudo, porque esses comunistas eram muito pobres. Veja que em 1917, 1918, que foi a Revolução, eles só chegaram em 1936 na Lituânia, porque eles estavam primeiro na Rússia, lá, sei lá. Tudo o que me foi contado, eu conto aquilo que me foi contado. Então, quando eles chegaram, a partir de 1936, quando eles chegaram nessa região, que era meio Polônia, meio Rússia, meio Alemanha, cada vez mudava de dono aquela área, aquela região. Os meus pais eram perto de Vilna, na Lituânia. Então, era isso, os russos deportaram, você me perguntou, né? Então, os russos deportaram a minha mãe, porque ela estava sozinha na casa, grávida. “Cadê teu marido?”. “Não está”. Eles: “então, vai você mesma”.
P/1- Porque eles eram burgueses ou porque eram judeus?
R - Não, porque eles eram burgueses. Na época, eram deportados tanto judeus como não judeus. Mas naquele vilarejo parece que tinha muito mais… Bom, eram 40 famílias de judeus e muitos, muitos foram naquele dia deportados. Depois outros, em outros dias, todo mês eles vinham buscar e mandar alguém embora para lá. Os que ficaram lá durante a invasão nazista e tudo, os que ficaram lá se salvaram, porque quando voltaram depois da Sibéria, se salvaram. Mas os que ficaram, os que não foram embora, como minha mãe, que foi resgatada, o meu pai, que fazia parte daqueles jovens, porque os nazistas, ao entrarem, o que eles fizeram? A primeira atividade deles era chamar os jovens. Tinha o famoso Babi Yar, que é uma matança dos jovens, mas em outra região, não nessa. Mas lá teve uma espécie de Babi Yar, porque eles chamaram os jovens como judeus, com profissão útil. Então, todos foram buscar algum atestado. Meu pai, sei lá, foi buscar de marceneiro, outro de sapateiro, porque profissão útil. Meu pai era contador. Hoje seria economista, provavelmente. Então, eles foram e minha mãe disse “não vá”. Ele foi e foi assassinado lá. Eles, quando chegaram, eram 200. Eles chegaram, foram todos postos em fila metralhados. Aí não voltou mais. Aí minha mãe, sem a filha, porque eu fui logo que eu cheguei...
P/1 - E aí, você nasceu aonde?
R - Eu nasci lá em Bulaev, eu nasci no que seria hoje o Cazaquistão, desde que existe o Cazaquistão, mas era Sibéria na época. Então, eu nasci lá, menos de um ano, meus avós, meu pai, resgataram a mim e minha mãe, nós voltamos, e em seguida, eu nasci em 40, os nazistas devem ter entrado em 41, antes de 42, naquela região. Então, eles me deram, minha mãe ficou com meus pais e eu fiquei tão longe, nunca mais vi meus pais. Mas a única que sabia de mim era a Rifka. Porque Rifka, essa menina de 16 anos, ela foi se esconder junto com os irmãos nas florestas, porque naquela região tinha muita floresta. Então, eles se esconderam nas florestas e… E aí se aliaram aos russos e formaram a Partisan. Modo de falar, não era nada organizado, era o coitado, um bando de… Um ajuntamento de judeus querendo sobreviver, porque o que mais valia para eles era a vida.
P/1 - Então, Rifka ficou e sobreviveu.
R - E sobreviveu, porque ela ficou na floresta. Ela disse que ia me ver toda vez que ela podia, ela sabia onde eu estava. Ela era uma menina loira de olho azul, ninguém diria que ela é judia. Ela disse que conseguia, de vez em quando, atravessar para ver, porque teve um outro priminho meu que foi assassinado, uma família também ficou, mas ficou com medo, ficou com muito medo de ficar com ele, então foi assassinado. E ela queria garantir, então ia para falar com essas pessoas.
P/1 - Não mais as que ganharam dinheiro, as outras, para quem eles consideram?
R - O outro, se ganhou ou não, não sei, também não sei quem são. Foi uma coisa estranha na minha vida, porque, quando soube e quase soube do nome e quase podia saber onde era, não me preocupei muito em saber, como se a vida não acabasse nunca, como se a vida da pessoa que sabia, também o outro primo, que não tinha nada a ver, vamos dizer, primo por parte… Um era por parte de pai, outro por parte de mãe. Rifka era por parte de mãe, era prima do meu pai por parte da mãe dele. E esse outro era por parte do pai. E eles depois foram para Israel. E em Israel eu conheci essa família e esse homem, esse primo também do meu pai, e ele me contou muita coisa. Tudo bem, sabe aquela coisa que você ouve, mas você não grava. Se eu dissesse hoje, com a minha idade, eu diria, porque ela não tem concentração. Mas lá eu tinha 50 anos quando soube, quando encontrei com ele pela primeira vez. Orson Welles era um negócio. Era incrível. “Eu é que tinha que ter te adotado”, ele falava. “Eu queria te adotar, mas a Rifka não deixou”. “Ela te mandou para o Brasil”, ele dizia. “Ela te mandou para o Brasil. Eu não entendo que política foi essa”. Isso ele me contou no enterro, enquanto nós estávamos… Porque, quando soube que ela morreu, fui para Israel e ele foi lá, e foi aí que eu o conheci. Aí eu conheci um monte de pessoas que fizeram parte, que se salvaram, não só porque ficaram, porque foram para os Partisans, porque se esconderam.
P/1 - Ele, por exemplo, foi no Partisan.
R - Ele também ficou escondido, escondido assim, eles se uniram aos russos e lá nas florestas eles atacavam os alemães, porque os russos eram desertores, para eles não tinha cabimento, era uma guerra que para eles não tinha cabimento. Então, eles eram desertores que tinham armas e não conheciam a floresta, mas se esconderam na floresta. Rifka e todos aqueles outros conheciam muito bem a floresta. Então, eles, sei lá, como é que eles matavam, se juntaram e matavam as pessoas.
P/1 - Antonieta, e aí, você está nessa casa como que você terminou no Brasil, o que aconteceu? O que aconteceu?
R - Então, quando terminou a guerra, a Rifka, que prometeu que ia me resgatar, ela foi, aí vêm as minhas primeiras lembranças. Eu me lembro muito bem quando, de repente, a Rifka, não sabia quem era a Rifka, ela vinha me ver, mas eu nunca tinha visto.
P/1 - Você chamava essas pessoas de pai e mãe?
R - Eu acho que sim. Papa, mama, eu acho que sim. Não consigo lembrar. Eu consigo lembrar que eram como camponeses. Pareciam, assim, camponeses. A história deles é que eles eram zeladores de uma escola. Então, na verdade, nós morávamos em uma escola, mas as minhas lembranças de antes dessa lembrança do meu resgate era de que nós morávamos no campo, que a gente acordava às duas, três da manhã, sei lá, para ir para o campo, e a gente tomava um prato de sopa e essa era a comida, mas eu nunca senti fome. Quer dizer, é muito estranho, porque todas as lembranças antes dos meus cinco anos são assim, são essas manchas de coisas que eu não sei se são verdadeiras ou não, mas eu lembro que tinha a ver com campo e tinha a ver com acordar de noite ainda e tomar sopa quente.
P/1 - É isso que, quando eu te pedi para voltar, foi a esse momento que você chegou?
R - Essa, sim, essa do campo e tudo, eu nunca tinha falado para ninguém. Foi uma coisa nova para mim, mas agora da escola, não. Essa é a realidade, porque eu já lembro. Então, o que aconteceu? De repente, eu morava. Então, tinha o “papa”, “mama”, não sei como eu chamava eles. E eu não tinha irmãos. A Rifka disse que não, realmente não tinha irmãos. Então, ela veio, acho que o marido dela já tinha um marido, tinha até uma filhinha. Ela veio e eu fugi. E eu consegui fugir. E aí eu entendi como que eu consegui fugir. Quando eu fui visitar Dominique, que é uma amiga francesa que mora em Tessaud, em uma espécie de Castelinho, do lado de uma igreja, e eu.. Quando eu entrei na casa, eu disse: “agora eu entendo como é que eu consegui fugir”. Porque era tão perto que, ao ver alguém entrar, eu podia, pelo lado da volta, entrar na igreja e me esconder.
P/1 - Isso você lembra?
R - Isso eu lembro.
P/1 - Por que você fugiu?
R - Porque era gente desconhecida, acho que eu devo ter ouvido que eles queriam me levar. Porque eles falavam em polonês, provavelmente com essas pessoas, e eu falava polonês. Foi minha primeira língua, praticamente. E muito católica, aliás, muito cristã. Não sei se era católica, protestante, não sei, mas “judeu matou Cristo”, ponto. E judeu, nada, Jesus Cristo e tal. Então, a primeira visitação, ela veio com o marido, eu me escondi e provavelmente o pai e a mãe disseram, “não, nós não vamos entregar”. Provavelmente, eu não sei isso, eu não ouvi, não tenho nenhuma, talvez se eu fizesse…
P/1 - Uma regressão?
R - Não seria mal, com essa idade, entender tudo seria interessante. Bom, aí eles vieram, segundo a Rifka, vieram a segunda vez, aí eu lembro perfeitamente, porque aí eles vieram com policiais, porém judeus.
P/1 - Os policiais?
R - Os policiais. Já tinha terminado a guerra. Tinha dois policiais judeus, segundo ela, que eram conhecidos deles, e tinha o marido, ela, enfim. E eu me lembro muito bem de várias pessoas. E a Rifka me contando. Esperamos a senhora ir para o mercado, que ela vendia algumas coisas lá no mercado, dentro da vila. Ele estava sozinho. Bebemos muito com ele e agarramos você. Eles lutaram, ele ainda tentou lutar, o homem, o senhor que cuidava de mim, o meu pai, meu segundo pai. E eles me agarraram, e eu lembro muito bem, quando me puseram um pano preto em cima, um pano em cima de mim, e me carregaram para o trenó e saíram correndo. O trenó, quer dizer, fomos embora. Fomos embora, assim foi a minha saída.
P/1 - Você lembra desse trenó?
R - Lembro, lembro muito bem do trenó, lembro de tudo. E quando o Rifka morreu, que as pessoas começaram a vir lá e diziam assim “você lembra de mim?”, eu dizia “não”. Então, ele dizia, “olha, eu estava lá com a Rifka quando eu fui te resgatar, etc, etc, etc”. “Ah, tá bom”. Aí vinha outro, veio o primo: “Olha, eu sou o primo que queria te adotar, mas com a política… O corpo não estava mais lá, mas estava lá, nós estávamos sentados no Shivá. E ele disse “que política é essa que não queria me dar você para adoção, no final, eu tinha o mesmo direito que ela de decidir sobre você, o mesmo parentesco”. Aí veio um outro e disse, “você lembra de mim?”. Eu comecei a rir. Eu digo “quantos mais vou ter que lembrar?”. “Você também estava lá quando me resgatou?”. Ele disse, “claro”. “E você era quem?”. “Alguém tinha que guiar o trenó, não é?”. Aí eu comecei a rir, porque realmente foi tudo tão… Uma coisa atrás da outra foi linda. Essa cena é bonita, ela é… É incrível.
P/1 - Me conta, esse momento do trenó.
R - Eu lembro. Eu lembro de nada. Eu lembro do que fizeram. Eu lembro que me jogaram. Eu lembro de repente que nós estávamos num grande salão, grande salão, onde tinha muita cama. Provavelmente era um abrigo, onde as pessoas, os que se salvaram, vamos dizer, tinham para dormir, não sei onde era. E lembro que comecei a chorar à noite e tinha que dormir. Todos tínhamos que dormir e eu chorando, e a Rifka me conta isso, isso é contado, eu não lembro disso, mas a Rifka me contou o que foi essa primeira noite, que eu era uma criança barrigudinha, estava suja, mas assim, boazinha, e eu, para dormir, chorava porque eu precisava de Cristo. Jesus, “Iisus”, e que eu queria Cristo, eu queria Jesus. E essa é uma das cenas que eu acho que representa para mim a dimensão da humanidade desta mulher, porque ela disse, “nós não entendemos nada de psicologia, mas eu sabia que se você precisava, queria Jesus, você ia ter Jesus. Meu marido foi lá fora, pegou duas madeiras, cortou e fez uma cruz e trouxe pra você. E você continuava chorando, o que você queria “Iisus”. Ele não teve dúvida, ele pegou um pedaço de pele que ele tinha…”
P/1 - Pele?
R - Pele, uma pele. E foi não sei aonde, isso eu não me lembro como ele foi, onde ele falou, porque se era noite, talvez esperar um dia amanhecer, isso eu não sei. E ele foi no mercado, lá na feira, e viu uma foto de Jesus, trouxe, e aí eu dormi sossegada. Então, um judeu fazer uma coisa dessas, essa compreensão, esse amor, eu acho que é o primeiro sinal, porque não precisa me falar, eu te amo, eu te salvei, você sente, você sente as vibrações, tudo que esta Rifka. E as outras pessoas… Enfim, mas o que aconteceu? Como é que tudo foi? Nós estávamos na Europa, na Rússia, a cortina de ferro já baixando, já quase tarde para sair. E eles, como toda a família dela e dele, da Rifka e do marido, todos tinham morrido. Morrido não, todos foram assassinados, todos. Eles resolveram não ficar mais lá. Então, eles resolveram sair. Para onde? Para onde desse, sair da Rússia, sair desse lugar onde eles moravam, da terra onde eles moravam. Daí, agora eu me lembro, que eu tinha essa menininha que eu brincava, tinha outras crianças que eu brincava. Eu me lembro de uma cena, mas depois li no livro mesmo o que a pessoa escreveu. Eu era pequena, tinha uma outra criança da mesma história que eu, que foi resgatada, porque os pais morreram, foi resgatada por um parente, e ele chorava porque tinha medo de judeus. Eu sentei perto dele e disse, “olha, eu também. Quando eu o conheci, eu fiquei com muito medo”. Isso eu lembro vagamente. Mas eu lembro dessa criança e lembro da criança Antonieta, da criança [Taibala], que era o nome. Então, essa criança, essa [Taibala], falo pra ele “olha, eu também tinha medo. Mas sabe, eles são bons, eles dão brinquedos, eles dão comida”. E o menino foi se acalmando, parou de chorar e não teve mais medo de nós. Essa, porque está escrito no livro que todos os imigrantes, quando chegaram a Israel, eles faziam a sua história. Rifka nunca escreveu a história dela, nunca quis. Mas essa família escreveu e fala de mim, fala do meu nome. Então, o que acontece? Fomos indo, saindo, saindo de… Lembro também muito bem. O trem não é de carga, é pior, é de onde os animais eram carregados, eu sei lá como dá pior, mas a gente ia nesses trens com algumas famílias. Lembro de uma cena em que estou com a Rifka, com a família, mas me lembro eu e a Rifka nesse vagão, um homem com um salsichão, com uma faca, com um canivete, e eu me lembro, ele corta e dá para mim, dá para eu comer. Não me lembro se deu para os outros, mas eu lembro que ele deu para mim e eu lembro que eu comi isso. E eu lembro disso porque, quando assisti o Doutor Jivago, o filme do Doutor Jivago, tem a cena do trem, quando eles andam. E eu tive uma cena, um ataque de choro, que eu acabei ganhando naquela época. Imagina, eu era casada com o Nestor. E ele era rico, ou parecia rico, então ele ficou tão desesperado, com tanto choro, porque eu fiquei tão angustiada que acabou o intervalo e eu continuava chorando, chorando, então ele me deu um carro novo para ver se eu acalmava, ele dizia: “olha, amanhã eu vi um carro…”, agora eu esqueci a marca lá, mas era um carro muito moderno, muito não sei o quê, “olha, amanhã nós vamos comprar esse carro, não sei o quê”, ele não sabia o que fazer. Ganhei o carro. Isso não era importante. Mas eu fiquei muito abalada com essa cena, porque me lembrou a cena que eu vivi. Bom, nós começamos a atravessar, eu acho que pela Áustria, pela Tchecoslováquia, a Áustria, a Itália, até chegarmos. E nós, como é que nós fazíamos? Ou a pé, ou de trem, ou de caminhão. Quando era caminhão, a gente deitava e eles botavam uma coisa na boca, um tipo de esparadrapo, para a gente não tossir, não falar, não fazer barulho quando a gente atravessava fronteiras, porque era tudo… Bom, a polícia é corrompida nas fronteiras, mas mesmo assim tinha que ter muito cuidado. Quando a gente andava, caminhava, eu me lembro que eu ia nos ombros do marido da Rifka, Osher, o nome dele, e a filhinha deles nos braços da Rifka, a pé. Mas, quando nós chegávamos...
P/1 - Você lembra de neve? Você lembra?
R - Sim. Aí, quando nós chegávamos, não tinha… Quer dizer, nessa época, eu tenho foto. Foto eu na neve. Eu tenho uma foto, eu menina, antes de vir para cá, que acho que o Rifka mandou. Tinha gelo, neve. Eu me lembro de neve, de gelo. Neve, não tanto. Eu me lembro de gelo mais que neve. Mas o legal que eu tenho como lembrança, então, nós chegamos, então, pouco a pouco, cada lugar que a gente ia, porque assim, a gente andava algumas horas ou à noite em geral, então, parava-se nos paradeiros que já estavam pré-combinados, sempre aqueles lugares enormes com camas, camas, camas. Mas tinha… Onde nós íamos, eu me lembro, tinha uma pequena cortina, assim, num cantinho do quarto, da sala, do grande salão, e tinha alguém que batia palma e dizia: “Kinder lernen”, “crianças, a estudar”.
P/1 - Nos abrigos, vamos chamar.
R - Nos abrigos, a caminho de algum lugar. Não eram ainda centros de refugiados, alguma coisa assim. Nos abrigos. Então, eu comecei a aprender iídiche, porque era a língua que eles falavam comigo, eles falavam polonês, e aprendi a falar iídiche. E aí comecei a aprender...
P/1 - Deixa eu te perguntar uma coisa. Eram todos judeus, então, nessa situação?
R - Eram todos judeus. Acho que eram. Acho que eram, mas eu, engraçado, eu lembro assim, depois, quando nós já chegamos na Itália, já era um lugar que tinha mesmo, era um campo de refugiados, aí não era lá, não era campo, eram paradeiros mesmo, eu acho, porque era sempre um salão e alguém fechando uma cortina, que na minha lembrança era uma cortina colorida, mas não sei. Mas as palmas eu nunca vou esquecer quando ele chamava as crianças para estudar. Então, veja, eu tinha cinco anos já na época e eu já estava estudando, estava estudando. Aí chegamos no campo e eu acho que era Monza, a Rifka também dizia que era Monza, mas quando fizeram aquele documentário, o italiano fez, ele disse que Monza não é possível, deve ser perto, perto entre Roma, Milão, não sei aonde. Bom, eu não sei direito onde era, mas era um campo de refugiados. E, nesse campo, todas as famílias, todas as pessoas que tinham algum parente nas Américas, América do Sul, América do Norte, eles eram, eu acho que Joint (American Jewish Joint Distribution Committee - JDC), que era a entidade, e ela escrevia para as famílias, dizendo: “olha, tem aqui… Estamos aqui com uma família tal, que é o seu parente, não sei o quê…” Mas a Rifka sabia do endereço da tia dela. A mãe dela, a minha avó, era irmã da mãe dela e tinha mais duas irmãs. Uma dessas irmãs, dessas duas, estava no Brasil e ela sabia. Sabia o nome, sabia que era em São Paulo, sabia o sobrenome. Então, entraram em contato com a minha avó, ou nem precisou, talvez ela tinha o endereço, eu não sei, e entraram em contato com a minha avó. Eu chamei depois a tia-avó, com a tia dela, e ela escreveu imediatamente dizendo que era fundamental que essa criança viesse para o Brasil, que era eu. A Rifka disse que pensou muito, mas, analisando, que eles não tinham um destino ainda, era Israel, eles queriam ir para Israel, mas ainda não tinha… Eu vim em 47, quer dizer, em 48, que foi a independência, ou a partilha, enfim, para eles. Então, ela disse “nós não tínhamos destino certo e eu tomei a decisão de mandar você para lá, porque afinal eles também eram parentes, da mesma forma que eu, e eles tinham perdido um filho”. Então, a minha tia-avó escreveu que um dos filhos dela perdeu um filho e que eles têm certeza que eu sou a reencarnação desse filho. Então, que eu tinha que ir pra lá. E assim eu vim. E eu vim de uma forma que um senhor, amigo do meu pai brasileiro, eu chamo de Naum Felmanas, meu pai brasileiro, do Brasil, conhecia o cônsul italiano, ou embaixador italiano, não sei bem, da Polônia, quer dizer, o cônsul polonês na Itália. Milão, eu acho. Então, ele conseguiu, ele foi para a Itália, conseguiu papéis, todos os documentos, porque não tinha papel nenhum, ninguém tinha papel de nada. E eu, então, muito menos, porque nasci lá no fim do mundo, fui dada e assim foi. Então, acabou que ele conseguiu todos os papéis e ficou lá umas duas semanas ou mais e passeava comigo. Ele começou a fazer e falava que eu ia para uma casa muito bonita, que tinha não sei o quê lá. A Rifka não me lembro de falar muito, porque a Rifka não era uma mulher de muita fala. A Rifka era uma mulher de olhar. De olhar, tinha três gatos, todos lindos e um horroroso. Ela pegava aquele e dizia “ninguém vai querer esse feio”. Ela tinha uma coisa que não fazia muito proselitismo de nada. Ela fazia as coisas, ela olhava, ela fazia o bem. Rifka era uma pessoa excepcional. E muito feliz no casamento.
P/1 - E você entendeu por que eles não vieram para o Brasil, já que era tia dela?
R - Pois é. Eles achavam que viriam para o Brasil, mas a família aqui não quis. Eu acho que só queria a mim. Deixou bem claro que era só eu. Daí Rifka… Rifka era uma personalidade, você não sabe, o meu pai brasileiro, os irmãos dele, o irmão dele, que era um político aqui, já era um cara conhecido, com uma atividade cidadã bastante importante aqui, mas todos eles condoíam naquele casebre que ela morava. Era como um palácio, a comida que ela fazia, tudo. Ela era boa, uma pessoa boa, uma pessoa sem queixas, uma pessoa que os olhos estavam sempre com lágrimas, lacrimejando pela saudade da família dela que foi embora, mas ela não abria a boca. Uma pessoa que não era amarga era uma coisa louca. Fui embora rasgando a camisa do marido da Rifka, de tanto que me agarrava a ele, porque, na hora de ir para o avião, com este senhor que eu já estava amiga, que eu já estava… Já me adaptei bem. Na última noite ou duas noites últimas, me lembro que fomos para o hotel onde ele estava, era um hotel chiquérrimo, e tínhamos cortinas, me lembro de veludo, e eu dizia “lá nessa casa também tem cortina assim?”. Ele dizia: “muito mais bonita”. Então, ele também me vendeu uma linda, um senhor maravilhoso, depois ele foi meu padrinho, do casamento, de tudo. Ele me trouxe para o Brasil, cheguei e não sei, não é que eu não tive surpresa, me adaptei. Aí a minha mãe...
P/1 - Momento de chegada, me conta.
R - Momento de chegada. Eu lembro que nós chegamos, primeiro descemos em Recife, depois Rio de Janeiro. Minha mãe estava esperando, minha mãe brasileira, com meu pai, no Rio de Janeiro.
P/1 - Quem seria essa pessoa?
R - Minha mãe e meu pai, o Naum Felmanas e Clara Felmanas. Ah, ele, primo biológico da Rifka, primo biológico do meu pai por parte de mãe.
P/1 - Filho dessa que era avó, tia-avó.
R - Filho dessa avó, sim. Essa tia-avó que escrevia e ela fazia todo o meio de campo. “Mandem essa criança, mandem”. E aquele Orson, eu chamo de Orson Welles, porque ele era muito parecido, muito grandão, e eu não conhecia ele na época, mas depois, quando eu o conheci, ele disse “como eu queria que você ficasse conosco”. Bom, aí eu fui embora, vim para o Brasil, me lembro…
P/1 - O aeroporto está lá, sua mãe?
R - O aeroporto está lá, não me lembro disso. Eu me lembro do seguinte, um apartamento bonito no Rio de Janeiro, uma senhora falando alemão com a minha mãe, um setter irlandês extraordinariamente belo, uma banheira, me colocam na banheira e me esfregam a cabeça, me esfregam a cabeça e me esfregam o corpo e me limpam como se estivessem vindo do lugar mais sujo do mundo, quando já não era. Mas eu lembro dessa esfregação na cabeça, principalmente. Não sei se eu tinha cabelo comprido, não me lembro, mas tinha essa esfregação. Aí logo gostei do meu pai, meu pai Felmanas, e acho que logo não gostei da minha mãe. Eu devo à minha mãe o meu conhecimento de boas maneiras, o meu aprendizado de línguas, toda a educação que tive, toda essa coisa que ela, por exemplo, não admitia falar mal das pessoas. Não era tema, não era um tema. Falar mal não era tema. Eu falava polonês, ela dizia que não podia mais falar polonês, tinha que esquecer polonês, agora ia aprender russo, porque ela era russa, era da Letônia, mas fez toda a escola. Então, com ela, eu fui e ela falava com o meu pai. Aí comecei a chamar logo em seguida de pai e mãe, foi normal, natural, não sei. E a história que me foi contada era uma história muito crível, não a verdadeira, mas muito… Porque ela conta o seguinte, quando, eles contaram, quando o filho morreu, ela ficou tão desesperada que ela foi com o meu pai para a Europa, para passear, para poder visitar a família e tudo, e esquecer dessa tragédia. Porque o filho realmente morreu com 13 anos de septicemia, ainda não chamam de penicilina na época. Então, ela estava tão desesperada, eles foram e ficaram um tempo na Europa, quando ela engravidou. Ao engravidar, entraram os nazistas e, com medo de que alguma coisa acontecesse, não podendo mais voltar para o Brasil com uma criança, porque era muito perigoso, porque eles tinham que ir por caminhos meio tortuosos, vamos chamar assim, então, eles me deixaram com uma família cristã, não judia, quer dizer, cristã, mas pedindo para a Rifka estar sempre de olho.
P/1 - Mais ou menos.
R - É crível, não é? Até que a guerra acabou, eles me mandaram ir buscar.
P/1 - E eles te contaram isso naquele...
R - Sim, e foram contando, contando, mas essa era a história que eu sabia, que me foi contada por eles.
P/1 - Então, para você eram seus pais?
R - Eram meus pais, eram meus pais. Mas ninguém é bobo, quer dizer, a gente sabe, no fundo, no fundo, provavelmente, sabia. Mas hoje tenho umas historinhas, umas lembranças mais ligadas a filmes, talvez, não sei. Falei do Dr. Jivago e agora de um filme do “Chemodan”, era um filme russo chamado… Esqueci agora o nome. Kolja? Kolja. No Kolja, ele tem muita saudade da mãe. E ele, então, toda hora, ele tá na banheira e ele pega o negócio da água lá, aquele aparelho, né? E ele fala com a mãe, como se ele tivesse a mãe, estava fora, deixou ele com o músico lá. E ele fala com ela ao telefone, né? E, no fim, ele diz: “porque eu vou pegar meu “chemodan” e eu vou com você”. Chemodan quer dizer uma maleta em russo, uma maletinha. Eu vim com “chemodan”. Na verdade, eu vim da Europa com chemodan. E esse chemodan trouxeram para São Paulo. E quando eu brigava com a minha mãe, que era quase todo dia ou sempre, a primeira coisa, eu ia até a garagem e dizia: “vou pegar meu chemodan e vou embora”. Chemodan. E aí, um dia, eu vou pegar o chemodan, e o chemodan não estava mais lá. Minha mãe tinha jogado fora. Essas são cenas em que comparo a Rifka me trazendo o “Iisus” e a minha mãe jogando fora o chemodan. Mas é porque ela não tinha segurança, ela tinha medo. Era uma incompatibilidade de gênios, não era uma coisa… Porque ela era ótima.
P/1 - Me conta o que era essa… desde criança, então, cinco, seis anos.
R - Desde, eu acho que o primeiro dia. Primeiro dia, ou falta de respeito de um adulto, de dois adultos, duas mulheres que ficam me lavando a cabeça. Isso é uma coisa que me deixou… Essa é a lembrança, eu cheguei no Rio de Janeiro. Aí, depois, eu vim com chinelinho, eu acho, não sei, porque a minha mãe logo me comprou um sapato, eu acho. Ou eu cheguei com chinelinho, eu sei que eu cheguei em São Paulo. No dia seguinte, pegamos o trem, eu acho que viemos de trem. E na estação de trem, estavam os amigos, as amigas da minha mãe, os maridos estavam trabalhando, mas as mulheres estavam todas lá. Tinha o filho de uma, que é o Adolpho Leirner, que foi meu primeiro amigo, que estava me esperando lá no trem. E eu, anos depois, soube pela mãe da mulher dele, da Fúlvia, eu soube que o pai dela, quer dizer, eu soube pela mãe da Fúlvia, porque o marido e mais um outro, eram de um comitê de recepção. E, naquele dia, ela, com a mãe da Fúlvia, bateu, o nosso vizinho bateu na nossa porta e falou: “venha, Shlomo, hoje nós vamos receber uma criança”. São pequenas histórias que me marcaram no dia da minha chegada. Também lembro de ter ganho uma tabuinha de passar roupa com ferrinho da minha tia Fanny Felmanas. Fiquei muito amiga do filho dela, que era da minha idade, Nelson. Depois, boneca. Depois eu conheci um bebê, eu tinha ganho uma boneca e eu gostei tanto desse bebê, achei ela tão linda. Todos amigos, filhos, netos, sei lá eu, da minha mãe lá, e que eu me lembro que ela era loira, a boneca de olhinho azul, e eu dei o nome de Sheila, porque o bebezinho se chamava Sheila, e é a Sheila Leirner. Então, tem umas coisas assim de todo o pessoal, amigos dos meus pais, e eu, muito tempo, realmente… A minha mãe era muito… Eu tive, infelizmente, ela era muito dominadora, e eu tinha que fazer tudo que ela queria, como ela queria. Meu pai é aquele bonachão, mas hoje, quando penso, ele fica muito em cima do muro, porque ele nunca saiu para me defender. Ou talvez eu não merecia defesa, eu só merecia um pouco de compreensão. Não sei.
P/1 - Mas a sua sensação é de uma infância conflituada.
R - Muito, muito, muito. Mas, ao mesmo tempo, quando eu ficava muito amiga de uma pessoa, minha mãe tinha muito ciúme. Ela, de alguma maneira, conseguia acabar com essa… Depois, casei muito jovem… No primeiro casamento… Eu estudei, quer dizer, fiz...
P/1 - Então, vamos voltar, vamos para a escola. Aí você chegou nessa casa...
R - É, estudei no Colégio Ofélia Fonseca, que era lá do lado de casa.
P/1 - Onde que era?
R - Ofélia Fonseca, na Rua Bahia, e nós morávamos… Agora eu moro de novo, quer dizer, tem a casa lá, que é a casa da Rua Itápolis, é logo alguns passos, 50, 100, 200 metros da escola. Então, eu ia para a escola e eu era a única judia da escola. E eu comecei a ficar com uma sensação tão forte de bom judaísmo. Quer dizer, eu comecei a me interessar, a gostar muito de ser judia. Não me perguntem por quê. Porque meus pais, não é que eles eram religiosos, os pais daqui, eles não eram religiosos, mas eles me levavam na sinagoga, no Rosh Hashaná, no Ano Novo, no Yom Kippur, o Dia do Perdão, eram as únicas datas que a gente ia. Eles não eram politizados, quer dizer, minha mãe, como sionista, ela era do partido de direita lá do Begin, o Betar, e eu fui crescendo com ideias absolutamente contrárias, mas também nunca ninguém me impediu. Acho que, no fundo, sempre os de direita, quando tem família com pensamento mais de esquerda, é um certo orgulho, sabe? Eles sabem como é que é. Me dá essa impressão, porque quando fui casada com o Nestor, que foi meu segundo casamento, eu acho que ele se orgulhava de estar sempre fazendo aqueles discursos. Não é só discurso, eu era uma militante de alguma maneira social.
P/1 - Você está lá, em Higienópolis, nessa escola.
R - Eu estou lá na escola.
P/1 - A sua avó…
R - A minha avó já é uma senhora, uma pessoa boa, mas uma pessoa com… Eu me lembro que, com diabetes, ela dizia que tinha muito açúcar e ela era doente. E meu avô era um cara sensacional, o marido dela. Ele era um… Na época, lá na Rússia, ele era também poderoso, porque ele era amigo dos generais, de todos os russos lá, porque ele fornecia carne, parece que, para o exército. E ele, então, salvou muita gente. Ele conta porque, quando ele já estava demente, ele dizia: “levanta, não precisa beijar minha mão, beije minha mão”. Eu me lembro dessa… Porque é como se ele estivesse falando com alguém invisível, com uma lembrança, quer dizer, alguém que ia beijar a mão dele por alguma coisa boa que ele tinha feito. Meu avô era fantástico, ele me ensinou a jogar cartas, a gente jogava, ele sempre me passava um dinheirinho embaixo da mesa, mesmo quando a gente jogava contra as crianças e tudo. Meu pai era um pouco, tinha um pouco desse humor, dessa coisa, desse meu avô. Meu avô era hilário. Ele, com 90 anos, pegava o bonde e ia para a sinagoga e ele caiu, ele ficava pendurado no negócio do bonde. Um dia ele caiu, bateu a cabeça, mas não aconteceu nada. Logo em seguida, ele já estava andando de bonde, mas prometeu que ia ficar do lado de dentro. Quer dizer que o que eu tinha? De alguma forma, existia uma família. Sabe essa sensação? Primeira vez que eu falo disso, primeira vez que eu tenho essa sensação, esse tema, que eu tenho a impressão que existia uma família. Sabe porque meu pai tinha várias irmãs, eu me lembro, ele ajudava muito a caçula, porque ela era mais pobre, ele pôs lá uma loja para ela, mas eu era muito amiga dos filhos dela. E ela tinha uma loja de vestidos para criança, então, a gente estava sempre super bem vestidinha. Meu pai já tinha algum dinheiro, porque ele já morava no Pacaembu, nessa casa.
P/1 - Ele fazia o quê?
R - Ele chegou e começou a trabalhar com couro. Ele no começo carregava couro e vendia assim, depois ele ficou o maior atacadista de couro. E aí ele teve um gerente lá desse negócio de couro dele que toda hora pedia dinheiro emprestado pra ele. Um dia ele falou, “o que você tanto precisa de dinheiro emprestado?”. Ele disse: “não, porque eu ajudo um irmão, porque o irmão é um engenheiro meio doido. Ele está desenvolvendo umas coisas em alumínio para construção, não sei o quê”. “Deixa eu conhecer teu irmão”. Ele gostou do que o irmão fazia, entrou de sócio e virou a maior empresa de esquadrilhas de alumínio. Eles fizeram talvez mais que 50% de Brasília. Eu conheci o Niemeyer, conheci todos os arquitetos famosos da época dos anos 80, 70. Era a gente… Nossa, Brasília, então, meu pai, Petrobrás, tudo isso ele que ganhava, porque tudo… Ele sabia vender bem, ele sabia negociar bem, enfim, ele fez uma grande fábrica, dois mil operários, quando ele, nem que quebrou, que foi fechando, fechando, fechando, enfim. Ele foi mal, o meu ex-marido também foi mal, foi todo mundo mal, todo mundo lá de cima, tudo caiu, vai saber por quê. Plano de governo do Delfim Neto, disso, daquilo, enfim, todos perderam tudo.
P/1 - Ele tinha uma fábrica e sua mãe trabalhava?
R - Não, minha mãe não trabalhava, minha mãe era dona de casa. Ela veio de uma família muito aristocrata. Judeu não tem judeu aristocrata, mas ela, lá em Riga, eram uma família muito considerada, diz ela que estudou dois anos de Medicina, quer dizer, os cotistas, mas ela conseguiu entrar na cota lá da cidade dela para estudar Medicina. Ela tocava piano, tocava e cantava piano, quer dizer, tinha education, ela tinha essa coisa da educação. Bom, e isso ela tentou, tentou não, ela transmitiu para mim, não para música, porque eu não queria saber, mas para línguas, por exemplo. Mas ela tinha uma coisa. Eu disse, “mas por que tantas linhas? Por que eu tenho que estudar tanto?”. Ela dizia: “porque se um dia você precisar trabalhar, você será uma boa secretária”. Quer dizer, é o máximo que ela...
P/1 - Entendia que uma mulher podia fazer.
R - Podia, devia, entendeu? Isso que ela quis ser médica. A irmã dela foi médica, a irmã dela realmente se formou em Medicina, porque depois foi trabalhar no front e depois foi para Israel. Uma adolescente meio assim, se um dia pegar a mão de um menino, vai ser para eu casar, porque é para a vida toda, é porque eu vou gostar tanto dele. E um dia, eu tenho 15 anos já, vou fazer 16, aliás, nós tínhamos um grupo de crianças de jovens judeus, chamado Mosaico 777. Era gente da minha geração, jovens, que resolveram convidar amigos, amigos, amigos, fazíamos baile, íamos ao cinema juntos, íamos ao teatro. Aí a mãe de uma que resolvia que nós tínhamos que aprender filosofia, então ela botava lá todo sábado para a gente poder…
P/1 - Mas não era nem uma [Hashomer Hatzair]?
R - Não, justamente, não era nada dos movimentos. Eu nunca frequentei um movimento juvenil. Porém, eu era tão judia. Gente, não dá para acreditar. Sabe judeu com prazer? Eu tinha prazer em ser judia. Daí, e cada vez esquecendo mais, quer dizer, religião mesmo, acho que nem de criança também não aprendi religião católica ou sei lá qual religião que era dos meus primeiros pais. Daí, eu estou com 15, 16 anos, conheço numa dessas reuniões de grupo, um rapaz que foi recitar poemas. Bonito, como ele só! Eu cheguei, depois que ele acabou de recitar, cheguei para ele e dei meu nome. Falei: “me chamo Antonieta, e se você quiser, quando for ler de novo…” Sei lá o que eu falei, qualquer besteira. Sei que na semana seguinte estávamos indo ao cinema, estava pegando na minha mão. Logo pouco tempo depois, com 17 anos, eu fiquei noiva e casei.
P/1 - Ele era judeu, lógico.
R - Ele era judeu. Isaac Elkis era o nome dele. Iso, chamado Iso. Lindo, inteligente, bom. A gente saía no inverno, ele ia de casa, pobre, pobre, ele ia de capa e, não adianta, era frio, encontrava alguém na rua, ele tirava e dava, acabou. Bêbado, ele levava para beber no bar no frio, porque ele dizia “o que ele vai fazer, tem que beber”. E assim fui aprendendo um pouco, sabe, essa coisa, eu não sei, essa coisa que não tinha a ver, quer dizer, eu tinha a educação que minha mãe tinha me dado, mas, ao mesmo tempo, eu tinha uma coisa assim, com esse rapaz eu tinha uma coisa de rua, porque ele era estudante e ia se formar em Direito quando ele ficou com leucemia galopante, e eu já tinha uma criança. Eu tinha uma criança, nós casamos, e um ano e pouco depois do casamento ele morreu, em 15 dias. Leucemia galopante.
P/1 - Você com o bebê?
R - Eu com o bebê e grávida da segunda. Aí eu conheço esse… Essa maravilha de pessoa.
P/1 - Pobre, vou falar disso.
R - Os pais moravam… Por que ele gostou de mim? Por que ele me ligou na semana seguinte? Diz ele. Porque eu cheguei para ele e falei, “olha, meu nome é Antonieta, se você quiser, sei lá o quê”. Ele disse: “normalmente as pessoas vêm e dizem, porque meu nome é Antonieta Felmanas”. Felmanas era um nome conhecido na época, por causa do meu tio, por causa de todas as coisas dele, assim, na área mesmo da cidadania. E por causa do meu pai, que era um homem rico, que tinha uma boa… rico. Ele estava começando essa fábrica, ele começou em 52, essa fábrica. Eu casei em 57, 58. Então, mas tava todo mundo bem, poxa, não sei, é que não se falava muito de dinheiro na minha casa. Meu pai, ele entrava em casa, olha as lembranças, ele entrava em casa toda alegre, minha mãe dizia, “tá, conta, qual foi o bom negócio que você fez? Pra quem você doou hoje?”. “Para a escada do prédio do hospital, não sei quantas”. Quer dizer, essa era a alegria do meu pai, quando ele podia doar, quando ele podia dar, quando ele podia fazer um bem. E minha mãe, ela era dona de casa, ela não fazia, ela era nervosa, ela gritava com a empregada, mas a empregada não ia embora da casa dela, só quando ela mandava, porque tinha conforto, tinha… Sabe, era uma casa… Eu falei da família, eu gostei dessa parte da família. Nós, na sexta-feira, toda sexta-feira, com a minha avó ainda viva, eles moravam no Bom Retiro, num apartamento bem grande, do lado, perto da loja da minha tia mais nova.
P/1 - Que era no Bom Retiro também?
R - Que era também no Bom Retiro. Uma rua aqui, uma na José Paulino e outra na rua Silva Pinto. Então, eles e minha avó preparavam o jantar. Eu acho que era ela que cozinhava, não sei, mas vinham todas as minhas primas, todas as minhas tias, era uma mesa enorme. Aí uma prima que sabia cantar, cantava, outra que sabia dançar, dava lá dois passos de balé. Meu avô fazia toda semana vinho, ele comprava uva, ele mesmo que fazia o vinho, me lembro bem das garrafas que ele enchia para poder servir na sexta-feira. Todo mundo se dava bem. Nunca me lembro dos irmãos terem discutido, brigado, os cunhados também não. Cada um era independente, porque meu pai tinha uma coisa, meu tio tinha outra, o outro era químico, engenheiro químico. Ele trabalhava para uma empresa ou tinha uma empresa. A minha tia, uma das irmãs mais velhas, a irmã logo que vinha depois do meu pai, ela era casada com, não sei se judeu ou não, mas russo, e ele foi o primeiro engenheiro de ar-condicionado, de calefação. Ele inventou o negócio de ter o chão quente, sei lá, essas coisas. Era uma família meio criativa, meio assim… O meu tio, esse químico, engenheiro químico, ele era muito legal, porque ele lia muito, ele, sei lá, eram todos, cada um tinha… E a minha, e essa tia, isso que eu queria contar com a mulher desse cara da calefação, ela tinha estudado na Rússia literatura francesa, então ela era muito culta. Aí tiveram filhos.
P/1 - Esse jantar era um Shabbat oficialmente?
R - Era um Shabbat.
P/1 - Tinha vela, você lembra disso?
R - Não tinha vela.
P/1 - Tinha comida judaica?
R - Tinha, toda comida judaica.
P/1 - Era sempre uma comida judaica?
R - Sempre.
P/1 - Era gefilte fish, frango, batata, tsimes.
R - Não me lembro mais o quê, mas era sempre assim, nunca faltou, e era muita gente. Aí minha avó foi ficando cansada. Então, é isso, essa coisa da família, porque essa mulher que me trouxe, ela foi realmente um pouco elo de tudo isso, mas ela foi ficando cansada, já não podia fazer os jantares, a empregada não parava na casa dela, não falava quase português, ela não sabia falar português. E aí tinha o lar dos velhos. E eles foram para o lar dos velhos.
P/1 - Ela e seu avô?
R - Ela e meu avô. Tinha um quarto grande. Eu me lembro que meu pai me levava para visitá-los toda semana, antes de eu casar, antes de ficar. Quando eu fiquei noiva, logo depois, eles noivados ainda estavam, depois eles já morreram. Mas ela… A família acabou.
P/1 - Quando ela partiu, a família acabou?
R - Porque foram para o lar. Então, me lembro que eles tinham quarto para o jardim. Então, você abria a janela, era jardim, mas era o lar. Era o lar, quer dizer… Será que é assim que tem que ser? Hoje eu estava falando na mesa, eu estava conversando isso com o meu filho e com o Eduardo, que nós estávamos almoçando, e eu dizia… Eu lia um negócio que é bem babaca, sabe aquelas coisas prontas que mandam pela internet, a velhinha dizendo, “porque eu não tive oportunidade, nada me falta, tenho comida, tenho roupa lavada, tenho isso, tenho aquilo, mas não vi meus netos crescerem, não vi meus netos brigarem, não vi meus filhos não sei o quê, eu os vejo no começo, cada semana, depois cada mês, depois cada seis meses e muitos nunca mais”. Quer dizer, não é assim. Sei lá, eu estava lembrando dessa leitura, que não é nada intelectual, mas é isso. Por quê? Quer dizer, por quê? Onde é que anda a humanidade? Onde é que anda a humanidade dentro de cada um? Isso é uma coisa assim. Bem, acontece o seguinte, porque a gente não tem a semana inteira para falar, então eu vou encurtar um pouco. Eu casei, fui muito feliz. A gente era tão feliz com nada com esse rapaz pobre. Era uma família pobre. Depois, o irmão dele tinha um laboratório, estava rico, morreu jovem, morreu com 40 anos também de câncer. E o outro irmão seguiu e está muito bem. O filho desse meu cunhado, que morreu jovem, hoje é o menino paisagista Gilberto Elkis, que é um menino de sucesso. Quer dizer, eles se viraram, mas os pais, como o meu pai dizia, quando eu fui falar para ele: “olha, o Iso e tal, é assim assado”. Ele disse “conheço a avó dele, gente muito digna”. Porque é isso que sempre pairava um pouco na minha família, a dignidade, o outro. Quer dizer, tinha meu pai, a alegria dele poder ajudar. E assim, de onde eu venho, a Rifka, o que ela, sem dinheiro, o que ela podia e assim podia. Então, ele era pobre, nós casamos, nós ficamos noivos, mas eu digo pobre com dignidade, porque o pai e a mãe tinham casa própria no braço, antes era uma loja na frente, depois ele já estava aposentado, não tinha mais nada, e os dois viviam no que podia, sei lá como, mas ela era uma dona de casa extraordinária, a mãe dele. Ele era apaixonado por essa mãe, a mãe gostava muito de todos os filhos, quer dizer, eu não via muita preferência, mas ele chegava o inverno, o primeiro dinheirinho era para comprar, me lembro, um [banglom] para a mãe, um banglom novo para a mãe. E, assim, pequenos gestos, pequenas coisas. E, assim, fomos vivendo de novo em família com esta família.
P/1 - Você foi morar lá?
R - Eu não fui, não. Nós ficamos morando com a minha mãe, na casa da minha mãe, do meu pai. Até que o apartamento que meu pai nos deu, o apartamento ficou pronto e eu fui sair da maternidade e fui morar no apartamento, porque aí eu passei toda a gravidez na casa da minha mãe, eram brigas, assim, tipo… Então, o que eu não gostava assim da minha mãe? Ele ligava e dizia… Olha, ele me ligava no telefone. Nós tínhamos uma lambreta na época: “Olha, a lambreta deu problema e eu tô aqui no mecânico, eu vou atrasar”. “Tá bom, vai atrasar”. Então, eu dizia “olha, podemos jantar porque talvez o Iso atrase”. “Onde é que ele está?”. “Ele falou que está…”, “imagina, deve estar com alguém, deve estar com uma mulher”. Sempre esse tipo de coisa que, para mim…E quando eu tive as minhas filhas, minha mãe era uma apaixonada, assim, total, total, total, porque eu tive uma, eu enviuvei, meses depois nasceu a segunda, o bebê, e eu… E aí ela era assim, eu acordava e ela já estava lá em casa para ver as crianças. E se eu tinha que sair, “mas por que você vai sair?”, “e quem vai amamentar?”. “e quem vai fazer?”. Eu tinha uma boa empregada na época.
P/1 - E, financeiramente, como você ficou?
R - Eu fiquei pensando no meu pai, mas eu não me lembro dele me dar dinheiro na mão, não me lembro de me faltar nada. Eu acho que eu tinha talão de cheque. Eu tenho porque, naquela época, se tinha talão de cheque. Eu acho que era isso, porque eu não me lembro de nada. Eu lembro, não é que eu lembro. Quando ele morreu, meses antes, era inverno, ele morreu em setembro, alguns meses antes, ele ainda não estava doente, ele disse: “olha, nós temos a lambreta, se a gente fizer um esforço, não comprar nada nesse inverno, nem roupa, nem nada, a gente consegue comprar um carrinho. O que você acha? Vamos comprar uma Romi-Isetta?”. Então, compramos uma Romi-Isetta. E ele usou muito pouco. Eu tinha 19 anos, depois que eu dei à luz. Eu grávida já fiz a carteira e fui guiando a Romi-Isetta. E assim, fiquei viúva. Quando eu fiquei viúva, engraçado, estou contando só da minha mãe e falando mal, mas não é falando mal. Mas não é para falar mal, é uma lembrança, porque isso vai me trazer qualquer outra coisa. Eu estava na praia. Então, nessa época, o que aconteceu? Meu pai tinha um apartamento no Guarujá, a gente estava no Guarujá, e eu estava na praia com as minhas duas crianças, minha mãe sempre junto, claro, e veio uma mulher que eu via ela na praia sempre, que eu dizia que se eu estivesse na França, seria Brigitte Bardot.
P/1 - Linda!
R - Era própria, a Brigitte Bardot com aquele cabelo, de biquíni, já naquela época, anos 60, uma coisa muito rara. Linda. E eu vejo que ela está vindo para mim. Ela chega e diz assim, “desculpe, eu preciso falar com você. Eu sempre admirei você e teu marido, nunca vi um casal tão maravilhoso. Eu via ele carregando você no colo, na praia, e eu sei que ele morreu. Eu quero perguntar, posso ser tua amiga?". Eu disse, “claro, por que não?”. Ela era casada, tinha duas crianças, logo em seguida meu pai vendeu o apartamento, teve que vender, enfim, e ela tinha um apartamento alugado num outro prédio, e ela me convidava todo fim de semana, eu ia às vezes, levava a menina, eu voltei a morar com meus pais de novo. No dia que ele morreu, quando eu volto para a minha casa, minha tia já estava desarmando todas as mobílias, tudo, para levar a minha cama para a casa da minha mãe. Ninguém me perguntou nada e eu fui para a casa da minha mãe. Eu fui para a casa da minha mãe. Não me perguntaram nada, nada, nada. Eu simplesmente voltei para a casa da minha mãe.
P/2 - Você queria ir?
R - Não, provavelmente não, mas acho que não fui habituada. Não me perguntaram se eu queria vir para o Brasil, acho que nunca me perguntaram nada, simplesmente ia acontecendo. Aí, essa amiga, tudo era feito em três, ela, o marido dela e eu. Eles brigavam, mas não me lembro de ter coisas assim, brigas, ou mesmo tinha, ela era polonesa, ela não fez campo de concentração, mas ela parece que teve muitos problemas quando menina, e nunca chegamos a conversar sobre isso. Era daqui para frente, sabe como é? Então, a gente ia muito ao que a gente gostava. Então, tinha as discotecas naquela época, que não precisava ir com uma acompanhada, podia ir sozinha. Então, ia ela, o marido dela e eu, e a gente ia para o baile. Quando a gente… O que você pensar, eles nunca, eles eram incapazes de ir a um restaurante sem antes me chamar, um cinema sem antes me chamar. E, às vezes, eles davam festas na casa deles, coisa pequena, alguns vizinhos, russos, isso, aquilo, e eu adorava, porque era tudo que eu gostava. E, um dia, a minha mãe começa: “Ela tem muito má reputação”. “Você tem que parar de ser amiga dela”. E eu comecei a brigar muito com a minha mãe. Briguei, briguei muito com a minha mãe. E, nessa época, como eu estava morando na casa da minha mãe, estava com as meninas já no jardinzinho, e eu comecei a trabalhar. Eu trabalhei em 1962, eu trabalhei na Nestlé, o ano de 1962 eu trabalhei na Nestlé. E eu adorava, gostava muito do meu trabalho, gostava muito do meu chefe, gostava de tudo. Eu trabalhava em novos produtos, planejamento. E eu já estava aprendendo muito. Na verdade, ele é outro que tinha orgulho, porque cada vez que via uma visita ao presidente, que era o Ballarín na época, ele entrava e dizia, ela fala francês, português, mas…
P/1 - E russo!
R - Naquela época até russo, porque hoje eu falo mal. Eu saio do trabalho às cinco horas da tarde e vejo a Nina lá. A Nina, essa amiga. Eu digo: “ô, Nina, que delícia! O que você está fazendo?”. Ela disse: “você não sabe o que aconteceu hoje. A tua mãe me chamou para um chá. Eu fui. Lá estava a fulana e ciclana…”, que eram duas amigas dela, que, segundo a minha mãe, tinham falado mal da Nina para a minha mãe. Então, essas duas amigas estavam lá, a Nina aparece lá, fica surpresa, acha que é tudo uma… Então, minha mãe diz: “olha, eu chamei aqui para dizer o seguinte: essas duas senhoras, duas amigas, falaram pra mim que você não é uma mulher séria, que você é mal falada, que você é isso, que você é aquilo. Minha filha é jovem, é viúva, ela tem que refazer a vida dela e eu peço a você pra se afastar da minha filha”. Eu digo “não acredito”. Eu me despeço dela, chego em casa, faço maior escarcéu, mas não é escarcéu, eu só não agredi porque nós não tínhamos o costume de levantar a mão para ninguém, mas eu fiquei enlouquecida. Falei com meu pai que isso não é possível, que não sei o quê e tal. No dia seguinte, aparece o marido dela com mais um outro amigo, que era um amigo dele, do Rio de Janeiro, para pedir satisfação para mim. Ele disse: “o que você vai fazer? Você soube que tua mãe fez isso e isso com a minha mulher?”. Eu digo “eu soube”. “E o que você vai fazer?”. Eu digo “pedir desculpas por ela. Eu não posso fazer mais nada, o que eu posso fazer?”. “Você é igual a tua mãe, você não presta”. E foram embora. Meses se passaram, um, dois meses, sei lá, que eu não falava com a minha mãe mais. Eu estava na mesma casa, morava com ela, mas não falava mais com a minha mãe. Continuei trabalhando e tal. E o meu pai, vendo toda essa situação, ele dizia, “olha, eu tenho que viajar, eu vou para a Europa. Você quer ir comigo? Venha ser minha secretária, que eu tenho que comprar patentes, vender patentes, não sei o que e tal”. Eu digo “vou”. E assim nós fomos. As minhas filhas tinham uma babá a cada uma. Nós morávamos na casa dos meus pais, estava tudo super organizado, mas babás, babás maravilhosas, mas babás. E a minha mãe sempre ali, a avó extrema, extrema, extraordinária, comprando todo dia alguma coisa nova para as crianças. Minha mãe era uma loucura, uma loucura. Ela tinha uma adoração, não sei. Aí eu vou e viajo com meu pai. Passam-se dois meses e eu… Ficamos dois meses viajando, trabalhando, e ele tinha me dado já de presente pra volta uma viagem de navio, pra eu voltar pelo Júlio César, na época Augusto, o Júlio César eram os navios da época. Então, eu ganhei uma passagem dele pra voltar. Quando terminamos de trabalhar, ainda faltava uma semana pra gente poder, para ele pegar o avião e eu ia pegar o navio. Daí, mais tanto ele, daqui a uns quatro dias e eu, daqui a uma semana, por aí. Aí ele diz: “olha, Antonieta, como você trabalhou tão bem, eu gostaria de te dar mais um presente. O que você gostaria?”. Eu disse: “eu gostaria de ver a Rifka”. Ele disse: “eu tenho o endereço dela. Vamos na agência comprar a passagem de avião”. Fomos. Ele disse: “agora manda um cartão, tá aqui o endereço, e diga a ela que nós vamos chegar”. No dia seguinte, pegamos o voo, chegamos, não tem ninguém no aeroporto.
P/1 - Israel?
R - Israel. Tel Aviv. Claro que não tem. Como é que você, em vez de mandar telegrama, você pega e manda um cartão postal? Chegou uma semana depois. Eu não via a Rifka desde os sete anos de idade.
P/1 - Cinco?
R - Não, eu vim com sete para o Brasil. Ela me pegou quatro e pouco e fiquei com ela até os sete, quando eu vim para cá. Aí, não tem ninguém no aeroporto, meu pai disse: “não tem nada, nós temos o endereço, vamos pegar um táxi, vamos ver se alguma coisa aconteceu”. Pegamos o táxi e lá naquela época era muito confuso ainda, mesmo em 1962, era a Rua dos Professores, só que a Rua dos Professores tinha muitas ruas dos professores, a Rua dos Alfaiates também, porque eles botavam a rua, como é que os israelenses faziam? Eles juntavam as pessoas mais por profissão, para eles terem o mesmo tipo de cultura, já eram do mesmo tipo de educação e tal, porque não adiantava botar um cientista do lado de não sei quem, porque não ia fazer bom, para adaptar bem aquela coisa toda. Então, começamos a procurar com táxi, porque o táxi não sabia muito bem. Era Yad Eliyahu, que era um bairro do lado de Tel Aviv, mas como era? E eu não entendia nada, eu nunca tinha estado em Israel. Aí, de repente, nós estamos já dando voltas, porque o chofer disse “é por aqui”. De repente, eu vejo de longe uma mulher com um litro de leite, um pão na mão. E eu, de longe, vi essa mulher e disse “é ela”… E eu falei para o táxi, “para”. Saí do táxi correndo, cheguei perto dela e disse “Rifka”. Ela me disse “Taibala”. E esse foi o nosso reencontro. Desde esse dia, nunca mais me separei dela, porque nós tínhamos nos separado dos meus sete aos 22. Sendo que ela conta, que ela contava, que ela me mandava muitas cartas, mas eu nunca recebia. E aí, meu pai, fomos para o hotel, e eu fiquei com meu pai os três dias que ele tinha que ficar, e aí eu passei para a casa dela, esse casebre.
P/1 - Ela era pobre?
R - Ela era pobre. E esse casebre, que era um palácio. Era só assim, você entrava, do lado direito tinha uma sala, que era o lugar onde o casal dormia, mas durante o dia as crianças estudavam. Logo em seguida, o outro… Tudo porta de vidro lá, assim, vidro… Aí tinha outro quarto dos filhos, que já tinha outro, tinha dois. Do lado esquerdo, o banheiro, que era dividido em duas portas, uma só para a toalete e outra para… Uma para a pia, etc., e outra para as necessidades. E no fundo, que fazia assim, porque era assim, assim, e aqui a cozinha, com um pequeno jardinzinho. Pequeno jardinzinho, não, ela nunca cuidou de jardim. Pequeno quintal, com grama crescendo, com tudo, porque eles davam muito duro, que é uma coisa que não dá para entender. E eu dei uma acordada, foi o ano passado, a primeira vez que eu disse “Como que meu pai não ajudou? Como que meu pai deixou uma menina que tinha 16 anos, que perdeu, prima dele, que perdeu um cara que doa, não é?”. Porque meu pai era um doador. Onde você vai, no Einstein, tem lá o nome dele, não sei onde tem o nome dele, sempre ele foi um cara conhecido como um cara que fazia essas coisas. Como que ele não deu nada pra essa família, sendo que ele é primo, deixa uma menina que perdeu tudo, perdeu os pais, que vai pra Israel, como que ele nunca deu nada, a não ser ele enviar, minha mãe enviava alguns pacotes, seja de roupa nova, coisa pra vestir? E eu só me atinei não faz muito tempo. Mas aí o que aconteceu? A a minha história linda com ela, por quê? Ela, no começo, eu pedi para ela me contar. Quando meu pai já foi embora, eu fui para casa dela e digo: “agora você me conta a minha história”. Porque eu fiquei sabendo da minha história, agora tem que voltar um pouquinho. Como é que eu comecei a saber da minha história? Um dia eu estou no Rio de Janeiro com meu marido ainda, eu tinha só a menina e comecinho de gravidez, e ele me diz assim “olha, pega a minha carteira, minha caderneta”, eu vou pegar a caderneta, mas ela abre e está escrito, “nascida em 1º de maio de 1940, filha de tal e tal, pai morto assim, mãe morta assim, não sei o quê, não sei o que lá”. Eu digo “a minha história”.
P/1 - Escrito na caderneta?
R - Escrito na caderneta dele, tinha uma caderneta. Na minha época não se mexia, acho que agora também não mexo na coisa dos outros, nem de filho, muito menos de marido. São coisas privadas, pode ficar lá. Era uma caderneta com ele, mas ele precisou… Vai ver que era uma caderneta de endereços, mas que ele anotou lá. Bom, para encurtar, eu disse “que isso? é minha história? não é minha história?”. Ele disse: “bom, antes de casar, o teu pai me chamou para contar essa tua história. Mas ele pediu, eu jurei para ele que eu não ia falar com você, porque ele não queria que você soubesse. Como você se dá muito mal com a tua mãe, ele achou que, dessa maneira, você poderia querer se afastar deles. Então, ele prometeu que não contaria essa história”. Mas quando eu chego, já em Israel, com a Rifka, eu digo para ela “me conta a história”. Aí ela começa. E começa a chorar e diz: “não consigo, porque a sua história é a minha história, e eu não consigo falar dela. É muito triste, é tudo tão terrível”. Ela diz assim: “mas eu vou te prometer uma coisa, o dia que você for feliz de novo…”, porque eu já era viúva, “o dia que você for feliz de novo, eu conto a história”. Casei com o Nestor. Cinco anos depois, eu casei com o Nestor. Enquanto isso, eu estava sempre em contato com ela, aquela coisa toda. Cinco anos depois, eu caso com o Nestor, em 64. Vamos para a Europa, porque ele tinha feira, coisas para ver, negócios, e, de novo, eu ajudei ele bastante, porque eu falo alemão. Então, ele era mais na Alemanha que tinha negócio, e é bem mais fácil quando tem alguém falando alemão do que inglês, todo mundo com o inglês, ele com o inglês mal, o outro com o inglês mal. Aí, quando terminamos de trabalhar, o Nestor me disse: “olha, você me ajudou tanto, o que eu posso te dar de presente?”. Eu disse “uma viagem para Israel. Eu vou conhecer a minha história, porque ela me prometeu que agora que eu estou feliz”. Ele disse: “mas na lua de mel? Eu não posso te acompanhar, como é que fica? Vou voltar sozinho da lua de mel?”. “Ai, Nestor, a gente já é bastante adulto. Volta, daqui a pouco eu estou lá”. Ele concordou. Chego lá, eu digo “agora eu sou feliz, me conte qual é a minha história”. E ela aos poucos começa a contar, mas ela conta e chora, conta e chora. E era difícil de eu aguentar, sabe? Porque também eu acabava ficando muito… E depois eu estava feliz, eu era jovem, eu estava preocupada aqui que eu estava ajudando, começando a ajudar as criancinhas, uma creche com criancinhas. E depois eu estava ajudando, mas não sei o quê. Depois eu, enfim, estava nessa coisa do serviço, mais do lado social e tudo. Aí eu falei “tá bom”. Nesse ínterim, o Nestor vai mal de negócios e ele pede concordata, meu pai pede concordata, ele pede concordata. E o que fazer? “Eu preciso”, porque diz ele que foi pego de surpresa, como meu pai pediu um cordato, nós tínhamos muito aval, que ele ficou mal, então ele precisava de um fundo para poder fazer jus nesse primeiro mês, não sei o quê, para ver como ele se virava nos negócios. “A quem nós podemos pedir empréstimo?”. Eu falei: “teus amigos”. E nomeei as pessoas mais importantes da sociedade, que eram todos nossos amigos, “não dá para pedir para nenhum deles”. Digo: “olha, eu só tenho uma pessoa de quem eu posso pedir, que é o casal, que eu fiquei muito amiga na viagem de volta de navio, um casal em Lua de Mel, ele musicólogo, mas que tinha uma fábrica de roupas, ela estudante ainda, de psicologia, fiquei irmã, super amiga, quer dizer, num navio de 14 dias dá para você ficar dia e noite amiga de alguém, e fiquei muito amiga deles. O único que eu posso é pedir para eles, porque já era casada há algum tempo, eu já estava casada há alguns anos, foi justo na época do Campeonato Brasil-Argentina, não sei que ano foi, 1976, sei lá.
P/1 - Copa? Você está falando da Copa?
R - A Copa.
P/1 - 78.
R - 78. Fui lá. Aí eu digo, mas eu não posso fazer assim… Primeiro, para telefonar são três dias, porque naquela época para ligar para outro país. Eu tenho que ir lá pessoalmente, eu não tenho coragem.
P/1 - Eles eram argentinos?
R - Eles eram argentinos, ficamos muito amigos, eles vinham, ficavam na nossa casa. E aí a gente tinha casa, pé na areia, lá no Guarujá, aí a gente já tava vivendo aquela vida toda grandiosa. E aí eu falei, “olha, eu só posso se eu for pra lá”. Peguei o avião, fui, bati na porta, ela disse, “ele não está, mas vamos telefonar”. O marido estava viajando, estava na Europa. Aí eu digo, “então, vamos telefonar para ele”. Aí ela ligou, dois dias depois, três, sei lá, eu, o telefonema é completado, e ela explica a situação, e ele dá uma ordem para ela, ela fica até muito emocionada, quando ela me traz, ela diz assim, o Coco, o marido dela, mandou entregar isso. Era o cheque assinado por ela em branco. E eu fui pedir 100 mil dólares. Ela me entregou um cheque em branco. Ela disse assim, “ele sabe quanto nós temos, é tudo de vocês”. Eu chego com um cheque em branco. Ele usou os 100 mil dólares, não mais que isso. Pagou, claro, deu tudo certo. Demorou um pouquinho, mas deu tudo certo. E passa-se um tempo… E ele vem de surpresa. Eu estava no Guarujá, ele chega no Guarujá com outro Orson Welles, um homem alemão, dono de uma fundação, que quer fazer a imagem. Eles, nessa época, já tinham um grupo de música, teatro, era áudio, era uma coisa muito de ponta, usando tudo, grandes informações intelectuais, muito balé, muita música, não sei o quê, e ele estava indo bem, o Goethe estava ajudando, o Goethe Institut, mas esse alemão disse, “se você achar alguém que possa fazer imagem de vocês na Europa, eu pago essa pessoa”. Então, ele trouxe essa pessoa. Aí eu fui pagar a dívida que eu tinha com ele, porque, claro, ele me dá um cheque, manda dar um cheque em branco pra nós, e eu não podia fazer outra coisa que aceitar. Também me recusei várias vezes, mas o cara insistiu tanto que um dia eu disse, “tudo bem, eu vou”. E assim eu fui trabalhar na Europa. E ao trabalhar na Europa, eu ia, ficava três meses...
P/1 - E as filhas aqui?
R - Tudo aqui, já bem moças, já bem mocinhas, e uma ligando e dizendo pro meu amigo, “ladrão de mãe”, outra falando não sei o quê, quer dizer, mas elas estavam aqui, já tinha quatro, nessa altura, as duas e mais dois, um casal com o Nestor. Aí, em 82, eu aceito ir para lá. Logo em seguida me separo do Nestor também. E começo a trabalhar lá e todo fim de semana eu vejo a Rifka.
P/1 - Ia pra Israel?
R - Claro, porque o alemão, o que ele fez? Ele disse, “eu não vou te ajudar em nada”, porque ele prometeu ajudar, com lista, apresentação. Ele disse, “o que adianta eu te apresentar às pessoas para quem eu peço dinheiro para a minha fundação? Não adianta, você tem que abrir o caminho. Então, eu te dou isto”, e era um cartão do Diners, “gasta o que você quiser, confio em você”. São essas coisas na vida da gente. E eu nunca vi um cartão aqui. Naquela época, pelo menos, eu não tinha cartão de crédito. E eu já não trabalhava, porque, casada com o Nestor, eu não trabalhava desde 1964, porque em 1962 fui pedir férias, sair da Nestlé e não voltei mais. Aí fui ser professora de línguas lá no Yázigi, fui ensinar russo sem saber como ensinar, mas eu era brincalhona, então, sei lá, eles acharam que eu era uma substituta ótima, aquelas coisas. Bom, aí eu começo a ver a Rifka cada vez mais. Meus filhos, a minha filha mais velha se casa, depois ela tem uma criança, e quando a filha dela tinha nove anos, eu levei para Israel para conhecer a Rifka. Então, nesses anos que eu trabalhei lá, durante cinco anos na Europa, mas eu ia e vinha. Eu conheci o Eduardo, aí eu tinha me separado já do Nestor, e eu conheci o Eduardo, e com quem eu estou até hoje, são 40 anos que a gente está junto. Então, eu levo a minha neta para Israel, e eu estou lá com a Rifka, com a minha neta, com o neto dela, e ela me diz… Eu já não falava mais do meu passado, eu já sabia todo fim de semana junto. Para mim, o que era muito legal era o presente. Ah, como é que era? Quando eu voltei em 1962, eu disse a mim, conforme que essa mulher mora assim. Então, o Nestor ajudava um pouco e eles também não pediam nunca, mas quando eu comecei a trabalhar, o que aconteceu? O cara da fundação me deu o cartão, mas os meus, esses que são meus amigos, eram o músico e o musicólogo, esses é que eram os meus amigos mesmo, o resto era artista convidado. Então, o musicólogo, que era como um irmão meu naquela época. Eu abri grandes negócios para eles, grandes programações, turnês, não só isso. Enfim, foi muita coisa muito boa e eles me pagavam, e tudo o que eles me pagavam eu levava para a Rifka. Então, quando eu ia lá… E um dia ela comprou um apartamento. Por quê? Porque um dia o Nestor, que também me dava dinheiro, ainda não era separada, ele me dava dinheiro para eu viajar e ver a Rifka. Quando eu vou ver, vou embarcar, ele diz, “olha, não tenho dinheiro para te dar, toma aqui um talão, eu tenho um dinheiro lá na Suíça, e você então liga lá, eu conheci o gerente de São Paulo ainda, tem lá um dinheiro, você se precisar, mas cuidado, hein, cuidado, tá?”. Eu, a primeira coisa que eu fiz, cheguei na Europa, em Tel Aviv, aliás, quando eu cheguei pra Rifka, eu ligo pra ele e digo: “quanto dinheiro que tem lá” “na conta?”. “11 mil dólares”. “Quanto eu posso tirar?”, “tudo”. Conta, você tem assinatura. Eu digo, “então, como é que eu faço pra tirar aqui em Tel Aviv?” Aí ele me falou “vai no banco tal”. Eu peguei, tirei e cheguei na cama dela e joguei uns 11 mil dólares. Foi a maior alegria que eu senti. Antes disso, o Nestor tinha dado não sei quanto, eles compraram um negocinho e tal. Moral da história, ela comprou um apartamento, que hoje vale muito, ela já não vive mais. Os filhos, os netos dela foram todos estudar, porque o dela era em Tel Aviv. Então, o neto que mora em Bat Yam, o neto que mora em não sei o quê, todos foram estudar e morar com ela lá. O marido já tinha morrido, ele morreu na casinha, no casebre. Não era casebre, mas era uma casinha muito pobre. E pronto. Ela estava bem, ela estava em um bom apartamento, a minha sobrinha Mônica foi lá para… Porque onde eu ia, a partir de um certo momento, a Mônica, a sobrinha ia… Eu chamo-a sobrinha porque eu tenho uma filha, Mônica, e essa é a Mônica Bergamo, jornalista, e ela é como filha para mim também. Então, ela ia viajar, e no tempo ainda que ela não tinha criança, depois ela teve a filhinha dela, e aí ela levou a filha, e toda vez que eu ia, nós íamos para a casa da Rifka, íamos lá e ela levava a irmã, e assim a gente, de novo, família, família, e a família que fui constituindo, de certa maneira, com a ex-família do Nestor, porque, na verdade, a Mônica é sobrinha dele, não minha, biologicamente. E a gente foi, de novo, constituindo essa coisa, e quando eu cheguei com a minha bisneta, com a minha neta, Clara, com 9 anos de idade ela tinha, ela me diz assim, nós estávamos na casa dela, ela com o neto, ela diz assim, “você tem um gravador?”. Eu disse, “eu tenho”. Ela disse, “então, vamos gravar, vamos gravar a sua história”. E aí ela conseguiu contar a minha história, tudo que eu fui contando para vocês em pedaços, ela foi contando. E aí eu perguntei como era a minha mãe, aí ela me deu uma foto, a única foto, e eu fui para Miami. Enquanto ainda trabalho com o Nestor, ele disse: “olha, eu vou fazer essa reunião e tal, vai dar uma volta”. E me deu 200 dólares para eu fazer um _____ assim por Miami. E eu falei, “mas eu vou ser burra de gastar 200 dólares num táxi? Eu vou entrar aqui no ônibus, em frente ao hotel, faço todo o tour”. Quando eu voltei, não tinha os 200 dólares, mas também não tinha a foto da minha mãe, porque onde eu ia eu carregava essa foto e nunca fiz cópia, nunca fiz nada.
P/1 - Alguém pegou?
R - Roubaram. Em Miami, não sei se vocês sabem, mas tem o bairro dos chicanos, o pessoal que… E eu entrei no ônibus, quando era a saída de todos os trabalhadores, de alguma maneira, desses lugares chiques onde eu estava, para ir. E esse ponto final era lá nesse lugar. A minha bolsa era uma bolsa desavisada, como se diz, e me roubaram, e nunca mais. Então, está na minha lembrança porque eu era muito parecida com ela. Quando ela me mostrou a foto, eu disse, “mas eu não me lembro dessa roupa”. Ela disse, “não é tua, é da tua mãe”. Tão parecida. Ela era comigo, eu era com ela. Tão parecida. Do meu pai eu tenho algumas fotos, fotos que a Rifka me deu, como ela me deu da minha mãe, mas da minha mãe era uma foto 3x4 assim, pequena.
P/1 - Eu queria, Antônia, antes da gente seguir, que eu queria, falar um pouquinho do seu trabalho com a Unibes. E com tudo isso. Mas antes, você consegue me contar melhor esse casamento, o Nestor? Quem é o Nestor? O que aconteceu? Me conta dessa família, Nestor.
R - Então, o Nestor… Eu conheci o Nestor numa roda de amigos, eu tinha voltado da Europa com o meu pai naquela época. E eu tinha uma vizinha que era casada com um amigo do Nestor. E o Nestor era um cara solteiro que estava muito na colônia. Ele era amigo de muitos judeus.
P/1 - Ele não era judeu.
R - Não, ele não era judeu. Bergamo, o sobrenome dele. Sei lá, ele era um cara simpático e eu queria distância dele. Mas eu tinha uma grande amiga minha, a Raquelita, que já morreu, foi casada com o Calabrone, um escritor, e a Raquelita adorava o Nestor. Então, tudo era o Nestor, o Nestor, o Nestor. O Nestor era muito mulherengo, e nós sabemos que ele tinha, inclusive, uma namorada, que era casada e que a gente estava doida para descobrir, acabamos descobrindo quem era. Ele toda vez nos convidava, a Raquelita e a mim, para sair, para passear, para comer nos bons restaurantes, para não sei o quê. Eu não gostava. E eu sempre dizia para ele “me leva para casa antes”. Então, eles me levavam para casa e depois ele seguia para levar a Raquelita. Até que um dia a Raquelita eu acho que fingiu que se sentia mal. “Ah, por favor, eu preciso ir para casa”. E lá fico eu sozinha com ele no carro, e aí começamos a namorar, vê se pode. Ele não era judeu. Não que eu ligasse muito… Eu não sei, mas eu dizia, putz, agora como é que eu vou falar para o meu pai que eu estou… Mas ele conhecia. Eu não sei como é que ele conheceu a família Bergamo, eu sei lá. Eu sei que o pai do Nestor foi o cara que convenceu o primeiro judeu mais rico de Campinas, de São José dos Campos, de construir uma sinagoga, porque como gente de loja de imóveis era tudo judeu, mais ou menos. E ele era italiano, ele era marceneiro, e o seu Bergamo era pessoa genial, o ídolo de todos os netos, você não sabe, mas ele era realmente uma pessoa fantástica. E o Nestor trabalhava com ele na fábrica, mas o Nestor se apossou, de certa maneira, e não administrou bem. Então, a gente vivia, conforme meu pai dizia, “vocês vivem, não fica bem, o industrial”, certas coisas que predico meu pai, “não fica bem um industrial, levar essa vida que vocês levam, é barco, é casa, é isso, é aquilo, não precisa tudo isso”. Era uma vida, do que você podia imaginar, assim, de bom e do melhor para muitos. Minha história era de uma… tendo ou não tendo, sei lá, porque eu também não sabia o que ele tinha ou deixava de ter, e eu sei que… porque é daqueles que sempre… “não tem dinheiro e tal”, mas tinha, mas estava com essa vida. Sei lá, ele é um capítulo à parte, acho que não vale a pena muito falar. Eu sei que me separei dele porque, no final, ele se apaixonou por uma pessoa que frequentava a minha casa. Chegou um dia que eu dei um basta e falei que ia embora. Eu já tinha alugado um apartamento e ele… Quer dizer, eu pedi para ele alugar para mim, não tinha, só dependia dele. E agora eu digo, “o que eu levo? Eu digo, quer saber? Eu levo o que couber nesse lençol da cama”. E peguei, era roupa, né? Era roupa. Então, fui para esse apartamento.
P/1 - Você foi com os quatro filhos?
R - Não, por quê? Uma já era casada. A outra estava na Europa estudando na época, passando seis meses estudando. Passando lá entre a Alemanha, porque eu como ia e vinha, então ela… Ela foi para lá e ficou, acho que ela ficou um ano, a Isa. E o André estava na época talvez na Itália, não me lembro também, estudando lá, estudando negócio de imóveis, não sei. E a Luciana estava comigo, mas ela disse que não queria morar comigo, ela preferia ficar com o pai na casa do Morumbi. Porque o Morumbi é uma casa enorme e ela preferiu ficar com o pai. Eu fui para o apartamento, a Isa II, que estava na Europa, fiz um quarto para ela e o meu filho tinha um quarto. O apartamento, na verdade, era só japonês, tatami por todo lado, aqueles shoji, então não tinha móvel, não precisava, não tinha nada, tinha colchão para dormir. E foi quando eu conheci o Eduardo.
P/1 - Vamos para os filhos. Só para fechar uma ideia na cabeça, esse casamento com o Nestor durou?
R - 16 anos. Aí eu fiquei separada bastante tempo e ele não foi legal, ele não foi um homem honesto comigo. Então, me deixou muito mal. Ele não foi honesto porque ficou com tudo e não ficou com nada, porque ele realmente não ficou com nada. A mulher dele pegou o que podia. Ele já morreu. Ele morreu ano passado, ano retrasado, sei lá. Mas ele era um… Nestor era um sedutor. Sabe aquele malandro que acha que está sempre conseguindo? E não é verdade, as pessoas não se deixam. Não é assim, não é moderno, não é contemporâneo ser assim. E ele era, eu acho. E isso fez muito mal, fez mal para os meus filhos de alguma maneira, fez mal para mim. Olha só que loucura, quando ele pediu concordata dessa fábrica de imóveis, que o pai dele que fundou, que trabalhou, que cresceu e que ele realmente transformou numa grande indústria. Era a maior indústria, 2.000 dormitórios por dia. Isso é brincadeira, 24 horas trabalhava a fábrica. Tinha representação desde Dubai até não sei onde, sabe? Devo a ele as viagens, devo a ele a possibilidade de realmente ter conhecido as grandes coisas onde só pagando muito caro que você consegue entrar ou fazer. Isso, sem dúvida nenhuma eu devo a ele e agradeço, mas não é uma coisa, não sei, essa coisa de… Eu achava que trair… Trair quer dizer… “Ai, se meu marido me trair, o fim do pecado, não quero mais saber”. Hoje, eu acho que não é nada. Mas por quê? Porque tem uma coisa que hoje eu digo, tem que ter coragem de chegar e falar para a pessoa, “olha, estou apaixonada por outro, olha, o meu casamento não está bem com você, eu vou me separar”. Mas não. E eu dizia, “você tá namorando fulana, você viajou com fulana, eu fiquei sabendo”. “Você tá louca, você tá isso”, sabe aquela coisa? “Vou me separar, vamos separar”, “vamos separar”. Até que nos separamos, ele não quis dar divórcio. E naquela época, por não ter eu tido o divórcio, eu fiquei… Era tudo dele, ele podia fazer o que quisesse, não tinha nada em meu nome. E mais complicado que isso, porque ele fez holding de holding de holding. No fim, quase perdi a casa que era do meu pai, que é a única coisa que eu tenho. E a casa de Picinguaba, que depois eu acabei comprando, porque eu vendi a casa de pé na areia. E eu aquela coisa, não quero ver o dinheiro, falei com o comprador, você fala com o Nestor, “fala com o Nestor”. Falei com o Nestor e, enquanto isso, fui vendo coisas e, quando vi Picinguaba, disse “uau!”. Era US$ 9.000 que custava a casa. O Nestor pagou na hora. Eu disse, você tira US$ 9.000, porque ele aparentemente tinha vendido a casa por US$ 270.000. A casa da praia era das três mais bonitas que tinha lá no Mar Casado, bem na areia, grande. Bom, aí ele foi me dando uma mesada, mas ele dizia, “não podemos divorciar porque vai, não sei o que, o patrimônio, isso, aquilo”, e eu sempre, “ah, tá bom, tem razão, tá bom, tem razão”. Separamos, quando eu me separei. mas ele não foi legal. É toda uma história. Hoje não lembraria dos detalhes, mas lembro que me separei, a Luciana, minha filha, foi morar com ele, mas logo em seguida ela depois ficou noiva, casou. A Mônica já era casada, se separou, já tinha uma criança, ela tem uma companheira desde então, já há mil anos. Não, ela já teve várias antes, mas ela já está com mais de 20 anos com essa. A filha dela tem 40, quase 39. E, de repente, de novo a família. O que quer dizer família? A minha segunda filha está muito doente, não é que está sempre doente. Ela era solteira e adotou um filho. E um bom menino, uma coisa louca, não vou dizer que é meu neto predileto, porque todos eles são, mas ele é um neto muito querido, é uma pessoa muito querida, mas teve uma época muito difícil dele. Ao mesmo tempo, ela começou a ter uma diabetes que ela não cuidou. Então, hoje ela está praticamente na cadeira de rodas, três cuidadoras, briga o tempo todo comigo. Nosso problema é dinheiro, porque eu que sustento, não tenho mais ninguém, porque o Nestor não deixou nada, não deixou um costão.
P/1 - Ela é filha do?
R - Do Iso, do primeiro, que era pobre. O segundo, meu pai, perdeu, o Nestor perdeu e eu, que nem sei como, mas eu sustento e custa muito.
P/1 - Bom, a primeira, então, vamos… E a sua primeira filha?
R - A minha primeira é astróloga. Essa, Mônica. Ela se separou do marido, primeiro se apaixonou por uma moça, por uma mulher, que aliás é muito, muito minha amiga, mas mora em Portugal. Depois eu não sei que outros romances ela teve, mas hoje há 20 anos que ela mora com uma mulher. Adoro, é filha, porque esse negócio de falar, “ai, minha nora, ai, meu marido, ai, minha mulher”, elas não gostam, eu também acho meio esquisito. Então, elas são companheiras, moram juntas, adoram uns dos filhos dos outros, não só que adoram, cuidam muito uns dos outros, quer dizer, ela, a outra, a Tânia, dá muito apoio à Mônica em tudo que é a família da Mônica. A Mônica igualmente para a família dela. É lindo, é bom. Só que Mônica é uma pessoa extraordinária. Mônica é uma eremita, é uma mulher que mora em Picinguaba, onde eu moro.
P/1 - Ela mora em Picinguaba?
R - Ela tem uma casa, uma casa bonita, em frente, do outro lado do estacionamento,um pouco mais adiante, não dá para ver da minha casa, não dá para ver a casa dela, mas é logo a segunda casa. E ela mora lá, e como ela é astróloga, ela trabalha à distância, ela pode trabalhar virtualmente, e a Tânia fazia um pouco de arte, ela faz umas esculturas, ela é psicóloga, mas ela não trabalha como psicóloga, e ela faz umas esculturas pequenininhas, muito interessantes, tudo psicológico. Mas ela parou também de fazer, disse que não estava. Então, o que ela faz? Ela cuida da casa, porque a minha filha só estuda, a Mônica só lê e só trabalha. Como astróloga, ela diz que o estudo é infinito, não tem fim, não tem fim. Eu não conheço, não entendo. Ela tem até um post, como é que fala? Ela posta todos os dias sobre coisa… Mônica Bergamo, uma astrologia, chama-se, alguém gosta de astrologia. Recomendo porque ela é muito séria, mas ela é boa. A Mônica quer distância. Esse negócio de ficar, “bom dia, vamos almoçar juntos”, só comigo. Comigo ela ficaria de manhã, tarde e à noite, mas com o Eduardo, ela cuida muito do Eduardo, muito. E ela, assim, valeria a pena falar uma vida inteira sobre ela, mas não tem nenhuma história, a não ser o dia em que eu não me conformava. Porque no começo, quando eu soube, eu tenho uma filha gay, quer dizer, uma filha que abandona o casamento, abandona o marido, com uma criança de dois anos. E eu não me conformava, não me conformava, até que ela ficou muito brava um dia comigo e disse, “vou-me embora”. Estava na minha casa ainda, numa Picinguaba. “Vou-me embora”. O Eduardo chegou pra mim e disse, você tem dois minutos pra resolver, porque ela vai embora mesmo. Quer perder tua filha ou não? Eu digo, de jeito nenhum. Fui, abracei e acabou. Acabou tudo. Eu tenho muito amigo gay. Por quê? Porque o mundo cultural está muito mais hoje com pessoas homossexuais. E eu sempre fui amiga de todos, mas não entendia por que a minha filha não podia aceitar uma coisa dessa. De repente, não é que fui aceitando, virou uma coisa normal. Além do quê? E o problema é que eu era muito amiga da primeira dela e sou ainda, somos muito amigos, ela mora em Portugal e somos muito, quer dizer, de agora a Tânia é filha, é filha da gente, não tem como não ser. Mas a Mônica, nós moramos no mesmo lugar. Eu não sei se eu dou segurança a ela ou ela me dá segurança. Nós não nos vemos todo dia, mas parece que nós estamos juntas todo dia. É uma coisa estranha, é uma coisa linda, sabe? Uma coisa como talvez eu imaginei que mãe e filha deveriam ser assim. Então, com ela é assim hoje em dia. É tudo que quando se tem uma conversa assim, sempre eu fui aquela que abandonei, eu fui aquela que fui, é tudo que você quiser, eu fiz de errado, mas ela me adora, eu adoro e acabou. A segunda, a Isa. A Isa, por ela ser tão doente, eu tinha tanta… Eu não podia, eu ficava tão brava com qualquer amiga que ficasse doente, eu não podia. Sabe a mesma coisa? Não pode, você não pode ficar doente. Pois a Isa não curou a diabetes. A Isa tem tudo que é fibromialgia, tudo que é coisa que ninguém descobre de nada. Ela não anda mais, praticamente. Agora ficou com erisipela. Ela só é ruim falar isso, mas ela só custa dinheiro, porque ela não tem nenhum outro valor, o maior valor dela é custar dinheiro. E isso é horrível falar, isso é horrível sentir, eu nem estou sentindo, vou te dizer, estou falando isso com uma frieza muito estranha, porque é só a gente começar a conversar, ela até agora está fazendo mais esforço e eu também, para a gente se dar bem, para a gente não ter, não criar muito problema, mas temos muitos problemas. O André, meu filho, que sempre estava com o pai, foi a pior coisa que aconteceu para ele ter essa influência do pai. Quando o pai agora morreu, mas antes disso já, ele começou a olhar o pai e se decepcionar um pouco e agora Ele está fazendo algumas terapias que estão ajudando ele muito a enxergar muita coisa. Ele está refazendo, vamos dizer assim, a história dele. Ele já vai fazer 60 anos. Sempre foi um rapaz muito bonito. Hoje ele precisa de uns consertos aí, mas ele é bacana, ele é simpático.
P/1 - Ele mora aqui?
R - Ele mora aqui, ele trabalha, ele era mergulhador, ele criava vieira, agora a vieira acabou aqui por causa da água, etc., lá em Picinguaba, perto de Picinguaba. E agora ele está entrando para trabalhar num restaurante aqui na Vila Madalena, na Rua Fidalga, é um restaurante mexicano chamado “Dos Dedos de Chica”, você conhece? Ele vai fazer lá o negócio dele de frutos do mar, e tem outro rapaz que vem com bar. E quem sabe vai começar a dar certo, porque ele não tem dado certo, desde que ele saiu do pai, que o pai foi mal e tudo. Mas eu estava falando, quando o Nestor pediu concordata, a primeira coisa que eu fui no quarto dos filhos, eles estavam meio dormidos, mas eles tinham vindo falar já, que tinha tido a concordata, então eu entrei e digo, “olha, estou só chegando aqui para falar para vocês, não precisam se preocupar, nada vai faltar para vocês”. Que grande mentira, sabe? Por que não chegar para a família e dizer, “vamos sentar, vamos ver o que está acontecendo, vamos falar com o teu pai, para ver realmente, se ele não quiser falar a verdade, vamos fazer o que tem que ser feito, vamos pegar processo, seja o que for”. E eu fui logo dizendo, fazendo, quando me separei, que ele acabou me enganando em muita coisa, eu peguei e abri processo. Quer dizer, tudo errado. Essa parte familiar. Foi um desastre total, uma coisa que eu tenho que… Um desastre total mesmo. E, nesse interim, conheço o Nestor, que é aquela alma boa, aquele intelectual… O Eduardo, que é aquela alma boa, que é aquele cara bonitão, naquela época, inteligente, poeta. Boêmio, não de beber, porque ele não bebe, mas assim, de ficar, de conversar, de tudo. E eu me lembro de ter chorado. Isso foi tão interessante. Assim como eu chorei quando revi a Rifka, que eu disse, Rifka, assim eu chorei no dia em que era para voltar”. No casamento com o Nestor, ele votava no Pacaembu e eu votava perto do meu escritório. Cada um ia votar no seu coiso, depois cada um ia fazer as suas coisas, depois, quem sabe, almoçávamos ou não juntos. E sempre tinha muita fila naquela época, estou falando daqueles anos, tinha muita fila para votar. Eu conheço o Eduardo, já estamos namorando, e eu digo, bom, “amanhã, hoje, eu vou votar”. Ele diz, “tá, eu te acompanho”. Olha, eu fui na fila com ele, e eu me sentia tão bem, eu me sentia tão feliz. E agora até me deu uma coisa de lembrar essa sensação de felicidade de estar acompanhada. Nós éramos dois executivos, o Nestor e eu. Cada um fazia as suas coisas, tudo com muita eficiência, enquanto dava. E com este… Eduardo, quando ele me acompanha nessa fila, há quanto tempo? Eu acho que nunca alguém fez isso comigo, não é? Eu sei que as minhas lágrimas corriam. Bom, então, aí começou uma coisa muito interessante em questão de família.
P/1 - Só sendo linear: André e depois Luciana?
R - E depois Luciana. Aí o André, aquela coisa, perdido, perdido, agora tá com terapia, tá com isso, tá com aquilo, tá se levantando, tá se refazendo, eu tô reencontrando uma relação com ele, e eu tô muito feliz com isso, de eu, como mãe, poder fazer alguma coisa por ele. Sabe, eu deixo meu carro aqui, porque ele não tem carro, então eu deixo aqui pra ele poder, porque ele tem que ir trabalhar, tem que fazer, levar coisas, então lá eu pego táxi, lá em Picinguaba eu botei o taxista, ele leva. Então, já não posso não ter essa mesma mobilidade, porque não dá, tá bom. Mas não tem importância nada. De qualquer maneira, estamos conseguindo encontrar pontos em comum muito legais. Só que meus quatro filhos… Bom, com a Luciana, desde que ela resolveu morar com o pai, depois ela casou e eu fui na festa de casamento. Ela pediu para a mulher do Nestor fazer com ela o enxoval, quer dizer, era uma coisa meio assim, mas depois ela se separou desse marido, depois ela casou com outro e veio morar comigo na minha casa, conosco, com o Eduardo comigo e tal, já com um filho, dois, depois ela viajava, isso e aquilo, depois ela separou desse marido. Depois ela casou com outro e mora em Portugal. Ela é uma filha muito dedicada e eu fiquei muito doente um tempo. Fiquei muito doente. E ela cuidou muito de mim, assim como a Alessandra. A Alessandra é a filha do Eduardo também, muito. São as filhas mais assim...
P/1 - Que te cuidam.
R - Bom, a Luciana mora longe, mas… Não sei, a gente foi visitá-la, me dou muito bem com ela, os filhos dela são magníficos, todos moram lá agora, ela conseguiu levar todos, ela é muito bem casada, a gente adora o marido dela, ele é bem mais novo que ela, mas ele é um português danado de bacana, o Eduardo gosta muito dele. Então, de novo, de alguma maneira, estou conseguindo agora… E com o Eduardo teve o negócio da família.
P/1 - Vamos ao Eduardo agora.
R - Eu conheci o Eduardo da seguinte maneira. Um dia, era uma sexta-feira, o Calabrone me liga para a gente sair, eu tinha chegado de viagem, e eu digo, “olha, eu tenho uma inauguração de uma loja”. Ele disse, “ah, eu também tenho, vamos nessa e depois vamos na festa”. Ele me convidou para ir em uma festa. Quando eu chego na loja, ele está acompanhado de uma amiga dele. Como ela está viva e tudo, de repente ela vê… Ela é bacaninha, mas nada de especial para passar uma noite com uma pessoa como ela, mas, em todo caso, estava bom. E ela era mulher de um artista plástico. Eu conheci o artista plástico muito de nome, porque, nos meus tempos de rica, me lembro que os homens queriam comprar quadro dele e estavam disputando. Naquela época, ele já estava começando a ficar mais na baixa. Vamos na fé, porém, saímos dessa inauguração, que tudo bem, lá tem muita gente e tal. E vamos para a festa na casa de uma artista plástica, estava inaugurando lá uma exposição dela, não sei o quê, e lá fico eu conversando com essa amiga do Calabrone, e aí… Despedimos, tchau, vamos embora. No sábado, isso foi sexta-noite, no sábado eu tinha um compromisso de encontrar minha sócia, eu tinha uma sócia, nós tínhamos um escritório de, era mais assim, diagnóstico de objetivos, plano de ação, aconselhamento, levantamento de carreira, quer dizer, a gente ia e seis meses a gente gerenciava gerenciamento temporário. Quer dizer, durante seis meses a gente fica do lado da pessoa, eu na área cultural e ela mais na área comercial. E eu tinha combinado, eu com a minha amiga, de irmos na galeria do Paulinho Figueiredo, que tinha uma galeria de arte – acho que ele morreu, até o Paulinho, de Aids. Tinha uma exposição e eu entro na galeria, que combinei de encontrar a minha sócia e quem eu vejo conversando com ela, a fulana da noite anterior. Então, “você já se conhece?”. “É, ontem nos conhecemos, ficamos conversando e tal”. Aí ela diz, “olha, faço questão de fazer um jantar e convidar vocês todos”. Eu digo, “olha, o único dia que eu posso é segunda-feira”. Eu disse, “mas isso é ruim para uma mulher, que eu que vou cozinhar, como é que eu faço?” Segunda-feira não é um dia bom para a gente cozinhar”. Ele disse, “olha, por mim não precisa”. Mas ela disse, “não, eu quero que você venha. Então vamos fazer na segunda”. Ok. Chega sábado à tarde, os meus filhos saíram para ver os amigos e iam dormir na casa deles. Domingo, eles não voltam para casa. Comecei a ficar assustada. Segunda-feira, cadê eles? Não estão, não vão para a escola, o que está acontecendo? Comecei a ficar… Liguei para a minha sócia, ela conhecia a gente na polícia, porque ela era casada com um jornalista lá, diretor de uma revista, então ele mobilizava, não sei o que e tal. Bom, chamei o Nestor, estava desesperada, eram umas seis e meia, sete horas da noite, aparecem os dois, a Luciana e o André. Eles se desencontraram e, na verdade, eles não foram para a casa de amigos, cada um foi com a namorada, viajando sempre para passar o fim de semana, não sei o quê. Mentiram, né? Quando eu vi aquela alegria toda, tanta alegria, e o Nestor que estava lá, tanta alegria, tanta alegria, que eu esqueci do tal jantar. Quando chega às nove horas da noite, eu digo, “meu Deus, eu tenho jantar”. Eu já estava jantando com eles na minha casa. Eu digo, “gente, tem que ir embora”. Cheguei na casa dessa moça, eram umas nove e meia, quase dez horas. Eu entro assim, um corredor grande, uma casa linda. Eu já conhecia a casa, porque era antes o estúdio do Ivaldo, lá na Rua Amauri. Então, eu já conhecia a casa. Então, eu entro e vejo assim, no corredor, porque tinha primeiro um corredor muito grande, com um lugar para sentar assim, e depois tinha o lugar maior. Então, eu chego assim e vejo um homem com mais idade, vamos dizer, com mais idade, na época eu tinha 40, ele tinha 44, eu tinha 44, aliás, ele tinha 48, provavelmente, e um jovem. Então, eu entro, eles levantam, muito formais, eu digo “muito prazer”, pensando que um é o dono da casa e o outro deve ser o filho, e eu vou em frente. Eles não me acompanharam, eu vou em frente. Aí eu encontro a minha sócia, todo mundo já jantando e tudo, o que aconteceu, o que não aconteceu. Estamos conversando e tinham outros amigos nossos em comum. A casa era do Mário Gruber, era a mulher, a ex-mulher do Mário Gruber. E eu pensando que esse era o Mário Gruber, o marido dela. Há umas tantas já na hora da sobremesa, ou eles estavam me esperando para jantar, eu não sei direito, eu sei que chegou uma hora lá que eu estava ainda comendo, e eu sinto alguém bater assim nas minhas costas, e eu olho para trás. Esse senhor, pensando, “é o Mario Gruber”, ele vira para mim e diz, “você gostaria de conversar comigo?” Eu disse, “ué, sim”. Ele disse, “então, com licença”. Ele pega, faz eu levantar, ele vira a cadeira, fico de costas para todos e fico conversando com ele. E assim foi que eu conheci o Eduardo. Esse era o Eduardo, não era o Mário Gruber. O Eduardo era o melhor amigo do Mário Gruber, eles eram compadres, não sei o quê. E a Juliana, mulher dele, quando fez o jantar, eu não sei por quê também, porque o Mário estava viajando, mas ela convidou o Eduardo. Nos conhecemos. Aí ele falou que era um poeta, talvez por isso, porque ela sabia que a gente trabalhava com essas coisas, que ele era um poeta, também romancista e tal. Tinha lá um livro que ela tinha, ele pegou, deu para mim, disse que estava aqui o livro e tal, e fomos embora. Passou um tempo, eu leio, lógico, o livro e achei que ele era muito bom. Dou pra uma pessoa, elogia muito, dô pra outra pessoa que eu gostava de sempre dividir um pouco, dou pra outra, “muito bom”. Digo, “ah, ele é bom, vamos ligar pra ele”. Ligo pra ele e digo, “olha, a gente gostou, se quiser vir conversar, beleza”. Ele disse, “ah, qualquer hora eu passo aí”. “Tá bom”. Não aconteceu nada e eu vou contar a história engraçada disso. Bom, vou contando. Aí, umas tantas, eu vou embora e não nos vemos mais. Essa é uma… A história aqui é todo um capítulo, ela é muito longa, ela é meio longa. De qualquer maneira, a gente ficou… Ele era bom, mas era uma historinha para dar risada que eu ia contar e que eu não lembro agora. E, nada, há umas tantas, passo muito tempo, ele liga para mim e diz, “olha, hoje você quer conversar?”. Eu disse, “hoje eu não posso, vou num lugar X”. Ele disse, “eu também vou lá”. Então, nos encontramos e começamos a namorar naquela noite. Bom, aí foi tudo ótimo e eu não conhecia o Mário Gruber. Então, a gente está namorando, passou um mês, dois, eu acho, eu tinha ido fazer um seminário no Rio e volto, a gente tinha combinado de se encontrar, ele entra no carro, e ele disse, “olha, eu preciso falar com você, porque eu quero que você seja a primeira. Eu vou voltar para a minha mulher, porque os meus filhos parece que estão chorando, estão sofrendo muito, não sei o quê, e eu resolvi que eu vou voltar com a minha ex-mulher”. Eu digo, “então, tchau”. Ele pega “mas como?”. Eu digo, “acabou”. Então, “acabou, tchau”. Ele sai e eu começo, me falta o ar, “o que eu vou fazer?”. Eu tinha me preparado, aquela coisa toda, “o que eu vou fazer? O que eu vou fazer? O que eu vou fazer?”. “Eu vou fazer aquilo que eu mais gosto, ir ao cinema”. Então, eu peguei e fui no cinema mais perto, que era o Belas Artes. Chego lá, compro a entrada, ainda faltava para a sessão, e estou lá na fila, numa das salas, e nisso tem alguém que bate nas minhas costas e diz, “olha, tem alguém aí chamando por você”. Eram portas de vidro, eu olho assim, era tal fulana, a mulher do Mário Gruber, só que dessa vez com o Mário Gruber. Foi quando eu conheci. Ele disse, “cadê o Dudu?”. Eu disse, “não está”. Então, “vamos no mesmo cinema”. “Não, não, eu vou no outro filme e tal”. E, assim, eu vi naquele dia e depois não vi mais, me separei deles, me separei, o Eduardo também não. Porém, ele ficou nosso cliente, porque a gente fez um bom trabalho e a Nova Fronteira queria publicá-lo, era uma editora boa. E publicou. Fizemos com a Myriam Muniz, que era uma grande diretora de teatro. Ela fez o mise-en-scène num teatro. A gente alugou o teatro lá da… Alugou não, conseguiu, da Vergueiro. Foi lindo, um cellista tocando Villa-Lobos. Foi lindo. E o Eduardo recitando os poemas. Foi muito bom e muito bonito. Sim, agora eu lembro. Tocava o telefone no escritório, porque a gente, preparando, logo no começo do preparativo, tocava o telefone e eu atendia e já estava toda a minha sócia, dizia: “É o Eduardo, não é?”. Porque já estava vermelha, já estava toda… Então, disse, “daqui para diante você não atende mais telefone”. E, assim, nunca mais atendi. Vi ele no dia dessa estreia. Agora lembrei da história que quero contar. Eu vi ele no dia da estreia e nós estávamos separados. Ele já tinha separado a mulher dele e eu não sabia, mas ele ficou um mês e não deu certo e acabou. Mas ele não me procurou. Ao mesmo tempo, eu tinha muitos amigos da área cultural, e tinha uma mulher chamada Carmen Paternostro, uma bailarina muito boa, mas, além disso, uma grande coreógrafa, e ela que trouxe a Bete Coelho, os artistas de Minas Gerais, de não sei mais onde, tudo que é lugar para trabalhar em São Paulo com ela. Ela fez Pagu com quatro mulheres ou três mulheres, eram três Pagus diferentes. Olha, foi lindo, lindo o espetáculo e tudo, e ela se apaixonou, ela era casada, e se apaixonou por um cara, e eu apaixonada pelo Eduardo e sem vê-lo nunca mais, só naquele dia da estreia. Então, nós duas estamos chorando as mágoas. E todo tempo chorando por quê? Porque ele também foi daqueles que namorou muito com ela e, de repente, ele resolveu se apaixonar por outra, era um ator. Ela desesperada por ele e eu desesperada por ele. Ela morou na minha casa. Todo esse tempo que ela estava se apresentando, ficou lá em casa. Um dia, eu disse para ela, “Carmen chega? Vamos exorcizar?” Ela disse “vamos”. Peguei um champanhe que tinha lá, botei assim e começamos a beber. E “chega de Eduardo, e chega de Ricardo”, não me lembro mais o nome do outro, e chega de não sei o quê, e tal, e não sei o quê, aquela exorcização e pronto, estamos livres, já estamos felizes, já estamos viva, viva. Sabe o quê? Vou ligar já para o meu marido dizendo que vou voltar, porque ele estava morando, acho que em Minas ou na Bahia, não sei, ele era o diretor do Instituto Goethe. Aí ela já ligou, e ele ligava toda noite, bêbado o marido dela, pedindo, rogando pra ela voltar. Então, ela pegou, ligou, marcou passagem já pra voltar, não me lembro, lá pra casa dela. E eu, feliz da vida, fiz… Acordei na manhã seguinte feliz da vida, ela já tinha ido buscar o marido, encontrar o marido, e eu feliz da vida, fazendo já o meu café da manhã, fui trabalhar muito feliz, voltei, fiz o meu arroz integral, toda noite eu fazia o meu arroz integral, meio que chorando, com um pouco de ervilha, que eu abria a lata, fazia a manteiguinha, a ervilha e botava, porque era a minha comidinha que eu fazia sempre, já morava num outro apartamento. E aí, eu tô fazendo isso e feliz, feliz mesmo. Toca o telefone. Era o Eduardo. Ele disse, “posso subir?” Eu digo, “não, de jeito nenhum, não tem mais, acabou”. Ele disse, “não, eu estou aqui embaixo no orelhão, eu vou subir”. E subiu. E há 40 anos foi isso e nunca mais saiu. Pode? Aí depois tem toda a nossa vida, nossa história, todo o percurso, mas tem a história minha, que é a parte do meu trabalho, que aí virou profissional, porque eu tinha aprendido tanto com os meus clientes, tanto que eu já estava expert em muita coisa na questão da administração, na questão de tudo, e sempre o meu ideal, que foi a coisa das obras sociais. Mas eu trabalhava mais na área social mesmo, como se diz, fazendo festa, porque, no tempo em que eu era casada com o Nestor, a gente fazia aquelas festas e levantava dinheiro para tudo o que precisava. E, na época, tinha uma obra chamada Ofidas (Organização Feminina Israelita de Assistência Social). E minha tia foi presidente, a mãe dela que criou junto com outras senhoras da sociedade judaica, no começo do século. E eu estava lá, nessa área, fazendo festa e tudo, até que eu “peraí, mas a gente levanta tanto dinheiro, para onde vai esse dinheiro?”. Eu queria saber como era usado, como uma obra social usa o seu dinheiro. E comecei a me interessar e me candidatei na diretoria. E fui uma das vices, provavelmente, uma coisa assim, e comecei a indagar. Por que nós temos mais vizinhos que também são obras sociais? Porque cada um está trabalhando separadamente. Por que três diretorias? Por que três prédios, três administrações, três portarias? Em vez desse dinheiro todo junto não podia realmente ser dirigido para a obra propriamente dita, quer dizer, para a causa. E eu comecei a botar na cabeça da diretoria a ideia de que tal fazer uma fusão. Na época, era o OFIDAS, que cuidava da criança, da mulher, tinha creche, da policlínica, que cuidava da área da saúde. Eles sempre trabalharam com os judeus, mas também com o bairro, eram entidades, a OFIDAS era muito aberta. A Policlínica, digamos, menos, mas também tinha, e a Ezra (Sociedade Beneficente Amigos dos Pobres), que era conseguir trabalho para os homens. E, no começo, tinha voluntários que iam massagear os pés dos homens que vendiam de porta em porta, eles chegavam com os pés tão cansados. Então, a história deles é muito bonita, é muito bonita como começou. Cuidando dos pés das pessoas que caminhavam. Bom, eu fui me interessando um pouquinho, de lá comecei a falar à minha diretoria, às mulheres, éramos praticamente todas mulheres. Nada, não queriam saber. Aí eu fui falar com os vizinhos. O presidente de uma queria, o presidente da outra queria, mas os dois não se bicavam, mas eles queriam a unificação. E aí comecei a trabalhar, quatro anos de luta, de briga, até que passou uma gestão, eu me candidatei à presidência, eu consegui me eleger presidente. E como presidente eu tinha um pouco mais, mas não tinha muita força, mas fui indo, fui indo, fui indo, até que eu me enchi tanto que era a irmã da minha tia, que, na verdade, era filha da fundadora da OFIDAS e tudo, que ela disse “se você faz isso, ela ia resignar”. Como é que fala?
P/1 - Saiu.
R - Eu falei para a secretária, por favor, põe aí em ata.
P/1 - Que ela estava saindo.
R - Ela saiu. E aí que eu consegui armar a história da unificação. E conseguimos, e fizemos. E aí foi muito interessante, porque eu já sabia muita coisa, mas a minha sócia, que era mais dessa área de negócio, gerenciamento e tudo, ela me ajudou muito. Ela foi para o OFIDAS. Aí já virou Unibes, União Brasileira Israelita do Bem-Estar Social.
P/1 - Ou seja, a Unibes é o resultado dessa fusão?
R - O marido de uma secretária nossa, de uma funcionária que deu esse nome e ficou bom. Foi um nome forte, ele fez também o símbolo, um rapaz que nunca teve muito sucesso na vida, mas era um talento, tinha talento, era um bom designer. E aí foi ótimo, a gente fez muita coisa, quer dizer, eu também trabalhava fora e tudo que eu fazia, a vida lá fora, essa coisa da experiência da Europa, tudo com eles, com esses meus clientes, era tudo coisa de ponta, música do século XX, literatura muito contemporânea, as pinturas do século XX também, e eles faziam disso tudo um melange, uma ópera concerto-collage, que eles chamavam. Esses argentinos, que nessa época já, primeiro eles queriam morar na Europa, então tal, aí a família, um deles tinha família, e essa minha amiga, que eu conheci na lua de mel, ela já tinha filhas maiores e tudo, então eu ajudei a instalar em Paris, ajudei a procurar um apartamento, como é que eu consegui, etc., que também são outras historinhas bonitinhas à parte, e aí estávamos todos vivendo muito bem, porque eu ia com eles, eu ficava na casa deles, e era sempre uma alegria e tudo, viajávamos muito, muito aborrecimento, muita luta para conseguir as coisas, mas conseguíamos sempre. Fiquei amiga de muitos produtores, diretores que davam para eles muito trabalho, muito serviço. E assim fui indo, indo, indo. E, enquanto isso, a Unibes já funcionando com outras diretorias e cada vez melhores, porque daí… Eu nunca fui a favor de ter uma presidente eterna. Eu achava que tinha que… E aí foram entrando outras pessoas muito boas, muito competentes, e a Unibes hoje é um poder. Trabalham muito bem, ajudam muito e sempre tiveram gente com quem gostei muito. Essa penúltima, Nossa Senhora, a Célia Parnes, uma mulher fantástica, fez também a unificação. Falei, “você sabe que está fazendo a unificação, como eu fiz das três, você está fazendo agora com o Museu, que era a Casa de Cultura”.
P/1 - Casa de Cultura Judaica.
R - E ela fez, é uma unificação, e ela fez uma coisa boa. E assim vai. Então, isso daqui tinha o Unibes. Quando eu estava no Unibes, eu… toca a minha porta no escritório, o Marcos Arubaito, um líder da comunidade e tal, ele, o sogro dele era presidente do conselho do CIAM, Centro Israelita de Assistência ao Menor (Centro Israelita de Apoio Multidisciplinar). É uma entidade que ajuda… Que ajuda, não, que educa portadores de deficiência mental. E tinha um grupo que queria muito fazer um kibbutz dos adultos, porque e o adulto deficiente, que a família, o irmão vai cuidar, o pai morreu, como é que fica? Então, era uma ideia de uma experiência de Israel e Kfar Tikva, quer dizer, a Aldeia da Esperança, chamava, e lá vou eu, tentar uma… E eles me convidam para ser presidente porque era o único nome neutro, porque todos brigavam entre si, mas todos aceitaram o meu nome. Então, por isso que nós estamos aqui. E eu falei “mas eu tenho que pensar. Para quando?”. “Para ontem”. “Ah, pra ontem? E do jeito que você tá colocando, como é que eu vou dizer não? Então, pode ser sim”. Tá bom, no dia seguinte já se fez a eleição, eu fui eleita para poder fazer, porque já tinha escola no Jaguaré e tal também, sustentada basicamente pela comunidade judaica, mas aberta, absolutamente aberta para todos que precisam dela. Então, gosto da mentalidade deles, conheço poucas pessoas, e eu digo o seguinte para eles, no primeiro dia: “eu não vou escolher a minha diretoria, não. Hoje vocês estão elegendo a presidente, eu preciso conhecer vocês e vocês têm que me conhecer. Seis meses de experiência”. Aí, depois de seis meses, uns disseram, “eu vou me submeter a uma experiência? Não”. Nisso entrou o presidente da Estrela, essa grande firma de brinquedos, e assim muita gente saiu dizendo que era uma afronta eu falar uma coisa dessa. E eu disse, “olha, é o único jeito. Eu não conheço o CIAM, não conheço ninguém. De um dia para o outro eu viro presidente. Não dá”. Começamos a trabalhar com este israelense, que já tinha a experiência do kibbutz lá de Israel. E nos mesmos moldes, eles tinham lá uma forma de se sustentar, autossustentável, cada um tinha a sua casa. O Gregório Zolko foi o arquiteto escolhido para fazer as casinhas. Conseguimos as primeiras famílias, mas era muito caro, porque tudo que se fez era uma coisa carésima. E, por ser muito caro, depois eu saí, depois de dois anos, do jeito que eu sempre fazia, eu saí e a Ana Schwarzman, que era a minha vice, eu disse, “agora você tem que ser a presidente”. Ela disse, “bom, eu só posso aceitar…”, porque depois que você, que não conhecia o CIAM, nada, você pega e aceita, “eu não posso dizer não”. Então, ela ficou, mas só que ela ficou eterna. Até há pouco tempo aí faliu, aí ela passou para outro, faliu, e o negócio de alguma maneira fechou. Eu tentei, ainda tenho esperança de conseguir, para a Associação Janusz Korczak, uma associação fantástica, a filosofia dele, o pensamento dele. Pode ser que ainda dê, mas também não tem muito tempo, não tem mais tempo. Mas nesse ínterim, há 30 anos atrás, tudo isso aconteceu há 30 anos atrás, eu acordo e o Eduardo me diz “isso tem que ser feito”. Eu estava trabalhando através do meu escritório e fui contratada para organizar os… Foram 18 eventos para organizar os 500 anos da expulsão da Península Ibérica, dos judeus da Península Ibérica e da Inquisição. Não entendia nada de nada e eu mas sou muito boa para conseguir as pessoas certas, porque não tenho… Enfim, gosto de trabalhar com quem sabe mais do que eu. Então, chamei a Anitta Nowinski, que era uma grande professora historiadora da Inquisição, e o Jacob Guinsburg, que foi um grande cara do judaísmo. Então, nós fizemos um stand, uma bienal do livro, que foi o judaísmo e a inquisição. E foi bárbaro. Publicamos livros, e foi tudo muito bem, e eu estava trabalhando com o arquiteto Roberto Loeb. Estava terminando lá já o estande e tudo, porque ele que estava responsável pelo estande, e o Eduardo me entrega o papel, um projeto de emergência para moradores de rua, alguma coisa assim. E eu chego lá no escritório para marcar, para encontrar o Roberto para os últimos acertos, e eles diz “hoje não, hoje não”, e eu digo, “o que é?”. Ele diz: “você não viu? Crianças na rua, alguma coisa tem que ser feita, nós temos que fazer algum projeto, alguma coisa tem que ser feita. Porque, olha, são gente de rua é que não são crônicos, são gente que perdeu casa, que perdeu… Olha essas crianças, o que vai ser, o que não vai ser”. O Eduardo é a mesma coisa, a gente “olha, junta vocês dois, se for bom, se vocês combinarem alguma coisa, eu entro”. O que eu queria só contar é que para o CIAM, para conseguir a Aldeia da Esperança, para poder construir, tinha que ter um terreno, um terreno muito grande. Eu tinha um grande amigo meu, Waldo França, que é agrônomo. Então, eu fui com… Tinha um homem muito bacana lá do CIAM, Aaron Diamante, que era o diretor clínico, médico, era a dona do Lavoisier, esse cara. Também já morreu. E ele foi comigo no patrimônio. E não sei o que me deu, porque achei que a gente podia conseguir mesmo no patrimônio alguma coisa. E acabamos escolhendo um terreno junto com o Waldo França, 400 mil metros quadrados de terreno, perto do Juqueri, atrás do Franco da Rocha. Para o CIAM, isso. Porque depois tem outro terreno. Aí eu pego e digo, e agora? Como é que faz? O patrimônio disse, “olha, agora a secretaria é lá do bem-estar social, não sei o quê”. Eu pego e ligo e peço para a secretária ligar e marcar uma hora lá na secretaria. O cara disse, “pode ir quando ela quiser”. Que estranho! Lá vamos nós no mesmo dia. Eu chego lá, quem me atende? Um cara que foi meu funcionário na OFIDAS e que era agora o secretário substituto, porque o secretário mesmo tinha ido viajar, ele que ia decidir as coisas. Me deu o terreno. Ele disse, “te conheço. Não tem como não dar”. Então, nos deu o terreno e, nesse terreno, se fez tudo isso. O Zolko, as casas. Aquilo é uma maravilha! E a Ana que levantou os fundos. A Ana foi uma coisa. Mas depois acabou, acabou. Aí, quando o Eduardo me dá esse projeto, e eu estou falando com o Roberto, os dois se encontram, os dois chegam a um acordo, “agora precisam de um terreno”. Digo, “de novo, onde é que nós vamos achar esse terreno?”. Falo com a Ana. “Ana, tem esse projeto”. Ela lê e diz, “olha, se eu não estivesse no CIAM, eu iria correndo fazer esse projeto”. Digo, “puxa”. Ela diz, “acho que conheço alguém”. E era o Elie Horn. Aí ela marca um chá, com as duas esposas do Safra, do José e do [Moís], com a Rosete, as mulheres mais ricas nesse momento, não me lembro quem mais, e a Ana e eu. E ela apresenta, e a Vicky já tinha… Porque eu fui madrinha da Vicky de casamento, que eu que apresentei a Vicky para o José. Então, aí ela estava me dando esse apoio e eu falei, olha, você… Ela disse, ela ou a Sheila, ela disse, “olha, esse projeto você tem que dar esse terreno para a Antonieta”. Ao mesmo tempo, enquanto eu estou tomando chá com ele, e com as moças, ao mesmo tempo tem uma festinha infantil, onde o Roberto está numa festa e o irmão da Ana Schwarzman, que não sabia, um tinha falado para o outro, o Roberto conta que precisa de um terreno e ele diz que acha que tem alguém, e era o mesmo Elie Horn. Então, começamos a negociação. Aí o Elie disse para mim, “vou apresentar uma pessoa para vocês, se vocês convencerem ele a entrar no projeto, eu dou o terreno”. O cara era o presidente da Gafisa, que era na época uma construtora muito importante. E a gente gostou muito dele, ele gostou muito da gente, mas o projeto dele era outro, ele queria fazer só para crianças, um lugar imenso para educar crianças de zero a 18 anos. Então, não era o nosso projeto, o nosso era o projeto de apoiar famílias, o nosso que é o Anchieta, agora do Grajaú. E o terreno era no Grajaú. Acabamos conhecendo o Ivo, uma graça de pessoa e tudo, ele dizendo “Elie, dá o terreno para eles porque eles já estão com um projeto muito mais avançado e eu ainda estou na ideia. Dá para eles, mas eu não vou entrar no deles porque o meu projeto é outro”. E ele disse, “mas tenta convencer, você é boa de convencer”. Eu falei: “não sou, eu só convenço quem quer, porque você não vai conseguir convencer alguém que não quer, e ele não quer, e eu não vou forçar”. Eu acredito nisso até hoje. Daí, passam-se uns dias, passam-se o quê? Alguns dias. Recebo um telefonema: “olha a Antonieta. Aqui é o Ivo. Gostei muito de vocês. Quer saber, vou entrar no projeto de vocês”. Aí o outro deu, não foi tão fácil, teve muito, muito, mas não importa, ele acabou dando o terreno, 200 mil metros quadrados. E hoje fomos invadidos há 10 anos, fomos invadidos por 1.100, 1.200 famílias. Hoje nós somos os responsáveis pela aproximação, harmonização e a gente se dá super bem, gostamos… Gostamos, como é que eles podem gostar da gente? Não dá para eles gostarem da gente, mas nos respeitamos, eles estão interessados em ver como é que eles conseguem fazer as suas casas. E a gente está ajudando, o Roberto tem muito conhecimento, então ele ajuda muito nessa parte de governo um pouco, de marcar a hora, acelerar os processos, apesar de que os processos são muito, muito lentos. Então, como é que nós estamos hoje? Pelo menos 1.500 famílias estão morando lá, muitos já têm casas até bem construídas, outros barracos bons e outros em péssimo estado. Eu ia na segunda-feira, choveu muito, e eles mesmos falaram, “não venha, porque está tudo…” Então, é um caos.
P/1 - São crianças, senhor, adolescentes, o projeto…
R - Mas o projeto começou… Isso está certo, você que está certa, eu pulei. Porque, para mim, o que interessa é o assentamento, eu gosto de assentamento. Mas acontece que o projeto começou ajudando, conforme o Roberto e o Eduardo estavam desenvolvendo, começou ajudando mesmo as crianças do entorno. Então, elas vinham no contraturno. E, pouco a pouco, fomos dando o lanche e hoje, bom, hoje tem tudo, hoje tem uma UBS que o Roberto conseguiu, ele que fez o projeto e conseguiu lá a maior parte da verba. Nós temos a maior UBS, tem uma escola do lado, desapropriaram, a prefeitura desapropriou uma parte do terreno e construiu lá uma escola. Tem as famílias do assentamento que nós temos creche, nós atendemos hoje as 600 crianças lá, sendo que mais de 50% vem do próprio assentamento. É um projeto muito digno, mas falta muita coisa. Não dá para a gente ter orgulho disso, mas eu me dedico muito a isso. Às vezes, digo que devo ter força porque quero ainda ver alguma coisa maior nessa história, porque ela é muito boa. O assentamento, o projeto Anchieta, o assentamento Anchieta, os moradores. É uma oportunidade, sabe? Se mais gente como Elie, que tem tanta gente aí, se tivesse mil pessoas para colocar mil casas, dar oportunidade para mil… Porque as pessoas não têm dinheiro para comprar terreno. Então, eles pagam um aluguel numa favela, se eles tivessem um terreninho, eles construiriam, não precisariam estar com esse dinheiro do aluguel, eles estariam construindo a sua própria casa. Uma questão de mentalidade, o rico tinha que ter mentalidade de rico. O problema é que o rico tem mentalidade de pobre, essa coisa de pobre que eu digo assim, porque o pobre é muito bom, mas é o pobre no mau sentido, sabe? Porque é isso, porque o rico que tem mentalidade de rico, ele é um realizador, ele é um doador, ele é um cara que faz coisa, um cara que ajuda grande, porque não estou falando eu. Porque se eu ajudo, que eu sou nada, nada, mas outros que poderiam estar realmente, outros com muito dinheiro, e tem, e tem grandes fortunas, grandes fortunas no Brasil e grandes fortunas fora, que não estão muito sensibilizadas em ajudar o Brasil, porque tem a África que precisa ser ajudada, é verdade, tem não sei o quê. Bom, e o meu lado sionista, que eu deixei de lado essa vez, mas eu sou muito sionista, eu quero deixar muito gravado nesse meu depoimento, que eu tenho, infelizmente, muito ressentimento com esse primeiro-ministro, com a política toda de Israel, mas isso vai passar, isso tem que passar. Israel tem que voltar a ser o que era, porque pelo menos 50% das pessoas são pessoas que eu penso como elas. E são pessoas que querem viver na democracia e fizeram um grande país. Israel é um grande país. Não é só porque… Não é um prêmio Nobel, é um prêmio Nobel, mas quanta coisa que Israel fez para a humanidade, quanta coisa que ela entregou para a humanidade em termos de tudo, de invenções, da parte científica, tudo. O que você mexer, tem a mão de Israel lá, os Waze da vida, que hoje eu estava dizendo, a gente já não sabe mais nada, porque é tudo na base do Waze. Então, no meu depoimento, quero falar muito disso, quero dizer que no tempo da Unibes, sem dúvida, eu falava muito em nome do judaísmo, que o que me levava a fazer tudo isso era porque a minha cultura judaica exigia de mim esse tipo de ação, um tipo de ação para comunidade… Portanto, eu nunca trabalhei para a comunidade judaica em si. Eu trabalhei junto com a comunidade judaica para fazer alguma coisa pela minha cidade. E agora, com o Projeto Anchieta, nem é tanto com a comunidade judaica, porque não sei quanto a comunidade judaica se interessa por favelas e por tanta… Não é pobreza, é muita miséria. E uma grande parte dessa miséria nós devemos à nossa sociedade. É o homem que produz isso. Então, o que fazer? O que fazer se não tratar tudo isso com muito amor? Não perder energia de fazer. Enquanto estiver viva alguma coisa, o que eu puder fazer, eu faço. Acabou.
P/1 - Antonieta, tendo contado essa trajetória toda, eu queria te fazer uma pergunta sobre, você acabou de dizer “o que me mantém viva é isso”. Como você olha para a sua vida? O que você, agora que narrou, o que você diria para mim? A minha vida…
R - Eu que me faço essa pergunta, eu que faço a pergunta assim para as pessoas que me conhecem, porque eu não sei, eu nunca me olhei, eu sempre vivi. A Melanie Farkas, psicanalista, grande amiga minha, ela foi minha amiga, muito amiga, muito, muito, muito, adorei, adoro ela, está morta, mas adoro ela. E ela um dia me disse: “tudo bem, você está sempre correndo, falando desse projeto, daquele. Qual é o teu projeto?”, ela me fez essa pergunta. Digo, “por quê? Qual é o meu projeto?”. “Sim, você tem que ter o teu projeto. É o UNIBES, é isso, aquilo, isso não é teu projeto. Qual é o teu projeto?”. E eu não soube responder. E, às vezes, me perguntei poucas vezes, porque eu penso assim, eu não sou nada, eu não acho que a gente seja muita coisa, sabe? Não olhar muito para o umbigo. A gente está aí, a gente está aí. Agora, se eu consigo, transmitir alguma coisa. E eu estou muito surpresa, talvez pela minha idade agora, porque eu não sinto. Você viu um pedaço do outro… E eu, quando me olhei, não gostei nem um pouco. E a outra amiga psicanalista minha adorou todo o documentário. Porque ela fez uma coisa, uma análise muito séria, mas eu disse, “por que você não gostou?”. “Primeiro lugar, porque eu estou uma velha e eu não me enxergo assim. E eu levei um choque quando eu me vi retratada daquele jeito, eu estou cheia de ruga, eu estou cheia de coisa, eu podia pelo menos ter passado um batom”. Ela disse, “ah, teu lado narcisista, isso você precisa tratar”. Ela falou, “e que mais?”. Eu adorei, eu digo, “olha… E mais, não sei”, aí eu não sei o que eu falei para ela, mas, enfim, ela não concordou, ela fez uma análise extraordinária, gostei muito, e eu agradeci mil vezes, porque ela é uma das mulheres mais inteligentes que eu talvez conheço, não quero desbancar as outras, porque eu tenho amigas muito inteligentes, mas essa… Léa Bigliani é uma coisa, assim, muito, muito, muito especial. Então, é assim, quando me olho, o que eu olho? O que eu olho para mim? O que eu olho? Ainda não consegui me olhar. Quando me vi no filme, vi uma velha, levei um susto. Acho que até perguntei para o Eduardo se ele ainda gosta de mim, porque sei lá. Não sei te responder.
P - Isso é uma resposta.
P/1 - A gente está fazendo um trabalho sobre um tema que se chama vida, morte e fé. E eu queria te fazer essas últimas duas perguntas. Você, o que é a fé? Você tem fé? O que é fé para você?
R - Pois é, eu tenho. Eu acho que eu tenho. Porque assim, lembra quando eu falei que o cara de direita, eu fui casada com o cara de direita que é o… O Nestor, mas ele deixava eu ser amigo do Belchior, por exemplo, amiga. Eu trazia os cantores do Nordeste, eu trazia sempre gente de esquerda, na verdade. E ele, os outros vinham para ele e diziam, “olha, por que você está deixando a tua mulher? Está louca agora na ditadura e tudo, e ela com amigos assim, assados, não sei o quê”. E ele nunca reclamou. Eu nunca pedi permissão pra ele, mas, vamos dizer, ele nunca reclamou. Por quê? Porque, no fundo, o cara de direita tem orgulho se ele tem alguém de esquerda, é como se diz, “bom, tô meio salvo. Se tiver alguém de esquerda, ela me salva”. Então, a mesma coisa, eu falo, da fé. A fé, eu sempre como uma pessoa mais dada a intelectual, porque eu nunca fui intelectual, é que eu sou muito curiosa. Eu vou, eu capto e acabou. Eu vou no museu, eu dou um passeio e eu acho que eu captei aquilo que eu precisava captar. Não fico um dia inteiro. Depois dá de voltar, eu volto e vejo de novo. Quer dizer, é meio assim, com a fé, o que acontece? A primeira vez que casei com um judeu, não tinha fé e era aquela coisa do exemplo dos meus pais. Ano Novo, Yom Kippur, o resto nós éramos judeus. Não era a fé que nos guiava, era o fato de nós sermos judeus. É diferente de ter a fé judaica, a religião judaica, entende? Aí, a minha filha, Mônica, cresce, desenvolve esse interesse dela todo pela astrologia e tudo, e eu nem sabia que desde pequena ela sempre procurou e sempre foi muito ligada às coisas assim do plano, do outro plano espiritual. E eu nunca discuti com ela, eu só dizia, “mas é mesmo, Mônica, mas será, você acredita?”. “Mãe, não é que eu acredito, eu tenho certeza”. “Então, eu não entendo como você não acredita, você não sente, você tinha…” Bom, então, “não acredito”. Então, eu não sabia se era por uma questão, por uma atitude mais intelectual, porque intelectual tem que ser ateu, tem que ser menos assim, pelo menos na minha geração, ou se realmente eu não acreditava. Caso com o Eduardo, 40 anos, o Eduardo é um místico total, mas o Eduardo nunca fala dessas coisas, é tudo na obra dele, mas ele não fala se tem ou não tem, ele não sabe se tem ou não tem, ele sabe o que ele sente, a espiritualidade que ele sente. Aí estou eu. E o que está acontecendo? O meu filho André, de alguma maneira, sempre esteve um pouco ligado, ele lê essas coisas mais espiritualizadas e tudo, mas ainda não deu certo, ainda não se revelou. E eu estou nesse momento da seguinte maneira, eu fui aconselhá-lo a fazer uma terapia, até uma terapia de tão boa propaganda na internet que eu disse, olha, está de graça, vê se faz. Aí ele me mandou umas coisas de uma tal de Elaine, esqueci, e muito interessante, assim, não só o posicionamento dela, mas a forma como ela fala e tudo tal, e tudo na base da fé, muita coisa espiritual. E eu começo a fazer os exercícios dela, mas assim, de poder pegar o consciente, de poder passar do consciente para o outro lá, que é inconsciente ou mais, e de repente lá para cima, que ela chama como você quiser, chama de Deus, chama de Espírito, chama do que você quiser, mas tenta chegar lá. E eu comecei a praticar isso, eu comecei a chegar lá, eu comecei a chegar lá e me fez bem, e eu resolvi ficar de bem com a minha filha que eu brigo tanto, a Isa, porque eu digo, “nós temos que nos entender de alguma maneira, não está dando certo, mas vai dar, vai dar”. E essa espiritualidade, essa fé… Não é tanto fé, porque antes eu achava que era sorte. Eu dava por quê? Eu escapo de uma família, vou para outra, encontro a minha família biológica, eu vou aqui, tudo, muito sofrimento, mas sempre vencendo, sempre vencendo, quer dizer, eu não sou… Então, eu digo, “Deus não me fez uma queixosa. Deus me fez uma pessoa forte que quer ir adiante?” Não. Que tem fé? Não sei. Que tem o quê? O que me move hoje? Eu não tenho medo da morte, mas eu penso nela ultimamente. Eu penso nela e digo: “o que vai ser? Eu estou sustentando minha filha e como é que vai ser? Porque eu quase não vou deixar nada e quem vai ajudá-la e quem vai não sei o quê e tal”. “Não, Antonieta. Calma”. Não posso morrer já, tenho que deixar as coisas um pouco mais organizadas. A fé, de alguma maneira, está cada vez mais presente na minha vida, porque eu acho que aquilo que eu chamava de sorte ou disso e daquilo, talvez hoje seja através da fé, através da força de pensamento, através do real esforço as coisas darem certo. Porque no coletivo, onde eu pus a mão, deu certo, Karen. Onde eu pus a mão, deu certo, sabe? Tudo bem, uma unificação de entidades que estavam lá há 70, 80 anos, é lógico que demorou quatro anos, mas do meu esforço nasceu o Beit Chabad, porque o rabino lá do Beit Chabad, que era um rabino bem bacana na época, o Alpern, ele me liga e diz: “eu estou sabendo que vocês estão se unindo, o que você vai fazer com as outras?”. Porque cada uma tinha um registro de digitalidade pública, isso demorava cinco anos para tirar. Ele dizia, “uma eu vou dar para o senhor, é isso que o senhor quer?”. “É isso que eu estou lhe pedindo”. Digo, “então tem que vir já. Hoje é sexta-feira, Rabino, como é que fazemos? Temos que registrar, porque na segunda-feira já vai estar tudo doado, vai estar tudo fechado. E eu não vou pedir para a minha diretoria licença, porque eles não vão dar, eu vou dar sozinha”. Olha, ele veio me buscar no Bom Retiro, eu estava na Unibes, peguei o que precisava pegar, não falei nada para ninguém, fomos com ele, ele era muito religioso, pois às quatro horas em ponto nós estávamos onde precisávamos, cartório, não sei o quê, fizemos tudo e tal. Eu sempre chamei de sorte, mas no fundo não é só sorte, é estar presente nas coisas que você faz, é querer que as coisas boas aconteçam, é querer dar uma mão pro outro, sabe? Então, é fé. O que é fé? É pra pensar um pouco. A minha filha tem fé. A minha filha acredita que existe a reencarnação, que existe outra vida. A minha sócia acreditou a vida inteira e ela diz, “eu fui tua irmã mais velha e te abandonei pra casar e agora eu tô pagando porque eu tô aqui atrás de você”, porque ela me ajuda muito. Ela é muito engraçada. Então, o André acredita. A Luciana, não falei com ela muito sobre isso, mas ela já viu, na minha casa, já viu o lugar de OVNI, porque ela chamava os amigos. Uma época, ela morava com o pai, mas ela juntava os amigos na minha casa para chamar os OVNI 's lá, que ela chamava. Quer dizer, bem, a única pessoa séria de estudo, sem dúvida, que é a Mônica. O Eduardo, sim, porque ele é muito espiritualizado. E eu, o que eu sou? Você entende que eu não sei quem eu sou? Quer dizer, esse é o Museu da Pessoa, eu tenho que me descobrir através desse museu quem eu sou, eu não sei. Não sei, teve muita coisa nova para mim hoje. Eu falei de muita coisa nova. Lembrei de amigos, lembrei do que me fez muito bem, lembrei de poucos. Eu queria te contar da Cássia, minha amiga Cássia, adorava. Eu tenho muita coisa, porque eu vivi muita coisa, conheci muitas pessoas, tenho muitas histórias vividas com elas que são minhas, enfim.
P/1 - Você só faz um ponto lá que foi, “eu não tenho medo da morte”, e você tem preocupação prática com as questões…
R - É, eu tenho uma preocupação de morrer.
P/1 - Mas, independente das preocupações práticas, a morte para você é o que, ou tanto faz?
R - Isso que a Mônica me pergunta, “você acha que acabou? Você morreu e acabou?” Digo, “Mônica, tenho medo de falar que sim”, porque acho que nunca converso isso com o Eduardo, mas com ela, que converso muito sobre isso. E eu digo, não sei o que te dizer. Eu não sei porque durante tantos anos eu me dizia ateia e que eu faço tudo isso porque eu acho que é uma obrigação política, social, não sei o quê. Como é que eu vou agora te dizer o que é isso tudo? Mas eu não sei. Olha, eu estou com os não sei, vou sair daqui com muito não sei. Quando é a próxima sessão?
P/1- Quer falar mais alguma coisa?
R - Acho que não. Acho que tem tanta coisa e não tem… E se tiver alguma pergunta, mas eu mesma...
P/1 - Nada, te pergunto, você já falou mais ou menos, só reiterando, contar a sua história, lembrar uma das possíveis histórias. O que você está sentindo agora? O que isso te trouxe a contar a sua história?
R - Isso é uma pergunta boa de eu ficar pensando nela, mas a sensação que eu tenho é uma sensação de leveza, não muita, porque falei sobre coisas trágicas, ao mesmo tempo que não tanto. Quando lembro que não consegui tudo que talvez, se eu tivesse 20 anos menos, eu teria conseguido agora com o Projeto do Grajaú, com o Anchieta-Grajaú, me dói. Me dói porque é uma pena, porque eu poderia, eu posso, quer dizer, eu posso, mas não tenho mais tanto tempo e porque precisa, porque isso precisa ser feito. O que agora, para mim, vem na minha cabeça em tudo, é que as coisas têm que ser feitas, que a gente não pode deixar, subjugar por uma porta que se fecha porque o cara que é rico e pode te ajudar, não te ajuda. Vai abrir outra porta. Tem que ter fé porque uma outra porta vai se abrir. Acho que é isso.
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