P/1 – Senhor Félix, o senhor pode começar falando seu nome completo, o local e data de nascimento?
R – Félix Bruhl, é, uma observação, como eu nasci na Alemanha, o nome meu na Alemanha tinha dois pontinhos em cima do “u”, que quer dizer, a pronúncia era “brull”, agora, esses dois pontinhos em cima do “u” foram deixados depois aqui no Brasil, quer dizer, aqui me chamo Bruhl, e em Hamburgo, onde nasci, me chamavam de Brühl.
P/1 – Aí o senhor nasceu em Hamburgo, qual data?
R – Vinte... Pois é, eu não me lembro (risos), é, 5 de julho de 1924.
P/1 – Seus pais são de Hamburgo, seu pai e sua mãe?
R – Não, o meu pai, então, vem da Tchecoslováquia, e a minha mãe da Polônia.
P/1 – E você, vamos contar um pouquinho, a gente vai fazer um pouquinho agora a história do seu pai, depois a da sua mãe, até chegar no senhor. Seu pai veio da Tchecoslováquia.
R – Veio da Tchecoslováquia.
P/1 – Seus avós são tchecos?
R – Como é?
P/1 – Seus avós eram tchecos?
R – Sim.
P/1 – Que que eles faziam lá, seus avós, paternos, na Tchecoslováquia?
R – Ele era o, o meu avô, o masculino, era médico. E a esposa dele era esposa mesmo, né.
P/1 – E você conviveu com eles?
R – Não, não. Eu os vi uma vez, porque era uma distância muito grande, não, de Hamburgo até lá, sendo...
P/1 – E por que o seu pai saiu da Tchecoslováquia, como é que ele foi parar em Hamburgo?
R – Para maiores oportunidades, não, de ator de teatro, para fazer algo de maior, o lucro de maior rendimento para formar uma família, precisava de mais oportunidades, e Hamburgo naquela época realmente oferecia. Ele era o que na linguagem clássica se chama shipchandler, shipchandler é um negócio que fornece alimentos para navios, Hamburgo era o maior porto da Europa. Então ele tinha o negócio lá, tinha o seu próprio, a sua, digamos, acho que chama barcaça, um barquinho, e antes dos navios atracarem ele foi lá comigo, inclusive, duas ou três vezes, para pegar as encomendas.
P/1 – Mas com quantos anos que ele saiu da Tchecoslováquia e foi pra Hamburgo?
R – Deve, eu acredito, deve ter sido, mais ou menos, 1920.
P/1 – Ele tinha quantos anos, você sabe?
R – Ele tinha, naquela época, ele tinha 33 anos.
P/1 – E aí ele saiu pranovas oportunidades de trabalho.
R – Ele saiu para fazer, para, quer dizer, até lá ele era artista, quer dizer, sem dúvida nenhuma, de pouco rendimento, não fez...
P/1 – Ele era artista do que?
R – Ele era de teatro.
P/1 – Artista de teatro?
R – É, é, é.
P/1 – E você chegou a ver ele atuando?
R – Não. Não, isto era do passado, isso eu não vi. Infelizmente.
P/1 – E seus avós implicavam com isso ou não tinham problema?
R – Não, não. De jeito nenhum, de jeito nenhum, foi fácil, sem problema.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha nasceu na Polônia, é uma cidade perto da Alemanha, era perto da Silésia, que é uma parte, é uma província, digamos assim, da Alemanha. Ela morou lá e veio muito pequena, já tava morando lá quando conheceu o meu pai, em Hamburgo. Foi para Hamburgo, onde ela tinha amigos e começou a viver lá, e casou.
P/1 – Mas eu não entendi por que que ela foi pra Hamburgo.
R – Não há uma razão específico, ela tinha amigos que moravam...
P/1 – Mas seus avós não foram, foi só sua mãe?
R – Só.
P/1 – Quantos anos ela tinha?
R – Ela deve ter tido, deixa ver, mais ou menos, 30 anos também, mais ou menos.
P/1 – E ela queria mudar de vida.
R – Ela queria mudar de vida, queria, tinha amigos em Hamburgo e queria um lugar um pouco maior que lá onde ela nasceu na Polônia,Pilitz era um lugarejo muito pequeno.
P/1 – E que que seus avós, seu avô materno fazia, o pai dela.
R – Era também médico.
P/1 – O pai dela também era médico?
R – O pai dela também era médico e com ele tive um convívio um pouco mais estreito, eles moravam, depois mudaram-se, os pais da minha mãe, mudaram-se para Viena, perto de Viena tinha uma casa muito linda, onde nós fomos várias vezes depois para as férias escolares.
P/1- E o senhor sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Não, não sei realmente. E sabe que interessante, que os europeus são muito mais, digamos, avaros com palavras do que aqui na América do Sul, eles falavam muito pouco sobre o passado, muito pouco, mal conheço aquilo que acabo de falar. Eles não divulgaram muito, não tinha nada para esconder, mas é um hábito, falavam, eu não tenho realmente muitos detalhes sobre a vida deles, não conheço muita coisa.
P/1 – Mas aí eles casaram e ficaram morando em Hamburgo.
R – Como? É, sim, moraram e se conheceram lá, e continuaram morando em Hamburgo.
P/1 – Quantos filhos eles tiveram, quantos irmãos vocês são...
R – Só eu.
P/1 – Ah, o senhor é filho único.
R – Filho único.
P/1 – Aí o senhor nasceu e ficou quanto tempo lá nessa casa?
R – Não, não, a casa é de Viena.
P/1 – Ah, depois vocês foram pra Viena, ai...
R – Isto é de Hamburgo, morei num apartamento junto com os meus pais não sei quantos anos, eu devo ter imigrado a Bélgica, deixa ver, deixa ver, era, mais ou menos, 38, 39. Quer dizer eu tinha 14, 15 anos.
P/1 – E como é que era esse apartamento lá em Hamburgo?
R – Era um apartamento, que eu lembre, também não sei muito os detalhes, mas é um tamanho normal, não era muito grande, é, principalmente, eu era filho único, não precisava muito espaço. Quer dizer, era um apartamento...
P/1 – Em que bairro que ficava?
R – Bom, em que bairro? O bairro chamava-se, isso não sei se vai anotar,Winterhude, é um dos bairros da classe média.
P/1 – Era um bairro de classe média.
R –Bairro de classe média. Exatamente.
P/1 – E como que era o convívio na sua casa, quem que exercia a autoridade, seu pai ou sua mãe?
R – Não entendi essa.
P/1 – Como que era na sua casa, assim, seu pai era enérgico, quais que eram as características dele?
R – (risos) Nenhum dos dois era muito enérgico, era um convívio bastante normal, principalmente o que eu senti muito era o grande amor que eles tinham, os dois, e testemunharam isso a todo momento. Isto era, cercado de amor pelos dois, era muito bonito. Fico muito, quando penso nisso, isto me deixa tremendamente feliz pensando nisso, eram muito amorosos. Comigo, com eles dois nem tanto (risos).
P/1 – Entre eles?
R – É.
P/1 – Eles se davam bem, não se davam tão bem?
R – Mais ou menos, mais ou menos. Não se daram mal, mas mais ou menos, se davam bem, era, digamos, um convívio normal.
P/1 – E você teve algum tipo de educação religiosa?
R – Não. Mais adiante, por força das circunstâncias, mas em Hamburgo não.
P/1 – E se falava em política na sua casa?
R – Não muito, não. Não. Não falava muito em política, não era de interesse de nenhum dos dois.
P/1 – E como é que foi sua infância, quais eram as brincadeiras da sua infância?
R – Eu brincava muito na rua. Eu tinha vizinhança, eu tinha amigos, a gente jogava um futebol, ou coisas assim, quer dizer, principalmente como as casas não tinha jardim, tudo se passava na rua, as brincadeiras. É, naquela época tinha pouco movimento nas ruas, então não era muito perigoso.
P/1 – Com quantos anos o senhor entrou na escola?
R – Sete.
P/1 – A escola era perto da sua casa?
R – Era perto de casa, sim.
P/1 – Como que o senhor ia?
R – A pé.
P/1 – Sua mãe te levava?
R – A minha mãe me levava, em geral. Fui a pé, foi perto, não foi longe, não.
P/1 – Do que que você mais gostava na escola?
R – Eu acho que, eu realmente rezava bastante por um tipo de, eu diria, Geografia, eu gostava de conhecer coisas sobre o mundo inteiro. Como eram os países, e tudo, e meu pai conhecia bastante, e enfim me ensinava.
P/1 – Seu pai te ensinava em casa?
R – Como é?
P/1 – Seu pai te ensinava?
R – Sim, quer dizer, conversava comigo, e depois tem uma coisa que nos aproximou bastante nesse sentido, que ele tinha uma coleção de selos, e ele tinha selos do mundo inteiro, então ele falava comigo sobre um selo da Índia, da Inglaterra, do mundo inteiro, não. E isto fez com que me interessei bastante por isso.
P/1 – E o senhor colecionava selo também com ele?
R – Eu ajudava com, colecionando, dividindo por país, depois, enfim, ajudei bastante.
P/1 – E o senhor lembra assim, de alguma professora na escola que tenha te marcado?
R – Isto, inclusive, eu me lembro, era de uma escola, uma espécie de uma pré-escola, e eu me lembro que isto inclusive consta do livro, eu me lembro de uma professora que gostava bater com as réguas nas mãos, inclusive nas minhas, quando fazia algo errado. Naquela época era mais ou menos costume, pegava a régua e bum, bum, bum.
P/1 – E por que que o senhor tomava reguada? O senhor aprontava muito na escola?
R – Mais ou menos, mais ou menos. Mas era um, mais ou menos, digamos, de uma, era bastante dócil, posso dizer, aprontava um pouco, mas no geral era um aluno bastante calmo e comportado.
P/1 – E o senhor era um bom aluno, tirava boas notas? Como eram suas notas/
R – Isto também é uma coisa interessante: se recebia os boletins anuais, bom, a cada ano, não, recebia os boletins sobre o progresso que fazia o aluno, e no primeiro ano eu era, tenho isto inclusive comprovado, era número um na classe. No segundo ano já foi muito pior, nem se fala para, durante o terceiro ano, já comecei a não me interessar mais pela escola, o que foi muito, muito simples.
P/1 – Você passou a, perdeu o interesse pela escola?
R – Como é?
P/1 – O senhor passou a perder o interesse pela escola?
R – É, não, estava muito, eu era sempre comunista, não gostava muito fazer deveres de casa, e coisas assim. Quer dizer, resumindo, eu não era um bom aluno depois do segundo ano.
P/1 – E o senhor gostava de fazer o que? Não gostava de estudar, mas gostava de fazer o que?
R – Eu gostava muito, eu gostava quando podia, começava a ler, e íamos também, minha mãe me levava para algumas apresentações de teatro, apresentações de música, isto me interessava.
P/1 – Desde pequeno o senhor teve contato com..
R – É, desde pequeno.
P/1 – Seus pais frequentavam muito o universo cultural?
R – É, eram intelectuais, os meus pais. Sem dúvida nenhuma, e fizeram questão de que o filho deles também aparecesse um pouco nesta mesma linha. Tive uma educação, digamos, refinada.
P/1 – O senhor lembra assim, algum livro que tenha marcado o senhor nessa época?
R – Era os livros...qual seria, difícil...
P/1 – O que você lia nessa época?
R – Era mais história, eram livros, me interessava principalmente História. Livros sobre, por exemplo, da Inglaterra, ou as várias guerras, as várias famílias, e tudo, isto me interessava e os meus pais tinham muito conhecimento disso. Isso foram os meus interesses, digamos, literários, e me, passaram-se sempre muitas horas fazendo os deveres da escola, e depois, principalmente, leitura.
P/1 – E espetáculos, que que era, teatro, música?
R – Era o teatro, era um teatro, música, tinha muita coisa que na Alemanha, inclusive em Hamburgo, tinha muitos espetáculos, muitos concertos, a vida cultural era bastante, bastante grande, bastante forte. Então eu aproveitei inclusive, através dos meus pais.
P/1 – Que datas se comemorava na sua casa?
R – Bom, como eu sou de... Bom, interessante o seguinte: nós somos judeus, e, curiosamente, em Hamburgo, nós, realmente, não seguimos muito, ou não seguimos, seguimos pouco, as tradições judaicas. Eu tive a única coisa, a minha BarMitzvah, que é quando, na religião judaica, a pessoa completa 13 anos, um três, 13 anos, se comemora, e isto foi comemorado por meus pais.
P/1 – E ano novo, RoshHashanah...
R – Como é?
P/1 – É, ano novo vocês comemoravam?
R – Não muito, não. Em Hamburgo realmente não.
P/1 – Quais eram, tem alguma comida que você lembra, que sua mãe preparava?
R – Minha mãe, como ela vinha Polônia, ela tinha uma, digamos, uma preferência pela comida austro-húngara, fazia bolinhas de frutas, fazia muitas tortas, fazia uma comida bastante pesada, mas muito gostosa, que a cozinha tinha fama, non, austro-húngara, era muito relevante na comida em geral, internacionalmente falando, e minha mãe era uma cozinheira de mão cheia.
P/1 – Que tipo de música o senhor escutava?
R – É...o que se apresentava principalmente, música de orquestra, clássica, eu não tinha muito interesse na época por música mais popular, era música realmente mais para orquestra, música séria, não, música clássica, onde minha mãe me levava, para os concertos, já era costume, às vezes à tarde, às vezes aos domingos. E depois também, rádio, a gente ouvia rádio, muitas, muita música, principalmente clássica.
P/1 – Você escutava muito rádio na sua casa?
R –É também, no rádio, fomos para teatro, fomos para, principalmente lá onde se tocava as nossas músicas.
P/1 – E seu pai seguia nessa atividade dele, da... com a barca...
R – Não, não, ele continuou depois na atividade de, como eu falei, shipchandler, isso ele fazia.
P/1 – Ele seguiu nesse atividade.
R – Seguia nessa atividade.
P/1 – E ele ganhava dinheiro?
R – Bom, sem dúvida nenhuma, afinal a ideia era essa, né.
P/1- Mas vocês eram assim, ele conseguia juntar dinheiro, era pra sobrevivência? Como que era?
R – Não, não, só uma vida, digamos, vamos dizer, uma vida normal, não houve maiores problemas no começo. Mais difícil foi quando mudou-se a parte, digamos, assim, política, com a ascensão do Hitler e tudo, as coisas evidentemente se complicaram. E aí a coisa ficou mais complicada um pouco, a empresa do meu pai foi, como posso dizer, invadida por nazistas e tudo mais, quer dizer...
P/1 – Em que ano ela foi invadida?
R – Isto foi, deixa-me ver, 39, mais ou menos, 40.
P/1 – O senhor tinha 19 anos?
R – Eu tinha pouco, eu era pequeno ainda.
P/1 – E o senhor lembra disso? De quando aconteceu essa invasão?
R – Não muito, realmente. Não muito, realmente. Eu sei que houve problemas sérias, à medida que o tempo foi avançando as coisas foram piorando, em represálias contra judeus e tudo isso, quer dizer, restrições, não represálias, restrições cada vez maiores, você não podia ir a lá, não podia ir a cá, etc. e tal. Isto foi depois piorando, isto foi a razão pela qual nós mudamos para a Bélgica.
P/1 – Que anos vocês mudaram pra Bélgica?
R – Eu acho que era mesmo, se não me engano, 40, 41...
P/1 – E como é que foi essa mudança? Vocês foram como, como vocês saíram de Hamburgo e foram pra Bélgica?
R – Nós pegamos, foi muito interessante, não houve realmente grandes acontecimentos, não pode se dizer, minha mãe fechou a porta da casa, ou do apartamento, e o meu pai tinha o seu relacionamento com, devido ao trabalho que ele tinha, e fomos morar na Bélgica, na casa de um parente da minha mãe, por um tempo. E depois a gente, eu, por exemplo, na Bélgica, eu não morei com os meus pais.
P/1 – Por que?
R – Bom, uma questão, digamos que, de facilidade. Eu morei uma escola que era ao mesmo tempo uma pensão, digamos assim, para certos alunos, e eu fui um desses.
P/1 – Juntou a escola com a moradia.
R – Isso.
P/1 – E que que o senhor sentia, de perseguição, naquela época?
R – Não era muito, não. Sentia que nós éramos, digamos assim, diferentes do que a grande maioria, mas não havia ainda... os meus pais que não moravam comigo, certamente sentiram muito mais o impacto, não, eu tinha meus amigos e a gente estudava, etc. e tal. Quer dizer era mais jovem e não sentia ainda muito o trauma.
P/1 – E como é que foi pro senhor essa mudança, sair de Hamburgo e ir pra Bélgica? Como que foi, logo que o senhor chegou na Bélgica, o senhor lembra que que o senhor sentiu?
R – Bom, eu tinha, como eu teria através do, justamente da família da minha mãe, tinha um primo, tinha várias pessoas que eu conhecia e depois, enfim, fui indo, fui aprendendo a língua, trabalhei na casa de, trabalhei na firma de um primo e comecei a aprender a língua atendendo o telefone, de uma certa maneira, como uma espécie de um office-boy. Vai, foi indo.
P/1 – Onde é que o senhor atendia telefone? Desculpa, não entendi.
R – Eu digo, na empresa desse meu primo. Ele tinha uma empresa bastante importante, não... Desculpe, eu estou fazendo confusão, a parte, estamos onde...
P/1 – O senhor foi pra esse colégio, onde morava na pensão... e seus pais foram pra esse parente.
R – É, onde eu morava. É, foram morar em outro lugar.
P/1 – E como que é que era essa escola, que que era, segundo grau, equivalia a o que?
R – É, mais ou menos.
P/1 – Segundo grau?
R – É, é.
P/1 – E como é que era, como é que foi essa mudança pro senhor?
R – Bom, ela foi brutal, non, mas como eu repito, como era jovem as coisas não impressionaram tanto. Certamente para os meus pais a coisa foi mais difícil. Meu pai para aprender francês não era muito fácil, não, agora para mim, eu tinha um certo dom para línguas, eu aprendi francês, que se falava na Bélgica, com relativa facilidade.
P/1 – E o senhor fez amigos logo que chegou...
R – Tenho, principalmente, na Bélgica, um amigo, muito querido, que eu visitei várias vezes, e, agora recentemente estivemos lá, e é uma amizade de praticamente 70 anos. Bonito. Nós estamos em contato por cartas e por telefone, e depois através de algumas visitas que eu já fiz na casa dele, ele nunca veio para cá.
P/1 –Aí o senhor foi pra essa escola, e como que você visitava seu pai, seus pais com que frequência, era perto da casa que eles moravam?
R – É, me visitaram, non, levaram para a casa onde eles moravam, passei lá um fim de semana, fomos para ouvir alguma música, algum teatro – foi assim, mas sempre me levaram de volta para a escola, e durante a semana a gente não se via.
P/1 – E o senhor tinha obrigações lá, tinha que arrumar seu quarto, que que o senhor tinha que fazer fora a escola, assim, suas obrigações de casa?
R – O que eu fazia não era grande coisa, eu ficava fazendo os deveres de casa, tudo, era na escola mesmo, lá onde você morava, naquele departamento da escola, e fazia, e depois, se eu batia papos com os outros que também estavam lá, morando, e foi, o tempo foi passando, lendo um pouco, enfim, aquilo que um jovem costuma fazer, non.
P/1 – Que que o senhor fazia lá, fora estudar?
R – Foi para...
P/1 – Fora estudar, que que o senhor fazia lá?
R – Bom, eu lia muito, continuava lendo, e depois organizamos festinhas e tudo, enfim, eu era a vida de um jovem, nada muito marcante, pelo menos no meu caso.
P/1 – Mas como é que eram as festinhas?
R – Como?
P/1 – Como eram essas festinhas?
R – Como era?
P/1 – Essas festinhas que o senhor falou que vocês faziam.
R – Bom, se convidava, tinha inclusive as moças, porque lá tinha também moças na, não interno, só na escola, lá era só pra rapazes, na pensão, vamos dizer assim, da escola. A gente se reunia, inclusive, este amigo meu dava várias vezes algumas festinhas assim, com meninas, a gente dançava um pouco, enfim, fazia um pouco de movimento, mas era nada de muito especial.
P/1 – O senhor gostava de dançar?
R – Gostava de dançar. Gostava de dançar, isto, continuo gostando até hoje.
P/1 – Que música que tocava naquela época que dançava, que dança que era?
R – Era, o que que era? Esses jazz, tango um pouco, enfim, eu realmente não me lembro mais o que era muito. Mas, enfim, nem tomei aula, eu devo ter feito muitas besteiras, devo ter pisado muito nos pés dos companheiros, das companheiras, eu tenho certeza (risos), o começo é sempre difícil – mas assim...
P/1 – E o senhor tinha alguma coisa, assim, quero estudar pra ser tal coisa na vida, o senhor tinha algum pensamento em relação a isso?
R – Não, não tinha. Não tinha, realmente, talvez, de uma certa maneira, talvez me faltava isto, uma certa ambição, eu me dava bem na escola no momento e não visava muito as coisas para o futuro. Eu tava bem, enfim, a vida era normal, non, tava boa, era normal – quer dizer, não faltava nada, os meus pais...
P/1 – E em que bairro da Bélgica que ficava, que lugar da Bélgica que o senhor morava?
R – Bom, é Bélgica, agora... Vamos dizer, o lugar, nós fomos para a capital, para Bruxelas. Meu pai, evidentemente, não tinha, não fazia nada, não? Ele perde, como eu disse, o negócio, invadido pelos nazistas na época em Hamburgo, e ele – mas eu vou lhe dizer uma coisa, a parte financeira, por exemplo, não me foi revelada realmente, naquela época, eu vivia lá na escola, non, no instituto, lá no...
P/1 – Mas era pago, seu pai pagava?
R – Era pago, claro, mas assim, eu não tinha, digamos assim, preocupações financeiras, não sei realmente até hoje se os meus as tinham, eu não sei, provavelmente não porque viveu-se normalmente, é, viveu-se normalmente. Agora, depois vem o momento da, não sei se você quer que eu falo, a época da guerra...
P/1 – Aí em 45.
R – É. E com isso também...
P/1 – O senhor tava com 20 anos.
R – É, exatamente. Então o que isto foi a época onde eu já conhecia de mais perto a miséria de uma guerra, nós saímos para um, procuramos um lugar perto do mar, saímos, a minha mãe fechou as portas do apartamento, e lá fomos, fomos de carro com um amigo que morava em frente, era um açougue, ele tinha uma loja, era açougueiro, não, ele tinha uma loja, e com o carro deles nós fugimos. Eles fugiram do centro porque eram contra os alemães e nós alemães e também tínhamos medo de perseguição por sermos judeus, no. E aí a gente foi de carro até um certo ponto, é, foi lá...
P/1 – Foi você, sua mãe, seu pai...
R – Exatamente, e este casal.
P/1 – E esse casal. Tudo num carro só.
R – É. Num carro só. Bom, tinha, a gente não levava grande coisa, deixava tudo lá, só Deus sabe o que depois aconteceu com essas coisas, não sei. E nós fomos e, como que foi? Bom, nós pegamos uma estrada, de carro, houve várias fiscalizações e, infelizmente, numa dessas fiscalizações, que eram principalmente feitos por elementos que era amigos dos alemães, colaboradores. E, infelizmente, nestas fiscalizações, o meu pai foi, digamos, acusado de judeu, foi meio maltratado, tiraram ele do carro e colocaram ele numa escola lá com outros judeus que esperavam as coisas futuras, o destino deles. E nós continuamos, então, com uma pessoa a menos, foi muito triste esse momento porque perdemos um, minha mãe super desesperada, e eu também já sentindo muito o peso, o que é uma guerra. E depois, no meio do caminho, acabou a gasolina do carro e a gente se despediu deste casal e procuramos um, como que chama isso, que puxa com a mão, como tem aqui o pessoal que puxa com a mão.
P/1 – Carroça?
R – Mas, você mesmo empurra...
P/1 – Tipo um carrinho de mão.
R – De mão, exatamente. E nós prosseguimos a viagem assim. Não éramos sós, tinha milhões, e...
P/1 – Vocês foram andando?
R – Andando. E nós fomos andar até uma cidade que era, talvez, não sei eu, 20 quilômetros, bem, a Bélgica é muito pequena, e fomos hospedados, fomos nos hospedar numa escola. E foi nessa época que os Aliados, os ingleses e os americanos, principalmente ingleses e franceses, queriam já invadir a Europa, e houve justamente onde nós estivemos, de um lado os Aliados desembarcando dos barcos para chegar na terra para invadir a Bélgica, e outros países também, mas nós estávamos lá, na Bélgica, no coisa perto do mar, e lá, de um lado, naquela escola a gente ouvia as balas da defesa do alemães, e do outro lado dos Aliados, que procuraram invadir a Europa – os países dominados pro Hitler. Mas infelizmente foi um fracasso muito grande, mas os barcos que trouxeram os soldados dos Aliados também pegavam depois os soldados de volta, porque não conseguiram avançar muito, voltaram, e muitos morreram, quer dizer, a praia, onde nós estávamos perto, era cheia de cadáveres dos tiros de ambos os lados.
P/1 – Vocês viviam no meio disso?
R – É.
P/1 – Quanto tempo durou isso?
R – Alguns dias. E...
P/1 – Como que era a comida?
R – Bom, era o que a gente pegava na escola, em alguns, não sei, bares, a gente, a vida, sobrevivemos, né.
P/1 – E seu pai?
R – Bom, meu pai ficou lá. Meu pai ficou lá, nunca mais os vimos.
P/1 – Nunca mais, aquela foi a última vez.
R – Não, a última que o vimos, depois, pelo livro, tivemos contato com ele por escrito, mas isso foi depois. Mas o vimos nunca mais. E aí a gente...
P/1 – E aí depois vocês ficaram na escola, nesses quinze dias.
R – É, por aí, talvez um pouco menos. E voltamos para Bruxelas, voltamos é de, era um tipo de um ônibus meio mal conservado, mas enfim, chegamos de volta, e voltamos o apartamento que tínhamos antes, era ocupado, parece, já não tenho certeza, em todo caso, voltamos, fomos num novo apartamento que nos foi cedido.
P/1 – Mas quem que cedeu, algum parente?
R – É, non, parente não, conhecidos.
P/1 – Mas vocês moraram com eles?
R – Não, não, não.
P/1 – Só pra você e sua mãe.
R – Tínhamos só eu e minha mãe. E assim foi indo, foi indo.
P/1 – Mas sua mãe tinha dinheiro, com que que vocês viveram?
R – Bom, isso foi, devemos ter tido algum dinheiro ainda, até o momento em que eu comecei a fazer uma coisa muito perigosa, que era o mercado negro. Comprava, vendia, eu tinha lá na relação, na Bélgica, relacionamentos com alguma gente, fiz câmbio negro, comprava por exemplo coisas raras, pneu de carro, de automóvel, por exemplo, comprava, arrumei dicas de quem vendia, comprava, revendia, chocolate, fumo, todas essas coisa que era artigos, como artigos de luxo. A gente mexia com isso, eu, e isto foi bastante rentável, e assim continuamos vivendo. Eu depois, que, como que foi isso, eu depois, quando os nazistas ocuparam a Bélgica houve um, digamos assim, uma perseguição violenta que nem na Alemanha contra os judeus. Então, o que fizemos? Para escapar a eventuais prisões da nossa parte, eventuais ações violentas, por parte dos nazistas, como aconteceu a muitos judeus, eu, bom, antes, ainda junto com o mercado negro, ainda procurei um emprego e fui, caí com um padeiro, uma padaria, e o chefe da padaria era um dos principais chefes, vamos dizer, do exército de liberação, quer dizer, os amigos dos Aliados, e eu fui enquadrado desse grupo, e o primeiro benefício foi a mudança do meu nome: eu não me chamava mais Felix Brühl, mas me chamava (Franz Bertier?), um nome francês, mas adequado a um cidadão belga, non, e minha mãe também, através desse mesmo chefe, ela se chamava (HelèneBertier?), sempre mantivemos os iniciais dos nossos nomes.
P/1 – Ela chamava como, como que era o nome verdadeiro dela?
R – Como é?
P/1 – O nome verdadeiro dela.
R – É Hedvika Klein era o nome de origem, e depois chamava-seHedvika Brühl. E então foi assim, ela, nós começamos a procurar nos manter, e nisto, este meu amigo, este amigo meu que eu visitei agora recentemente, este meu amigo de 70 anos, morou numa região muito fina, numa casa muito bonita, e ele me escondeu durante, este amigo, não, que eu já tinha mencionado, me escondeu durante um bom tempo na casa dele.
P/1 – O senhor e sua mãe?
R – Não, aí que está, a minha mãe, inclusive não tinha lugar, não era adequado, a minha mãe foi morar num lugarzinho perto de Bruxelas, e a gente só se via ocasionalmente. E assim foi, o tempo foi passando, foi passando, foi passando, e enfim, um dia acabou a guerra, non, e é...
P/1 – Quanto tempo o senhor ficou na casa desse amigo?
R – Vários meses. Não sei exatamente.
P/1 – Mas o senhor ficava escondido...
R – Estava em, tinha, era uma casa bonita, uma casa grande, e tinha um sótão, era, subia uma escada, era um sótão onde tinha um quarto que eu ocupei. E a gente só saía no escurecer, à noite, etc. Andava um pouco para tomar uns ares, para sair um pouco duma espécie de uma reclusão, de um quarto, de uma sala, de um, enfim, um aposento.
P/1 – Como é que o senhor passava o dia?
R – Bom, novamente... Bom, lá era diferente, lá tava a família e estava o meu amigo, quer dizer, ele é um amigo, é muito artista, muito intelectual, desenhava, o mais melhor desenho, escreve, e eu estava muito com ele junto, e a gente lia junto, ele me ensinou muita, ele tinha muito interesse na parte dos pintores, do passado, Renaissance, Idade Média, etc., e a gente lia algo, não sei tudo, ele me ensinou muita coisa, isso inclusive firmou mais a nossa amizade. E eles, não esquece que eles correram um risco muito grande de me esconder, podiam, se um dia houvesse uma denúncia, pudessem ser fuzilados.
P/1 – E teve algum momento que alguém desconfiou? Teve alguma perseguição?
R – Não, tinha uma empregada, mas ela, acho que era uma pessoa muito simples e não sabia do porquê da minha presença lá, e enfim foi indo. Foi indo até chegando, depois, aos poucos a guerra foi continuando, foi, foi, e através deste exército da liberação desse Maquis, eu fui colocado através desse homem da padaria, fui colocado num lugar perto do aeroporto de Bruxelas, onde um vão enorme, livre, onde levaram as peças, e tudo o que foi, não destruído, mas semidestruído, vamos dizer, vinha caminhões com hélices de avião, com motores de tanque, enfim, o nosso dever era de, quer dizer, nós estávamos agora num campo adversário, não, eu como homem do exército da liberação e do outro lado os alemães que estavam invadindo a Bélgica, non – já tinha invadido a Bélgica. E aí, e a gente anotava as coisa que via, asas quebradas, a gente, dentro do possível, anotava o número de algum avião, alguma parte de um avião, hélice, ou seja, o que for a gente anotava, e entregava isto a um pessoa que a gente não conhecia que era um, como posso dizer, um colaborador, sabia posteriormente, que isto foi transmitido depois para o centro da liberação, eu acho que era em Londres. E assim foi indo, a guerra acabou...
P/1 – O senhor anotava, que que tinha nessas anotações? Você observava...
R – Você anotava, por exemplo, você anotava: avião, hélice quebrada; janela de um carro tal, um carro de um tanque, por exemplo; as correias, esses do tanque, por exemplo, chegava um tanque, eu me lembro, chegava um tanque, não tinha mais aquelas correias, e tinha disso, tava meio destruído. E outros colegas faziam a mesma coisa, e no fim, o resultado dessas pesquisas quase que diárias foram levadas para um camarada cuja origem não conhecia, isso depois foi levado para fora e houve interesse para saber a que ponto, digamos, o exército alemão foi prejudicado, não com destruições de veículos e aviões, etc, e este mesmo serviço deve ter existido em vários outros pontos da Bélgica. Bom, então, chegamos assim no fim da guerra, grande alegria, festas e tudo o mais.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha mãe, então, a gente tava sempre se comunicando, tinha telefone: “Aqui fala Helène Bertier”, non, é naquela base a gente se comunicava, e eu na casa do meu amigo e ela na casa de uma conhecida que foi recomendado.
P/1 – E seu pai vocês não tinham mais contato?
R – Por enquanto sem novidades. Por enquanto.
P/1 – Você sentia falta?
R – Claro, claro. Evidente, evidente. Bom, então as coisas foram indo, e colegas, nós fomos sabendo que era uma questão de dias do fim da guerra, etc. e tal. E depois acabamos fugindo lá do serviço, desse serviço alemão, onde nós fomos para fazer anotações, era um grupo alemão, era uma empresa, quase, empresa entre aspas, com nome, chamava-se (Ehrla?), e eles, nós fomos tomando, nós fomos olhar, quando vinha das estradas inutilizadas, e nós levamos, como eu falei, levamos para fora, não, para um homem ou uma organização que eu não conheço o nome, cujo nome etc... Então nós, eu me encontrei outra vez com minha mãe, nós ocupamos a residência que tínhamos antes, e assim fomos, voltamos a uma vida mais ou menos normal, eu tinha algum dinheiro, minha mãe ainda tinha algum dinheiro, e depois eu peguei, nisto veio o inglês, o exército inglês, que foi exército que ocupou a Bélgica, e o chefe era o famoso general Montgomery que depois se tornou muito conhecido. E eu falava mais ou menos inglês, e fui fazendo requisição de moradias para oficiais que vinha aumentando, vinha ocupando, faziam parte do exército inglês, vinha oficiais e tudo, e a gente num jipe foi num lugar, e num outro lugar, eu falava bastante inglês e depois falava francês, a gente conseguia moradias para os oficiais. E é assim, assim...
P/1 – Onde que eram essas moradias?
R – Como é?
P/1 – Como assim, onde que eram essas moradias?
R – Era, a gente ia no, por exemplo, via uma casa, eu tinha um, como chama isso, uma [P/1 – Identificação, uma tarja]. Identificação, é, no braço, era, não tinha uniforme nem nada, mas essa identificação. E a gente foi, tocava numa casa, pa-pa, você não tem etc. e tal. E como os belgas eram muito receptíveis a, claro, a ocupação, eles, muita gente tinha as portas abertas para receber um oficial, enfim, era para oficiais, essas residências.
P/1 – Ah, eram casas das pessoas e vocês batiam pra pedir? Casa de normais.
R – É, a gente não tinha nem...batia, nós somos do exército, pá-pá, outro que guia o jipe de uniforme, pau-pau, e aí tinha resultado.
P/1 – E aí como o senhor falava os idiomas, o senhor que fazia essa negociação.
R – Exatamente. Eu falava francês com, era na Bélgica, falam francês, e eu tinha também, falava razoavelmente inglês, pra fazer essa conversa. E assim foi indo, e o tempo foi passando, e depois veio a época Brasil, né. Aí...
P/1 – Aí como é que acaba esse episódio? Lá na Bélgica.
R – Bom, esse episódio praticamente não é um ponto final, foi uma sequência, vamos dizer, através da Cruz Vermelha, o meu primo, que era industrial aqui em São Paulo, ele soube...
P/1 – Você tinha um primo que já tinha vindo.
R – Este primo já, fazia tempo que ele estava, fazia tempo que ele estava aqui no Brasil, tinha um firma grande com outros sócios. E através principalmente dos famosos telegramas que tinha época a gente se comunicava, e um dia ele se interessava por nós, e nos mandou um, uma espécie de um delegado da empresa dele, e nos...
P/1 – Deixa eu voltar um pouquinho, que que eram esses telegramas?
R – Eles, esse telegrama dizia que “pagamos a sua passagem”.
P/1 – Ele localizou vocês lá.
R – Como?
P/1 – Ele achou vocês, ele que achou.
R – Bom, e aí, é claro, nos identificamos, nós falamos onde estávamos, e um dia em, nós, em Bruxelas, nós nos encontramos com este representante da empresa, ele nos deu os detalhes, etc. e tal, pá. Nos entregou, inclusive, depois as passagens, e um dia nós fomos de Bruxelas, fomos para a Suécia, onde pegamos um barco que era justamente a passagem que o meu primo pagou. E chegamos no Rio de navio.
P/1 – Quanto tempo durou a viagem?
R – Três semanas, mais ou menos.
P/1 – Como é que foi essa viagem?
R – Era um semi-cargueiro. Foi muito gente, muitos jovens, foi alegre, tudo o mais, tínhamos nossa cabine, minha mãe e eu. E chegamos aqui, são e salvo.
P/1 – Aí parou no Rio de Janeiro o navio.
R – Paramos no Rio de Janeiro, e outra vez este delegado que tava na Bélgica nos encontrou no Rio e nos deu as instruções e nós fomos de trem para São Paulo, onde nos recebeu o primo.
P/1 – Vocês chegaram a ficar no Rio de Janeiro hospedado, não?
R – Como?
P/1 – Vocês chegaram a ficar hospedados no Rio de Janeiro?
R – No Rio de Janeiro, eu nem me lembro, acho que não. Eu acho que isto foi tudo já organizado antes, não posso dizer exatamente. Nós fomos hospedados aqui em São Paulo, naquela época Hotel Terminus, eu acho que não existe mais, perto da Praça República.
P/1 – Que empresa era essa do seu primo?
R – Chamava-se, não existe mais, Ortmann, uma empresa de produtos químicos, que tinha os escritórios na Avenida Santo Amaro. E, enfim, houve vários problemas...
P/1 – Como é que foi essa chegada, assim, qual foi sua impressão chegando aqui em São Paulo?
R – Bom, tudo muito novo, não, (risos) muita gente de cor, tudo isso. Nós fomos recebidos, muito bem recebidos pelo meu primo e a sua esposa, eles moravam aqui na, numa casa maravilhosa, esqueci o nome da rua agora, acho que é Tamacá... Ele tá dormindo já, o menino?
P/1 – Não, ele tá no... Magina, ele tá olhando aqui.
R – É meio longo, meio longa a história
P/1 – Demora o tempo que o senhor quise. O senhor quer fazer uma parada?
R – Não, para mim não, tá tudo bem.
P/1 – Tá tudo bem? Quer tomar um golinho d’água?
R – Não, eu sou, eu tenho o costume de falar.
P/1 – O senhor não quer nem um golinho de água?
R – Não, no momento não, tô muito bem. E enfim, este...
P/1 – O senhor tava falando da chegada do senhor, qual a impressão que o senhor teve.
R – É, é, claro, tudo diferente, é, com um pouco de receio e tudo mais, minha mãe nem se fala, ficou assim, meio perturbada, non, era uma senhora de idade, minha mãe, tinha já, para você chegar num país novo, emigrar, com uma idade já passando dos 50, já era, era muita coisa, non. E então nos fomos primeiramente alojados na casa deste meu primo, como chama a rua? Esqueci. No Jardins, uma, como se diz, uma casa maravilhosa. E aí nós ficamos algum tempo...
P/1 – No hotel.
R – Não, não.
P/1 – Na casa dele.
R – Na casa dele, sim, no hotel ficamos três, quatro dias, neste Hotel Terminus.
P/1 – Quando chegou.
R –E aí nós ficamos lá, depois eu comecei novamente a trabalhar como um tipo de office-boy na empresa dele, a fábrica era na Av. Santo Amaro, e o escritório na Líbero Badaró, eu fui lá e atendia o telefone.
P/1 – E o idioma?
R – Bom, o idioma era relativamente fácil, falando francês, você mais ou menos aprende com certa facilidade português. Não era assim muito diferente, mas de qualquer maneira, fiquei no telefone recebendo os recados, às vezes me atrapalhei, claro.
P/1 – Tem alguma história assim que o senhor lembra, que o senhor tenha se atrapalhado com o idioma?
R – Bom, claro, às vezes, até hoje detesto falar no telefone. (risos) Imagina lá no passado.
P/1 – O senhor lembra de alguma história, que tenha acontecido?
R – Não, não... Era um escritório, tinha funcionários no... Eu pegava o telefone, muitas vezes dava para um que tava perto, ele continuava a conversa, né. E assim foi indo, eu fui claro me aperfeiçoando na língua, falo relativamente bem, e assim, como que eu posso dizer,ahn... Casei.
P/1 – Aqui no Brasil?
R – Aqui no Brasil, quer dizer...
P/1 – Como é que o senhor conheceu sua esposa?
R – Por um grupo de emigrantes que se reunia sempre. Era gente, também tomava, comia bolo, enfim, emigrantes como eu era. Juntavam-se e tal, e lá conheci essa minha esposa e, enfim...
P/1 – Logo que o senhor viu, o senhor já gostou dela?
R – Acho que sim... Acho que sim. Acho que sim. E enfim, é fomos morar, e casamos.
P/1 – Mas antes disso o senhor continuou, foi crescendo nessa empresa, trocou de trabalho?
R – Não, crescendo muito, não, realmente. Eu continuo, é, mas, evidentemente, este primo ele me ajudou também, financeiramente, não tivemos problemas financeiramente. O pouco que eu ganhava, é, também dele. E tivemos depois alguns problemas, eu fiz alguma besteira lá na, com o automóvel da, do meu primo, ele...
P/1 – (risos) Que besteira?
R – Eu fiz uma besteira, subi numa árvore com o automóvel.
P/1 – (risos) Como...(risos)
R – (risos) Não sabia dirigir, pensava que sabia porque às vezes dirigia o jipe lá dos ingleses, non, mas era um carro e ela quis, ela quis vender o carro. E cadê o carro, ela tinha, a esposa, era o carro da esposa, ela tinha um conhecimentos com os dirigentes políticos, vamos dizer assim, de São Paulo, ela conhecia inclusive Adhemar de Barros, e outra gente, e um desses elementos tava interessado no carro. Sentou ao meu lado, e eu bumba, em cima da árvore, até hoje...
P/1 – Com ele no carro?
R – Com ele no carro. E até hoje tem a marca na árvore, que é justamente na frente da casa dele. Maestro Elias Lobos, te diz alguma coisa? É naquela rua. E, bom...
P/1 – E aí, quando você subiu? Que que você fez?
R – É, é, bom... O que que você podia fazer? O carro é... Eu não ria aquele momento (risos), ninguém ria, e principalmente a esposa do meu primo, que era dona do carro, foi possesso. Graças a Deus ninguém se feriu, e evidentemente o cara falou “até logo, obrigado, o carro não me interessa”, tava muito, tinha muitos problemas, amassado e tudo mais. Bom, então, o relacionamento piorou muito, o relacionamento do meu primo, e principalmente da esposa dele, conosco, minha mãe e eu, e a gente foi mudando de endereço. Continuamos morando por lá na casa da mãe da esposa do meu primo, na Rua Marie Estela, não sei se isso te diz alguma coisa. E assim foi, fui...
P/1 – E você continuou trabalhando na empresa dele?
R – Até um certo momento, depois, já com o português mais seguro, vamos dizer assim, fui pegando outros empregos.
P/1 – Qual foi o outro emprego depois que você saiu de lá?
R – Eu trabalhei depois na Anderson Cleyton.
P/1 – Que que você fez lá?
R – Lá fui fazer anotações no livro, também um trabalho totalmente, quase que humilhante, mas é, levava dinheiro para casa. E assim foi indo, foi indo, mais empregos, e depois eu me especializei em embalagem.
P/1 – Como é que você foi se especializando em embalagem?
R – Li anúncio no jornal, e um dia eu vi um anúncio X, para se apresentar era na, onde era, no centro da cidade, era uma firma americana, como chamava?. E sem maiores interesses como esse, já que eles precisavam de um elemento falava mais ou menos inglês e um pouco de português, que já sabia, comecei lá trabalhando e, digamos, me relacionei muito bem com o produto: embalagens industriais para chocolate, para balas, para manteiga, para várias coisas.
P/1 – Mas era de que material?
R – Era principalmente alumínio e celofane. E depois eu cheguei até a trabalhar na Klabin depois, com papelão e esse tipo de coisa. Mas eu tinha uma empresa, minha, formei uma empresa, de representações de embalagem.
P/1 – Mas aí o senhor começou nesse primeiro trabalho, nessa empresa, você foi lá pra Líbero Badaró...
R – Eu comecei nesse emprego – foi, exato. E assim foi, fiz uma, formei uma empresa.
P/1 – Não, mas no começo o senhor começou como representante?
R – Como representante.
P/1 – Aí quanto tempo o senhor ficou como representante?
R – Acho que dois anos, talvez.
P/1 – Aí que o senhor teve a ideia de fazer essa empresa?
R – De fazer uma...
P/1 – Porque o senhor se deu bem.
R – Me dei bem com o produto.
P/1 – Como é que era o mercado de embalagem aqui no Brasil, naquele momento?
R – Um campo muito enorme. Tudo o que você vê é embalado de uma maneira ou outra.
P/1 – Mas como é que era antes de ter essa embalagem? Porque acredito que isso foi uma introdução.
R – Tinha menos, tinha poucas empresas, a coisa foi crescendo, e com um certo papo que a gente precisa para vender as coisas, eu consegui um bom patrimônio, né. E nesse entretempo os meninos foram crescendo, non.
P/1 – Vamos voltar, então, eu quero voltar lá pra gente chegar nisso, pode ser?
R – Pode, pode.
P/1 – Vamos parar cinco minutinhos? Dar uma descansadinha?
R – Como quiser, não me cansou, não.
P/1 – Não? Então tá bom. Aí o senhor chegou nessa empresa, ficou dois anos, e eles que te fizeram a proposta, ou foi da ideia do senhor fazer essa sua empresa?
R – Não, essa da empresa, eu saí desta empresa e depois procurei empresas que necessitavam de representantes, eu fui inclusive um dos diretores, um americano inclusive, sabendo que eu tava me interessando, me levou para uma outra empresa, americana também, e assim por diante. Então quer dizer, fiquei sempre no ramo de embalagem. Representava mais de uma empresa, claro, não concorrente uma com outra, mas sempre na linha de embalagem.
P/1 – Mas aí o senhor tinha outros representantes que trabalhavam pro senhor?
R – Depois tinha dois.
P/1 – E aí, é...
R – E aí isto foi até o... Terminei a minha vida de representante aos, mais ou menos, 70 anos.
P/1 – E aí senhor, naquele começo, era bala, chocolate?
R – Bala... Diversos tipos de produto, mas, em geral, papel alumínio, celofane, celofane tinha vários tipos impermeáveis, não impermeáveis, tinha papel, tinha gramaturas diferentes, e você tinha que saber isto por experiência, depois peguei bastante experiência, com isto eu podia, vamos dizer, sugerir a muitas empresas a embalagem que deveriam usar, porque tinha problemas com uma embalagem, eu falava: “Não usa, não usa mais este, usa aquele”, etc. e tal.
P/1 – Quais eram os lugares que o senhor ia vender?
R – Eu vendi muito em São Paulo, e depois...
P/1 – Pra quais empresas em São Paulo?
R – Bom, Nestlé, por exemplo, era uma empresa muito grande, Anderson Cleyton, onde eu trabalhava, usava muito a embalagem minha. E assim por diante, quer dizer, peguei depois uma outra representação, de cartões, de caixas de papelão, foi tudo junto, não...
P/1 – Quem empresas utilizavam caixa de papelão?
R – É, Klabin, por exemplo, eu trabalhei um pouco caixa de papelão, e papel também, que a Klabin fornecia.
P/1 – Que ano que foi isso, que o senhor começou a fazer isso?
R – Bom, agora...
P/1 – Ou década; aí já era anos 60?
R – Por aí. (pausa) Não, não...
P/1 – E era o começo...
R – Que 60, muito antes.
P/1 – Cinquenta.
R – Antes.
P/1 – Quarenta e cincou acabou a guerra...
R – Por aí, mais ou menos. É, até 70 eu trabalhei nisto, até 70 e pouco.
P/1 – Então o senhor também pega o início do supermercado aqui no Brasil, né, isso deve ter ajudado...
R – É, é,bem lembrado. Eu era praticamente o iniciador dos sacos de plástico no supermercado, principalmente Pão de Açúcar, era o meu grande (produto?).
P/1 – Chamava-se Sirva-se, né? Antes...
R – Não...tinha Sirva-se, tinha, mas o Pão deAçucar que eu me lembro, na Av. Santo Amaro, que era lá o centro das compras de saco de plástico.
P/1 – O senhor foi um dos, o senhor foi pioneiro nisso?
R – Como é?
P/1 – O senhor foi pioneiro na venda de saco plástico?
R – Eu?
P/1 – Foi um dos primeiros a fazer isso?
R – Não, mas para, digamos, para o supermercado, mais ou menos no início, que eles usavam muito papel.
P/1 – Era saco de papelão, né?
R – Papel, menores, tamanhos menores na época. É, para um, dois, três quilos de mercadoria. Mas isso depois ficou muito caro, e o plástico era tremendamente mais barato, muito mais barato. E assim foi indo, é, entrementes, fora criaram-se meus dois meninos.
P/1 – Aí o senhor casou.
R – Não, não. É, primeiro.
P/1 – O senhor conheceu sua esposa, vocês casaram, foram morar aonde?
R – É, onde que nós fomos morar? É uma boa pergunta: onde que nós fomos morar? Tem tanta coisa na cabeça aqui que é difícil.
P/1 – Tudo bem, não faz mal. Não tem importância se não lembrar.
R – Espera aí... Agora isso é, eles vão poder responder: onde eu, onde que nós fomos morar? Eu...
P/1 – Enfim, não tem importância. Não tem problema. Aí vocês, logo que vocês casaram, logo nasceu os filhos ou esperou um pouco?
R – Esperamos um pouco.
P/1 – E a sua mãe?
R – A minha mãe faleceu em São Paulo, aos 80 e mais anos, ela morava, não morava comigo, ela morava numa, era sublocadora de uma casa, gente muito boa, tudo, ela faleceu com 82, 83...
P/1 – Mas então ela chegou a ver seu casamento?
R – Como?
P/1 – Ela viu seu casamento.
R – Sim.
P/1 – E aí seu pai, que você disse que depois vocês acabaram tendo contato por carta, quando foi?
R – Bom, o meu pai é, então agora, novamente através da Cruz Vermelhas nós conseguimos, no fim de vários trâmites, conseguimos localizar o meu pai. Não fisicamente, por correspondência, tentamos várias através de várias pessoas, tirar ele do campo, lá da, onde ele estava, mas não funcionava. Ele estava, uma pessoa, vamos dizer, de um espírito bastante pessimista, e não teve a energia de, de, de se mandar, vai. Então, nós, através da correspondência, soubemos que tava num campo de... é, na, na Pireneias Orientais, na França. E lá justamente onde tentamos tirar ele, era um campo de refugiados, e de prisioneiros, melhor dizendo, aí vieram as cartas e a gente entrou em contato com ele. Vieram umas cartas, terríveis as cartas.
P/1 – Ele mandando pra vocês?
R – Ele, e nós também respondemos.
P/1 – Aqui do Brasil já pra lá.
R – Exato.
P/1 – Que que vinha escrito nas cartas?
R – Como é?
P/1 – Qual o conteúdo das cartas?
R – Bom, é, principalmente, de grande saudade. Elas não eram cartas, eram mais cartões, porque ele tinha que tomar cuidado, tinha a censura, no, na época, a censura dos alemães. Ele foi para um campo que foi, já na França ocupada, non, uma parte da França foi ocupada pelos alemães, e lá que eles estiveram, non. E depois foram cartas, foi muito dramático, eu até fiz a tradução coma Evan, com a Dagma, minha esposa, que tá aqui, e a gente, cada vez que traduzia uma dessas cartas começou a chorar. Era muito dramático, principalmente, ele escreveu uma carta para meu aniversário, foi, foi tremendo, não, mas no fim, uma carta, a última, onde ele diz que ele foi, é... ele foi colocado num transporte para umm destino que ele não conhecido – desconhecido. Esse destino era o campo de concentração, na Alemanha, na câmara de gás. Onde ele foi morto.
Bom, voltando então a casa, é... os meninos foram crescendo, meninos saudáveis, graças a Deus, que nós, a minha ex-esposa, me deu muito pouco trabalho, eu não, não falo isso porque ele tá aqui ao lado, eu falo isso porque é na realidade. O Tomaz era o menino mais estudioso. O Michel...
P/1 – Vocês tiveram dois filhos?
R – Como?
P/1 – Vocês tiveram dois filhos.
R – Dois filhos. Tem o Michel, e tem o Tomaz.
P/1 – O Michel é o mais velho?
R – Não, o Tomaz é o mais velhos.
P/1 – O Tomaz é o mais velho.
R – É, é.
P/1 – Como é o nome dele inteiro?
R – Como é?
P/1 – Tomaz... Como é o nome dele?
R – Tomaz Daniel.
P/1 – Ele nasceu em que ano?
R – Como?
P/1 – Que ano que ele nasceu?
R – Ele tem exatamente, eu vou dizer, 1954, ele tem 30 anos menos que eu. E agora não me peça a data dele, ele vai ficar bravo, que eu não vou lembrar, mas ele deve ter, espera aí Michel, deve ter uns três anos menos que o Tomaz.
P/1 – Então ele é de 56, mais ou menos?
R – Por aí, é, é.
P/1 – E que que mudou na sua vida depois que os filhos nasceram?
R – Bom, nós, inclusive moramos, bom, estávamos morando em, num apartamento bom, em Pinheiros, no Paraíso, onde nasceram os dois, o Tomaz primeiro, e claro, depois o Michel. É, o que mudou, que a gente não tinha experiência de ter filhos, quer dizer então, uma preocupação tremenda, não, tudo gira em redor do primeiro filho, principalmente, e vamos falar baixo porque senão ele vai ficar bravo. É, principalmente, tudo era novo, não. Mas ele era um filho maravilhoso como é esse Michel, também. Filhos fantásticos, o Tomaz era, digamos, talvez mais estudioso que o Michel, mas os dois nunca repetiram anos, e tudo, sempre foram brilhantemente atravessando os vários, as várias escolas.
P/1 – E vocês deram uma educação seguindo os costumes da cultura judaica?
R – Agora sim, agora sim.
P/1 – Em que momento que, o senhor disse que depois que vocês se voltaram...
R – É, que os dois começaram a frequentar grupos judaicos.
P/1 – Porque sua esposa tinha esse componente de ser mais...
R – Como?
P/1 – A sua esposa era mais religiosa que o senhor?
R – Não... Não diria, mas nós começamos evidentemente a, principalmente depois da BarMitzvah do primeiro, começamos a entrar, tem aqui o, como chama Congregação Israelita Paulista, CIP. E é, lá os meninos começaram a frequentar grupos, conheceram os rabinos e tudo mais, um dos rabinos foi, inclusive, fez o casamento do mais velho. Enfim, ficaram bastante entrosados em grupos judaicos e nós acompanhamos, vamos dizer, entendíamos muito menos do que eles da parte judaica, non. E eles, hoje, eles tão festejando as datas importantes da religião e sempre com a nossa presença, não o conhecimento que eles tem, claro. Mas o que ainda falta para te falar, é a minha, então, a minha ex-esposa, faleceu, eu não posso dizer, exatamente, contar, eu sou muito fraco em números, datas. E então depois de algum tempo, conheci aDagma...
P/1 – Mas os meninos já eram grandes?
R – Já eram grandes, já eram grandes. Os meninos eram grandes. E ela se introduziu, como se diz, ela se deu muito bem com a minha família, com, principalmente com os meninos, e depois com, subsequentemente, com os filhos deles. É maravilhosa, hoje ela faz parte integral da família, ela é muito bem quista com todo mundo, tanto na parte do Tomaz, do meu filho mais velho.
P/1 – A sua esposa, ela tinha alguma profissão?
R – A minha esposa sim, trabalhou várias vezes, era secretária executiva, trabalho em diversar firmas aqui em São Paulo, com muito sucesso e tudo, foi muito procurado, pessoal gostou muito dela.
P/1 – E do que que ela faleceu?
R – Não, não, estou agora falando da atual.
P/1 – Ah, não, eu tava falando da sua ex.
R – A outra tinha, eu não sei exatamente, um problema de pulmão. Foi uma mulher muito dedicada aos filhos, também uma secretária, estudou na escola, na Universidade de Edinburgh, na Escócia, a primeira mulher. Foi uma mulher maravilhosa, educou os filhos maravilhosamente bem, o exemplo é um deles que está aqui. E, enfim, eu, hoje estamos aqui, eu já com uma idade um pouco, ela tem... É bem mais jovem que eu, o velho sou eu. É, nós estamos sócios do Clube Paulistano e nós frequentamos o muito o clube, temos também amigos lá, a Dagma tá organizando uma vez por mês, uma reunião de esposas, para um almoço, que tem muito sucesso, e hoje gostamos muito de teatro, de cinema, também de música, quer dizer, a gente frequenta bastante esses ambientes, e temos justamente os amigos, e temos os filhos.
P/1 – E netos?
R – Os filhos e os netos, no, então, temos muito contato com todos. Ainda uns poucos dias atrás, dois netos vieram por exemplo na casa nossa e jantaram lá conosco – temos um relacionamento excelente com eles e nem se fala dos filhos, então é maravilhoso.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho atrás, até que ano o senhor trabalhou como representante?
R – Eu acredito, 70, 70 e mais uns anos.
P/1 – Mas aí o senhor continuava com essa empresa de representação?
R – Sempre. Com a minha empresa.
P/1 – Com a sua própria empresa. E ela continua, existe hoje? Essa empresa?
R – Não, essa empresa, como foi meu nome, foi extinta depois. Mas trabalhei, eu acho que mais até 70, 70 e mais anos.
P/1 – E o senhor conseguiu juntar dinheiro com essa empresa, foi um bom negócio?
R – Foi. Foi. Tanto é que hoje nós vivemos num apartamento maravilhoso, quer dizer, claro, ela é do dinheiro de nós dois, mas temos um apartamento maravilhoso; viajamos, estivemos agora, durante 30 dias, viajamos pela Croácia, agora, faz pouco. E estamos muito bem, quer dizer, aparentemente, se Deus o quiser, não vamos ter problema para o futuro. E assim, mais ou menos assim, em algumas palavras, espero que você mais ou menos tenha uma ideia de quem está na sua frente, não, mais ou menos.
P/1 – Quando é nasceu a ideia de fazer esse livro “De bem com a vida”?
R – Quando?
P/1 – Como que foi a ideia desse livro?
R – Ah tá, sim. Isto foi interessante, nós viajamos várias vezes no decorrer dos anos, para um lugar que se chama Cunha, conhece? É muito bonito. E lá tem um Shambala, uma pousada, digamos assim, num lugar privilegiado, onde nós sempre nos hospedamos. E foi nos meus 85 anos, quando os filhos e os respectivos familiares foram juntos para Cunha, para festejar os meus 85 anos, e lá me foi oferecido um diário, para eu quiser, foi sugerido e oferecido ao mesmo tempo para que se faça um diário, que já foi, que depois a autora deste livro foi depois pago, tudo pelos meninos. Foi uma festa muito bonita, com algum discurso dos meninos, e onde foi, então, foi oferecido, digamos, como presente de aniversário, este diário. Uma sugestão deles e, evidentemente, tinha todas as despesas: primeiro uma pessoa para me entrevistar, me entrevistaram várias vezes, e depois, claro, os custos do livro da encadernação e tudo isso, tudo eles me ofereceram, foi um presente maravilhoso. O livro já é, tem, modéstia a parte, bastante sucesso, tem amigos, gente do clube, todo mundo pediu, e é, o jeito, todo mundo, digamos, me conhece até os 86 anos.
P/1 – Muito bom. É, senhor Félix...
R – Tem mais uma?
P/1 – Pode falar, desculpa.
R – Não, fala você, eu pergunto se tem, você tem algumas coisas pra me perguntar.
P/1 – Eu tenho. Quer tomar um golinho d’água?
R – Como?
P/1 – Quer tomar um pouquinho d’água?
R – Agora vou.
P/1 – Quer parar um pouquinho?
R – Não, não, não... Imagina, eu tenho que falar como representante dos meus fregueses, falava horas.
P/1 – Que ótimo, tô impressionada.
R – Tinha que convencê-los [P/1 – Muito bom.] para comprar de mim, não? Falava, falávamos durante horas, bom, eu tinha muito bom relacionamento com o pessoal, muito bom relacionamento.
P/1 – Imagino... Senhor Félix, olhando assim a sua trajetória, das memórias da guerra, desse período que o senhor passou, qual foi a cena ou fato que mais te marcou?
R – Durante quando você quer falar, em que época?
P/1 – Do período da guerra.
R – Bom, que mais realmente me marcou, foi quando o meu pai foi tirado do automóvel. É, e a sequência, non, esta, viajamos depois perdidos, que faltava o elo principal, isso foi muito marcante, durante a guerra, sem dúvida nenhuma. Isto deixou, principalmente a minha mãe, desesperadíssima, e foi muito triste, ela pôs a mão na massa, foi comigo no carro, empurrou, mas ela tava, quase que não sabendo o que fazia. Foi traumático. Agora, para mim nem tanto, talvez, devido à idade, à diferença de idade. Mas foi terrível.
P/1 – Senhor Félix, olhando assim a sua vida inteira, tudo que aconteceu pra trás, se o senhor tivesse que mudar alguma coisa que o senhor fez, o senhor mudaria alguma coisa? Faria diferente alguma coisa?
R – É, eu não ficaria tanto tempo lá na Alemanha, e me mudaria para o Brasil bem antes. Eu, quantos anos eu tenho de Brasil, uns 50 anos, acho que por aí, eu sou mais brasileiro que vocês, mas eu, talvez, ficando um pouco mais no Brasil, sei eu, meramente uma questão agora, uma pergunta que surgiu, talvez teria tido uma vida diferente, e, principalmente, em matéria de negócios, teria talvez aberto uma empresa grande ou coisa assim. Mas foi tudo ótimo, quer dizer, esta parte financeira nunca tive problemas aqui no Brasil – foi muito gratificante. Foi muito gratificante. Eu sou um grande admirador do Brasil, apesar dos pesares. Adoro o Brasil, de coração, mesmo, sem dúvida nenhuma.
P/1 – O senhor tem um sonho, alguns sonhos?
R – Alguns sonhos? (risos) Para viver o mais tempo possível, mas sem ficar gaga (risos). Eu, nós temos casos muito tristes, este, um dos amigos muito queridos faleceu, faz pouco tempo, e outros também, cada um tem os seus problemas, mas o bom Deus me deu uma saúde muito boa, e espero conservá-la o mais tempo possível, mas não quero viver quando a cabeça não acompanhar mais – aí eu prefiro lá embaixo, mas como não mando nada, só Deus sabe.
P/1 – Senhor Félix, deve ter muita coisa que a gente não falou, porque o senhor tem uma vida riquíssima; tem alguma coisa que o senhor gostaria de deixar registrado aqui, que a gente não tenha falado?
R – Bom, as perguntas foram tão bem feitas que eu acho, dificilmente... O que que eu poderia dizer? Bom, a grande, a grande felicidade da minha vida, o nascimento dos dois meninos, e o meu casamento com a atual, com a Dagma. É, nós viajamos agora, como eu lhe disse, estivemos na Croácia, a Dagma, realmente, que é bem mais jovem do que eu, me veio lá do céu, isso, eu posso dizer, cuida de mim, na viagem, se, me agarrou, mas não me deixou andar um passo na frente sem o seu braço, e, realmente, isto é a minha grande alegria, quer dizer, uma esposa realmente como eu desejo para muita gente, e uma família maravilhosa, filhos fantásticos, netos fantásticos, uma esposa fantástica, realmente, não porque ela tá aqui, não, não, não falo, eu sou muito franco. É mesmo uma vida que, eu não lhe falei, talvez isto interessa, eu fazia parte, durante três anos, da maçonaria.
P/1 – Como foi isso?
R – Eu vou lhe dizer... É maçonaria de língua alemã, é, como que chamava ela? Bom, pouco importa, e foi muito interessante, aprendi muito lá, e é admirável a ideia de todo isso, né. Só que eu, depois de três anos, eu consegui o posto mais elevado, na maçonaria, eu soube de elementos, como, em alemão, a maçonaria é alemã, soube de alguns dois elementos, principalmente, na nossa loja, como chama os grupos, os agrupamentos de maçom. Voltando, a loja alemã chamava-se Humanitas.
P/1 – Humanitas?
R – É.
P/1 – Quem convidou o senhor, como que o senhor entrou?
R – Por através de um amigo.
P/1 – Quando que foi isso? Logo que o senhor chegou aqui no Brasil, não, foi depois?
R – Não... Mais ou menos, eu tinha, quanto, mais ou menos uns 40, 45 anos.
P/1 – Então faz muitos anos já.
R – Faz, faz... E justamente terminando, eu soube que dois elementos do nosso grupo eram fugitivos da Alemanha, porque tinham cometido coisas que a maçonaria, certamente, nunca permitiria não. Então eu pedi meu, como eles chamam na língua...eu tinha que fazer uma justificativa, perante a loja toda, uma justificativa do porquê da minha saída. Porque é um grupo meu, é secreto, não um segredo, é uma coisa muito fechada, a maçonaria, e...
P/1 – E tinha encontros, o senhor ia em encontros, semanais, assim, como é que era?
R – É, encontros semanais. E então eu não admitia isso, e fiz então a minha despedida, na frente da loja, frente à loja, e recebi a minha demissão, e eles me concordaram com isso. Isso foi a parte maçônica, foi muito bonito, uma época interessante. Do contrário, hoje o clube que preenche uma grande parte do meu dia, eu saio cedo de manhã, na hora do almoço a Dagma vem me buscar, a Dagma também faz musculação, mais outros exercícios.
P/1 – E o senhor faz o que no clube?
R – Eu comecei a jogar tênis, claro, com a minha idade a coisa não é mais, eu estou cada vez mais longe de ser campeão, mas eu jogo e faço um pouco de ginástica, musculação, e papo. Papo bastante para, preencho algumas horinhas com isso, temos uma mesa lá com amigos, e a gente se diverte, fala, fala coisas, fala bobagens, mas fala coisas sérias também. E assim, então, uma vida, eu leio em casa, tô lendo, por exemplo, agora, o livro, aquele “Inferno” – já ouviu falar? Tremendo, terrível, não convém ler a noite depois das oito horas, não convém ler este livro. E enfim, temos os nossos afazeres, temos, a gente se vê muito com a família, graças a Deus, e assim o tempo passa rápido demais para o meu gosto.
P/1 – Senhor Félix, que que o senhor achou de contar o seu depoimento aqui no Museu da Pessoa?
R – Eu acho que uma iniciativa muito interessante. Eu não sei quem se interessaria por um depoimento como este que nós estamos fazendo, por exemplo. Quem se interessaria? Vai ter, alguém vai dizer, eu quero o depoimento do senhor Félix Bruhl, não. Como que?
P/1 – Eu acho que vai, assim, conhecidos do senhor, possivelmente vão procurar pelo nome do senhor, familiares e conhecidos, mas muita gente que quiser saber sobre nazismo, Segunda Guerra Mundial, empreendedorismo, embalagem, cidade de São Paulo, vários temas que o senhor conta na sua história, e a pessoa vai chegar pelo senhor, pelo conteúdo do que o senhor fala. Que a gente acredita que quando uma pessoa entra em contato com a história do outro, ela muda o seu jeito de ver o mundo, ela aprende, então possivelmente, a gente tem cerca de 50 a 60 mil acessos por mês no nosso portal, então alguém que for pesquisar algum desses temas, certamente vai cair no depoimento do senhor.
R – Mas eles vêm aqui já sabendo quem eles vão encontrar?
P/1 – Os temas, sim. O que ele quer pesquisar.
R – Não, mas a pessoa, não é pela pessoa?
P/1 – Pode ser pela pessoa, se eu colocar seu nome no Museu da Pessoa daqui uns vinte dias, vai aparecer o seu depoimento.
R – Você tem o negócio, não negócio...
P/1 – Na internet.
R – Na internet?
P/1 – É. Vou deixar o endereço. Eu vou dar pro senhor, quando o senhor sair daqui, um folder com endereço, pro senhor entrar direitinho.
R – Ah, seria interessante, eu vou sugerir também para amigos.
P/1 – Outras pessoas...
R – Porque eu tenho certeza que... Eu tenho certeza que, eu digo, quase ninguém conhece isto. É uma iniciativa maravilhosa, é muito interessante, e eu certamente vou recorrer, no decorrer do tempo, a vocês, aqui para saber mais algumas coisas.
P/1 – Senhor Félix, queria agradecer em nome do Museu, e dizer que eu tô emocionada com a sua entrevista, pra mim foi um privilégio poder entrevistá-lo.
R – Ah, muito obrigado, eu fico muito grato. Fico grato porque consegui, vamos dizer, transmitir parte do meu pensamento íntimo, vocês certamente, uma pessoa de cultura, uma pessoa de pensamentos mais elevados, eu fico extremamente satisfeito com esta, com esta entrevista e quem sabe nós temos mais coisas depois, para nos contar. Eu talvez...
P/1 – E fica aberto aqui pro senhor, quando o senhor quiser voltar, ou lembrou de alguma coisa que o senhor gostaria de deixar registrado, fica aberto pro senhor voltar, essa possibilidade.
R – Muito obrigado, eu fico muito grato pelo convite, e quem sabe não mereça mais tantos anos, mas quem sabe alguma coisa interessante ainda vai me acontecer, pelo futuro, aí eu recorro a vocês.
P/1 – Claro. Com certeza. Com o maior prazer.
R – Muito prazer.
P/1 – Muito obrigada.
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