P/1 – Seu Tarcísio, primeiro, eu gostaria de agradecer você ter aceitado o convite pra essa entrevista. E pra gente começar eu queria que você falasse pra gente o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Primeiramente eu também quero agradecer o gentil convite, estou muito feliz por esta oportunidade desse registro. Eu me chamo Tarcísio Gurgel de Sousa, sou de Natal, Rio Grande do Norte, e um dos primeiros intercambistas do meu estado. Nasci em 10 de julho de 1947. Atualmente tenho 68 anos e sou o coroa do AFS do RN.
P/1 – E fala pra gente o nome dos seus pais.
R – Meu pai, Vicente de Sousa, minha mãe, Amália Gurgel de Sousa. Meu pai, ao ficar viúvo, casou com a minha mãe e ele trouxe para esse convívio sete filhos, então eu venho de uma família grande. Talvez houve também influência para a própria seleção no programa do intercâmbio, família grande. Eu sou o primeiro da segunda turma e tenho mais dois irmãos, Jorge e Elisabete.
P/1 – E fala pra gente um pouco da origem da sua família, dos seus avós.
R – Eu venho da família Gurgel, uma família que teve início no Rio de Janeiro, o primeiro migrante veio pra cá, foi preso porque veio pra combater os portugueses. Nesse presídio, ele começou a namorar a filha do indivíduo que o prendeu. Foi em Cabo Frio. De lá pra cá, a família se desenvolveu, cresceu muito no Estado do Ceará, em Aracati, e no meu Estado. O meu Gurgel vem da família da minha mãe e o Sousa vem da família do meu pai. Só que no meu Estado eu sou conhecido mais pelo Gurgel do que pelo Sousa. No programa de intercâmbio, eles tinham muita dificuldade de pronunciar o meu Gurgel como nome e como Sousa que saía “Susa”, e aproveitaram e deram o nome de “Tarsi”, é o nickname que eu sou conhecido lá no programa de intercâmbio.
P/1 – Conta pra gente um pouco dessa família cheia de irmãos: como era o convívio com os irmãos do pai?
R – Como uma família muito humilde – nós viemos de família humilde –, a minha mãe foi uma grande raladora, ralou muito, porque ela tinha que cuidar bem dos sete filhos. Eu até dizia pra ela que quando ela casou ela estava meio desesperada, mas ela disse que não, que era muito amor. Nós éramos religiosos, éramos católicos, somos ainda, e frequentávamos a igreja, eu fui coroinha no Colégio da Conceição, Rio Grande do Norte. Nossa formação foi isso, estudamos em colégios públicos, quando o Ministério da Educação criou bolsa de estudo, eu me candidatei, passei e comecei a estudar em colégios privados. Na época, o público que eu estudei era de uma excelente qualidade, como também os meus irmãos. Todos nós crescemos dentro dessa luta pelo trabalho, pela sobrevivência, mas o que mais os nossos pais investiram foi na Educação. Com todas as dificuldades, eu como um garoto de 13, 14 anos, na época eu já queria estudar inglês. Meu pai fez um sacrifício enorme pra pagar aula de inglês que era particular, só tinha uma escola de inglês em Natal, que era a Skibel, tem livros escritos sobre isso. Ainda como resíduo da Segunda Guerra foi criado lá pra ensinar inglês. Eu comecei a estudar inglês também por essa missão de conhecer o mundo com 13, 14 anos e nunca mais parei porque abriu-me a porta do mundo todo o idioma inglês. Depois, fiz faculdade de Medicina, tive muita sorte, passei na primeira vez e partir daí eu sempre tinha o inglês como uma coisa que me promovia pessoal e profissionalmente. Eu era professor de inglês na época e a partir daí eu tinha muito pouco tempo do próprio estudo, só vinha a estudar depois das dez horas da noite. Mas nos trabalhos de equipe eu sempre tinha uma vantagem, eu colocava os trabalhos de equipe da nossa turma em inglês, isso dava um plus. Cresci dentro do estudo, da humildade, da responsabilidade, tanto eu como meus irmãos. Meu irmão depois evoluiu, ele servia cafezinho em banco do Bradesco, o Jorge, fez concurso pra três instituições, Polícia Federal, Banespa [Banco do Estado de São Paulo] e Caixa [Econômica] Federal e foi aprovado pra Caixa e foi trabalhar em Belém. Ele hoje é aposentado como superintendente, quer dizer, a autoridade máxima da Caixa pelos Estados do Rio Grande do Norte, onde ele foi superintendente, e pelo Estado da Paraíba. Minha irmã Elisabete é uma das coordenadoras do processo de Educação Infantil no Estado do Rio Grande do Norte, ainda gosta de trabalhar e, como eu, apesar de nós estarmos praticamente aposentados, eu não deixei de trabalhar. Sou pediatra por formação, especialista em Pediatria, e, como profissional, exerci a profissão de perito da Previdência [Social], foram duas atividades que muito me honraram e eu trabalhei com muito gosto pelo que faço. Ao me aposentar, como eu sou taquipsíquico, eu não sei ficar parado, procurei trabalhar, então só duas vezes na semana, trabalho na terça e quarta e o que eu recebo como complemento desse trabalho. É uma satisfação trabalhar, eu procuro viajar pelo mundo e aproveitar minhas oportunidades, eventos, tenho uma vida social muito intensa. Casei, tenho dois filhos, que graças a Deus estão encaminhados na vida. Um é o Igor, ele é paranaense com muito carinho, foi cuidado, é uma criança que foi adotada recém-nascida em Curitiba e hoje me dá a honra de ser funcionário da Caixa Econômica Federal, tem sua autonomia, namora, tem uma namorada do Rio Grande do Sul. E a Jéssica, que veio em seguida, também adotada, é funcionária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, trabalha no setor administrativo, formada em Jornalismo. Nós temos harmonia, eu sou hoje separado, mas temos harmonia muito grande com a ex-esposa e com os filhos e graças a Deus isso me dá uma tranquilidade muito boa pra fazer o que eu gosto na vida, viajar, escrever e socialmente participar da vida e voluntariado em todos os aspectos eu também participei.
P/1 – Eu queria voltar um pouquinho, queria que você falasse um pouco de seus pais. O que eles faziam?
R – Meu pai se formou com 50 anos com muita dificuldade, ele era funcionário do Departamento de Portos e Canais Federal e minha mãe era do lar, tinha só o curso primário, mas tinha uma habilidade de escrever, fazia minhas cartinhas quando eu estava no programa de intercâmbio, as cartas eram numeradas com muito carinho e vice-versa. E minha mãe sempre foi dedicada ao ler e à educação dos filhos, ao cuidar dos filhos. Faleceu aos 90 anos, mas teve todo o apoio e carinho. Meu pai na Advocacia, ele se formou com 50 anos, quer dizer, foi uma vida muito difícil. E ele era o chamado “advogado da pobreza”, trabalhava com gente pobre e os vencimentos vinham mais como funcionário federal do porto, mas como advogado sempre bem-sucedido, trabalhava com pessoas pobres e que não tinham condições de pagar. Nós morávamos em casa alugada e tudo foi muito difícil, mas com a consciência de que nós recebemos dele a honestidade, trabalho, a dedicação ao trabalho e incentivo ao estudo, isso aí não tinha limite pra trabalhar, pra estudar, no caso, o incentivo dos pais era muito grande.
P/1 – E conta pra gente um pouco da sua infância: o que você se lembra da sua casa, de quando era pequeno, como era a movimentação com os irmãos mais velhos?
R – Nós tivemos uma infância muito feliz, uma infância simples. Nos períodos das nossas férias nós tínhamos uma tia que tinha uma casa de praia num lugar lindo que é a Praia de Pirangi (RN), éramos os primeiros a frequentar essa praia como veranistas. Hoje, é uma área que não tem mais onde construir. Não tinha energia elétrica, usava-se a lâmpada Aladin, como chamavam, e nós fazíamos piqueniques. Era uma vida muito simples. Não existia bebidas, problema de drogas nem pensar. Eu gostava de tocar violão sempre, nesses veraneiros tocava violão, fazia festinha de violão. Também, às vezes, tinha festa no interior e nós tínhamos familiares que tinham casa no interior e moravam lá. Eu tinha uma prima que era casada com o prefeito de uma cidade do interior e a gente ia pras festas de São João, Santo Antônio. Eu sempre fui muito festivo, sempre participei muito. Meus irmãos menos, mas eu sempre estava na linha de frente para eventos sociais, festas e até mesmo promover eventos eu gostava muito. Piquenique de turma de colégio e faculdade, eu sempre organizava e tal, sempre fiz esse tipo de atividade. Ainda hoje a mesma coisa.
P/1 – Fala pra gente das suas primeiras lembranças da escola, de começar a estudar.
R – A escola, eu estudei em escola pública, chamava-se Escola de Aplicação, surpreendentemente naquele período, vamos falar na geração 60, tinha na escola, de nível primário – chamava curso primário – grêmio, eu fui presidente de grêmio, me lembro bastante. Recentemente, descobri que uma secretária que era da diretoria se transformou em médica, colega minha, só que eu não sabia, recentemente ela descobriu, foi secretária da nossa gestão de criança, e tinha leitura silenciosa, a gente ia pra biblioteca da escola, tinha leitura silenciosa. Foi uma coisa muito rica. Depois, eu tinha vontade de fazer um exame que chamava Admissão pra estudar num colégio particular, que era o meu sonho. Quando houve bolsa de estudos, eu me habilitei e fui estudar no Colégio Marista. A minha geração foi praticamente o curso secundário no Colégio Marista, onde tive grandes amigos. Pra destacar, eu posso até citar da minha turma, a gente estudava junto e ele estudava lá em casa, o Garibaldi Alves, que foi governador, foi senador, é senador, foi Ministro da Previdência nos governos passados. A gente sempre estudava junto, além de estudar na minha casa. Outros também, o pai da Virna, jogadora de vôlei, foi meu colega. E tivemos delegados de polícia, secretários de Estado. E o Marista me deu uma formação muito grande. Quando eu optei em fazer o programa de intercâmbio e fiquei numa dúvida grande porque ia coincidir a perda de um ano escolar porque eu sairia em agosto pra voltar em julho, quer dizer, eu iria perder um ano, o que pra mim era muito angustiante porque os meus colegas iam fazer vestibular, estávamos preparados pra fazer vestibular, eu queria Medicina, mas era muito complicado eu pensar que eu iria perder um ano. Quando eu fui, eu achava que iria ter uma perda, mas, no fundo, conclusivamente falando e positivamente pro programa de intercâmbio, foi o melhor ano da minha vida, foi o melhor investimento da minha vida e hoje eu usufruo, inclusive eu estou aqui por conta dessa decisão, que foi o programa do American Field Service.
P/1 – E conta: como é que veio essa notícia do AFS, ficou sabendo que existia um programa?
R – Muita história, muita história. Eu estava fazendo inglês nessa escola, que era a única que existia, que chamava-se Skibel. Era de um americano, ele contratou pessoas para serem professores, eu era o mais jovem da turma. Existia um personagem que a ela dou muita atenção e sempre lembro, dona Maria Alice Fernandes. Ela era uma parteira, estudiosa, professora de inglês e tinha muito prestígio com os americanos, eu acho que nessa época da guerra ela era uma tradutora, articuladora. Ela fazia parte de uma instituição internacional chamava Fulbright, fazia palestras e viajava pelos Estados Unidos a convite dessa instituição. Quando voltava, eu sempre ia assistir às palestras dela. Ela apreciava essa minha conduta porque era tudo coroa lá e eu era um boyzinho interessado em ver os slides que ela trouxe, na época, eram slides do Alasca. Um dos dias, ela chegou pra mim: “Olha, eu vou trazer aqui pro Rio Grande do Norte”, inclusive eu quero destacar o nome, Maria Alice Fernandes, “um programa de intercâmbio para vocês jovens”. Eu perguntei: “O que é intercâmbio?” “Intercâmbio é você morar um ano com uma família americana”. Na mesma hora eu disse: “Eu não tenho condição. Minha família não tem condição de me manter lá um ano”. Ela disse: “Não, é tudo de graça, você não vai gastar. As despesas são mínimas, outras coisas, apenas roupas e tudo o que você vai ter que levar, mas a passagem, está tudo incluído”. Eu praticamente enlouqueci quando soube dessa história que ela iria trazer, não tinha trazido. Eu devia estar no terceiro ano de inglês, me sentindo já um pouco seguro pra comunicar. Quando trouxe, eu me habilitei na segunda turma e fui aprovado sem que meus pais soubessem desses meus passos. Tem uma entrevista em casa, foi quando a minha mãe soube, ficou extremamente preocupada, não queria que eu fosse porque nessa época estava no boom da liberação sexual, do Woodstock, dos Beatles, dos Rolling Stones, foi muito interessante esse período e foi muito conflitante pra minha mãe. Mas o meu pai convenceu-a que era meu sonho, o que eu queria e que ela tinha que ser muito receptiva às pessoas que iriam ne entrevistar na minha residência. E daí a família era grande, mas eles já tinham casado, estavam morando, meu irmão e minha irmã só, os outros todos tinham se inserido na vida, estavam morando fora. Mas isso aí deu um background pro formulário no application dar esse detalhe, que eu vinha de uma família grande. E aí evoluiu porque a minha família americana, dentro desse princípio, era uma família que era católica, como a minha, e era uma família grande de sete filhos. E nos Estados Unidos você não encontra família com sete filhos. E aí eu fui, foi a experiência mais rica da minha vida.
P/1 – Conta um pouquinho mais desse processo de ser da segunda turma de Natal. Que informações que você tinha, como é que foi ir fazer a prova escondido, depois a entrevista na sua casa com a sua mãe?
R – A partir daí, eu comecei a me articular com as pessoas que tinham ido que eu conhecia, mas não tinha aproximação. Fui na casa de Margarida Araújo, a mãe de uma das que tinha ido, Lúcia. Peguei o endereço dela e comecei a me comunicar. E com Herta, também uma outra que tinha ido, eram três: Herta Queiroz, Lúcia Araújo e Anibal Rabelo. A partir daí, eu comecei a me comunicar e receber as informações. Eu ficava fascinado quando eu recebia carta dela. Só que a Lúcia começou a mandar a irmã se comunicar comigo, então eu achei um penpal, um correspondente, da irmã de uma amiga que estava nos Estados Unidos pouco conhecida pra mim. E daí eu tive muitas informações do programa de intercâmbio através das duas. Tanto é que quando eu estava nos Estados Unidos eu tive a oportunidade de visitar a família da Lúcia que era em Wiscosin, vizinho ao meu Estado Illinois. Foi um processo que eu comecei a descobrir, eu tinha que me preparar melhor, tinha que falar bem o inglês, tinha que levar algum material sobre o Brasil. Na época não tinha digital, não tinha internet, era muito complicado, tudo eu fazia em transparência. E lá começou a aparecer o slide. As minhas palestras, eu fazia em slides. Às vezes, tinham duas, três numa semana que eu era muito convidado e o meu irmão americano sempre dizia: “Tarci, eu já sei sua palestra toda, se você quiser, quando você tiver duas no mesmo dia, eu vou fazer porque eu sei tudo o que vai ser” (risos). Aí foi através desses contatos que eu procurei ir. Viajei no dia 13 agosto, era uma sexta-feira 13, do Galeão, do velho Galeão, pela primeira vez, a minha viagem internacional, foi num Boeing 707 da Varig [Viação Aérea Rio Grandense], que era um luxo, era uma coisa fantástica. E viajando com 154 brasileiros, eu tenho o nome de todos que viajaram comigo pra Nova York, onde lá nós passamos três dias recebendo informações sobre os costumes americanos, informação pessoal sobre a família, os hábitos da família, então foi uma coisa muito rica. Nós, deslumbrados: Nova York simplesmente deslumbra qualquer mortal, mesmo indo várias vezes a Nova York, toda vida é uma coisa surprising, é uma grande surpresa Nova York. E daí nós fomos de Greyhound, aqueles ônibus de primeiro andar, distribuídos por todos Estados Unidos para os seus destinos. Fomos a noite toda num ônibus desse, confortável, de primeiro andar que era o Greyhound. Chegando em Chicago, nós fomos recebidos na station, a base station de Chicago por todos os membros da família americana que lá estavam pra me receber. Foi um momento muito emocionante, o início de uma nova vida.
P/1 – Conta pra gente dessas primeiras impressões da família, como foi chegar lá, ver uma casa diferente que falava outra língua.
R – Tudo muito impactante, muito impactante. Pra mim, tudo era novidade. Primeiramente, passar a falar um novo idioma, a dificuldade de expressão fluente que a gente não tem quando a gente chega, vai adquirindo com o tempo. A preocupação dos meus pais de me verem falando inglês fluente. A preocupação dos meus pais de eu ter pontualidade, de eu ser responsável. Na primeira semana, tinha um jantar pra ir, eu entrei no banheiro às dez pras oito, quando o jantar era oito anos. E dad bateu à porta: “Da próxima vez, você entre no banheiro mais cedo porque nesse país nós temos uma coisa importante que é horário”. Nós chegamos atrasados, eles pediram desculpas, mas que a culpa tinha sido minha. Pra mim, foi a primeira grande lição da cultura americana, foi horário, pontualidade. Depois observar as normas da família, tinha tarefas que a mãe distribuía, mommy distribuía pra gente. Segunda-feira, faxina, então, cada um tinha que fazer faxina. Outro dia, tinha que engomar a roupa, tudo isso a gente fazia, era coletivo, mas tinha a distribuição das atividade na família. Quando nevou, foi logo em seguida, novembro, dezembro, os colegas da turma me ligarem, que para mim era um grande momento de expectativa pra ver a neve. Nós fomos para um tobogã que estava nevando, já estava liberando o tobogã. Eu falei pro meu irmão americano que não tinha daddy nem mommy que iria me fazer eu não chegar atrasado depois do curfew time. Curfew time é aquele horário que eles têm pra não deixar você chegar em casa tarde. O meu curfew time era 11 horas, na minha comunidade. Se nós dirigíssemos, no caso um irmão dirigia, eu não podia dirigir, qualquer coisa fora desse horário os pais seriam punidos, no caso o pai americano ia ser multado e chamado e era muita complicação. Quando nós chegamos de volta, já atrasados, pelo menos meia-noite, culpa minha, o nosso pai americano ficou muito irritado e disse que nós íamos passar duas semanas sem ir pra canto nenhum porque foi culpa minha mas quem veio dirigindo foi meu irmão, então, ele também foi cúmplice. Passamos duas semanas sem falar um com o outro. Então, outro ensinamento, a responsabilidade de cumprir as normas de não dirigir. Na época, nós não tínhamos bebidas, nossos eventos eram sempre com Coca-Cola, hambúrguer, potato chips, as nossas festinhas eram essas. Eu tinha o hábito também de tocar violão. Meu pai americano tocava também. Nós inventamos fazer a família tocando e sempre tinha eventos sociais. Minha mãe era muito festeira, gostava muito disso. E às vezes faziam reuniões, tinha a hora de terminar e hora de começar, isso também me estressava muito, porque aqui no Brasil, na nossa cultura, nós não temos isso, hora de começar, cada um chega a hora que quer e tem a tal da saideira, que é uma expressão brasileira, que isso aí também foi uma adaptação um pouco difícil, quando a gente estava gostando aí o velho chegava e dizia: “Foi muito bom”. Quando ele dizia “Foi muito bom” então tá na hora, já terminou a festa. Eu tenho esse hábito, quando eu faço uma recepção na minha casa com meus amigos, quando eu digo: “Foi muito bom”, o pessoal já sabe que o Tarcísio está mandando o pessoal embora, que terminou. Essas coisas fazem parte da cultura. Nós íamos de carro pra escola todo dia, meu irmão americano ia comigo, nós estudávamos juntos. Eu tinha atividades de estudo diferentes da dele, nós não estudávamos nas mesmas classes. Estudei, fiz parte do coral da escola, que me encantava a aula de coral, eu gostava. Quando tinha apresentações de coral, eu sempre cantava. O maestro, nosso professor do coral, nos dava um espaço pra falar sobre o Brasil, alguma coisa, sempre tinha alguma coisa. Eu cantava Garota de Ipanema e Corcovado. Essas coisas fazem parte da cultura, depois vieram os eventos Thanksgiving, Christmas Time, e ele muito participativo sempre me procurava pra fazer parte disso. Na época de Natal, eu armei uma árvore de natal brasileira, que eles queriam que eu fizesse alguma coisa do Brasil. Eu disse: “Olha, no Brasil na época é seco, verão, a gente faz a decoração com galhos de árvores secos. Nós pintamos com spray tinta de prata e colocamos algodão”. Aí o pai perguntava: “Mas o algodão pra dizer o quê?” “Pra dizer que é neve”. Tínhamos uma jornalista vizinha nossa que soube dessa história, que tinha uma árvore de natal. E ela pediu permissão à minha mãe, fez uma matéria e a família não teve paz, era uma romaria na casa da gente pra ver essa árvore de natal. Faz parte da cultura americana também. O carnaval brasileiro é a proporção do natal americano, eles investem muito no Natal e a alegria do brasileiro com carnaval também é mais ou menos culturalmente semelhante, assim julgo eu. Foram esses momentos muito agradáveis. Nós tínhamos aula de Catecismo também, às vezes eu não gostava porque todo domingo tinha que ter uma hora de catecismo. A gente tinha que ir muito bem vestido pra igreja, todo domingo nós íamos para a missa, onde estivéssemos, viajando por alguns lugares, ou na cidade, ou na comunidade, sempre tinha isso.
P/1 – Você contou como foi que eles receberam a cultura brasileira. Mas o que foi dessas trocas em relação à comida, de você perceber a comida deles e eles tentarem perceber a comida brasileira?
R – Eu realmente, eu tenho muita facilidade de adaptação. A única coisa que tinha é que eu não gostava de frango, galinha. O primeiro dia foi o que mommy ofereceu. Aquilo ali pra mim foi um transtorno porque era a primeira comida que eu ia ser contemplado e eu não podia dizer que eu não gostava. A partir daí, eu tive que me acostumar, porque o chicken faz parte da comida americana. Em um evento determinado por um pessoal que convidou a mim pra ir eu tinha que levar um prato brasileiro, eu me estressei muito porque não sabia como faria para levar um prato brasileiro. Minha mãe mandou uma receita de um vatapá. A dificuldade foi conseguir o azeite de dendê, que lá não tem. Mas eu levei um pseudo vatapá e foi o maior sucesso. A minha mãe americana preparou de acordo com a informação da minha mãe, pelas receitas. Isso tudo com muita dificuldade porque correspondência tinha que ser com muita antecedência. Às vezes, tinha viagem pra fazer com colegas, os pais convidavam, mas eu tinha que ter permissão do meu pai no Brasil, com tradução, tinha que ter o tradutor juramentado. Às vezes, a autorização chegava, tinha passado o evento e eu não ia porque não tinha chegado. Isso tudo foi muito estressante. Eu acho que eu não poderia deixar de falar também da comunicação. Comunicação era muito difícil, era só por carta. Eu estava no colégio quatro da tarde, cinco da tarde, louco pra ir pra casa pra ir no mailbox pra puder pegar minha cartinha, às vezes não tinha, às vezes tinha uma. Aquela alegria, você lia, relia e guardava. Eu guardava as cartas todas. A comunicação era essa. Fotografia, poxa, eu vim me interessar por fotografar e começar a registrar minhas coisas quando eu ganhei uma máquina fotográfica, pequenininha, daquelas Xeretinha, que tinha o ice cube, que era um cubinho que tinha quatro lados e cada vez que o flash disparava era uma foto com luz. E era caríssimo aqui. Depois eu ganhei de presente dos meus pais americanos um projetor de slides, comecei a me interessar por todas as minhas viagens, meus momentos, em slides. Isso hoje eu tenho com o maior carinho guardado, organizado, musicado, de todos os momentos, do Natal, das viagens, do bus trip. Eu queria destacar também dessa convivência, nós tínhamos a oportunidade de sair da escola em determinados períodos, uma sexta-feira cada mês pra ir pra outra escola, onde nós participávamos das assemblies, nós éramos representantes dos nossos países e os estudantes perguntavam como era o Brasil, como era na política, como era nas relações pessoais, como a gente fazia nos finais de semana, como é que namorava. E isso era muito bom, depois tinha os enquadramentos sociais. Nesses convívios, eu sempre me reunia com duas colegas do American Field, que hoje são minhas AFS sisters, que era a Joana Merlin Scholtes hoje, o nome de casada e a Orlane Cavalcanti Laguna, Laguna de casado. A Joana era de Santos, São Paulo, hoje mora em Itanhaém, e a Orlane de Fortaleza. Quando nos reuníamos, nós sempre fazíamos festinha pra arrecadar fundos para o próximo estudante que viria. Nós conseguimos algum dinheiro, fazia um show, pagava dez dólares para entrar pro meu show e era uma coisa assim, a gente fazia os contatos com os amigos e pedia permissão pras famílias pra que a gente recebesse. Fizemos carnaval na casa dessa Joana de São Paulo. Ela foi eleita a rainha do carnaval e eu o rei do carnaval. Só que não demos a ideia de que tinha que ser gordo, que tinha que ser rei momo gordo. E aí foi. Nos nossos planos, nós todos tínhamos planos, que foi uma coisa muito boa na época. Eu tinha plano de ser médico, possivelmente pediatra, possivelmente porque poderia mudar. A Joana queria ser das Nações Unidas, que eu achei de todos a mais ousada. E a Orlane queria ser diretora de uma escola Fisk. A Orlane hoje tem a franquia da Fisk no Ceará, bem sucedida, e a Joana conseguiu fazer tudo isso, esteve recentemente conosco depois do resgate social que ela foi designada pelas Nações Unidas pra ir para o resgate do tsunami, do pessoal. Essa colega hoje conhece 110 países no mundo em missão, razão por que eu quero citar o nome das duas como realmente que têm muita história pra contar, todas as duas, a Orlane pelo trabalho que faz no Ceará em termos de comunicação de inglês e a Joana por ser uma embaixadora de missões super difíceis pelo mundo. Ela acabou de chegar do Haiti onde realmente foi pra passar seis meses num programa organizacional social e econômico do país, como colaboradora internacional. Esse destaque faz parte também dessa evolução do programa de intercâmbio.
P/1 – E você contou pra gente lá fora também do momento da ligação, né? Então apesar da comunicação ser por carta houve uma mobilização para um telefonema. Conta como foi isso, o que aconteceu?
R – Olha, eu tinha muita angústia de não falar diretamente com meus pais, porque era tudo muito limitado. De dez cartas que eu mandava, digamos, chegavam três ou quatro. Do Brasil pros Estados Unidos era a mesma proporção. Não tinha credibilidade aqui aquela correspondência chegar nem em tempo hábil, que era mais ou menos dois meses. Na época do Natal, a minha mãe americana disse: “Tarci, o que você gostaria que a comunidade lhe desse?”, eu disse: “Eu quero, a primeira coisa, é falar com meus pais no Natal”. E eles fizeram uma cota e a cota foi 80 dólares. Então, gastaram 80 dólares para eu fazer uma ligação para eu falar com meus pais na noite de Natal, que foi uma emoção fantástica! Quando meu pai falou, ele perdeu a voz, minha mãe também perdeu a voz, foi uma coisa assim, só emocional porque a comunicação ficou totalmente do padrão que a gente podia falar, dizer que estava bem e tudo. Mas eles pagaram 80 dólares, que deu tanto “Ibope” [Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística] que fizeram uma matéria, fotografaram o momento que eu estava falando com meus pais e saiu uma matéria no jornal. Tinha muita matéria no jornal, eu acho que eu tenho até o momento 33 publicidades com a minha participação no programa intercâmbio e até mesmo depois que eu voltei fizeram matérias comigo.
P/1 – E como era ser um brasileiro ali no meio dos Estados Unidos? Como isso era visto?
R – Olha, muito orgulho eu tinha, sabe? Muito orgulho. Eu tinha o desafio dos esportes. O americano quer que você seja muito bom nos esportes e minha família era esportista também. Eu não tinha muito essa habilidade, isso foi uma frustração porque eles esperavam, eles gostavam de basquete, de repente, eles falavam que eu ia jogar basquete, eles queriam que eu fosse bom no basquete, nada disso. Futebol nem se falava ainda porque estava começando, o tal do soccer. Eu podia até fazer alguma coisa, mas só pela influência de ser brasileiro, não pela habilidade. Eu sofri muito com essas coisas. Mas compensava quando era do coral, aí realmente eu demonstrava minha habilidade porque tocava, tocava as mesmas músicas, Garota de Ipanema, Corcovado, mas eram músicas que eram conhecidas e hoje são nosso ícone da música no mundo todo. Na época, eu fazia isso, fazia esses shows. Mas foi muito difícil para estudar no início. Inventei de estudar Sociologia, eu tinha que estudar História ou Governo Americano, tinha que dar uma opção, eu estudei História Americana e tinha que ter inglês também. Eu fiz Inglês 5, que era o inglês que a gente fazia a parte de escrever, de ler, de interpretar textos e tinham os trabalhos como as monografias. Eu fiz duas monografias americanas na época, na escola, que a gente tinha que fazer. Uma foi sobre o racismo, eu vivi muitas experiências em relação ao racismo nos Estados Unidos porque era uma área muito racista. Na área de Chicago, a população é negra, mas existe muito racismo. Na minha escola não existia negros, só tinha brancos e era uma cidade que ficava a 30 minutos de trem de downtown Chicago, o nome era West Chicago. A família era a família Mayer, meu pai americano era superintendente de Educação e minha mãe lidava numa clínica com crianças deficientes. E deles eu recebi muitos ensinamentos por essas coisas.
P/1 – Conta como foi a volta e chegar no Brasil, ir atrás de estudar Medicina.
R – Ai, foi dificílima a volta. Fizeram uma festa lá num clube social. Eu gravei, eu tenho isso tudo gravado, a festa, o depoimento das pessoas. E eu confesso que eu não queria sair, mas não era por que eu tinha gostado demais, era com medo de enfrentar o vestibular. Isso era mais ou menos o mês de agosto que eu iria voltar e eu tinha que enfrentar o vestibular. Imagina, começando a estudar em agosto, quando todo mundo começa em janeiro, fevereiro pra se preparar para o vestibular. Eu tinha muito medo disso. Essa minha saída foi muito traumática porque os meus pais americanos também eram muito ligados a mim, meus irmãos americanos. Foi um chororô maior do mundo. Aí foram me deixar no lugar onde todos iriam sair, num bus daqueles para começar a viagem do bus trip, que era uma viagem que a gente fazia durante três semanas pelos Estados Unidos na direção a Washington DC. Foi muito emocionante, eu chorei a noite toda de saudades. No outro dia, eles foram ainda me visitar nesse outro lugar que a gente estava, que já não era mais nem pra ele fazerem isso porque a gente já estava se desligando. Nesse período, a gente participou muito de eventos sociais, a gente tinha que fazer um som na comunidade que nos recebia, todo mundo estava sabendo, saía no rádio, a gente ia pra programa no rádio pra entrevistar a impressão e tinha jornalista que vinha assediar pra ter matéria sobre a nossa impressão e foi muito ativo. Terminamos em Washington D.C., onde com muito orgulho nós fomos convidados para um evento na Casa Branca, pela importância do American Field, nós fomos organizadamente recebidos por Lyndon Johnson e a família dele, a Lady Bird Johnson.
P/1 – Como foi a festa na Casa Branca, sendo recebido pela família do presidente?
R – E dando continuidade a essa viagem do bus trip, nós fomos pra vários lugares diferentes, vários estados no roteiro, com destino a Washington. Assim como outros intercambistas de outros Estados, da Califórnia, da Flórida, também fizeram o trajeto. Nós tínhamos duas guias que nos acompanharam, que eram voluntárias, e nós recebemos o convite para uma recepção, era a banda da Marinha americana na Casa Branca. Foi o último momento que nós tivemos em termos de governo americano nos dando apoio. Eu tenho esse convite que, pra mim, eu acho que foi o convite mais importante que eu recebi, não só pessoalmente, mas todos os colegas brasileiros que estavam lá e do mundo também, que foram mais de três mil intercambistas na época, só daqui do Brasil éramos 150 desse grupo. Depois nós fomos, em um outro dia, convidados do embaixador na época, Vasco Leitão da Cunha Lima, para a casa do embaixador onde nos recebeu com uma feijoada. A música que a gente botou pra tocar foi um disco de carnaval que eu tinha na minha mala, eu botei a música. Foi ótimo, a gente fez o carnaval na casa do embaixador. Depois, nós nos dispersamos de todos os grupos, que eram países diferentes, cada qual foi pegar seu vôo em Nova York. O grupo do Brasil foi direto pro aeroporto Kennedy, atualmente Kennedy.
P/1 – E nesse intervalinho a gente comentou das questões tecnológicas, né? Então quais foram essas diferenças que você sentiu de sair do Rio Grande do Norte pra ir....
R – Olha, eu acho que a minha experiência hoje seria muito mais rica como uma pessoa de arquivo, que eu sou arquivista, do que no meu tempo. Eu saí de uma residência que eu não tinha televisão, mas eu tinha a vizinha que tinha televisão preto e branco, pra uma televisão colorida. Assisti na casa da minha família americana o lançamento do Gemini V, colorido, que foi uma coisa fantástica. Os Rolling Stones acontecendo lá nos Estados Unidos, os Beatles na Inglaterra. E aqui a minha querida Elis Regina, Bethânia, Caetano apontando, o Chico pós-Banda, foi um momento muito interessante dessa mudança. Não tinha máquina fotográfica, como falei, já recebi de presente no Natal, então eu perdi muitos eventos desse período, que não era pra ter perdido se hoje tivesse com a minha máquina digital. O projetor de slides foi o meu hobby principal como registro. Ganhei de presente do meu pai americano, pra mim era o meu meio de comunicação, slide. Eu tenho meu registro da minha experiência de intercâmbio em slides, tudo gravado profissionalmente com música e isso me dá muito orgulho de ter. Hoje em dia, eu estou procurando preservar os slides tão bons, a qualidade era muito boa, Kodachrome. Isso aí foi a diferença cultural, né? Hoje as pessoas vão, já tem a máquina digital, já tem o WhatsApp, tem tudo o que você possa facilitar a comunicação e informação imediata. Foi muito difícil. Eu sou da época da transparência, da época do projetor de slide e do slide. São objetos que pra mim foram úteis no meu tempo, não desprestigio, tenho conservado como se fosse de hoje, mas eu teria lucrado muito mais no meu acervo se hoje eu tivesse, como hoje eu tenho pelas minhas viagens pelo mundo, tudinho digital, musicado, com tudo fantástico, é outra coisa.
P/1 – Você estava começando a contar da sua chegada no Brasil e a questão do vestibular, ir atrás de fazer Medicina.
R – Sim. Aí passei na primeira vez no vestibular, foi muito difícil porque eu não tinha com quem estudar porque as pessoas já estavam muito sabidas. E como eu tinha feito Inglês nos Estados Unidos, isso eu tinha segurança que eu ia fazer uma prova boa e também Biologia também tinha segurança, eu investi pessoalmente na Química e na Física, que eu não tive coragem de estudar essas matérias nos Estados Unidos, eu não tinha condição de absorver esse conhecimento. Quando passei, comecei a fazer trabalho de grupo, como falei anteriormente, eu ilustrava os trabalhos de grupo na faculdade de Medicina com inglês, isso me dava um point. Depois, eu comecei a ser professor dos meus professores, eles me convidavam pra ser professor. Reunia três, quatro colegas médicos do lado deles, eu era estudante de Medicina, eu ia pra casa de um deles pra dar aula de inglês. E o boom desse processo foi quando, no carnaval de fevereiro de 72, chegou a Natal um navio americano hospital chamado HOPE, Health Opportunities for People Everywhere, o reitor da universidade mandou me chamar, na época, eu era professor de inglês da esposa do reitor. Isso abriu muito o espaço pra essas coisas. Para ficar no navio diretamente como estudante de Medicina do último ano, oficialmente no navio, era uma opção que era minha, obviamente eu aceitei. Eu tinha o crachá do navio, eu tinha acesso ao navio. A cada três meses, vinham novas turmas, eu ia receber o pessoal no aeroporto, eu saía com a turma, fazia amizade. Fui convidado pra morar nos Estados Unidos pra fazer residência lá, mas o meu objetivo era ir pro Rio [de Janeiro] e fazer residência médica no Rio, o que me facilitou porque quando eu comecei a traduzir os cursos do navio eu começava a pedir o certificado do navio que eu tinha sido tradutor desse curso. Quando um colega ia fazer esse mesmo curso que eu fazia, que tudo era muito facilitado pra gente aproveitar ao máximo o conhecimento desses professores americanos que vinham a cada três meses, mudava a turma toda. Eles davam a aula de acordo com as especialidades e a gente fazia a organização. Eu organizava essas aulas, eu traduzia as aulas e controlava os pontos, frequência, diploma. Eu recebia três diplomas e o colega recebia um, ele estava com dois, eu estava com seis. Ele estava com três diplomas eu estava com nove. Isso aí tudo me deu uma abertura para eu querer a melhor residência no Brasil, que na época era no Hospital dos Servidores, serviço do doutor Luiz Torres Barbosa. Marquei uma hora pra ele lá, fiz uma prova boa porque eu estava atualizadíssimo, eu estava por dentro de tudo o que estava acontecendo por causa desse papel que eu tive graças ao inglês, graças ao programa de intercâmbio. Resumindo, a primeira pergunta que ele fez foi por que eu queria fazer residência lá no serviço dele. Eu disse: “Doutor Luiz, eu venho de uma família humilde, mas eu gosto muito de coisa boa. E o senhor sabe que o seu serviço é o melhor do Brasil, por isso que eu quero vir pra cá”. Como ele tinha o meu currículo na mão, a segunda pergunta ele fez em inglês, como é que eu tinha aprendido a falar inglês. Aí veio, a minha entrevista foi toda em inglês, não tinha nada a ver com Medicina, foi só o American Field e o lugar que eu morava, que era perto da faculdade onde ele fez residência médica, Northwestern University, e aí ficou uma conversa de compadre. Eu desisti das outras entrevistas que estava programado, peguei o avião que eu paguei em dez prestações do crédito da Vasp [Viação Aérea São Paulo] pra poder fazer isso e consegui, foi uma aprovação maravilhosa e vivi dois anos maravilhosos. Lá continuei essa mesma história quando os amigos professores internacionais dele vinham, ele me jogava pra ir buscar no aeroporto, pra sair com o pessoal, pra traduzir os cursos e ele sempre organizava curso. E eu era no meio disso. Uma experiência foi um grupo do Japão que veio, eu fui convidado pra ir pro Japão fazer um curso de Neonatologia que era minha preferência, mas aí eu disse que não queria. Ele nunca me perdoou porque ele disse que eu deveria ter ido. Mas voltei e estou muito feliz com o que fiz e a minha decisão de voltar pra minha terra.
P/1 – E conta um pouco da sua carreira de médico, como você conseguiu isso com as viagens.
R – Muita coisa. Carreira de médico eu sempre fui muito dedicado. Fiz Pediatria porque gosto. Quando você termina a residência, você tem que fazer o título de Especialista, eu consegui o título de Especialista. Ao chegar, um ex-professor meu, que eu tinha sido professor na casa dele, esse indivíduo era Secretário de Saúde na época, me convidou pra gerir o maior centro de saúde de Natal. Eu, o mais jovem estudante de Medicina, aliás, médico, mais jovem médico, pra gerir uma turma já de horas de voo, foi meu primeiro emprego, através do doutor Lavoisier Maia Sobrinho. Esse cidadão era meu professor de Obstetrícia e eu fui professor de inglês na casa dele. A esposa dele, dona Wilma Maria de Faria, eu fui professor dela também. Os dois foram governadores, um nomeado na época da ditadura, doutor Lavoisier, e a Wilma depois eleita Governadora do Estado do Rio Grande do Norte. Isso aí são coisas que aconteceram de uma maneira espontânea e que deu essa evolução. Nesse período, eu tive oportunidade de fazer cursos fora, fui para o Chile, passei quatro meses. Logo depois que eu peguei esse trabalho lá pra ser diretor dessa unidade, apareceu um curso de Materno Infantil, que era a minha área no Chile. E o Chile hoje ainda é um exemplo de Saúde Pública Coletiva, programa de Saúde de Família é modelo para o mundo. Eu passei quatro meses lá, no auge do [governo do general Augusto] Pinochet, com toque de recolher. A gente tinha que ficar no hotel às dez da noite, não podia sair, só nos finais de semana. No auge do Bee Gees, no auge da discoteca. Tinha, em Viña del Mar, uma discoteca chamada Top 5. Aí eu aproveitava ao máximo, final de semana eu saía, ia pra Viña del Mar, Valparaíso, e aí deu pra conhecer bem o Chile nesse curso de quatro meses. Eu era muito jovem. Chegando a Natal, depois, eu me casei e tive dois filhos adotados, o Igor e a Jéssica, e a me dediquei muito aos meus filhos. Nesse processo, eu queria que todas as pessoas que não tinham filhos que adotassem, que era uma coisa boa. O padre Sabino que era um amigo da família, que tinha nos casado, ele tinha uma comunidade carente que tinha muitas crianças que eram abandonadas. Às vezes, ele conseguia com os amigos da Itália que vinham, ele conseguia essas crianças e, às vezes, eu atendia como pediatra. Eu tenho dois de destaque, um é um casal um italiano e uma holandesa que adotaram essa criança, foi uma adoção muito difícil porque a mãe era menor [de idade] e teve que fazer escritura, foi uma coisa muito complicada, eu fui muito amigo desse casal. Hoje, eles são super felizes com essa adoção, o menino bem criado, bem educado, casou, é pai, tem um restaurante em Roma. Quando eu viajo praquelas bandas, eu sempre vou pra estar com eles e a conversa da gente é adoção, sucesso e alegria. Essa é a família Vili. [Ele] é engenheiro eletrônico da IBM e ela era do lar. O garoto fala inglês comigo, porque estudou em Londres também, fala italiano com o pai por ser italiano e holandês com a mãe. A gente sempre tem momentos muito agradáveis quando a gente se encontra. São de buscar no aeroporto e fazer todo aquele carinho. E uma outra que é Mrs Anne Fryer, ela é da Orquestra Sinfônica de Nova York, estava adotando uma criança numa clínica que eu estava assistindo e ela chegou pra mim sem me conhecer, perguntou se eu falava inglês. Eu estava assistindo essa criança. Esse momento é até emocionante, ela ficou muito feliz porque viu alguém falando inglês. Ela estava adotando aquela criança e queria saber o estado de saúde dela. Eu disse: “Olha, muito grave. Esta criança está desnutrida, tem uma infecção generalizada”. Dois dias depois, essa criança morreu. Aí eu enlouqueci porque ela se abraçou comigo chorando, que ela queria porque queria aquela criança. Eu digo: “A senhora tenha paciência, vá naquela creche onde essa criança estava, eu vou fazer um relatório que ela faleceu e a senhora vai ter que ficar esperando que apareça outra criança”. Foi um sofrimento pra essa senhora, ela passou três meses em Natal, pagando hotel e tudinho. Aí nasceu a outra e o processo de adoção muito lento, tudo muito complicado. E adotou, muito feliz. Ela mora em Nova York e, quando a gente se encontra, eu até mostrei a foto pra você, a gente sempre tem um carinho muito grande de estar juntos. A menina é bem criada e tudo. Agora teve o falecimento do pai e a mãe disse que quem melhor assistiu o pai foi ela, na UTI [Unidade de tratamento intensivo], ela ficava à noite inteira ao lado, deixou de trabalhar pra assistir o pai. Ela sabe que é adotada de Natal e sabe que eu fui pediatra dela também. Então, profissionalmente teve isso. Depois duas coisas marcantes também, como eu gosto de trabalhar com qualidade, nós criamos em Natal o Grupo de Humanização no Atendimento em Saúde, que eu achava que a gente precisava organizar esse sistema pra atender melhor, qualificar melhor os profissionais. Começamos a inventar uns cursos e fizemos um grupo de trabalho com oficialização do Estado. Grupo de Apoio à Humanização no Atendimento em Saúde, eu era o coordenador. Nesse período, nós começamos a trabalhar e foi uma repercussão muito positiva na área, nos hospitais. A gente fazia treinamento, eu dizia: “Eu só faço treinamento se botar o ASG [Auxiliar de. Serviços Gerais] e o diretor no mesmo treinamento, senão eu não faço”. O diretor tinha que ficar disponível para ouvir a nossa preleção juntamente ao ASG, o Técnico em Enfermagem, a Enfermeira. Era uma coisa muito profissional, mas que a gente tinha o gerenciamento presente e o técnico presente também. Nesse processo, eu fui para o Japão e os colegas ficaram continuando esse trabalho, quando o Ministério da Saúde inventou de criar um grupo de trabalho a nível de ministério para humanização do atendimento em saúde. Quando mandaram o convite para o Rio Grande do Norte, a gente já estava anos luz à frente. O colega que ficou, o Walter, o editor dos meus livros a quem eu tenho muito carinho, até mostrei a vocês esse trabalho, o que fez? Ele mandou e-mail para mim, eu estava no Japão, depois eu falo sobre o Japão, quando ele foi convidado pra ir pra Brasília pra uma reunião de elaboração da proposta do Ministério. E claro, deu show, porque a gente já tinha tudo encaminhado e a gente teve uma relação muito grande com o Ministério nesse período. Na época, o ministro [da saúde] era [José] Serra e a gerente era Eliana Ribas, uma psicóloga aqui de São Paulo. Então foi um momento muito profícuo pra nós. Em relação ao Japão, em 2001, eu fui escolhido através de um processo de seleção para um curso no Japão. Foi muito interessante. Uma colega que trabalhava comigo na Saúde disse: “Tarcísio, tem uns formulários aqui, alguma coisa do Japão pra algum curso. Queria que você passasse aqui pra ler, pra nos orientar”. Quando eu chego em casa (risos), tudo era pra mim. Era um curso para um pediatra com atividade de gerenciamento em programa materno-infantil que falasse em inglês e pa ra ra. Só que a seleção, eu teria que saber onde iria ser feita pra poder me habilitar. Se fosse pelo Brasil, eu não iria me interessar porque iria ser alguma coisa que ia ser alguém ligado ao Ministro. Se fosse seleção no Japão, eu podia até me habilitar porque era uma pessoa isenta de influência de qualquer autoridade. Foi o que aconteceu. Eu fui escolhido e fui passar quatro meses no Japão. Uma experiência riquíssima sobre análise da situação materno-infantil no mundo, onde diariamente nós tínhamos a responsabilidade de falarmos sobre o tema do dia pelo nosso país, com dados estatísticos, avaliações e tudo e a maior autoridade do tema no Japão era sempre convidado para ouvir o que nós tínhamos a dizer e à tarde que vinha o bom do evento que era a análise do que a gente tinha dito e como é o Japão que funciona. Tivemos uma semana de cultura japonesa, hábitos japoneses, costumes japoneses, religiosidade, foi uma coisa muito rica. A cada semana, a gente se deslocava pra lugares diferentes. Terminamos em Tóquio, numa reunião muito bonita, teve televisão lá e tudo, eu tenho isso também com muito carinho registrado, foi uma experiência riquíssima, aprendi muito porque eles são muito organizados, eles são muito protocolarizados, tudo é no protocolo; o japonês não sabe improvisar. A gente, como médico, a gente improvisa mais do que deve, entendeu? Então foi uma experiência muito rica. Além de também uma que eu estive na Argentina, fiz um curso de quatro meses em Controle da Patologias Respiratórias Infantis, foi pela Organização Panamericana de Saúde em Santa Fé. Isso tudo dá contatos, eu acho que a gente aprende a conviver com outras pessoas, os hábitos, os costumes, o idioma. Na Argentina, eu tive que aprender espanhol, terminei sendo orador da turma. No Chile também, eu devia ter um sotaque, né, fui orador da turma no Chile. E no Japão também. Eu tive essa facilidade, essa comunicação. Tudo isso eu acho que tem muito a ver com as lições do intercâmbio, o spirit, o AFS Spirit, como eu sempre digo. Eu ainda tenho. Eu sou um intercambista eterno. Eu jamais irei envelhecer como intercambista porque eu tenho esse spirit. Teve agora a celebração também do AFS, o centenário em Paris. E eu organizei a minha vida pra ir. Como eu tenho dois livros escritos, que é o “Batendo Asas”, uma experiência por visitar 33 países, tanto como mochileiro, como intercambista, como bolsista, como palestrante, como turista, como pediatra da Disney World, que eu fui quatro vezes seguida. Então tudo isso, eu tive essas experiências e botei num livro, que foi o primeiro livro, “Batendo Asas”. Eu fiz quando eu completei 60 anos. Como o meu grupo americano ia fazer 45 anos de formatura no high school lá, eu organizei um outro de intercâmbio, que foi esse que é o livro que eu tenho mais dedicado atenção porque é registro e eu fiz bilíngue, quer dizer, no lançamento foi esgotado, depois eu pedi outra edição pra levar pros Estados Unidos, pros 45 anos. Então todos os meus familiares americanos, que são muitos, têm o livro. Até os filhos pequenininhos eu dei pra cada um, todos receberam, são sete filhos, já morreu um e os pais também, mas tem os netos, as esposas. E depois foi pra levar para o American Field em Nova York, onde eu tive uma reunião com o doutor Vicenzo, que é o presidente do AFS, eu acho que ainda é por estava em Paris. Foi muito bom porque ele deu atenção ao livro, eu levei um material, uma folheteria linda de Natal e presenteei, ele ficou encantado. Ao chegar em Paris, um detalhe que eu falei pra vocês eu vou repetir aqui porque eu acho tão interessante, eu reclamei porque eu cheguei muito cedo, eu cheguei uma hora antes para o primeiro momento que era um café da manhã, depois ia ter a sessão plenária com as autoridades do AFS Nova York, do mundo, Paris. E eu reclamei por que eles não botaram as bandeirinhas dos países nas mesas, né? Ela disse então: “Doutor, o senhor não pense assim, porque não é pra estar bandeirinha, porque vocês são do mundo”. Eu me choquei e tinha uma plaquinha na minha mesa, eu botei: “Eu sou do Brasil, come and join us, eu não quero ficar só”. E foi a mesa que mais juntou gente. Eu tive a alegria, porque como eu tinha o livro escrito, acredito que era o único que tinha levado alguma coisa desse documentário, alguns levaram banners, colocaram os banners, teve exposição. Mas livro eu só vi lá circulando o meu. Na hora que houve a abertura oficial depois do café da manhã, eles disseram que à tarde eles queriam o depoimento de cada país, que cada grupo escolhesse quem iria falar. Eu tive a honra de ter sido escolhido e falei por três minutos. Comecei dizendo que eu era médico brasileiro ex-intercambista, mas com espírito ainda de intercambista, e que a minha frustração na vida foi não ter sido jornalista também. E daí comecei, falei sobre o livro, as matérias de jornais que eu gosto de escrever, e viagens, relatos de viagens, mais ou menos isso.
P/1 – Com essas celebrações dos 45 anos do seu intercâmbio, os 100 anos do AFS, como que você definiria a importância das viagens e dessa sua experiência de intercâmbio...
R – Eu acho que aí como um resumo de tudo o que eu já falei, foi a maior experiência e a melhor por mim vivida, me abriu o espaço, o mundo para conhecê-lo respeitando as pessoas, respeitando os costumes, administrando os problemas, procurando ver as alternativas quando nas viagens acontecem imprevistos. Os meus imprevistos eu sempre consigo desenrolar, como a gente diz na expressão popular, e isso deu um amadurecimento. E aqui eu vou destacar umas coisas que são da evolução. Eu já entrei nos Estados Unidos, a minha segunda vez, eu fui passar o Natal com a minha família americana, o único que sabia era o irmão americano que morava em Miami. De lá, eu ia pra Chicago chegar de surpresa, eu sabia que eles iam se reunir nessa segunda residência dos meus pais americanos. Ao chegar em Miami, o meu visto estava vencido (risos). Já pensou, você entrar nos Estados Unidos com o visto vencido? Na época, foi antes do [ataque ao World] Trade Center, de todos esses estresses. O que me salvou foi a carta da minha mãe americana. A Varig na época teve que pagar dez mil dólares, a policial na hora me deu apenas 15 dias, eu fiquei estressadíssimo porque ia passar 30 dias. Liguei para um amigo meu canadense em Natal, ele disse: “Tarcísio, vai pra casa da minha mãe no Canadá que ela vai adorar, meus irmãos, minha família”. Aí eu passei 15 dias lá apenas pra dizer, já aconteceu isso de entrar. Já cheguei com mala trocada na minha família americana, todos os meus álbuns, que eu tenho o maior carinho pelos meus álbuns e fotos, estavam na outra mala. Eu cheguei com uma mala, ela era tão igual, era igual a minha mala, era tão igual que a chave abriu (risos). Quando eu abri a mala, tinha camisola, sutiã, peruca (risos), que não era nada meu. No outro dia nós voltamos no aeroporto de O’hare em Chicago, meu pai americano foi comigo, eu levei passaporte, levei o tíquete da bagagem, o roteiro, tudo, para me identificar, que eu tinha levado a mala errada. O rapaz não perguntou nem meu nome, foi lá: “É essa aqui?” “É”. Trocou. Parece mentira o que eu estou falando porque não teve registro de nada. Tudo isso antes do Trade Center. Outro imprevisto também que faz parte desse amadurecimento que eu quero dizer pra você, fui fazer uma palestra em Denver, no Colorado, como estudante de Medicina, estava no quarto ano. Houve um evento no Colorado, eu fui escolhido e preparei a palestra em transparência, era “A Universidade Brasileira”. Naquela época sem Google, sem pesquisador, sem nada, foi um horror. Eu levei minha palestra na mala, tudo pago. Fui pegar o avião no Rio [de Janeiro], o avião era da Pan American, fomos pra Panamá e lá em Los Angeles peguei um outro voo da Continental Airlines. Chegando lá foi o primeiro contato com computador. Minha mala não chegou. Fui pra polícia, o policial fez todo o meu roteiro pelo computador, eu fiquei assim, horrorizado, pela informação que ele estava me dando: “Isso que vai acontecer com o senhor é que sua mala está voando em outro voo, só vai chegar aqui a três horas. O senhor vai ter que ver como é que você faz” “Não tem mais condições, vou ter que sair porque estou cansadíssimo, eu estou nesse hotel aqui” “A polícia de Denver vai deixar sua mala no hotel”. Não consegui dormir do estresse que eu estava, e com a representatividade. É como se eu não tivesse chegado aqui hoje, imagina que estresse se eu tivesse errado data e horário. Então o que acontece? Quando eu abri a porta do hotel, um hotel grande em Denver, no Colorado, a minha mala estava na porta do hotel, do lado de fora, no corredor. O pessoal passando pra lá e pra cá e minha mala encostada, com o cartão: “A polícia de Denver deseja boas-vindas”. Essa coisa toda foi uma evolução. Hoje, está muito mais difícil você fazer essas coisas porque não se aceita mais, todo mundo é potencialmente um terrorista. Mas tive experiência de vida fantástica, Marrocos, adoro Marrocos, já fui duas vezes, me visto de marroquino, me visto de árabe, pra circular, boto o jornal árabe debaixo do braço, que eu não entendo nada, mas é pra não ter assédio, ninguém assediando. Eu faço como nativo. Essas experiências todas são muito enriquecedoras. Pra Disneyworld também como pediatra, tive acesso a ir algumas vezes, mas é uma viagem de muita responsabilidade, que a gente tinha que lidar com a juventude, os adolescentes e agora tem o problema das drogas e tudo, eu preferi não ir mais, mas eu sempre era convidado porque falava inglês, desenrolava e era médico. Para os pais era muita segurança quando tinha um pediatra na excursão, que são frequentes lá em Natal, o pessoal tem muito contato com a América [Estados Unidos da América] pela influência de Natal na época da guerra, Segunda Guerra Mundial nós fomos trampolim para os voos americanos para a África, pra Dacar e Natal tem muita história disso. Eu adoro a minha cidade, adoro minha família, meus filhos, meu trabalho.
P/1 – Conta pra gente então, se no AFS a base toda é de trabalho voluntário, como é que foi a sua volta, se você fez algum trabalho voluntário pro AFS como resposta à oportunidade que você tinha tido. Como é que está o comitê de Natal?
R – Com certeza. Isso é muito bom lembrar porque eu fui presidente do AFS logo depois que eu cheguei, eu assumi substituindo a Herda que foi da primeira turma, é quase como uma hereditariedade cronológica. Eu fiz duas gestões, dois anos seguidos eu fui gestor e mandamos muitas pessoas que hoje têm papel importante na sociedade e também tive a influência de ter também algumas pessoas que eu contatei pra receber. Aqui, eu destacaria Cindy Low, o meu professor de Pediatria, doutor Eriberto, eu pedi pra ele alojar alguém que viesse dos Estados Unidos e a filha dele era jovem, queria estudar inglês, aprender inglês, queria viajar também. Ela veio. Quando eu fui pra esse evento em Denver, no Colorado, eu fiquei num hotel muito bonito lá. Ela me tirou do hotel porque ela morava em Denver, pra ficar na casa dela, fez festa e tudo, eu viajei, circulei; foi uma coisa muito interessante isso. E outras pessoas mais que nós conseguimos e que eu gostaria de destacar também como registro a família Sales, era o doutor Getúlio Sales, era um professor de Patologia, ele já é falecido. Eu fiz o primeiro contato, meu primo Adilson Gurgel, ele é hoje conselheiro da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], vai pra Brasília com muita frequência e tudo. Ele foi do AFS, ele começou a namorar a filha do doutor Getúlio. Nessas pontas de linha em um evento social lá eu disse: “Doutor Getúlio, por que o senhor não recebe? O senhor tem condição, a casa bonita, boa, a família legal, receber uma americana aqui?”, Resumindo, depois desse link eu quero destacar que essa família recebeu depois desse contato 28 americanos em períodos diferentes e merece do AFS agora nos 60 anos uma homenagem. O pai já morreu, doutor Getúlio Sales, mas a viúva ainda é viva e eu tenho contato permanente com eles. Fiz essa tentativa pra ver se essa homenagem sairia em Paris, mas como Paris era o mundo todo não tinha oportunidade, mas agora eu vou reivindicar que essa família seja homenageada porque se vocês forem ver no registro do AFS eu acho que não tem ninguém que recebeu 28 pessoas, eu acho que não existe. Eles têm uma relação muito próxima com todos, vivem viajando, vai e vem, casa de praia e tudo, é uma maravilha. Eu queria dar esse registro também. E trabalhei, agora estou querendo voltar. O AFS tem pessoas jovens, eu acho que a gente precisa estar perto também. Eu estou achando que está na hora de eu voltar um pouco mais, especialmente por conta dessas estratégias. Eu estou muito perto do AFS, eu acho que eu estou precisando de dar mais agora, nessa fase mais amadurecida de trabalhar, orientar os jovens que vão chegar, fazer reuniões sociais, procurar que eles registrem como eu registrei, agora com tudo mais acesso, muito mais facilidade. Eles estão vindo, é uma tecnologia que eu praticamente ainda não domino. Meus filhos sim, acham que eu sou Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização] (risos).
P/1 – Eu queria que o senhor comentasse qual é a expectativa de agora estar perto de completar 50 anos do seu intercâmbio, dessa sua experiência.
R – Ótimo você lembrar, que maravilha! Eu aqui retroajo um pouco no tempo porque o meu irmão americano está em fase de separação e eu propus para ele vir para o Brasil. E joguei um irmão americano no réveillon do Rio de Janeiro (risos). Quando eu fui encontrá-lo, depois eu fui pra Salvador. Em Salvador, eu tenho um colega médico que botou um motorista à disposição 24 horas por dia pra gente ficar. Então toda essa receptividade ele viu o feeling do brasileiro e a ele foi proporcionado o melhor do melhor. Chegou em Natal tinha minhas primas também, cada uma oferecia um jantar, um evento e praias e tudo. Ele ficou empolgado pelo Brasil. Em Manaus, ele também tem o AFS Spirit, ele conheceu um casal e ficou hospedado na casa desse casal, se apaixonou pela Amazônia. Hoje, ele tem uma ONG [Organização não governamental] em defesa da Amazônia tropical, chama-se Rainforest e faz palestras no mundo todo sobre a Amazônia. Isso me dá muito orgulho porque os pais americanos, vocês viram as fotos que eu mostrei, foram pra Manaus também e ficaram encantados. Quando vieram ao Brasil também foi toda essa recepção. De modo que eu acho que o intercâmbio traz essas oportunidades, mas eu acho que a gente também tem que ir mais além, não é? E na família americana eu, com certeza, consegui esse mais além. Depois ele já voltou e, ao assunto que você perguntou, nos 45 anos, eu levei o livro e agora recebi a correspondência da Comissão Organizadora que nós vamos ter um evento num hotel em Chicago nos dias 22, 23 e 24. Nesse evento vai ter piquenique, vai ter visita à escola, vai ter alguma palestra de alguém. Eu vou me organizar bastante pra essa volta em setembro. Eu já fui convidado pra fazer o official speech (risos) do evento. Essas coisas são muito positivas.
P/1 – E como você se sente estando à frente de tantos grupos, sempre rememorando essa experiência?
R – Eu tenho a preocupação apenas que a nossa vida é limitada e, às vezes, a gente pensa que não. Então eu tenho muito medo do tempo. Hoje, eu tenho 68 anos, continuo com o AFS Spirit, sem dúvida nenhuma, eu estou adolescente pra viajar de novo, entrar num avião moderno e fazer tudo de novo, mas eu tenho medo do tempo. Daí porque eu quero ser muito mais útil do que eu já fui de agora em diante. Eu acho que a gente tem missão e essa missão meu Deus me deu como pediatra, como pai, como esposo, como filho, e agora eu tenho que procurar me dedicar, já que meus filhos já estão encaminhados, estão trabalhando, dão uma boa assistência à mãe que está enferma mas tudo isso é muito positivo pra mim, eu sou muito feliz.
P/1 – Tá certo. E como forma de avaliação, como você diria que o AFS mudou a sua vida?
R – Eu daria um conselho pra qualquer pai, por mais humilde que seja, que incentive seu filho a estudar. Hoje, além dos estudos têm duas coisas básicas: a internet tem que saber usar e a comunicação em idiomas estrangeiros, não necessariamente o inglês, que o mundo está aberto para essa comunicação. Se tiver condições, eu hoje vejo os programas de intercâmbio muito comerciais, então aquele feeling de família hoje eu não acho que exista tão fortemente quanto no meu tempo. Eu mesmo tenho uma sobrinha que foi pra mesma área que eu fui, ficou numa residência como se fosse um quarto alugado que pagava uma taxinha, mas não tem comparação a experiência que ela viveu na escola e sem o feeling de família que eu tive, foi uma experiência totalmente diferente. Mas se os pais têm condições, se o intercâmbio proporciona essas condições, não pense duas vezes, nunca perder um ano como eu pensei quando fui ainda com aquele feeling que iria perder um ano, sempre pensando que a experiência de sair de casa e bater asas e conhecer pessoas diferentes e falar um outro idioma é enriquecedor, você aprende a respeitar, como eu já falei anteriormente, e você aprende a viver. A vida é isso, a vida são os contatos.
P/1 – E pra gente ir encerrando, o que você acha desse projeto do AFS registrar sua história por meio da trajetória de vida de pessoas que fazem parte?
R – Eu acho que esse é um projeto bombástico que o AFS precisaria já ter tomado essa decisão há muito tempo. Eu vejo uma janela aberta, escancadarada, pra muita coisa a fazer. Tem que ser um outro museu de gente, porque o que tem de experiências positivas, fantástico. Quando foi pra inaugurar o voo pra ir pra Paris eu provoquei uma reunião em Natal e essa reunião foi gravada. Eu queria depois recuperar, o AFS deve ter. Eu tenho o nome da pessoa que foi e dei um DVD que eu paguei pra gravar os depoimentos de chorar, que é isso que a gente vai ter que ver, resgatar a história. Cada um tem uma história diferente, não tem uma história igual a outra, nem parecida com a outra. E cada história é um crescimento, mesmo na adversidade, você cresce. No prazer, melhor ainda, mas na adversidade aí é que cresce, eu sempre aprendi isso na vida, de modo que eu deixo aqui uma mensagem de parabéns ao AFS, estou muito feliz, acho que procurei dar o meu recado dentro da minha limitação de tempo, mas muito consciente de que o AFS pra mim foi uma mestra de vida. À minha família americana o meu agradecimento, à minha família brasileira muito mais ainda, que me deu a chance, as oportunidades que eu também busquei, não foi só mérito da família, foi uma busca minha, pessoal, que se eu não tivesse interesse de aprender eu não teria ido. Isso tudo tem que pesar e transmitir a essa nova geração que tudo é válido na vida, o saber, o aprendizado, as adversidades, os caminhos, as questões que aparecem na nossa vida, a gente tem que aprender a manusear, saber que sempre tem uma outra porta aberta mais adiante. Cedo ou tarde tudo tem um tempo.
P/1 – Em nome do AFS e também do Museu da Pessoa a gente agradece muito a sua entrevista, obrigada.
R – Eu é que agradeço a gentileza de me receber.
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