CAUSOS DE FAMÍLIA
Nos anos 1960, sem as tecnologias de comunicação, que hoje muito distanciam as pessoas, estava a família brasileira habituada à reunião em volta de mesa, a ouvir os exímios contadores de “causos”. Com a minha não foi diferente. A nossa própria casa toda feita de pedra, na Vila Rubim, em Vitória (ES), já ensejava diferentes histórias a respeito de sua edificação. Os mais antigos presumiam construção por mãos de fortes escravos a serviço de padres. Outra versão é a de outrora “casa de favores” com festiva clientela. Intitulada “O Castelo”, os bem cultos lhe tinham especial deferência, tal o rústico, mas singular monumento. Para a mente ficcionista do então menino, a sua moradia suscitava fabulações com princesas e condes e vampiros.
Nesse ambiente era deleitoso acordar na madrugada para receber o tio Samuca (Samuel Tavares), chegado do Japão. Tripulante da Marinha mercante, assumiu cognome William, consoante o \\\\\\\"way american\\\\\\\". Navegava com paradas por quarenta e cinco dias, por igual tempo no retorno. Em papelão trazia para mim réplicas de navios e para todos muitas histórias. Mamãe coava-lhe um café novo e, posta a mesa com guloseimas, ficávamos meu pai e eu a ouvi-lo. Citava Rotterdan, Singapura; dizia de eventos a bordo do cargueiro. O tamanho da âncora, revelado, mais me apequenava. Meu maior interesse, contudo, era a sereia. Eu indagava. Ele e meu pai (José Tavares) se entreolhavam. Ao ouvirem o encantante e hipnótico canto da criatura híbrida, prevenidos, marujos se calavam; e, por temor à hipnose, vedavam os olhos, tampavam os ouvidos. Isso me encantava! Ou o barco, por força estranha, seria dirigido para um lugar sem volta, repleto de dragões. No alto mar, indomável o oceano, navio se iguala a caixa de fósforo, dizia. Jogada a nave para lá e para cá, muito oravam, a rogar bonança e proteção. Eu logo imaginava as minhas peraltices com insetos postos em barquinho de...
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CAUSOS DE FAMÍLIA
Nos anos 1960, sem as tecnologias de comunicação, que hoje muito distanciam as pessoas, estava a família brasileira habituada à reunião em volta de mesa, a ouvir os exímios contadores de “causos”. Com a minha não foi diferente. A nossa própria casa toda feita de pedra, na Vila Rubim, em Vitória (ES), já ensejava diferentes histórias a respeito de sua edificação. Os mais antigos presumiam construção por mãos de fortes escravos a serviço de padres. Outra versão é a de outrora “casa de favores” com festiva clientela. Intitulada “O Castelo”, os bem cultos lhe tinham especial deferência, tal o rústico, mas singular monumento. Para a mente ficcionista do então menino, a sua moradia suscitava fabulações com princesas e condes e vampiros.
Nesse ambiente era deleitoso acordar na madrugada para receber o tio Samuca (Samuel Tavares), chegado do Japão. Tripulante da Marinha mercante, assumiu cognome William, consoante o \\\\\\\"way american\\\\\\\". Navegava com paradas por quarenta e cinco dias, por igual tempo no retorno. Em papelão trazia para mim réplicas de navios e para todos muitas histórias. Mamãe coava-lhe um café novo e, posta a mesa com guloseimas, ficávamos meu pai e eu a ouvi-lo. Citava Rotterdan, Singapura; dizia de eventos a bordo do cargueiro. O tamanho da âncora, revelado, mais me apequenava. Meu maior interesse, contudo, era a sereia. Eu indagava. Ele e meu pai (José Tavares) se entreolhavam. Ao ouvirem o encantante e hipnótico canto da criatura híbrida, prevenidos, marujos se calavam; e, por temor à hipnose, vedavam os olhos, tampavam os ouvidos. Isso me encantava! Ou o barco, por força estranha, seria dirigido para um lugar sem volta, repleto de dragões. No alto mar, indomável o oceano, navio se iguala a caixa de fósforo, dizia. Jogada a nave para lá e para cá, muito oravam, a rogar bonança e proteção. Eu logo imaginava as minhas peraltices com insetos postos em barquinho de papel lançado no tonel de água para mamãe lavar roupa. Era eu um Deus a causar ondas revoltosas, para desespero das indefesas formigas-saúva. E, não raro, eu escolhia uma para ser o meu tio Samuca!
Já a minha avó Osvaldina, regressando da antiga Guanabara, onde tinha parentes abastados, sobretudo para o neto predileto trazia bolsas com brinquedos e com revistas O Cruzeiro. Tanto eu a ouvia bem atento quanto logo aprendi a grafar as suas diárias apostas no jogo de bicho. Em Duque de Caxias (RJ) estivera camareira na residência-fortaleza do famoso Tenório Cavalcanti, dono da metralhadora Lurdinha, o “Homem da Capa Preta” vivido no cinema pelo ator José Wilker. Pessoa de confiança, tinha acesso ao secreto guarda-roupa do polêmico homem — dele e de seus capangas sabendo e contando instigantes peripécias.
Éramos seis crianças incrédulas quando mamãe (Maria Luiza Silva Tavares) mencionava uma ave, um pássaro, que, para se esconder, ou para descansar, camuflava-se junto a um toco, a um galho de árvore, ali ficando por horas a fio.
E havia uma cobra que, descomunal, enorme mesmo, engolia cachorro bem grande, um carneiro, um bezerro, e ainda pior: até uma pessoa inteira, como afirmou já ter ocorrido!
Incréus, ríamos (“Conta outra!”), e ela desfiava uma série de histórias como a em que, diante de jovem toda chorosa porque aprisionada por indígenas famintos prestes a devorarem-na, tio seu, gentil cavaleiro montado sobre garboso cavalo, propusera troca de moça por seu portentoso animal. Liberta das cordas aprisionantes, toda grata e feliz ficou a jovem, e mais felizes ficaram os índios botocudos: a fome grassava e, agora, por dias teriam carne para toda uma tribo.
Uma outra a nos deixar curiosos (essa sim!) era a da madrasta que punira a enteada relapsa no vigiar frutífera figueira. Dormindo a menina, muitos pássaros, em ataque, bicaram os frutos. Ausente, em viagem, o pai da garota, ao chegar, soubera da filha morta por suposta doença e já enterrada ao pé da fruteira.
Certo dia, para esquecer a tristeza, foi capinar. E eis que, lavrando perto do túmulo, voz da menina ouviu, e dela ouviu, vinda de dentro do solo, a terrível revelação quase uma cantiga (\\\\\\\\\\\\\\\"Capineiro de meu pai, não me corte os cabelos. Pelos figos da figueira, a madrasta me enterrou!\\\\\\\\\\\\\\\").
Talvez fossem tais contações fantásticas uma ardilosa manobra de mamãe para apaziguar uma turma peralta. Afinal, nasceu ela em São Mateus (ES), lugar de falas d´África, forte ali a cultura popular, com crendices e benzeduras e ervas santas. No período colonial tivera um ativo comércio de escravizados africanos, sendo histórico o Porto de São Mateus.
Ela própria portava história já ao vir ao mundo: no parto morrera-lhe, então, a mãe, uma cafusa. Com o mote da orfandade materna e de sua condição também servil ante rigorosa madrasta, incluía-se, dramática, triste protagonista num ou noutro causo.
Somente mais tarde, crescidos, soubemos da veracidade quanto ao enigmático pássaro urutau e à grandessíssima cobra sucuri.
Quanto à moça, aos indígenas, ao tio da mãe e ao cavalo, quem quiser que conte o quinto.
“Entrou pelo pé do pato, saiu pelo pé do pinto”, diria a Srª Osvaldina Góes, a minha avó paterna.
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