Depoimento de Zelia de Stefano
08 de Junho de 2020
PCSH_HV855
Entrevista PCSH nº 855, dia 08.06.2020. Dona Zélia, qual é o seu nome, local e data de nascimento?
Zélia Ramos de Estevam. Isso é o nome de casada.
Qual é a sua cidade de nascimento?
São Roque, estado de São Paulo, interior.
E a data de nascimento?
12 de maio de 1929. Ok.
Quais eram os nomes dos seus pais?
O pai era João Eremita da Silva Ramos.
E a sua mãe?
A mãe era Sara Pérez da Silva Ramos.
O que os seus pais faziam para viver?
Papai era juiz de direito, mamãe era dona de casa.
Você sabe como eles se conheceram? Conhece essa história?
Conheço. Mamãe e a família dela moravam no Largo da Liberdade. Tinha um lugar mais alto ali, completamente diferente do que é hoje. Ali tinha a casa de vovó. Era uma casa bem grande. Quando a gente chegava na casa, a casa era assim, na rua, não tinha jardim. Então, a gente tocava a campainha, abria uma porta, aí dentro dessa porta tinha um patamarzinho e uma escada de uns cinco ou seis degraus. Aí um corredor bem comprido, do lado desse corredor Tinha, de um lado de cá, a gente brincava e dizia que era a sala do rei, porque era toda... Ah, não pode entrar, não pode mexer, porque tinha um piano de caldo, tinha um tapete de viludo, tinha um sofá, sei lá, do tempo do império, que é bem antiga, a casa é bem antiga. E do outro lado era a biblioteca, porque minhas cias eram todas professores, tinham estudado e tudo. Aí de seguida, esse corredor tinha uma sala bem grande, bem grande, tomava toda a extensão do corredor e dessas duas salas, então era uma sala bem grande. Ali tinha uma cadeira de balanço, onde minha vovózinha, que pra mim era muito idosa, sentada na cadeira de balanço e tinha um relógio desses antigos, grandes, compridos assim, com o mostruário em cima, e tinha um pêndulo, e ele batia as horas, ia fazer aquele barulho, balançava assim, uma coisa muito linda. E depois, então, tinha uma sala de jantar, com uma mesa enorme, porque vovó tinha uma porção de filhas, um monte de filhas e dois filhos homens. E depois então tinha uma cozinha com fogão a lenha enorme. Depois, quando ficou mais moderno, compraram um fogão a gás. Depois da cozinha, aqui tinha o banheiro. Era um banheiro grande com uma banheira, uma pia. Depois, ficou mais moderno, fizeram um chuveiro.
E aí os seus pais se conheceram, como eles se conheceram?
Papai era estudante de direito, mamãe era aquela família de 14 irmãos, a maioria mulher, o Tomás, Ismael, o resto, tudo mulher. E papai era estudante de direito. E se conheceram assim pela janela, olhando para o outro, depois ele se informou, aí ele se apresentou e casou com uma mãe. E moravam no Largo da Liberdade, isso, meu Deus, no começo do século. E eu cheguei a conhecer essa casa da minha avó. Agora não tem mais nada, derrubaram tudo. E era uma casa muito interessante, como eu disse, afaixada pra rua e no fundo tinha um quintal muito grande com árvores frutíferas e tinha um galinheiro, que naquele tempo as pessoas tinham galinhas em casa e galos. O que? Responde as perguntas dela. Ah, então é pra você fazer pergunta.
Não tem problema, você pode contar e relembrar como é a casa, não tem problema, a gente gosta de ouvir, tá bom? Eu queria saber quais eram os principais costumes da sua família.
Costume? Bom, o papai era juiz de direito. Então, eu nasci em São Roque, que foi a última cidade onde ele foi juiz de direito. Depois, como meus irmãos ficaram Precisávamos entrar pra faculdade, aí mudamos pra São Paulo. Moramos em Vila Mariana. Eu devia ter meus três ou quatro anos. Ali ficamos, tinha um irmão chamado Isaac, que queria muito vir pra São Paulo, queria, queria, mas coitado, Isaac veio pra São Paulo, e eu não me lembro dele, porque eu era muito criança quando ele morreu. Mas aí tinha o Paulo, Heitoro, Luiz, Flávio, Marinha, Edith. Era uma família bem grande. Marinha, Edith, Paulo, Heitoro, Isaac, Luiz, Luiz Escolástica, Flávio e eu. Minha mãe teve nove filhos.
E como era a sua convivência com seus irmãos? Você tem alguma história que você sempre se lembre com seus irmãos?
Sim, eu gostava muito de Edith. Ela já tinha uns 22 ou 23 anos e eu era criança, quando ela ficou noiva de um moço que morava em Santo Amaro, que chamava Luiz Andrade. Essa era a minha irmã querida, era a Edith. Porque como eram muitos filhos, e a Edith, a Marinha era mais velha e depois vinha a Edith. A Marinha casou, casou em Sarroque mesmo, quando eu ainda era pequena, não lembro do casamento da Marinha. Depois a Edith, que praticamente me criou, porque a mamãe tinha muitos filhos, casa, aquela coisa toda, e ela cozinhava, como eram as mulheres antigas. Aí mudamos para São Paulo, fomos morar em Vila Mariana, na rua Baltasar Lisboa. Ela perguntou se ela tem história com os irmãos. Com os irmãos? História com meus irmãos? Eu gostava muito dos meus irmãos, mas os meus queridos eram o Flávio, que era logo acima de mim, e o Paulo. O Paulo era o meu amor. Eu adorava o Paulo. E depois dos irmãos eu tinha Edith, que eu gostava muito de Edith. A Marinha logo casou. Então, é isso aí.
Você tem alguma história com a Edith? Uma história pra contar pra gente? Com a Edith, de quando vocês eram pequena? Alguma coisa que vocês aprontaram juntas?
Não, a Edith era bem mais velha, ela podia até ser minha irmã. Porque era assim, Marinho, Edith, Paulo, Heitor, Isaac, Luiz, Flávio, E eu? Escolástica. Escolástica morreu antes de eu nascer. Eu era um nove alto do topo. Paulo era meu irmão predileto, porque meu irmão, Flávio, ele tinha tido ataques quando era criança pequena, então ele ficou meio deficiente. Então não me punham na escola, Eu era dois anos mais nova, mas eu era muito mais esperta que ele, poderia ser um pouco deficiente. Então não me punham na escola pra não aprender. Mas aí meu irmão Paulo me punha no colo, sentava assim na mesa e lia as historinhas pra mim e eu fui aprendendo a ler com ele. Eu amava demais esse irmão. Nossa, era um amor!
E você lembra alguma história que ele contava em específico? Alguma história dessas?
Contava a história. Ai, como era a história que o Paulo contava. Era um gigante. E tinha um... Como é que era a história, meu Deus do céu? E tinha um pé de planta. Era um pé de feijão. Ah, é! Você não lembrou. Era o João Pé de Feijão. Era o Pé de Feijão que subiu assim, alto, alto, alto, assim lá, bem alto. Então, tinha uma casinha. E eu gostava que ele contasse a história. E ele era bem mais velho. O Paulo já tinha uns 18 anos, quando eu tinha 7.
E você começou a ir para a escola assim, mais ou menos com que idade? Você foi para a escola, como é que foi?
Eu fui para a escola bem tarde, eu já tinha 10 anos quando eu entrei para o estenáfio San José. Mas eu era a primeira da classe, porque o Paulo, esse meu irmão querido, tinha me ensinado a ler e escrever. Então, quando tinha qualquer coisa no primeiro ano, me chamavam para ir para o segundo, para ensinar para as meninas do segundo ano as coisas que eu sabia. Por causa desse Paulo, meu irmão.
Você aprendeu a ler antes de todo mundo com seu irmão, né?
É.
E você gostava de ler historinhas? Tinha alguma preferida, além da do Jô e o Pé de Feijão?
Gostava. Ai, meu Deus, o que é que ele me trouxe? Deixa eu lembrar.
Deixa eu só pedir pra Su colocar a câmera, colocar um pouquinho pra trás a câmera, porque tá muito perto. Se você puder ficar. É, tá bem melhor. E eu perguntei quais histórias você gostava de ler quando ele te ensinou. Ele contava pra você a do João Pé de Feijão. Mas você gostava de ler sozinha quais?
Há tantos anos que eu não lembro.
Tudo bem, não tem problema não. E a gente estava falando da sua escola, né? Como é que foi o seu primeiro dia de aula?
Eu fui matriculada em Sernar São José, que era na Rua da Glória. E era a primeira da classe. Como eu tinha aprendido a ler com o meu irmão, então eu sabia ler e escrever. Às vezes, no segundo ano ou terceiro, me chamavam para ler, porque eu lia correntemente, porque eu tinha aprendido com o irmão Paulo, que era Sernar São José, da Rua da Glória. Depois, eu queria continuar estudando, mas aí diziam, pra que estudar? Vai casar mesmo! Mas eu insisti, entrei no Liceu Paster, e lá então entrei em primeiro lugar. Cheguei em casa e contei, entrei, entrei na escola em primeiro lugar. Ah, que bom! Não fizeram festa nenhuma. Aí papai foi fazer a matrícula. Quando chegou lá, disse não, ela entrou em primeiro lugar, o senhor não paga a matrícula. Aí papai veio pra casa, aí teve festa, Guaraná, E isso me magoou muito. Quer dizer, pelo meu entender, que eu entrei em primeiro lugar, eu merecia tudo aquilo. Não só depois, quando não pagou, aí tive festa. Isso me magoou muito, muito mesmo, o resto da vida. Eu sentia sempre uma mágoa quando ia chegando o Natal, Eu não sabia porque quando ia chegando o Natal, eu ficava numa angústia, mas uma angústia, mas isso até adulta. Até um dia que eu fui fazer análise com uma psiquiatra, uma psicóloga, e aí puxando. Então, por quê? Porque eu não tinha o Papai Noel.
Su, deixa ela contar. É muito interessante pra nós saber todas essas histórias. Eu pergunto pra estimular que ela conte mesmo. Pode contar. Pode contar do seu Natal.
Então, eu tinha essa angústia, porque eu não tinha Papai Noel. E essa angústia cresceu até ficar adulta. Quando ia chegando a época de Natal, eu tinha uma angústia terrível, que eu não sabia por que eu tinha aquela angústia. Até que um dia que eu fui conversar com uma psicóloga, uma psiquiatra, etc. Então, contando a minha história, essa angústia era a falta do Papai Noel, porque eu era criança, chegava na escola, todas contavam que o Papai Noel tinha levado o presente, que ela tinha saído de casa e quando chegou tinha presente na casa, E eu não tinha Papai Noel, em casa não admitiu. Não existe Papai Noel, mas eu queria que existisse. Então, foi uma coisa assim, muito, muito dolorosa a infância.
Me conta sobre os natais da sua família, já que você trouxe esse assunto, me conta como eram os natais da sua família, como era um natal típico quando você era pequena?
Um almoço com toda a família reunida, porque eram bastante, Zé Marinho, Edith, Paulo, Heitor, Isaac, Luiz, Flávio e eu. Era um bando. Então, era na casa de papai e mamãe. Então, tinha aquela mesa enorme, grande, papai sentado na cabeceira da mesa. Aí, na hora de servir o vinho, ele levantava e põe um pouco de vinho em copo de cada um. E põe um pouquinho só no dele, porque ele dizia que ele não bebia. Papai era muito metódico, era juiz de direito, o último lugar que ele trabalhou como juiz foi em Santos, e um escrivão fez não sei o que, não lembro, aí ele se aposentou, não quis mais. Parece que o homem tinha feito umas coisas por baixo do pano, vamos dizer, e papai ficou muito indignado e se aposentou. Quando o papai se aposentou, eu devia ter meus sete anos, sete ou oito anos. Eu era caçula de vários irmãos, Marinha, Edith, Paulo, Heitor, Isaac, Luiz, Flávio. E eu gostava muito de papai. O papai era meio brabo. Se ele fizesse uma malcriaçãozinha, eu podia saber que ele... Eu lembro uma vez que ele me deu uma bengalada na perna, porque eu andava de bengala. Não porque precisasse, mas era pose. Minha mamãe era descendente de espanhóis, era Pérez, né? Era meio brava, até quando eles já tinham alguma briga e coisa, que eu era criança, eu lembro de papai dizendo, espanhola brava. Era tipo de espanhola brava mesmo. Eles eram muito bons.
Você falou dessa relação com seu pai, que ele era meio metódico, mas e como é que era a relação com a sua mãe?
A mamãe era a caçulinha, né? De vários irmãos. Então, era um doce, né? Tudo pra mim.
Você lembra de alguma história com a sua mãe na infância? Algum conselho?
Eu lembro de mamãe cantando rodinhas antigas, ela cantando com a minha irmã mais velha, porque era bastante diferença, porque éramos muitos, né? Então, ela cantando aquelas modinhas assim, acordando, depois que a noite é bela vem vir o luar, as coisas lindas assim. Eu adorava, minha mãe, meu papai era juiz de jeito, ele viajava muito. Primeiro a mãe, quando eu acho que... Bom, eu fui a última, nasci em Soroca. Então, mas ela contava que ela tinha viajado muito, porque papai mudava de comarca, né? Porque o juiz vai assim até chegar em São Paulo, né? E ele só chegou a Santos, aí tive um desentendimento lá com o Escrivão, isso aqui, e aí ele se aposentou. Ele já devia estar com uns, acho que uns 70 anos. Eu era a caçulinha que saía com ele, e eu lembro Ele gostava de se encontrar com os juízes na rua de São Bento, e ele me levava pela mão. Então dizia, ô, Eremita! Ele chamava-se João Eremita, João Emerita, Eremita da Silva Ramos. Então, quando eu chegava com ele na cidade, os colegas diziam, ô, é sua netinha! E o papai todo orgulhoso, não, é minha filha! Porque ele já tinha bastante idade, né? Então, é isso aí. Eu tinha a casa da minha avó, minha casa da minha avó era ali no Largo do Patriarca, sabe ali? E tinha uma rua embaixo que passava o bonde, mas a casa tinha um paredão alto, com uma escada de uns oito degraus, E a casa era ali, uma casa grande, comprida, enorme, assim também. Eu brinquei muito nessa casa da minha avó, que tinha um quintal grande, cheio de árvores, tinha pitanga, tinha araçá, era uma beleza. E eu brincava ali, então, foi no tempo que eu conheci a Branca de Neve, então eu brincava que eu era a Branca de Neve, ali andando no jatinho procurando os anões. Uma delícia de vida.
E nesses passeios, seus irmãos iam juntos para a casa da sua avó? Como é que eram esses passeios?
Eu morei um tempo na casa da minha avó, porque um dos meus irmãos, o Flávio, ele teve defiteria, que era uma inflamação na garganta, e era uma coisa muito séria naquela época, porque era contagioso. Então, eu fui morar com as minhas cias em casa de vovó. E lá que tinha um quintal grande, imagina ali no Largo da Liberdade, na frente não, a casa dava pra rua, mas atrás tinha um quintal enorme, então eu brincava com ela branca de neve, era uma delícia.
Voltando a falar um pouco da sua escola, você lembra como que era o seu uniforme? Você pode descrever como é que era?
Eu nasci em São José, foi a primeira escola que eu entrei. Era uma sainha azul marinho, e a blusinha branca. A gente usava meia branca também, sapatinho preto. Eu devia ter meus oito anos quando eu entrei na escola. Um irmão mais velhinho era meu. Não me ponham na escola pra não passar na frente dele. Então eu entrei tarde. Mas eu tinha aprendido a ler com meu irmão Paulo, então quando eu entrei eu era a primeira aluna da classe, eu já sabia ler e escrever. E eu gostava muito de estudar, eu era muito estudiosa, gostava mesmo. Depois entrei no ginásio e entrei em primeiro lugar, mas não deram valor nenhum, aí eu fui ficando bem vagabunda. Bem mesmo, aí não estudava, teve um ano que eu repeti de ano, mas não faz mal, porque assim eu não passava na frente do Flávio. O que era o uniforme do Pasteiro? Uniforme do Pasteiro? Uniforme do Pasteiro, acho que era uma sainha, cinza, cinza, cinzenta, luzinha branca. O Senado de São José, eu só lembro que o Senado de São José, As melhores alunas faziam parte do quadro de honra, como elas chamavam. Aí eles punham penduradinho a blusa, uma roseta feita de fitinha vermelha, com rabichón. Aí entrava para o quadro de honra, porque era das melhores alunas. Porque o irmão tinha me ensinado a ler em casa, então é claro que eu era a primeira.
E como você se sentiu quando você entrou para esse quadro de honra? Você lembra como você se sentiu no momento, não depois, na hora?
Não me senti honrada, né? Aquela chiquinha vermelha pendurada no uniforme, né? Aquilo era um quadro de honra, o irmão já diz, né?
E você tinha muitas amigas no estenar?
Tinha, tinha muitas amigas, amigas que ficaram até hoje. Uma que se chama Ofélia. Eu entrei na tarde, porque como meu irmão era atrasado, não queriam que eu passasse na frente, então eu entrei tarde. Então, quando eu entrei, eu já sabia ler e escrever, que esse irmão Paulo, que tinha 18 anos quando eu tinha 8, que me ensinou a ler e escrever. Então, claro que eu entrei e era sempre a primeira da classe, era sempre no quadro de honra, como chamavam. Isso foi no Sernaço São José. Depois, quando eu fiquei mais velha, fui morar em Vila Mariana. Não, nós morávamos em Vila Mariana, na rua Baltasar Lisboa. Tem até uma fotografia aqui, meus irmãos aqui na rua. Depois, papai, Quando ele se aposentou, ele comprou uma casa grande, bonita, era um palacete, como chamavam naquela época, porque a casa não era geminada, era uma casa, tinha um jardim na frente, com uma escadinha meio curva, depois um canteiro com plantação de rosas, aquela casa muito bonita ali em Vila Mariana. Na rua... Pinto Ferraz, que depois mudaram para Madre Cabrini, porque na esquina tinha um convento de freiras, onde a freira, a mestra lá, chamava Madre Cabrini, então a rua ficou Madre Cabrini. E dali... É, ali eu vivi até me casar. Aí eu conheci meu marido, Era estudante de medicina, era filho de italianos, e mamãe não queria... Vamos esperar mais um.
Pouquinho, antes de você chegar já no casamento, e vamos falar um pouquinho mais da infância. Você estava falando da sua amizade com a Ofélia, que você é amiga dela até hoje. Você lembra de brincadeiras que vocês faziam?
Eu lembro de eu ir na casa dela, que ela era vizinha, mas bem distante, da mesma cor, Eu morava no... Como é que era? Na Rua Nobre, uma coisa assim, na Casa Nobre, que era no começo da rua, e descia, e ela acho que morava lá no 83, uma coisa assim. Era filha de árabes. A mãe era egípcia e o pai era árabe, da Arábia. Fiz muita amizade com essa criança, que tinha... Duas irmãs, irmão, e até o meu irmão Paulo, que era o meu querido, casou com uma irmã dessa menininha, a Dora. Isso foi em Vila Mariana. Depois, mudando pra rua Pinto Ferraz. Dali da rua Pinto Ferraz, Tinha o Amairinque, e ali, eu não sei se era no Amairinque, que tinha o Colégio Pastor, que era um colégio francês. Aí eu fui para o Pastor, fazer o ginásio lá no Pastor. E como eu era muito estudiosa, gostava de estudar, entrei em primeiro lugar. Fiquei toda feliz, como eu já contei. Cheguei em casa, ninguém ligou, mas quando foi pagar, isso magoou mesmo. Aí, depois que não pagou, eu ganhei o bolo, a festa. E são coisas que marcam na vida de uma criança. Ali eu estudei, mas como não dava valor nenhum, eu acabei ficando com a bunda repetindo de ano.
Conta como é que foi o seu ginásio. Você já foi ficando mais mocinha, aí como é que era? Você costumava sair?
O ginásio também foi no Pasteiro. O primário foi ensinar só José, que era lá na Liberdade. Depois, quando nós mudamos para outra casa, lá na rua Pinto Ferraz, ali eu entrei, que tinha o colégio perto, no Pasteiro. que era um colégio leigo.
E como foi estudar lá?
Eu entrei em primeiro lugar, porque eu gostava de estudar. Eu lembro que eu ficava andando pelo quintal da minha casa, estudando em voz alta, com livro, lendo, lendo, lendo. Então, eu era a primeira da classe. A única matéria que eu chorava era matemática, porque matemática Depois, de bem mais velha, eu vi que matemática não era um bicho de sete cabeças. Mas no primário, para mim, era. Era um bicho de sete cabeças. Eu ia mal em matemática. Eu lembro até de uma vez eu chorando no pastor, porque eu ia mal em matemática, e o diretor, que era um francês, falava, ah, cotidinha, tão bonitinha, não chora, depois vai casar mesmo, não precisa de matemática. Acho graça até hoje, do diretor dizendo que era tão bonitinha, vai casar mesmo? E assim foi. Eu só fiz mesmo o ginásio, né? Depois, deixa eu ver quando foi... Teve.
Algum professor que te marcou nessa época de escola?
Ah, tinha sim! Tinha um professor, como era o nome dele? Eu gostava dele. Porque quando ele falou para mim do Egito, das pirâmides, ele falava com uma descrição que parecia que eu estava vendo o Egito. Tanto que quando eu fiquei em Liúvara, eu fui para o Egito, fui visitar, fui conhecer as pirâmides do Egito, porque eu tinha aquela vontade mesmo, de criança, de conhecer. Então, eu gostava muito desse lugar.
Ana Zélia, eu vou pedir para você só enquadrar na câmera um pouquinho. Então o professor falava do Egito e você ficava querendo conhecer, né?
Querendo conhecer e depois eu tive um... Aí eu já era viúva até quando eu fui pro Egito.
A gente vai chegar lá, né?
Era um austríaco, ele chamava-se Maximiliano Ferber, 10 anos mais velho que eu. Eu fui com ele pro Egito. Foi muito bom, maravilhoso.
Eu imagino que deve ter sido. Mas vamos voltar lá para a época que você ainda estava no ginásio. Aí você começou a ficar mais jovenzinha. O que você fazia para se divertir nessa época, quando você era mais novinha, mocinha?
Olha, eu tocava piano, eu gostava de ir ao teatro, eu ia ao municipal, ver corais lá, porque eu cantava no coral lá do Colégio Pasteiro. Então, às vezes eu ia com colegas do Colégio Pasteiro mesmo, a gente ia de ônibus, íamos também cantar, e era muito bom.
Como era participar desse coral? Conta pra gente como é que você entrou, se você gostava, como é que era?
Bom, quando eu entrei no coral do Pasteiro, eu era criança, né? Eu não era tão criança, porque me atrasavam por causa desse irmão, né? Então... Coral, quem era? Ai, agora não tô lembrando o nome do professor que era do Coral. Não lembro o nome. É... Eu gostava muito. Eu sei que depois, eu quando já... Fiquei mais velha, os anos passaram. Quando fiquei viúva, aí eu fui pro coral da terceira idade na USP. Adorei, né? Eu gostava de cantar.
A gente vai chegar lá, mas na sua juventude você tinha alguma música que você gostava?
Na juventude?
De dançar...
Tinha umas cantiguinhas que a gente cantava e fazia umas assim, era o Terezinha, né? Terezinha de Jesus, de uma queda foi ao chão Estenderam três cavaleiros, cada um chapéu na mão O primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão O terceiro foi aquele que Tereza deu a mão. As cantiguinhas de roda, né? E eu lembro também que ele pulava corda com essa amiguinha, Ofélia, lá na Rua Baltasar de Estúdio, ele pulava corda. Era uma maravilha. Aliás, eu entrei na escola porque essa amiguinha que era vizinha ali, que meu irmão namorava, a irmã mais velha, ela entrou na escola e eu vi ela passar de uniforme e falei, eu quero ir pra escola, eu quero ir pra escola, e aí eu entrei na escola e ela era mais nova que eu, porque me seguravam, mas eu entrei na escola já sabendo ler e escrever. Então, o que mais que eu lembro? Lembro que tinha um cinema lá em Vila Mariana, um cinema... Ah, não lembro o nome do cinema que a gente ia fazer isso.
Mas você lembra de algum filme que você assistiu que você gostou, ou algum filme que você não gostou?
Não me lembro. Tinha filme musical Boys, né? Ah, teve um filme da Branca de Neve, lindo, maravilhoso. Aí, quando eu ia em casa de vovó, eu fazia de conta que eu era a Branca de Neve brincando na floresta. Eu era a caçula, né, de vários irmãos.
Na sua juventude, você gostava de sair com seus irmãos, eles te levavam pra passear? Como é que era? Ou você ia com eles?
Era o Paulo. Paulo? É, que já morreu e tudo. Eu tenho muita saudade do Paulo.
Como é que eram esses passeios?
Ele ia à missa em São Bento, na igreja de São Bento, e me levava. Ia de mão dada com ele. Então a gente ia, assistia aquela missa do meio dia, aquelas cerimônias todas. Depois, na volta, nós passávamos num... Como é que chama? Era uma... Era uma... Era uma doceteria, eu acho, porque ele comprava pra mim bala de alcaçuz. E eu lembro que a gente também tomava sorvete nesse lugar, depois da missa. Na saída da missa, a gente tomava um sorvete, ir e comprar um pacotinho de bala de alcaçuz. Eu adorava esse meu irmão Paulo, adorava mesmo.
Você lembra como eram as roupas da época? Como que era uma roupinha dessa época pra sair?
Ah, eu lembro sim, eu lembro de uma roupinha que eu ganhei de uma madrinha, madrinha de batismo, Era uma sainha de pregas, cor-de-rosa, com as alcinhas que passavam assim no ombro, e atrás tinha assim uma tirinha para segurar, para não cair. Ai, como eu gostava daquela sainha cor-de-rosa. E era minha irmã Edith, que ainda era solteira, que me vestia, punha um laço na cabeça, naquele tempo fazia um abicho assim, com um laço bem grande, cor-de-rosa, E eu ia com esse meu irmão Paulo à missa em São Bento. Era uma maravilha. Adorava.
Tinham festas religiosas, quemesse? Você gostava de ir?
Tinha. Tinha festa assim com o Rojão. Nossa, eu lembro do papai soltando o Rojão. Muito bom, muito bom. Depois o papai comprou uma casinha em Mongaguá. na beira da praia, né? Não era de frente pro mar, era recuada, mas aqui era mato, assim. Mongaguá era selvagem. E tinha uma casinha ali onde morava uma... Era casa, um telhado e tudo. Não, a casa não tinha telhado. O teto era de cimento. Depois começou a avasar e papai mandou fazer um telhado. E ali morava, então, num casebre mesmo. Morava uma mulher que chamava Zéfa. A Zéfa era caseira, ela tomava conta da nossa casa quando nós não estávamos lá. E a casa tinha sido pelo marido dela, mas ela mudou, fez um barraco, mudou e alugava a casa. O papai acabou comprando e nós fomos durante até acho que uns 18 anos, até eu me casar, a gente ia pra Mongaguá. Gostava muito de ir pra lá, porque a praia Era perto, era um mato naquele tempo. Quando o papai comprou a casa não tinha luz elétrica, então nós tínhamos lampiões e querosene. Depois é que chegou a eletricidade, aí então foi puxada a luz, mas era lampião e querosene. Eu lembro do papai vendendo os lampiões, noitinha a gente jantava naquela sala meio escura com lampiões e querosene. fogão a lenha, mamãe lá abanando, abanando, suando com a boca, aquele baita fogão a lenha lá em Baltimore. Tinha uma coisa bem, bem vitoriosa.
O que vocês costumavam comer nesse fogão a lenha? O que a sua mãe fazia pra vocês? O que ela costumava cozinhar?
Faz tanto tempo que eu nem lembro. Eu lembro de comer milho verde, com palmito, porque ali ainda tinha palmito no morro. Então, o pessoal lá cortava os palmitos e vinha vendendo nas portas de casa. E tinha os pescadores, que até tinha um deles, agora esqueci o nome, que mamãe sempre ia comprar peixe dele. Então, a gente brincava que era o namorado de mamãe na praia. O papai foi pouco tempo, depois o papai morreu, mas nós continuamos com aquela casinha em Mogaguá, que depois foi abandonada. Não sei o que virou aqui, não sei. Foi uma pena. Mas era um lugar muito gostoso de ir, em Mogaguá.
E na sua juventude, você começou a namorar quando? Quando começou as primeiras taqueras? A senhora lembra? Só fica um pouquinho alinhada. na câmera pra... porque...
É que eu vou chegando perto. É, a gente espera. Um guaguá. Um guaguá tinha um pé de abricor. Agora que eu lembrei. Sabe o que é abricor? Você já viu abricor?
Nunca vi, o que é?
Era uma frutinha redonda assim, mais ou menos o tamanho de um limão, bem amarelinha. E que a gente... como é que a gente fazia pra comer? Acho que a gente tinha que cortar com uma faca, porque ela era durinha, tinha um caroção dentro, que até eu tinha uma semente de abricor, que em algum lugar, não sei onde que fi levou. E a gente comia, parecia uma farinha bem amarela dentro, assim. Não tinha gosto de nada, mas a gente gostava, porque tinha árvore de abricor, que a gente colhia, então quebrava aquela frutinha e comia aquele pozinho amarelo. Era uma bolinha assim, tamanho de uma bolinha de pingue-pongue. Isso aí eu lembro de Mongaguá. E a casa era distante da praia. A praia era aqui, a casa tinha uma rua, assim a gente ia até a casa. A água, nós tínhamos um poço, mas a água só servia para lavar louças, as coisas não dava para beber, porque era salobra. Aí o papai conseguiu, conseguiu trazer lá do morro de uma nascente, trazer água boa pra casa. Foi uma festa aquela água. Porque a casa, vamos dizer, a casa era aqui e aqui tinha uma construção de pedras. Parecia um poço, mas era fechado. E ali que antigamente a água vinha lá da serra e vinha água até esse poço aqui. Parece que não destruíram esse poço em Mongaguá, acho que existe até hoje, porque ficou uma coisa histórica, porque era do tempo dos bandeirantes. Era muito antiga. E era muito gostoso ir pra Mongaguá. Nossa, comecei a ir pra lá quando tinha sete anos, Fui até os... Acho que até casar. Pois aí meu marido comprou um apartamento no Guarujá e nós... Ficou abandonado, não sei que fim levou.
E como é que você conheceu o seu marido? Como é que vocês começaram a namorar?
Ah, meu marido era filho de italianos e ele estudava medicina ali na escola de medicina que tem ali em Vila Mariana. Como é que chama aquela ali? Ele era oito anos mais velho que eu. Eu tinha 16, ele tinha mais oito. 24, né? Ele só me namorava de brincadeira. Ele não ligava muito pra mim. Aí eu comecei a namorar um primo, que era apaixonadíssimo por mim. A mãe dele era irmã de mamãe e falou, a Zélia está namorando o Luiz, se ela está brincando com ele, ela mata ele, porque ele é apaixonado. Mas eu não matei não, ele morreu. Porque eu namorava para provocar o que foi meu marido depois, o Ítalo. Aí como eu conheci a namorada, o primo, ele me viu saindo de braço dado com o primo e coisa e tal, aí ele se apresentou.
E como é que ele se apresentou? Conta pra gente como é que foi.
Aí ele já se formou em medicina, então foi lá em casa, falou eu gosto da Zélia, a senhora já sabe, era vizinho. E aí, então, oficializamos um namoro. Mas esse namoro durou bastante tempo, até a mamãe dizer, olha, acho que tá na hora de vocês se casarem. Ah, mas eu não posso, porque eu tenho pai, tenho mãe. Não, vocês casam e vêm morar aqui, porque os chamegos estavam ficando um pouco perigosos. Aí nos casamos e ficamos morando em casa de mamãe e papai.
Você chegou a ficar noiva dele? Como é que foi?
É, fiquei noiva bastante tempo. É a tal história do noivado, foi ficando meio quente, e ela disse, olha, é melhor você se casar. Ah, tem pai, tem mãe pra ajudar, não tem problema, mora aqui, continua ajudando.
Teve festa de noivado?
Hein?
Teve festa de noivado?
Não, não lembro de ter festa de noivado, não. Não lembro. Não? Não.
E como é que foi o casamento? Foi o dia do casamento? Como era o vestido?
Ah, o dia do casamento? Tava com a fotografia aqui na mão. Não lembro que dia foi, não. Não lembro nem o dia nem o ano.
Mas você lembra como você se sentiu?
Você tá me enxergando?
Tô.
Então olha aí.
Sobe só a fotinha pra eu ver. Sobe um pouco a foto.
Subi.
Nossa senhora, que linda.
Que linda seu vestido. Pois é.
Agora me conta como é que foi esse dia.
Como foi? Eu tinha 20 anos aqui.
20 anos? É, porque... Você casou com 20 anos?
20 anos. Ele que não quis casar antes, porque tinha que ajudar pai e mãe e coisa. Eles eram descendentes italianos. sobrinho, ele era Estefano. Me apaixonei por ele, era vizinho ali. Foi o primeiro e o único namorado. Namorei e casei com ele.
Foi seu primeiro amor e já casou?
Foi. Casei, levei anos pra casar, né? Mas casei com ele.
Você casou em que igreja? Você se lembra?
Eu casei na Imaculada Conceição, ali na Brigadeiro José Antônio. Casei ali. A mãe dele chamava-se Maria. Meu sogro, como era o nome do meu sogro? Vicente, o pai dele era Vicente de Stéfano. Ele tinha o Ítalo, O Cláudio e o Wilson, três filhos. Casei com o Ítalo. Depois que eu conheci o Wilson, eu devia ter casado com o Wilson, porque era mais meu temperamento do que o Ítalo. O Wilson era brincalhão, alegre, o Ítalo.
Era... E como foi esse casamento? Como foi? Como era a rotina de vocês dois?
Logo que nós casamos, nós ficamos morando em casa dos meus pais. Ele ficou doente, ele foi visitar, ele foi pra Minas viajar, fazer um... Ele era médico, então ele veio a um curso, ou da aula, não sei o que ele foi, e eu não fui porque eu estava grávida e tinha sangrado. Então o médico falou, olha, se não quiser perder, fique quieta e em repouso. Porque se você andar, viajar, qualquer coisa, você vai perder essa criança. Eu não queria perder, não fui com ele. Aí quando ele voltou, ele voltou doente, tossindo, tossindo, tossindo, tossindo, ele era muito magrinho, tuberculose, né? Coisa muito séria. Aí ele ficou naquela coisa, na cama, tratamento, mamãe então dava gemada pra ele, mamãe toda hora levava alguma coisa. Aí ele ficou forte, muita coisa. Depois, então, nós fomos morar em Tucuruvi. Não, eu tive a Cristina quando eu morava com a mamãe. A primeira filha Cristina nasceu em casa de mamãe. Mas depois ele trabalhava no hospital de Joaçanã, que era muito longe de Vila Mariana. Então, ele disse, olha, vamos morar em Tocoruvi, porque ali é mais perto para ir para o hospital Santa Casa. E ele trabalhava também na guarda civil. Era médico da Guarda Civil. Depois ele trabalhou no SESI também. Meu marido era um trabalhador mesmo, viu? No tempo dos militares, nós estávamos morando em Bragança. Você nem sabe da época dos militares, sabe? Sabe?
Sim, mas me conta, eu quero ouvir a senhora contando. Conta pra mim como é que foi.
Os militares estavam mandando no Brasil, né? Então era aquela coisa, tudo muito proibido. Aí nós morávamos lá em Tucuruvi. De Tucuruvi... Primeiro casamos, ficamos morando no casa do papai. Depois, então fomos pra Tucuruvi. Morávamos lá na rua. Não me lembro a nome da rua. Era uma rua que ia dar lá no Jaçanã, que era o hospital que ele trabalhava. Depois teve um tempo que nós viajamos pra Brasília. O presidente da república era o Neibraga. Então fomos lá, ele foi fazer um pedido lá, não sei do quê, pro Neibraga. Fomos pra Brasília. Foi o negócio que ele foi pedindo. Ai, meu Deus, o que era? Acho que era uma santa casa lá, que tinha um frades. Era uma vida bem, bem venturosa.
E como é que era?
Hã? Tá sem som.
Desculpa, é que eu tenho que ficar desativando e ativando o som pra gravação, pra ficar melhor. Mas eu tô te perguntando, como é que era ser casada com um médico? Como é que era a rotina dele?
Olha, eu era a filhinha caçula. Então, eu era muito mimada, tocava piano e coisa. Aí, casamos e ficamos morando na casa do papai um tempo. Mas depois ele... Era muito penoso pra ele ir de Vila Mariana até lá, O hospital do Jassanã, né? Tem até a musiquinha, né? Sabe qual é? Oro em Jassanã. E tinha um trenzinho que ia pra lá. Se eu perder esse trem, que sai agora às oito horas, só amanhã de manhã. Então nós fomos morar lá, perto do Jassanã. E lá eu tive a Cristina, a Suzana. Acho que as três filhas, a Cristina, a Suzana e a Maria.
Como foi ser mãe pra você? Como foi ser mãe?
Ah, foi bom, eu amamentava, eu tinha leite, amamentava, mas logo perdi o leite, eu lembro que aí tive que dar mamadeira, principalmente pra Cristina, que chorava, chorava. E aí, tinha um médico na família, casado com minha irmã, que era médico pediatra, mas ele dizia, ah, ela tem dor de ouvido, dor de ouvido. Aí, quando nós saímos da casa da mamãe, que fomos morar lá em Tucurubi, Vem o médico lá do Jacena e falou assim, a criança tá morrendo de fome? A senhora não tem leite? E aí passou para a mamadeira e aí a Cristina parou de chorar, cresceu. Depois veio a Susana, né?
Mas você lembra como é que foi o primeiro parto? Você estava nervosa? Como foi esse dia?
Vou falar em francês... Porque eu ajudei alguns em casa de mamãe, né? A primeira filha, Cristina, nasceu e nós morávamos com mamãe e papai. Quando nós mudamos, nós tinha a Cristina pequenininha, né? Foi duro, foi duro, porque eu tava lá em casa de mamãe, era aquela história, né? Eu ia pra cozinha, vai pra lá, vai tocar piano. E meu marido achava ruim, então resolveu mudar e fui lá pra Tocoroví. Eu, uma cristina pequenininha, logo depois fiquei grávida da Suzana. Foi duro, foi duro sim. Tinha os colegas dele, tinha o Martins, tinha o Bernardo, com as mulheres, Martins com a Magda, que era muito bonita a Magda, mas era meio lelé. Martins, a Magda. com o Rubens, com a Cal, não sei, mas o apelido dela era Cal. Gostava da Cal, eram muito amigas.
E que programas vocês costumavam fazer em família?
Bom, quando eu mudei para Curuvi, era muito longe de Vila Mariana, muito longe. Muito longe. Eu ia durante a semana visitar meus pais, porque no sábado, domingo, às vezes a mãe dele e o pai íamos lá pra casa, já tinha um quarto pra eles, dormíamos lá, e aí Dona Maria cozinhava, e o meu marido falava, vai à missa, vai, vai à missa. Eu ia à missa em São Bento, pegava o ônibus e ia pra São Bento. Naquele tempo ainda não tínhamos carro. Foi bem movimentada a minha vida, não foi uma coisa suave, não. Mas minha sogra era um anjo de pessoa, era boníssima. Minha sogra era assim meio boêmia, gostava de cantar. Um dia que encontrou com o meu irmão Paulo, que também tinha sido um bom boêmio, eu lembro do meu irmão Paulo, já conheço, Olhando de lado, assim, já conheço. Meu sogro ficou mudo. Porque meu sogro era cacheiro viajante. Sabe o que é cacheiro viajante hoje? Nem se ouve falar nesse termo, né?
Então, conta pra gente o que é.
Era uma pessoa que tinha uma mala grande, aí punha peças de roupa, camisas e coisas. E saía pra vender pelo interior, batia porta em porta. E a minha sogra, coitada do Dona Maria, ela que costurava, fazia as camisas, fazia essas coisas. E aí foi bem penosa pra ela. Meu sogro era muito alegre, gostava de cantar.
Vocês iam bastante na casa dele, faziam jantares.
Na casa deles não, eles é que vinham a minha casa. Eles moravam em Vila Mariana e nós morávamos em Tocorovira, bem longe. Então eles iam pra lá e tinham quarto, às vezes eles dormiam lá pra não ter que estar voltando. Tinha um irmão do meu marido, que era um cuca fresco, o Cláudio, morrendo, solteirão. Ai, que saudades! Minha sogra era um amor de pessoa, um amor mesmo.
Vocês costumavam viajar juntos em famílias? Você, seu marido, as crianças?
Ah, meu marido gostava de viajar, sim. Viajamos, sim, fomos pra Itália.
Conta pra gente como é que foi essa viagem?
Ai, como é difícil lembrar. Eu lembro que nós fomos primeiro pra França, até nós queríamos ver onde era a tumba de Napoleão, e uma velhinha de chapéuzinho e coisa, e eu sabia falar francês porque eu estudei no Pasteur, e gostava. Gostava porque tinha colegas francesas, então eu imitava, então eu falava francês como uma francesa. E quando chegamos na França, Eu cheguei para uma senhora de idade e falei, madame, se você puder, onde é a tumba de Napoleão? Ela pôs o dedo assim na bochecha. Na tumba de Napoleão? Como é que você não sabe onde é a tumba de Napoleão? Eu falei, madame, eu sou brasileira e eu arretei o país hoje. Oh, mas vou falar muito bem francês! Mas não ajuda, minha filha! Aí ele explicou onde era a tumba de Napoleão, nós fomos visitar, era uma igreja, eu não lembro que igreja era, era uma igreja muito grande, muito bonita, mas que tinha um... a gente entrava assim na igreja, tinha aqueles bancos, aquelas coisas, mas assim, lá perto do altar, Tinha um buraco e lá embaixo era a tumba de Napoleão. Mas era como se fosse uma capela. Então por quê? Porque pra gente ver a tumba de Napoleão, a gente inclinava. Então dizia que todo mundo tinha que se curvar pra ver a tumba do Napoleão. Formidável, né? Coisa maravilhosa.
E as crianças estavam junto nessa viagem, você lembra?
Não, eu ainda não tinha filhos, só eu e meu marido.
E o seu marido? E ele, o que achou da viagem?
Ah, ele não falava nada de francês, depois nós fomos até pra Itália, fui visitar lá. Ah, ele fez um trabalho sobre silicose. Ah não, esse da Itália era asbestose, sabe o que é? Asbesto é do eucalipto. E que soltam, o eucalipto soltam, não sei se é uma sementinha, o que é, que quem morava nessas regiões, geralmente respirava, e essa poeira do eucalipto, essa coisa, ia pro pulmão e dava uma doença chamada asbestose, que era do asbesto. E também teve um outro lugar que tinha, quando o pessoal trabalha com louça, tem Não sei como é que eu vou explicar, porque eu sei que... A louça também é feita de um pó. A louça. Era a sílica, chamava. Então quem trabalhava com a sílica ficava com silicose, porque respirava aquela poeira que entrava no pulmão e endurecia o pulmão. Então era uma coisa muito séria a silicose. E ele fez um trabalho sobre a silicose. E eu lembro que eu fui até, uma vez eu fui numa fábrica de louça, depois que eu fui eu fiquei juva, e fui ver o trabalho do pessoal ali naquela poeira. E eu falei, e não dá muita silicose? Falei pro chefão lá dessa fábrica. Ah, a silicose dá nos campos. Mentira, a silicose dá ali na sala, porque Eles lidavam com a louça sílica, lixando, ficava aquela poeira fininha no ar que endurecia os pulmões. Então, meu marido se especializou em silicose. Então, quando eu vi isso lá, que eu fui para a fábrica, eu vi isso. E o homem ficou danado, falou, não, sílica pega-se nos campos. Então, tem uma vida bem variada.
Você comentou que ficou viúva. Quantos anos mais ou menos durou esse encasamento?
Você lembra quando seu pai morreu? 64. 64? 84. 84? Eu casei em 50 e ele morreu em 84.
Foram 34 anos. Você tem mais histórias para contar em família? Alguma que você queira contar? Os seus filhos?
Eu lembro uma vez, eu andando, o meu irmão andando de bicicleta, mas assim, me pôs sentadinha no cano, né? Sentava assim, com uma alfadinha, sentei. Aí, a bicicleta andando, eu vi aquela roda tão bonitinha girando, botei o pé. E a roda comeu. Eu tive que ficar de cama, toda enrolada. Sei lá que remédio que eu tinha naquele tempo, acho que era iodo, sei lá, que doía. Acho que fiquei bem no pé, porque eu pus o pé na roda. Uma coisa de infância.
Mas e com o seu marido? Você falou que ele morreu em 84. Como foi pra você esse momento?
Olha, ele era muito mais velho que eu. E era vizinho, estudante de medicina. Me apaixonei por ele assim pela janela. Era a nossa casa, tinha uma casa no meio e a casa que ele morava era a casa de uma tia dele, uma irmã da mãe dele. Eram ricos, eram mazonetos, eram fazendeiros de açúcar. Como é que chama aquele lugar? Americana. É, em Americana. E eles tinham fazenda lá de plantação de cana, né? E tinha um moinho. Eu gostava de ir no moinho, ver moer a cana e fazer a garapa, né? Muito bonito aqui, nossa! Coisa muito boa. Aliás, meu marido chamava-se Ítalo. É italiano, né? Filha de italiano. Minha sogra era um anjo de pessoa. Então... Eu nasci em São Roque, falei, né? É.
E com as suas filhas? Você tem alguma história pra contar? De algum momento divertido que você viveu com elas? Como é que foi o crescimento delas?
É, Cristina, Suzana e Maria Lúcia. Cristina era a mais velha e era muito quieta, ficava muito sozinha. Às vezes lembro dela sentada num banco balançando os perninhos, assim, quieta, quieta, olhando, assim, uma árvore. Suzana era mais poleta, era muito engraçadinha, muito engraçada. Ela deitava na cama, gordinha, batia na barriga assim, e eu chegava lá para tirar ela da cama, ela estava sempre rindo. Suzana era sempre risonha, sempre risonha. Só uma vez que ela teve não sei o que, que ficou assim, eu dizia, olha o anjo bravo, porque aí ela ficou brava, brava. Depois veio a Maria Lúcia, que foi igualzinha também. Muito bom!
E como eram os natais em família de vocês?
Pois é, na casa de papai não tinha essa história de papai noel, nada disso. Natal, nascimento de Jesus, a gente fazia um presépio. No presépio tinha a caminha com o menino Jesus, José Marias, duas estátuas. E fazia uma mesa bem grande embaixo da escada, então ali a gente forrava e punha areia e punha matinhos, coisas assim. Era um prazer bem lindo. A gente gostava de fazer aquilo. Mas não tinha essa história de Papai Noel, não. Papai Noel não existe. Invenção de americano. Mas eu queria que tivesse o Papai Noel, porque quando eu chegava na escola, todas as coleguinhas contavam com o Papai Noel, saíam de casa quando eu voltava, o Papai Noel tinha deixado presente, que o Papai Noel entrava pela janela e eu queria ter o Papai Noel. Só essa trauma do Papai Noel, depois crescendo, velha, casada, eu tinha uma angústia quando ia chegando o Natal. Quando entrava, dizia Natal, Natal, lá vinha e me dava um nó na garganta. Um nó, que uma vez eu fui a um médico para ver o que eu tinha na garganta. Porque eu sentia como se eu tivesse um caroço, eu engolia e tinha um caroço na garganta. Era angústia, a angústia de não ter o Papai Noel. E aí foi conversando com uma psicóloga, sei lá, que chegou a me falar o que era essa minha angústia. E sabe aí, né? Depois que a gente faz a análise e descobre... Era aquela angústia de não ter o Papai Noel. Sofri muito, até... Acho que até já era casada, quando eu encontrei essa pessoa, essa psicóloga, conversando com os assuntos. Cheguei à conclusão e acabou a angústia.
Você chegou a fazer Papai Noel para suas filhas, chamar o Papai Noel?
Eu cheguei a fazer Papai Noel para vocês, Suzana? Não, só para os netos. Não, Suzana está dizendo que não. Elas foram criadas ali, quem dá o presente é papai e mamãe. Para os netos, sim. Alessa, quem foi que se vestiu? De Papai Noel. Isso lá em Vinhedo, né? Na casa de Vinhedo, aí eu morei em Vinhedo, eu tive uma chacrinha lá com meu marido. Vinhedo.
Deixa eu voltar só um pouquinho, depois que você ficou viúva, você comentou, você chegou a namorar de novo, como é que foi essa sua vida depois da viúvesca?
Meu marido era sócio do Rotary Club, um casal que nós conhecíamos, que era o Maximiliano Ferber, e a mulher dele, a Catarina. A gente até sentava junto na mesa e coisa. Aí meu marido morreu e a Catarina morreu. Aí juntamos trapinhos. Mas não moramos juntos, nós viajávamos muito juntos. Com ele eu fui pra França, eu fui pra Grécia, eu fui pro Egito. O Maximiliano foi um ótimo companheiro, ele era dez anos mais velho que eu. Mas foi, as viagens maravilhosas que eu fiz foi com ele.
Como é que vocês começaram a namorar? Como foi a primeira viagem que vocês fizeram?
Foi depois de um tempo que eu encontrei com ele, porque nós éramos sócios do Rotary Club, né? Então a gente se reunia à noite, às vezes tinha um jantar com todos os rotarianos, né? Então, o Maximiliano ia lá com a mulher dele, a Catarina, eu ia com o Ítalo, a gente às vezes até sentava na mesma mesa, a gente se conhecia, outras pessoas, o Robert, todo mundo ali. Depois, de repente, eu fiquei viúva e logo depois eu soube que o Maximiliano tinha ficado viúvo. Aí, um dia, ele me chamou para jantar com ele num restaurante ali no Itaim, E eu fui com a Maria Lúcia. Aí, nos encontramos e tudo, ficamos amigos. Depois ele disse, como é, o nosso relacionamento vai ficar assim platônico ou... Eu falei, bom, pode ser ou, né? Mas não morávamos juntas. Mas foi muito bom, porque com ele eu viajei bastante, ele tinha uma casa Mesmo de yoga, a gente ia pra lá com a filha dele. Fiquei muito amiga da filha, que era regular de idade comigo. Pra ver como ele era bem mais velho, né? Então, foi muito bom. Foi muito bom.
Tem alguma história de viagem que você fez?
Viagem?
Conta como eram essas viagens que você fazia.
Se eu tenho viagem... Então, eu quero.
Ouvir, conta pra mim.
Eu fui pra Grécia, porque eu já tinha lido coisas da Grécia, as termópilas, o cavalo de Troia, as coisas maravilhosas, então eu fui conhecer esses lugares. Minha vida foi muito movimentada. Eu fui pra Grécia, depois eu fui Eu fui para a Inglaterra com esse Maximiliano também, fui para o Egito, fui para a França, Dulce France, Chapei de Manufance.
Dos lugares, qual mais te impressionou?
Impressionou a Grécia. A Grécia, quando eu vi as termópilas, aquelas coisas antiquíssimas, né? Contavam aquelas histórias de gigantes, de faunas e coisas. A Grécia, maravilhoso, maravilhoso. Eu fui para a França, conheci bem o país, o interior da França. Fui até, como é que chamava aquele... Mons... Mont Saint-Michel é na França? Não é na Espanha? Ah, o Mont Saint-Michel, que é uma coisa maravilhosa! A gente ia de carro e de longe assim a gente enxergava uma coisa, parecia uma ilha, e ali, em cima dessa ilha tinha construído um palácio maravilhoso. Nossa, como é que chamava aquilo lá? Era o Monte São Michel, isso mesmo. Lindo, porque era assim um deserto de areia, tinha um mar e uma ilha e nessa ilha esse Monte São Michel. Muito lindo. Tinha uma abadia antiguíssima. Maravilhoso, maravilhoso.
O que a senhora mais gostou Acho.
Que eu fui com você, né, pra São Michel? Eu fui com a Suzana pra São Michel. Com o Maximiliano, o velho, eu fui pro Egito. Ver o Egito, ver as pirâmides. Ai, que coisa linda, aqueles cameiros, pessoal andando de cameiro, aquela areia. Nossa!
O que você mais gostava de fazer quando você viajava?
Eu tinha um chapéuzinho bonitinho, era muito calor, né? Geralmente a gente tinha que levar um leque, porque tinha que abanar, porque lá no Egito tinha muita mosca, e as moscas vêm e elas pousar nos olhos da gente, na boca, então a gente tem que ficar o tempo todo se abanando assim. E eu vi a tumba de Tutankhamen, viajei naquelas ruínas, naquelas coisas maravilhosas. Foi muito bom, muito bom. Eu não passei pela vida em Brancanubi, não. Viajei bastante. Dinheiro mais bem gasto.
E as suas filhas se davam bem com o Maximiliano? Como é que era?
Bom, a Suzana acho que já era casada, a Cristina também, era mais a Maria Lúcia. A Maria Lúcia ainda era solteira, dava bem sim. Tinha os filhos da Cristina também, que às vezes eu ia com o Maximiliano lá para Jundiaí, que a Cristina morava, Eu lembro uma vez que a Cristina foi viajar, foi para a Europa, eu fiquei com eles, o Maximiliano foi lá me ver, então conheceram o Maximiliano. Foi muito bom. Até tem uns amigos do Rotary dizendo, por que vocês não casam? Vocês dois são solteiros. Casar pra quê? Tá bom assim?
Você comentou, mas eu não conheço. Como é que era esse Rotary Club?
Acho que ainda existe o Rotary Club, será que não?
O que fazia lá?
Olha, o Rotary era mais um clube de reuniões mesmo, então tinha palestras, jantares. E eu conhecia as esposas de outros rotarianos, então nós trabalhávamos em costura pra pobre. Nós tínhamos lá em Santo Amaro, era um salão grande que o Hotra tinha alugado pra nós trabalharmos ali e ensinávamos costura pra pessoas pobres que quisessem aprender. Então foi muito bom, porque se conviveu com outras hotarianas, depois tinham jantares, meu marido ia também. Foi muito bom. Muito bom. Não sei se ainda existe, não sei. Mas era uma coisa muito boa. E a maioria deles eram descendentes de alemão, porque em São Paulo tinha muito alemão. Eles falavam assim, não é? Isso está bonito, não? Era muito bom.
Eu não perguntei. Depois do ginásio, você voltou a estudar?
Depois do ginásio, depois... Acho que depois que eu fiquei viúva, até. Aí eu fui estudar inglês. Fui sim, entrei numa escola de inglês.
E como foi estudar?
Muito bom, muito bom. Gostei, me dava bastante tempo.
Você estudava inglês aonde?
Na cultura inglesa. Um lugar chamado Cultura Inglesa. Aliás, tinha na França. Quando a Suzana morou na França, eu fui visitar a cultura inglesa na França. É uma coisa universal. Muito bom. O lugar que eu gostei mesmo foi o Egito.
Conta mais sobre o Egito.
Sobre o Egito? É difícil. Eu falo no Egito, eu fico vendo o Egito, é real, imenso, aquelas pirâmides colossais. Foi muito bom. Tinha gente andando a camelo no Egito. Eu não cheguei a montar no camelo. Eu fui com o Maximiliano hoje. Coitado, um dia ficou ruim, acabou vomitando lá, passou mal, porque ele era meio comilhão, sabe? Mas foi maravilhoso. Fui pra Grécia também, gostei muito de ir à Grécia. Estudou na USP? É, estudei na USP, mas na USP foi depois de viúva.
Então me conta como é que foi estudar na USP. Você estudou o que na USP?
Era a universidade aberta à terceira idade. Então a gente era muito bom porque não precisava fazer lição e nada. Tinha gente que tomava nota de tudo. Eu disse, não, o que entrar... E eu batia-se no peito, dizia, o que entrar aqui e aqui é o que me basta. Não vou só de professora, nada. Eu vim aqui, eu vim pra ver as aulas, assistir as aulas, ouvir as aulas, mas não vou fazer nada com isso. E foi muito bom, muito bom. Fiz vários cursos na USP. Foi muito bom. Cursos de que?
Você pode falar? Quais cursos você fez? Eram cursos livres?
Eram cursos livres, então tinha cursos de histórias de lugares, tinha curso de francês, mas aí eu já falava francês desde o tempo do poster, né? E depois tinha muita amizade, né? Tinha esse limão contra pessoas da mesma idade fazendo Universidade aberta à terceira idade. E era livre, quer dizer, você ia, assistia aula, não pagava nada. Foi muito bom, muito bom.
Fez amigos lá, na USP.
Fiz, tive a Dulce. Ah, teve outro. Não lembro mais. Já fazem tantos anos. Só me lembro da Dulce, que mora aqui perto, mas eu ultimamente ligo pra ela e ninguém atende. Será que já se foi? Ela é mais nova que eu, mas... Mas foi muito bom.
E como é que ficou a sua vida depois do corona? Como é que era antes e como ficou depois do coronavírus?
A única coisa é que eu não tenho saído de casa Suzana vem hoje, ela tá aqui Eu tenho aqui também uma moça que trabalha pra mim, que tá aqui também Estão vendo televisão E eu gosto muito de ler, eu não tô sempre lendo... Você gosta de ler o quê?
Ler o quê?
Ah, eu gosto de ler. Livros, revistas, não fica caindo na minha mão. Agora eu tô lendo. O que é que eu tô lendo, meu Deus do céu? Ah, nem sei. Falando do meu criado do mundo. É bom, né? A gente que gosta de ler não fica sozinho.
A senhora tem netos?
Tenho, tenho neto, o Daniel, o Dudu, que são filhos da Suzana. A Cristina, eu tenho o Plínio. O Plínio. E o Felipe morreu. Também é filho da Cristina. Era um mocinho bonito, inteligente. E tem a Maria Lúcia, que tem o João. Ele já está com 21 anos, Lucas Sula. Daniel é o homem das cavernas, já pesquisou tudo que é caverna do Brasil. Agora ele está estudando na USP, acho que é paleontologia, né? Geosciências. Ah, geosciências, ele está fazendo na USP. que não gostava de estudar quando era mocinha, mas agora que tá com mais de 40 anos, tá na USP.
E como você se sentiu quando você se tornou avó?
Quando eu me tornei avó? É o meu primeiro neto. O Daniel, né? Daniel, filho da Suzana. Ai, como ele era engraçadinho, mas muito engraçadinho. O mosquito elétrico. Ai, meu Deus, eu lembro que eu morei em... Morei em... Ai, morei em que cidade do interior mesmo? Bragança. Mas antes de Bragança? ali que morava a Cristina. Vinhedo, morei em Vinhedo, que é perto de Campinas, pra ali. Vinhedo, tive uma chácara ali. É, uma chacrinha.
E como era lá em Vinhedo?
Bom, eu já tinha Esse apartamento aqui que eu moro. Mas a gente ia para o vinhedo com o marido que gostava. Lá tinha plantação de rosas, couve, coisas assim. Era uma chacrinha, não era muito grande. Mas era uma chacrinha. Depois ele inventou de comprar um sítio. Aí já era no caminho para Campinas. Aí longe. Ali... Tinha uma casa grande, velha. Nossa, o telhado tinha corteira, mas a gente reformou o telhado. Eu disse, é melhor derrubar que fazer outro. Ele disse, não, não. Mas deu tanto trabalho, refazer o telhado, fazer as paredes. Ele falou, é bem que você tinha razão, era melhor ter feito uma nova. Mas moramos ali também. Ali era bem maior, ali já era um sítio mesmo, não era mais uma chácara. E lá embaixo tinha uma nascente, então ele pôs uma bomba e da nascente vinha água pra casa. Era bem longe assim, bem longe, bem lá embaixo, porque era um terreno inclinado. E ali nós moramos, eu já estava eu no meu quarto.
Vocês dormiram em quartos separados?
É, dormíamos em quartos separados. Mas tinha mais quartos pra hóspedes, então tinha uma irmã que ia muito pra lá com o marido. Às vezes ia a Marinha, que era uma irmã já viúva, ia pra lá. Marinha era pintora. Esses quadros que você, não sei se você enxerga aqui na parede. Acho que não. Esse aqui, de flores aqui. Foi da Marinha que pintou. Ela era pintora, a Marinha. E a Marinha ia pra lá. A Edith com o marido dela, Luiz Andrade, eram muitos meus amigos, também iam. Mas eu vinha embora pra lá, vinha pra São Paulo. Lembra-se do apartamento que eu já tinha aqui. Gostaram de morar em um interior sozinha lá? Porque ele era médico e trabalhava em hospitais. E ele ia pra trabalhar e eu ficava sozinha lá no deserto. Pegava meu carro e ia pra São Paulo. Primeiro me hospedava com as irmãs, depois o meu marido comprou esse apartamento que eu moro até hoje.
Tem alguma coisa que eu não tenha perguntado que a senhora queria contar aqui? Algum fato importante, algum momento marcante?
Tem coisa séria.
Ah, então me conta, que eu quero saber.
Um homem que foi vender produto pra ilustrar os talheres, coisa de praça. Eu tinha minha sobrinha, Sarinha, que era mais... Eu devia ter meus oito anos, a sobrinha devia ter uns seis, por aí. E esse homem, então, trouxe o tal produto e disse, ah, a senhora pode experimentar lá dentro, com o que a senhora quiser, e me pôs no colo e falou pra minha sobrinha, vai buscar um copo d'água. E me pôs no colo e me masturbou. Foi uma coisa terrível pra uma criança de 10 anos, 9 anos, sei lá. Impressão muito séria, muito mesmo. Eu lembro que eu consegui sair do colo dele, saí correndo, fui subindo a escada de casa. Mãe disse, o que foi? Onde é que aconteceu? Eu vou me lavar, porque o homem pôs a mão no meu xixi. A mãe foi correndo lá brincar com o homem. Mentira da menina, ela faz mentira. E foi embora. Desgraçado. Coisa muito marcante.
Mas a sua mãe acreditou em você?
Ela não acreditou. E ele saiu dando risada. Depois, anos depois, conversando com uma cunhada que morava na frente da nossa casa, de um lado, atravessando a rua, era a casa dessa moça que meu irmão casou com ela. Aí comentando, ela disse, mas esse mesmo homem, ela era três anos mais velha que eu, também fez isso comigo, quando eu era criança. Olha que horror! Um tarado! Coisas da vida.
Infelizmente, dona Azélia. Mas, o que a senhora achou de dar o seu depoimento?
Meu depoimento?
É, o que você achou de dar essa entrevista para o museu?
Ah, você que tem que dizer o que você achou.
Eu achei ótimo, adorei a senhora, adorei a sua história de vida. Você realmente fez muitas coisas e não passou em branco mesmo, viu?
Muito obrigada.
O que a senhora achou que você sentiu na entrevista? Você gostou?
Pode ser. Meu pai recitava um verso assim, quem passou pela vida em branca nuvem, em cálido regaço adormeceu, quem não sentiu o frio da desgraça, quem passou pela vida e não sofreu, Foi espectro de homem, foi homem. Só passou pela vida, não viveu. E é uma verdade.
É verdade mesmo.
A vida a gente tem que passar por tudo.
Pode falar.
Eu adorei. O que eu gostei na minha vida foi ter ido pro Egito. Até hoje eu lembro daquelas coisas, aquele areal imenso, o Rio Nilo. Eu andei de barco no Rio Nilo.
Sério?
Sério!
Me conta, pode contar!
Maravilhoso! Nós fomos desde onde ele diz água, então nós subimos o nível, fomos até as pirâmides, aquela... como é que chamava aquela figura? Que diziam, como é? A esfinge! Que diziam que ela falava, né? Decifra-me ou eu te comerei. Era uma imagem, parecia um bicho, com as patas enormes assim. Era grande, era um monumento grandíssimo. E a cabeça parecia a cabeça de um cachorro, porque tinha um naricão assim pra frente, umas orelhas. Era esfinge aquilo ali, imenso. E tinha também, como é que chamava? Aquelas construções, Suzana, aquelas construções, que era que chamava? Termópilas, não? Não, que tinha aquele, um morro assim. Foi maravilhoso, foi maravilhoso. Foi muito bom. E foi muito bom fazer entrevista, me fazendo lembrar de coisas que eu gostei muito de ter visto.
Aí eu fico muito feliz.
Depois, mais tarde, quando eu fiquei viúva, a Suzana morou lá um tempo, aí fui para a França. Da França eu fui para a Espanha, fui para a Barcelona, que é uma cidade muito linda, viajei bastante. Fui para a Inglaterra, foi muito bom.
Tem alguma história dessas viagens que você queira contar ainda, da França, na Espanha?
Pode contar.
Ainda tô aqui.
Não. Não, são viagens que eu fiz mesmo. Foi muito bom. Foi muito bom.
Então, esse eu vou encerrar a gravação aqui e a gente continua falando, tá?
Tá bom.
Obrigada.
Recolher