Projeto Memória Oral Museu da Pessoa
Entrevista de Zilda Kessel
Entrevistada por: Lucas Torigoe (P/1) e Heloisa Ruas (P/2)
São Paulo, 15 de agosto de 2024.
Código da entrevista: MUPE_HV008
Revisão: Nataniel Torres
00:00:20
P/1 - Obrigado por você estar aqui, né? E a gente sempre começa com uma pergunta muito difícil, que é: qual é o seu nome completo, onde você nasceu? Que dia que foi, por favor?
R - É meu nome, é Zilda Kessel. Eu nasci dia 8 de novembro de 1964, em São Paulo.
00:00:36
P/1 - É o mesmo dia que eu nasci.
R - Então está feita a primeira conexão.
00:00:41
P/1 - Dois escorpianos, né? Zilda, você sabe como é que foi, te contaram, como é que foi o dia do seu nascimento ou alguma coisa assim?
R - Eu sei. Sou a terceira filha, eu tenho dois irmãos mais velhos. Os meus dois irmãos mais velhos nasceram no Rio e aí meus pais mudaram pra São Paulo. Inicialmente era uma permanência de 2 anos e minha mãe tá aqui até hoje. Meu pai já faleceu. Esses meus dois irmãos nasceram com uma diferença muito pequena, e eu assim cheguei num momento muito diferente daquele. Meus pais estavam em São Paulo. Meu pai tinha vindo por conta de uma boa proposta e era um domingo. E a história familiar era que era uma menina. Quer dizer, não se sabia, né? Nessa época, não se sabia antes, mas que era uma vontade assim de ter um terceiro filho e que fosse uma menina, porque eu tinha dois irmãos mais velhos. Consta que era um domingo e tinha sol. E também eu acho que na condição familiar já era uma situação melhor, então a minha mãe tinha uma médica, sabia quem ela ia encontrar, e essa história familiar. E também que depois dos 2 primeiros filhos que a minha mãe tinha lido coisas, na época, parece que a moda era um tal de Doutor Spock, é engraçado que é o mesmo nome do da Guerra nas Estrelas, mas era um médico que escrevia e nesse terceiro, nesse terceiro filho, no caso foi uma filha, ela decidiu que ela não ia seguir nada que tinha nos livros que ela tinha lido, mas que ela ia seguir a própria experiência. Então essa história familiar que eu tenho contada.
00:02:43
P/1 - Entendi. Você me fala um pouco da família, do do seu, do seu pai, então quem eles são, de onde vieram?
R - Bom, o meu pai é filho único de imigrantes que vieram de uma área que dependendo do ano, era ou Polônia, ou Rússia, né? Nesses territórios de litígio em que, dependendo do Atlas e de quando eles eram, enfim, viviam em aldeias pequenininhas, muito pobres. E eles chegam no Brasil ou em 28 ou em 29, por conta da condição de miséria, né? E de um antissemitismo que foi crescendo. Eles chegam no Rio, esse meu avô paterno, ele era barbeiro. Ele não chegou a ter uma barbearia, mas ele trabalhou como barbeiro aqui. E a minha avó era esposa dele, analfabeta. Eu não sei claramente se ela chegou grávida ou engravidou logo depois, e o meu pai nasceu em 29, no Rio. Ele morreu muito cedo, esse meu avô. Tem uma imagem ou outra, pouca coisa, mas tem um passaporte, que foi o que serviu alguns anos atrás para eu pedir uma cidadania europeia, justamente com esse passaporte desses meus avós. É essa história. E é uma história de dificuldade, de pobreza, enfim. Mas, meu pai cresceu num Rio de Janeiro, que era a capital, e que por conta de ter escola pública, que foi o Pedro II, e o Rio ser capital, foi possível para ele a superação de uma experiência de pobreza, de miséria, etc. O depoimento dele tá aqui no museu, ele conta muito bem essa história desse tempo.
00:04:57
P/1 - Mas me conta, qual é o nome do seu avô, da sua avó?
R - Então. Esse meu avô paterno se chamava Chaya, que foi traduzido como Carlos, que foi a homenagem dele, dado o nome do meu irmão Carlos. E a minha avó era minha avó Sara, mas foi registrada como Sora e foi uma avó muito presente. Ela morou conosco muitos anos, enfim.
00:05:28
P/1 - Então, o seu avô você não conheceu?
R - Não, ele morreu, ele não tinha 55 anos ou qualquer coisa, algo assim, né? Eu não conheci e o meu pai sempre falou muito pouco dele. Assim, parece que era uma relação muito difícil, silenciosa. Não há memórias relatadas a respeito desse avô.
00:05:50
P/1 - Entendi. Agora a sua avó, então, o que você está me falando, você viu ela, conheceu ela, e ela foi bem presente na sua vida, é isso?
R - Super presente na nossa vida, morou com a gente muitos anos, enfim.
00:06:11
P/1 - A gente volta para ela já, então, mas me fala o nome dos seus avós maternos.
R - Então o meu avô materno também, são sempre as traduções engraçadas, né? Ele tinha o nome já. [Jankiehuin] Iídiche que na vinda para o Brasil ficou como Jankiel, e a minha avó tinha um nome “improduzível” na origem que era [Rihena], nos papéis não, mas ela adotou o nome de Geni e esse foi o nome dela, né? Eles também são imigrantes. A minha avó era de Vilna, que, muito ao contrário da minha família paterna, a minha avó era de uma cidade, era a capital da Lituânia, uma cidade cosmopolita em que ela ia ao cinema, acampava, viajava. Eu tenho na minha casa um álbum dos últimos dias dela antes dela migrar, onde ela visita uma porção de locais da cidade. A cidade era incrível e a vida nessa cidade era incrível também. E ela migra em 35 também para o Rio e é onde ela conhece o meu avô. Numa comunidade que era muito assim culturalmente pujante. Quer dizer, tinha o coral, tinha as pessoas que vieram da mesma cidade, tinha círculo de leitura, enfim, era um outro Rio de Janeiro, muito diferente da experiência desses meus avós, dos meus avós paternos, vamos dizer assim. E ela vem para morar com um irmão mais velho, muito mais velho do que ela, porque ele era o primeiro, ela era décima, mas é bem bonita essa história, porque eu acho que se relaciona muito com a própria proposta a visão do Museu da Pessoa. Foram 2 migrações, né? Absolutamente diferentes. Quer dizer, pra minha avó paterna aqui foi o lugar que ela foi acolhida, que ela pode criar um filho, que a vida melhorou e tal. E pra minha avó materna, a experiência inesquecível foi no país de origem, porque era esse lugar bacana, interessante, etc.. E ela chega num país diferente, ainda que o Rio fosse capital e tal, disseram para ela que não ficava bem uma moça solteira viver com o irmão. No relato dela, arranjou-se um casamento, ela tinha que se casar, entendeu? Então ela lamentou pela vida e a imigração, ao passo que a outra foi a possibilidade de uma vida melhor, né? Que não tinha fome, que não tinha uma porção de coisas, né? E o meu avô materno também teve uma experiência de aldeia e tal. Era uma diferença grande essa, quer dizer, são 2 imigrantes e tal, mas são experiências de imigração profundamente diferentes. Eu acho que é isso.
00:09:47
P/1 - O seu avô materno, ele fazia o quê?
R - Ele, ainda na Europa, aprendeu a ser alfaiate. Então ele chega, obviamente, eu não sei se primeiro ele trabalhou como alfaiate, ou primeiro ele vendeu tecido de porta em porta. Eu não sei bem, mas minha mãe também deu esse depoimento aqui. Então, se olhar lá, dá para checar. O fato é que ele foi alfaiate, chegou inclusive até uma loja. Mas depois dos 50 anos ele faz uma, como é que é hoje que fala, ele reorientou a carreira e tal. O fato é que ele foi atropelado, vamos dizer assim, pela indústria da roupa pronta, né? Então tem 1 hora que todos esses alfaiates foram atropelados pela Ducal, né? E aí ele muda de carreira, vamos dizer assim, ele abre uma loja de madeiras, fórmicas e tal. E isso de fato mudou a vida dele, né? Quer dizer, prosperou, e fez essa mudança depois de 50 anos. É legal essa história dele, né? E foi muito bem, aprendeu tudo e tal, e funcionou, foi bem.
00:11:22
P/1 - E me conta uma coisa, por que as duas famílias suas acabaram por escolher o Rio de Janeiro? Como é que foi isso?
R - Olha, no caso da minha avó paterna, eu não sei nem te dizer, porque eles não tinham ninguém aqui, mas óbvio que as histórias chegavam e tinha uma comunidade judaica ali grande que estava crescendo. E também tem uma outra coisa… No caso da minha família materna não, tinha já gente. Tinha um irmão, outro irmão, etc. Esse irmão mais velho da minha avó já trabalhava numa alfaiataria, isso se sabia. E teve uma coisa que foi a não possibilidade de entrar nos Estados Unidos da minha família. Meu avô materno, eu tenho uma vastíssima família nos Estados Unidos, com quem eu tenho relação muito próxima. A gente foi fazer uma conta na última vez que eles tiveram na mesma cidade, faz mais de 100 anos. No entanto, a gente é próximo, vai às festas. Eu tenho um filho que mora nos Estados Unidos que é recebido. Eu tenho uma vasta família em Chicago, mas quando essas famílias, esses meus avós resolvem migrar, não é mais possível entrar nos Estados Unidos, tinha toda uma história de ter cartas de chamada, etc., e pros Estados Unidos não foi possível. Consta que a minha avó paterna tem uma irmã que foi, mas a gente nunca conseguiu saber o paradeiro dela. Do meu avô materno a relação seguiu existindo. Um pouco depois da guerra, inclusive, ele visita essa família nos Estados Unidos. E é genial essa história também, porque aqui eles eram todos de esquerda, progressistas. A minha mãe conta que quando se reuniam lá, as pessoas que vieram da mesma cidade da minha avó, de Vilna, Lituânia. Quando eles acabavam, eles cantavam o Hino dos Partisans, por exemplo. E o que aconteceu foi que meu avô chegou nos Estados Unidos e viu a família dele vindo lá e ficou absolutamente encantado com American way of life. Eles eram comerciantes de carros. Lá eles tinham Living Room… Mas já tinha aquele início do conforto e tal. Ele traz um carro, e tem histórias que, antigos companheiros de esquerda e tudo passaram a olhar muito feio para ele. Como que ele vai para os Estados Unidos, e não só foi lá, como adorou. É engraçado, essa história é gozada, né? E muitos anos depois, em 2008… 2011, eu fui a Chicago e tem uma prima lá que organiza os encontros. E foi uma experiência linda, porque ela chamou todo mundo que tinha algum parentesco conosco. Devia ter umas 40 pessoas. E veio gente que trouxe fotos iguais às que eu tinha, que a gente tinha. Ou da minha ida, da ida do meu avô lá, ou quando a minha mãe teve lá. Quer dizer, foi muito interessante, vamos dizer assim, encontrar essas pessoas que eu não conhecia, mas tinham laços próximos, tão próximos que tinham certas fotos que eram as mesmas ou que eram ou de alguém daqui, que eu nunca tinha visto a foto, né? Interessante. Isso foi bem legal. Então, a gente tem esse laço, mas esses daqui não conseguiram entrar nos Estados Unidos. Quando eles vieram, era tarde. A migração para lá foi antes. Foi na virada do século.
00:15:43
P/1 - Agora, chegando aqui no Rio, essa comunidade, tanto de pai como de mãe, se concentrava num bairro específico ou em ruas específicas?
R - Então, aí tem uma porção de fontes para você olhar. Na verdade, você tinha um grupo grande na Praça 11, que era a zona ali do meretrício, próximo ao portal. E isso foi abaixo, quando abriu a Presidente Vargas, se eu não tô enganada, mas era uma vida, não rica em termos de grana, mas culturalmente muito rica. Por exemplo, a minha vó cantou no coral a vida inteira. Ela tinha o círculo de leitura das mulheres, que se reuniam uma vez por semana pra falar de um livro. Essa condição de militância de esquerda, etc., vamos dizer, gerava uma coesão. Meu pai contava que esse irmão mais velho dela, trabalhava numa alfaiataria que era uma célula do partido. Então ele dizia assim, eles discutiam tanto os rumos da União Soviética que não dava tempo de atender clientes, entendeu? Então quem sustentava ele, era a minha avó, que meu avô prosperou. Então tem muitas dessas histórias assim. Mas tinha essa coesão em torno de uma cultura de uma língua comum. Tinha escola, coral, biblioteca. Meus pais se conheceram em uma biblioteca, né? Então tinha essa vida e eu acho assim, acho que o Rio era uma capital, vamos dizer assim, com as organizações públicas, algumas fundamentais. Por exemplo, o meu pai é filho de uma condição em que a escola pública era boa, em que o fato de ser capital proporcionou a ele ter, ele foi ser contínuo na Embaixada Americana. Ok, não é nada, não é nada, foi a possibilidade de aprender inglês que abriu um milhão de portas, entendeu? Então eu acho que eu tenho pensado sobre isso. Eu trabalhei anos atrás em Paraisópolis. Recentemente eu fui ver uns projetos na Rocinha. Faz muita diferença da onde você tá e a que tipo de relações e de serviço você pode ter acesso? É diferente tá em Paraisópolis ou tá em Marsilac, por exemplo. Assim como é diferente tá na baixada e na Rocinha. E em que momento isso tá sendo vivido, né? Então, meu pai e minha mãe foram ao Pedro II, foram à universidade federal. Todas essas coisas. Eu acho que propiciou uma série de relações e interações muito importantes, né? Na condição da imigração, me parece.
00:18:57
P/1 - Agora que você falou do seu pai, da sua mãe, vamos continuar falando deles então.
R - Então meu pai cresceu na praça da Bandeira por ali. Aos 14 anos, ele já começou a trabalhar e já sustentava pai e mãe. E essa condição de estar no Rio, ele foi, acho que. Contínuo o boy da embaixada Americana e aprendeu a falar inglês. Depois trabalhava de dia, estudava de noite e fez estatística que era o que havia à noite, né? Porque não tinha muitos cursos, mas da universidade pública. A minha mãe também estudou no Pedro II e fez, o que era a universidade federal de era Geografia e história junto. E teve oportunidades incríveis, por exemplo, de ser aluna do Darcy Ribeiro, né? Quantas pessoas vão sentar aqui e vão te contar uma história dessa, né? Então eu acho que essa condição de estar no Rio, nesse momento e tal foi, não só para eles, quer dizer, para esses montes de imigrantes que chegaram e tudo foram condições que possibilitaram a eles uma vida melhor do que a que os pais tinham antes e que tiveram no início, né? Eu acho que isso é importante. No depoimento do meu pai, tem aqui, inclusive ele relata. Ele estava na escola pública, sob Getúlio, então essas desfiles de escola, essas coisas todas. Villa-Lobos regendo… essa é a experiência de quem teve no Rio nesse período nos 40 e 50, né? Enfim, é essa história.
00:20:46
P/1 - E me conta, então, como é que foi essa, essa, esse encontro deles?
R - Eles se conheceram num baile de Carnaval de uma biblioteca da comunidade, namoraram e casaram. Essa história, a gente tem recentemente se lembrado. O irmão da minha mãe acabou de falecer e ele era gozadíssimo. Então tem algumas histórias, quer dizer, parece que a primeira vez que meu pai com a minha avó foram a casa deles conhecer a família, ele desenterrou o esqueleto do gato. A minha mãe teve uma experiência de subúrbio, então tinha galinha no quintal, tinha folguedos de rua, de um Rio de Janeiro que ainda tinha um pé no rural, né? A casa que a minha mãe cresceu existe. Eu tinha uma imensa vontade de ir lá, mas é uma área conflagrada, perto do Morro do Alemão, então isso não tem mais a menor possibilidade de ir lá. Fiquei com essa vontade, me disseram “não, vai de noite”, eu falei “não, nem de dia, nem de noite, nem hora nenhuma. Não dá para ir”. De fato é território conflagrado ali. E ali eles moram e se casam. Meu pai ganha uma bolsa, ele mora em Washington, eles vão para Washington durante acho que 10 meses. Recentemente, eu tenho um filho que tá lá agora, e a minha mãe lembrava do endereço, ele foi lá, o apartamento existe, ele tirou foto e tal, e foi uma abertura de mundo, porque minha mãe nunca tinha andado de avião, e o primeiro voo da vida dela, foi para ir morar em Washington, que tem histórias aí, parece que foi uma experiência muito legal, descobriu essa… Teve a possibilidade de ver essa família vastíssima, de ver um outro mundo e tal. Aí, quando eles voltam, tem uma história ótima. Meu pai tinha ido responder num programa de perguntas e respostas na TV: “O céu é o limite”. Ele participou e ganhou uma grana. Parece que isso foi parte da entrada para o apartamento. Eu não sei direito. Essa história também está contada aqui no depoimento dele, porque eu tenho foto em casa, ele com J. Silvestre. E aí eles vão morar nas Laranjeiras, do lado do Fluminense, ali do campo e da sede. Isso deve ser, provavelmente, 59 ou 60. E depois eles vêm pra São Paulo, talvez 62, qualquer coisa assim, moram na Vila Mariana, num lugar que eu não consigo entender bem, porque todas as histórias tem um tal de um “buracão”, né? “Que ia ver o buracão” “não sei o que do buracão”. E aí eles se mudam pro Brooklin. Pouco tempo antes do meu nascimento, o Brooklin tinha sido “arruado” e feitas as casas, e o que é a Berrini hoje, era tudo campo de Várzea, né? Então, assim, eu tive uma infância num lugar que era um Brooklin só de casas cheio de terrenos baldios, cheio, cheio, cheio, e de córrego. Outro dia eu li que se os córregos não tivessem sido todos…
00:24:48
P/1 - Tampados? Aterrados?
R - Aterrados e tal, qualquer um de nós andaria só 200 m e chegaria num. Essa experiência na infância eu vivi com a maior clareza. Tinha o córrego do Sapateiro, tinha ali onde é a Berrini hoje, ali onde não é Vila Nova Conceição, que é hoje esse Total High Society? Tinha um córrego, inclusive eu me lembro que quando a minha mãe precisava comprar flores para dar para alguém, a gente ia lá numa senhora que era meio uma chácara. E ela ia no quintal e colhia as flores, isso onde é a Hélio Pellegrino, mais ou menos, né? Eu me lembro quando chegou a luz, por exemplo, a luz de rua no Brooklin. Me lembro perfeitamente da gente do lado de fora, porque a gente sabia que ia acender a luz pela primeira vez. É louco isso, ia acender a luz pela primeira vez. É uma coisa impressionante se você parar para pensar isso ali no Brooklyn. Meus irmãos tinham um grupo importante de fazer balão, estruturado. Imagina hoje, quando cai balão, você vê um negócio sério, né? Tinha uma garotada muito legal. Estou lembrando de coisas todas impensáveis. Tinha um terreno baldio, que óbvio que tinha proprietário, mas isso não era uma questão, pois essa turma chamou um trator, capinou e virou um campo de futebol. Não apareceu ninguém pra dizer “é proibido. Vocês não podem. Nada, nada, nada, nada”. Enfim, tinha um cotidiano de bairro. Por exemplo, a minha mãe dirigia, ela tinha um Decave azul marinho, e a gente morava na entrada de uma vila. Então, às vezes, alguma criança se machucava. Claramente se sabia que quem tinha carro, que era ela e a dona Adelaide que morava ao lado, eram as pessoas que tinham que estar ali prontas, porque eram elas que iam levar as crianças para o Pronto Socorro, entendeu? Isso era o Brooklyn. Essa casa existe. Embora, é incrível, tudo que as pessoas fazem com as casas bonitinhas é tirar o jardim, subir o muro e botar uma porta de alumínio. Era uma graça e anos depois, quando meus pais melhoraram de vida, eles compraram uma outra casa exatamente na mesma rua.
00:27:40
P/1 - Qual rua que é?
R - Na rua Michigan era ali do lado do Abbott, que era o laboratório, e subir um monte de ali. Não tinha nenhum prédio. A gente viu todos subirem, todos que tem lá, mas. Há um tempo até ainda aí, as 2 casas existem, mas a partir de um momento eu achei que era mais legal manter as minhas memórias do que ver o que foi feito daquilo, né? Que esse é outro lugar.
00:28:11
P/1 - E me conta uma coisa, você consegue descrever para mim essas duas casas como era dentro delas?
R - Perfeitamente. A primeira delas, essa que eu nasci, tinha um jardinzinho na frente, lugar para um carro, um muro baixo com uma grade embaixo, tinha uma sala, uma cozinha, um quintal. Tinha uma escada, que o chão era de granilite, e um corrimão, onde todo ano nos aniversários, minha mãe pendurava lá um negócio escrito “feliz aniversário” e botava exatamente o mesmo palhaço sobre o bolo, e tinha 3 quartos em cima e 2 banheiros. Eu acho bem bacana, porque a casa que eu moro aqui do lado na Sagarana, é muito parecida com essa. Embora com algumas dimensões um pouco maiores, mas não muito, né? Então, quando eu comprei essa casa na Sagarana, foi só o endereço, porque a casa tava difícil, mas tinham algumas coisas absolutamente iguais. Por exemplo, a escada de granilite, as 2 janelas. Tem uma semelhança, como se tivesse aumentado um pouco a escala. Aí depois meus pais compraram uma outra casa, “queriam sair, queriam sair”, “não cabia”, “não sei o quê”, andaram a cidade inteira para chegar à conclusão que eles queriam ficar no Brooklyn, do lado do Colégio Vocacional, que hoje é Oswaldo Aranha, onde meus irmãos estudaram, eu não. Essa compra foi super interessante porque a casa custava, em prestações, exatamente o salário do meu pai inteiro. E durante os 3 anos que isso foi pago, a gente viveu do salário da minha mãe, que era professora. Pensa se hoje alguém ia sustentar três, né? E justamente porque tava se pagando a casa, não tinha dinheiro pra nada. E a casa era maior, o que fez com que a gente mudasse de uma casa como numa casa vazia, vamos dizer assim. Tinha o sofá da sala, mas tinham mais 2 salas. Então, primeiro a gente botava um colchão na sala no meio e jogava tênis. Depois, os meus avós nos presentearam com uma mesa de Ping pong, de tênis de mesa, que foi colocada na sala de jantar, porque não tinha móvel, não tinha nada. Então, do ponto de vista da sociabilidade, isso foi excelente para nós que estávamos chegando ali, porque todo mundo tinha casa com móvel dentro. A gente era o único que tinha casa que podia jogar tênis na sala. Depois tinha campeonatos de Ping pong, porque eram esses os nossos móveis, né? E isso foi bem legal. Eu morei nessas 2 casas com os meus pais.
00:31:22
P/1 - Quando você nasceu, o seu pai e sua mãe faziam o quê? E quantos anos seus irmãos?
R - Meu pai era estatístico e trabalhava na Gessy Lever, onde ele trabalhou muitos e muitos anos. Eu, mais tarde vim trabalhar com tecnologia educacional, e é bem legal porque existia uma coisa que de vez em quando era “ir ver o computador na Gessy Lever”, entrar numa sala imensa, umas máquinas imensas, onde caiam cartões perfurados e ele trazia para casa isso também. Então, era assim que a gente jogava na loteria, com cartão perfurado. Então, é essa experiência que meu pai trabalhava na Gessy Lever, minha mãe trabalhou, quando ela veio para São Paulo, ela tinha uma relação muito profunda com a língua materna dos meus avós, que era o iídiche, estudou e tal. E ela vem e trabalha no Scholem, que é a escola que não existe mais. Mas onde é a Casa do Povo hoje, essa turma. E ela trabalhou ali uns anos e depois ela foi demitida e readmitida. Eu não me lembro bem dessa história. Eu fiz a pré-escola lá. Essa é uma história “demitida-readmitida”, não sei o que, foi uma história que depois apareceu muitas vezes quando ela queria se aposentar. Imagina, era uma escola de esquerda e coisa e tal. Não tinha recolhido nada de imposto, de coisa nenhuma. E aí foi um problema que depois se resolveu, enfim. Outro dia eu fui na Casa do Povo com ela, que tinha lá um encontro, e aí depois ela fez um curso, se eu não estiver enganada ou eu posso estar, mas o fato é que ela tem uma proposta, porque ela conheceu uma orientadora, e ela vai trabalhar na Nossa Senhora do Morumbi, que era a era a escola das freiras do _______, umas mulheres cabeça aberta, interessantíssimas, uma metodologia toda renovada, interessante, e ela trabalhou lá a vida inteira. Aí ela vai trabalhar com Geografia, ela vai trabalhar na área que ela tinha se formado, enfim, e meu pai era estatístico, trabalhou na Gessy Lever muitos anos. Então tinha uma coisa de trazer o sabonete, o xampu. Depois, quando eles compram uma fábrica de sorvete, a gente ia no Brooklin comprar sorvete no depósito, que era Gelato. E depois foi trabalhar para a Braskem e outras empresas, mas sempre relacionadas com essa questão de pesquisa e dados. É isso. Esse era o Brooklin da minha infância. É a vida que eu tinha ali.
00:34:31
P/1 - E os seus irmãos, eles tinham que idade quando você nasceu?
R - Um tinha 5 e um tinha 4.
00:34:38
P/1 - E as primeiras lembranças que você tem da vida, você consegue puxar assim?
R - A lembrança mais antiga que eu tenho é que minha mãe ia trabalhar na escola, eu levava os meus irmãos e eu ficava com a minha avó. E eu tenho memória do momento que eles saiam e do momento que eles voltavam. Eu tenho uma memória muito antiga da minha avó me preparando, me dando uma mamadeira num sofá, imagina, e eu devia ter uns 3 anos. Olhando bem, era uma condição muito diversa. Quer dizer, a porta vivia aberta, a gente brincava por ali mesmo, né? Se eu comparo hoje com a experiência quase cotidiana que eu tenho da assessoria, estar em escola e tudo. Eu acho que é inimaginável para as crianças de hoje pensar na questão do espaço, do tempo e da possibilidade de sair e voltar. E tá, mas muito pequenos. Eu andava e atravessava uma rua para ir à escola no Brooklin. Eu tinha 7 anos, né? Enfim, esse lugar.
00:35:53
P/1 - Então, você foi criada junto com a sua avó, é isso?
R - Isso. Aí tem um momento que o meu avô materno diz pra minha mãe que é um absurdo, que uma senhora viúva viva sozinha, que é melhor que ela viva com o filho e com a nora. Pra ele foi ótimo. Ele achou que ele estava fazendo uma boa ação. Acho que pro meu pai também. Pra minha mãe foi um inferno ter uma sogra imposta ali dividindo palmo-a-palmo o espaço da casa, os filhos. Um problema sério, difícil. É dureza, porque na verdade havia uma disputa e uma tensão constante. De vez em quando, a minha mãe ouvia coisas que ela não gostava, como “você que é uma mulher que tem sorte. Você tem 3 filhos, a sogra para ajudar a cuidar e você pode trabalhar fora”. E ela se mordia, a outra se mordia, todo mundo se mordia com essas histórias, e os afetos ficavam muito difíceis, eu acho, porque quando você tem situações de conflito, você também… Até que você entende que aquela é uma dinâmica que não te diz respeito, leva um tempo, né? Precisa virar adulto e, às vezes, leva muitos anos para virar adulto nas diferentes situações.
00:37:37
P/1 - E ela ficou, você dividindo a casa? Ela ficou morando com você por quanto tempo?
R - Muitos anos até que meus irmãos voltaram pro Rio, foram fazer faculdade lá e uma hora, eu acho que se viu naquilo, a possibilidade de despachá la pro Rio, enfim. Mas era tenso esse negócio de morar… Quer dizer, era tenso, mas pra nós era açúcar puro. Porque essa vó era um doce e era uma figura muito interessante. Ela tinha 1m30cm calçava 32, então rapidamente, ela era do nosso tamanho e ela era puro afeto, de sentar do lado. Outro dia, alguém estava falando de vó. Aí eu falei, “cara, minha vó sentava do meu lado, descascava a uva Itália para não comer uva com casca”. Era desses afetos. Mas havia ali uma situação conflagrada de sogra com nora. Quando eu fui casar, meu pai, essa casa do Brooklyn, a maior, é uma casa grande, e tinha atrás uma edícula, ele falou “você não quer construir um apartamento em cima da edícula? Vocês ficam aí, em vez de financiar”, que a gente acabou financiando um apartamento, “vocês ficam aí, junta dinheiro”. Eu falei, “olha, fica aí pra não”. “de quer que eu vá, não será aqui”, porque essa experiência não estava no meu radar. Enfim. Então é essa história. Depois a minha avó mudou para o Rio. E essa história.
00:39:27
P/1 - E como é que cada um você acha assim? Você lembra que contribuiu na sua formação, na sua criação? Qual que era? Como é que foi o papel de cada um?
R - Na verdade, não é outro, mas é todo mundo, né? Porque são as relações que se estabelecem ali. A minha mãe sempre foi muito falante, muito intensa e muito densa. Quer dizer, é uma presença, até hoje que ela tá até trelelé ainda. Meu pai sempre foi muito quieto e sempre entendeu a paternidade como prover. Talvez em uma relação ao contrário com o que foi a experiência dele de ter um pai que não foi provedor. Ao contrário, meu pai foi o provedor dos pais dele a partir dos 14 anos. Então, educar dizia respeito a prover, dar condições, mas não necessariamente presença, afeto, fala e tal. O subtexto era quase: “Eu não preciso dizer que eu amo você pra eu amar você”, entendeu? Então era isso o que eu acho que é dele, era uma pessoa muito quieta, introspectiva e tal. Mas lendo o livro de memórias do Chico sobre o pai dele, o Sérgio Buarque de Holanda, meu pai nunca seria o Sérgio Buarque, não é isso, mas ele fala de um pai que só se deu conta daqueles filhos na hora que esses filhos podem falar daquilo que é o mundo dele, que são os livros, etc. “Filhos” era assunto da mãe dele, não do pai dele. Isso é um pouco a minha história também. Providas as condições de educar, saúde, ter comida em casa e tudo, meu pai era super na dele e nos livros dele. É essa história e foi sempre assim. No fim dos anos 80, eu morei em Paris um ano, e falar no telefone 5 minutos por mês, não tem nada que ver com a condição de hoje que as pessoas moram hoje e moram perto, brinco que as crianças nascem, crescem, ficam adultos e vão morar no notebook, né? Porque todas as noites na minha casa, a gente abre o notebook e fala com os dois, cada um num canto. Então, quando eu fui morar, a minha mãe estava presente com carta, não sei o que, não sei o que lá, cartas. E aí tinha duas ou três frases do meu pai que me mandava um beijo. Tinha um imenso orgulho que eu estava lá e tudo, mas isso não precisava ser dito, sabe? Eu acho que no livro isso está claro, que eram relações muito diversas, não tem nada a ver com a experiência de paternidade dos meus filhos em relação ao meu marido. O pai deles é completamente diferente, né?
00:42:52
P/1 - E a sua vó também? Você falou um pouquinho dela já, mas e ela nessa sua formação?
R - Ah então, essa é a minha avó dos afetos, de tá junto, tá perto, falar atrapalhado, inteligentíssima assim, nunca ter aprendido a ler. A gente já vive numa condição super letrada, mas ela tinha uma clareza absoluta que com algumas frases assim: “estuda porque essa é a única coisa que você pode levar quando te mandam embora”. Coisas assim. Tinha uma sabedoria ali, do cotidiano, da vida, de um amor incondicional pelos três netos dela. Mas incondicional, era uma coisa! A gente tinha certeza absoluta, 24 horas por dia, de que ela adorava a gente acima de qualquer outra coisa, pessoa, etc. É isso, né? Acho que é disso, essa história.
P/1 - Até perdi a pergunta que eu ia fazer agora. Porque queria te perguntar assim, você cresceu nesse Brooklyn, né? E como é que vocês faziam pra ir pra outros lugares nessa época? Ficou uma curiosidade minha, em São Paulo?
R - Bom, primeiro meus pais tinham tinham carro. O que não era mais comum. A gente tinha uma vida de clube que a gente tinha na Hebraica, eu joguei basquete, andava por lá e tal. Eu andava de ônibus direto. A gente ia pro Rio de ônibus. Quando a gente era menor, a gente ainda ia de trem. Tem histórias ótimas desse trem, que é esse trem de prata que não tem mais. Mas uma delas é que a minha mãe já levava a gente de pijama na estação, porque era o trem noturno, né? Aí um dia, alguém, alguém lá deu uma risada do meu irmão que estava de pijama, com linha. Era Carnaval, aí minha mãe falou assim, “explica para ele que você está de fantasia, a sua fantasia é essa, né? Você está de pijama?”. Então a gente ia para o Rio ver os meus avós muito. Quer dizer, eu não sei quanto esse era muito, e eles vinham menos. Era uma coisa muito sofrida, porque aí tinha a loja, então eles se recusavam a fechar a loja no sábado, então eles pegavam ônibus quando fechava a loja, então eles chegavam no sábado às 7 da noite, iam embora no domingo às 4. Tinha essa história do Rio, basicamente era onde a gente ia. E os meus pais compraram o apartamento do Guarujá, que era exatamente talvez o dobro de tamanho disso aqui, que era uma sala e quarto, quase uma quitinete onde a gente passou muitas e muitas férias na vida. E olha, ainda me lembro de veranear com as casas de madeira, porque teve uma primeira ocupação de umas casas de madeira, tinha o cassino e lindas casas à beira mar, muita coisa foi destruída. Mas quando eu devia ter 4 ou 5 anos, a gente passava os verões lá, acho que os invernos também, não me lembro bem. Ia muito ao cinema, eram os mesmos filmes, porque o cinema lá não rodava. Eles tinham uma coleção de filmes e todas as temporadas a gente via “ O Destino de Poseidon”, “A Noviça Rebelde”, mais alguns, eram sempre os mesmos.
00:47:06
P/1 - Você contou já algumas histórias dos seus avós, da família, do seu pai, da sua mãe. Você começou a ouvir essas histórias como, quem contava para você, você perguntava?
R - Pensando bem, não sei como acontece nas outras famílias, mas eu acho que essas histórias da imigração e tudo, elas são muito… elas desenham muito a relação que as pessoas, que as famílias têm. Porque você tem um corte, tem uma ruptura. Ontem tava na minha casa uma amiga minha que tá indo pra cidade da minha avó, pra Vilna, e é interessante. Eu nunca fui a Vilna, mas sobre esse álbum da minha avó, quando eu tive em Israel, no Museu da Diáspora, eu acho que vi um filminho que mostrava a vinda pra guerra de Vilna. Quer dizer, eu tenho uma porção, eu acho que… Onde que eu li isso? Tem um livro de Amós Oz que fala isso, que é “Os judeus e as palavras”, se eu não tô enganada: qual é o lugar de memória dos judeus? O lugar de memória dos judeus é a sua própria memória, e é o texto escrito. Porque essa condição diaspórica, o que você pode manter é aquilo que você pode contar. Eu acho que essas histórias apareciam muito e muitas vezes. É lógico que às vezes elas se encontram com a história, essas memórias familiares. Por exemplo, meu pai contava essas histórias da alfaiataria que a discussão política era tamanha que o cliente atrapalhava. Essa experiência da esquerda de achar que o dia que houvesse comunismo, não haveria antissemitismo. Por exemplo, a história dos crimes de Stalin, meu pai contava que diziam assim: “olha, teve gente que se matou. Como o camarada Stalin pôde fazer isto com os médicos judeus?”. Aí esse meu tio avô, que era tão comunista “se ele fez, é porque eles mereciam”, e assim ele resolveu a história. Então tinha essas histórias. Meu pai tinha um rádio Zenith que pegava o mundo inteiro. Ele ouvia rádio de Tirana. Depois tinha essa história das cartas desses parentes. Então eu acho que há um cultivo, não sei se de um tempo perdido, eu acho que cada família meio que cultiva isso de um jeito. Mas pensa, você ia a Chicago e tem uma prima lá que acha que é importante trazer todo mundo que é a família, as pessoas chegam com foto. A casa dela não é um Museu da Pessoa. Um evento, uma tarde em que, quem chega diz assim: “eu conheci seu avô quando ele veio aqui em 47. Olha a foto que eu tirei com ele”. Ela não pediu para ninguém tirar foto, mas aquilo lá de alguma maneira, reforçava os laços. Agora eu tive no Rio, fui visitar a minha tia, e tinha lá um menino de uns 22 anos, americano, estava lá, essa é uma outra tia, eu falei “mas quem é esse?”. Ela falou assim “ele é nosso parente”. Eu falei, “Como ele é nosso parente?” “Ele é neto de não sei o quê”. Tem uma história ótima, tem um parente lá que foi o representante lá, o produtor dos Globetrotters. Ele falou, ele é bisneto do Mister Sapience, assim não sei o que quem tem contato com ele? E quando a gente foi nos Estados Unidos, a gente conheceu a vó dele, não sei o quê, o cara se sente minha família. Eu acho que há um cultivo de uma memória coletiva ali, que é o que faz com que meu filho chegue na casa dessas pessoas, sei lá, ele viu 5 vezes antes, quando ele vai lá, minha prima disse pra ele “eu tenho que ir ao cabeleireiro, você vai passear o cachorro”. Você diz isso pra um quase desconhecido. O que eles têm de comum? Eles têm uma tataravó comum, e é o suficiente pra ele ser recebido na casa dela. Ele avisa quando ele vai “tô indo”. Então, eu acho que esse cultivo dessa memória, dessa história de família, de alguma maneira é o que é ao mesmo tempo coesão e resistência, porque quem não migrou, morreu. Eu acho que isso é forte. Quer dizer, quem não migrou, morreu. Então, quem migrou tem tentado manter alguma conexão que é verdadeira. Quando eu fui há 2 anos atrás, eu fui pra uma festa. Imagina, fui no avião para você, foi pra uma festa. Mas porque você foi, né? Porque essas pessoas têm alguma relação forte o suficiente pra organizar uma viagem pra estar na tal da festa. Enfim, eu acho que esse cultivo, acho que faz parte dessa tradição judaica de ter na memória alguma coisa de construção do sentido permanente. Me parece, não sei. Entrando em teoria.
00:53:27
P/1 - Mas eu digo assim também, em que momentos vocês ouviam essas histórias?
R - No cotidiano. Ah, aparece a sua avó, que “não sei o que”, “não sei o que lá”, sei lá. Essa coisa assim, tirando um ou outro desses momentos das festas, desses encontros, estava no cotidiano. “Ah, seu avô, não sei o quê”. Eu acho que não sei, me parece.
00:54:01
P/1 - O dia inteiro?
R - É, faz parte dessa conversa. Vou dar um exemplo, meu marido perdeu a mãe dele, ela tinha 44 anos. Eu não a conheci, mas tem uma soma de descrições que me permite muito facilmente desenhar o perfil desta mulher. Óbvio que é o perfil visto por um filho que perdeu ela quando tinha 22. Ok, mas está desenhado porque está no relato. É o que a gente está fazendo aqui. Eu acho que está nos relatos do cotidiano, de algumas coisas que a gente faz ou não faz, em função disso, acho que isso.
00:54:52
P/1 - Voltando lá pro Brooklyn, a gente ouviu você falar da sua casa. Me diz, o que vocês faziam? Por exemplo, vocês assistiam TV, rádio, ouviam, como era?
R - Meu pai tinha esse Zenith preto. Se ouvia muita música na minha casa, sempre. Tinha televisão. Teve uma época das televisões nos quartos. Engraçado, esse negócio do lugar da TV. A TV foi quase o móvel, né? Ah, tinha tudo, essas coisas tinha. E tinha um amor pelo cinema assim, meus pais iam muito ao cinema, a gente ia ao cinema.
00:55:38
P/1 - Vocês iam aonde no cinema, no centro?
R - Ainda tinha cinema de bairro, só na avenida Santo Amaro tinha 3. Pensa três! É bastante. O cinema era um lugar importante assim. Meus pais tinham amigos com quem eles iam ao cinema e depois falavam sobre cinema. Se lia muito. Quando meu pai faleceu, cada um falou o que quis. Eu tenho um irmão mais velho que falou assim, “olha, não acredito em nada disso, mas se houver paraíso e meu pai tá indo para lá, ele tá chegando em uma biblioteca”. Então, sempre foi um lugar em que saber e estudar e tal era um valor importante, cultivado, essas coisas. A minha mãe tem memórias da infância, de ter que ver palestra e de ficar sentada imóvel. Eu acho que minha avó cantava num coro. Então, uma vez por ano tinha o concerto do coro e era municipal do Rio, né? Eu acho que isso foi cultivado porque eu fui assinante da Osesp muitos anos. E como eu não tinha sábado de tarde, eu não tinha com quem deixar meus filhos, o André, que inclusive já foi estagiário aqui. Ele tinha 3 anos, e ele ia e dormia sentado, mas a gente ia porque aquilo era importante. Ele foi o assinante mais jovem da Osesp, eu acho. Então assim, era essa experiência de uma cultura rica, importante e tal, eu cresci numa casa dessa, com certeza.
00:57:35
P/1 - Vocês ouviam o quê no rádio?
R - Tudo. Tinha lá as preferências, né? Eu fiquei com a coleção dos discos de vinil, eu devo ter uns 300, tá aí descendo a rua assim, vocês veem. Ah, tem muito festivais, Elizeth Cardoso, todos os do Chico, quase todos os do Milton, grandes orquestras. Meu pai se encantou com a música Latino Americana, então tem um monte de coisa aí, __________ (00:58:14), não sei o que é. Tem um monte de Gênesis, que foi o que meu irmão adorava. Eu tenho outro irmão louco por bossa nova, é uma vasta coleção. Se ouvia muita música o tempo todo. Nesse apartamento do Guarujá que a gente ia, se levava uma vitrolinha e, aliás, eu tenho essa vitrolinha aqui na minha casa. Eu trabalhei em escola de crianças pequenas e tem um momento que eles estudam essas tecnologias, essas coisas assim, pode fazer isso tudo meio na minha casa. Eu tenho tudo, eu tenho as vitrolinhas, eu tenho o disquinho. Lembra do disquinho colorido? Eu tenho cinema super 8, tem projetor de slide, tem slides dos meus pais, eu tenho essas coisas, têm tudo. Sei lá, eu disse assim, vamos fazer estudo na minha casa, o pessoal acha que eu brinco, não é brincadeira, é sério, tem tudo. Recentemente eu acabei jogando fora, eu tinha, eu ainda tenho um pequenininho que é de fita cassete, que aliás, eu não sei como é que está o acervo aqui, mas aqui a gente ainda não tinha fita cassete nos primeiros projetos que eu fiz. Enfim, é isso, a gente tinha todas essas coisas assim. E eu fiquei com tudo porque ninguém quer.
00:59:33
P/1- E você se lembra dos primeiros livros que você leu?
R - Lembro. Quando foi pra pra eu ir pra escola primária, meus irmãos tinham estudado no Vocacional, que foi uma das experiência - eu sou da área de educação - foi uma das experiências importantes da história da educação no Brasil. No meu entendimento, foi os colégios vocacionais, coisas que se faz hoje, como se fosse a grande novidade, se fazia nos vocacionais, aí meus irmãos foram ao vocacional do Brooklin, que já tinha uma posição muito interessante. Por exemplo, meus pais tinham funções na escola, a comunidade tinha uma relação profunda e tal. Porém, quando eu tive que ir para o primário, que era 71, o golpe já estava absolutamente implantado, no pós 68. Então, toda essa situação de inovação foi rompida. Tinha professores do Vocacional que tinham sido presos, e eu e meus pais entenderam que não era mais possível esse lugar. Aí eu fui pra escola privada ali do lado de casa, porque que eu comecei a falar disso agora?
01:00:51
P/1 - Os primeiros livros.
R - Os primeiros livros foram livros de uma escola particular careta, muito diferente da experiência que meus irmãos tinham tido. Porque eles ainda fizeram o primário no Scholem, que também, hoje se fala de inovação pedagógica, ali no fim dos anos 60, ali tava a inovação pedagógica. Se você for olhar em termos do que era currículo e tal, tem até uma historiadora só trabalhando com isso, ali era inovação. Eu fui pra uma escola de bairro pequena e careta pra caramba. E eu li Condessa de Ségur, que era uma tradução francesa de uma menina, e li umas outras coisas desse tipo assim, mas pouco interessantes. Eu tinha uma porção de livrinhos que eram essa conexão com meu pai. Meu pai sentava e lia livro quando a gente pedia e comprava, então tinha uma porção. Tinha gibi numa quantidade absurda na minha casa. Eu acho que não guardei. Eu lia revista Recreio, que era absolutamente importante. Eu esperava o dia de sair, ia na banca sozinha, atravessar a rua com 7 anos e comprar uma revista Recreio. E isso eu tenho na minha casa. Quase todas. Me lembro, inclusive num projeto aqui do museu que era fazer o Museu da Abril, que acabou não saindo. Quando eu falei isso pra pessoa da Abril, ela falou assim, “me vende?” Eu falei “não”. Porque a documentação da Abril era alguma coisa muito importante. É uma pena que está lá caindo aos pedaços. Mas a minha leitura era revista Recreio. Eu me lembro quando saiu a Mônica. E outro dia eu estive com uma pessoa que trabalhou aí com o Maurício. E enfim, tem país que nem entra porque é inaceitável um perfil como o da Mônica, agressiva, que bate no outro e não sei o que. Eu acho que gibi eu não guardei. Eu guardei todas as Recreio, porque era isso que a gente lia, lia a revista Recreio, lia esses livros. Mas assim, a minha experiência de escola ali, lamentavelmente, era muito diversa do que já tinha de inovação e educação acontecendo em São Paulo. Porque tinha…
01:03:26
P/1 - Me conta um pouco mais, eu cresci na Vila Olímpia também, perto da Vila Nova Conceição. Eu queria que você contasse um pouco também, quais os lugares que vocês iam mais? Você falou de cinema na avenida Santo Amaro.
R- A gente ia ao clube, né? Tinha o Clube Hebraica que a gente ia. Tem foto minha no jardim lá com 2 anos, coisa assim. E depois eu joguei basquete dos 9, 10 por aí, até uns 12 e 13, um pouquinho mais. Tem um momento que pra seguir jogando basquete você tem que crescer, não cresci, então parou aí, mas era uma sociabilidade legal, essa do esporte de jogar, de ir pro interior. Isso era bem legal. Foi uma experiência bacana essa. Mas, voltando à história do bairro e de aprender língua e tal, eu acho que tinha também dentro da cultura familiar. Eu acho que muito por conta do meu pai, que a vida dele virou na medida em que ele pode viajar, ele teve uma bolsa pra Argentina, teve uma bolsa pros Estados Unidos e voltou numa condição profissional outra, que viajar, uma coisa assim, era um valor e que então cada um de nós ganhou uma viagem quando acabou a faculdade, no meio da faculdade. Eu, por exemplo, viajei um ano pela Europa, basicamente. Mas essa coisa de aprender língua e viajar eram valores, entendeu? Era uma coisa que a gente entendia que abria alguma coisa muito importante. Tardiamente, a minha mãe morou em Washington com meu pai, então isso era uma coisa importante. Estudar muito, aprender inglês e tal. Você me falou de bairros, como eu sou terceira, tem umas coisas que meus pais não fizeram com meus irmãos e acharam que precisavam fazer comigo. Isso é engraçado. Então dessa escola de bairro que eu estudei, que eu ia, atravessava a rua com 7 anos, a minha mãe resolveu que no ginásio, eu precisava ter educação judaica. E aí eu fui estudar numa escola aqui, que era em Pinheiros, chamada Bialik. Então entrou Pinheiros no meu horizonte, e também tem 2 lados essa história, porque por um lado eu comecei a andar de ônibus pela cidade inteira. Eu pegava um tal de Santo Amaro 888 aqui na Cardeal, onde foi a primeira sede do museu e ia até o Brooklin, cara. Eu tinha 10 anos, andava e fazia isso sozinha, né? Então eu tive essa experiência, também meio paradoxal, porque a minha mãe queria esta convivência, porém, essa convivência veio com algumas coisas de classe que a minha família achava estranho. Por exemplo, tinha as festas e eu chegava na festa, alguém me dizia assim “Ah, essa roupa você já usou?”. Aí a minha mãe dizia “isso é besteira”. Isso é besteira, mas a convivência na comunidade era importante? Veja, as famílias são muito paradoxais. Hoje vão pensar, né? E eu fiz os 4 anos nessa escola e tal, em termos de Geografia, que você está me perguntando. Me abriu a cidade andar pela rua, pegar o ônibus aos 10 anos daqui. Santo Amaro, 888. Gente, era comprido esse negócio! Descer a Cardeal inteira, pegava a Faria Lima inteira, São Gabriel inteira, Santo Amaro um pedaço imenso, até chegar onde eu morava. Quer dizer, você ter isso e poder fazer isso é uma delícia.
01:07:59
P/1 - Como era essa viagem? Quem que ia com você?
R - Eu ia muito sozinha.
01:08:05
P/1 - Não, eu digo no ônibus, como era?
01:08:07
R - Olha, na verdade, tem uma história assim, quando minha mãe decide que eu tenho que ter essa convivência, pô, não era na esquina, Brooklin e Pinheiros, embora não tinha todo esse trânsito, então a minha mãe inventou de eu andar de perua, mas às vezes eu cansava de esperar a perua porque era um longo, tinha que levar um Caxingui. E aí eu descobri o Santo Amaro 888, e junto com isso vem poder parar onde eu quero. Então eu acho que a cidade cresceu, e depois ela cresceu mais um pouco, quando eu estava falando ainda do que aprendi na família, que eu vou fazer o colegial no Santa Cruz, que continua sendo onde ele é hoje, né? É interessante porque a cidade tinha tão menos carro que a gente saiu do Brooklin. Minha mãe me deixava no Santa Cruz, eu tinha aula às 7:10 e ela entrava no Nossa Senhora no Morumbi, que era no Alto do Morumbi, às 7:30, e dava pra isso tudo. É uma loucura, né? Se pensar que se você tiver que fazer isso hoje, leva umas 2 horas. E aí eu acho que em termos de cidade, de fato ela abriu de vez, porque eu já tinha 14 anos, eu já me mexia perfeitamente bem. E me abriu em termos de repertório também, vamos dizer assim, e sempre pergunta o que a sua família fazia. Quer dizer, então ir ao cinema era legal e ao teatro é legal, mas eu chego numa escola, por exemplo, que eu tenho uma aula de cinema toda semana. Quero dizer que não existia videocassete. Você me perguntou sobre máquinas, logo que teve videocassete a gente teve tudo. Mas a minha cultura cinematográfica, por exemplo, eu aprendi em uma escola, eu vi todos os Felines, eu vi todos os Polanski, eu vi “Encouraçado Potemkin". E mais do que isso, eu te diria que eu tive aula de filosofia 3 anos e que, mais de uma vez no doutorado, o que eu tive que fazer aula de epistemologia, outras coisas. O que eu tinha aprendido no Santa Cruz me bastou para fazer uma aula no doutorado. Uns de 14, porra, 30 anos depois. Se você for pensar então em termos de cidade, aí a cidade cresce mais ainda. Eu acho que não cresce do ponto de vista de interação social, vamos dizer assim, porque a experiência escolar do ginásio é dentro de uma comunidade e a experiência no colegial é dentro de uma outra comunidade, mas certamente uma classe social, ainda que no tempo em que, no Santa Cruz, quando eu estudei lá, professores da USP ganhavam o suficiente para pagar a mensalidade. O que significa? Que ali tinha uma experiência de uma elite de dinheiro, lógico, mas de uma elite cultural que não é desprezível, né? Uma porção de filhos de professores. [interrupção] Enfim, você tinha ali uma convivência e isso me abriu profundamente uma porção de experiências, né? Você me perguntou quem andava no ônibus, andava quem tava no ônibus, porque eu pegava ônibus sozinha. Era uma escola em que a porta ficava aberta e a gente entrava e saia a hora que a gente queria. Imagina a primeira vez que houve algum controle de entrada e saída foi porque um… Como é que era a história? Um colega da gente, o pai era Ministro de Minas e Energia, e eu acho que ele foi contra o acordo nuclear Brasil-Alemanha. E aí, parece que houve alguma pressão, alguma, alguma reação, algum, não sei bem o que foi, e aí a gente começou a ver, começaram a ter algum controle, quem tá entrando, quem tá saindo. Não sei se houve alguma ameaça. Eu acho assim, por um lado, essa circulação da cidade e a minha, ainda mais comparada com a condição que se tem hoje, eu andava, eu ia e voltava. Por outro lado, eu acho que todas as ideias, vamos dizer assim, minha mãe trabalhava para uma escola de uma visão muito renovada de educação, meus pais eram muito alinhados à esquerda. Não sei se é esquerda, mas assim, não na militância partidária, na visão de mundo, né? Do ponto de vista das relações, namorar, sair com namorado e tal. Eles eram caretas pra caramba, né? É interessante, é legal e quer dizer legal agora, de olhar e ver que as coisas mudaram, mas é isso. Era muito pesado. Por exemplo, “com quem vai”, “onde vai”, “não sei o que”. A questão ir de ônibus não estava posta, mas a questão “vai sair”, “não vai sair”, esse controle… Era muito…Havia esse controle. Isso tinha, né? Quer dizer, eu acho interessante isso, que também não era específico. Quando você vê histórias de militância e tudo essas coisas, você vê que as mulheres tiveram que fazer muita força pra se posicionar, tomar posição, essas coisas todas. Acho que está posto isso, ainda que do ponto de vista ideológico e tudo, fosse uma família aberta, que ia ao cinema, que lia coisas, que tinha história dos livros de educação que alguém tinha trazido da Argentina, porque aqui não tava podendo ter livro. Eu tenho. Voltando falando de relíquia, tem lá uma das primeiras edições da Pedagogia do Oprimido, não sei o que, era um livro da minha mãe, entendeu?
01:15:04
P/1 - Seus irmãos, nessa época que se foi crescendo, eles foram para o Rio?
R - Meu irmão mais velho. A gente, nessa época, meu pai tinha sido transferido pro Rio. Como é a história? Ou antes? Não, não sei, não me lembro bem. O fato é que meu irmão ia prestar vestibular e meu pai falou “Ah, por que que você não presta no Rio também?”. Só que o vestibular do Rio era antes. E meu irmão passou por uma segunda fase, mas tinha um momento que coincidia a prova do Rio com a prova da Fuvest. Não sei se chamava Fuvest na época dele. O fato é que ele acabou optando por fazer o vestibular até o fim no Rio e não foi pra São Paulo. Aí ele passou e os meus pais pediram de volta aquele primeiro apartamento e tal, e meu irmão foi morar lá. Depois meu outro irmão achou legal porque, afinal de contas, morar bancado pelos pais no Rio de Janeiro, não tava ruim, né? Isso foi uma questão muito sofrida lá na minha casa e tal, e até que meu pai foi transferido pra lá, e ficou nessa “vai e não vai”. E eles foram pra lá. Eu fiquei de filha única, o que no primeiro momento eu achei. “Uau! Tudo pra mim”. E depois eu fiquei, “putz, tudo pra mim”.
P/1 - Você tinha quantos anos quando isso aconteceu?
R - 14, 15. Eu tinha entrado no Santa Cruz, que era uma coisa. Enfim, era uma mudança na minha história familiar, porque eu tinha um irmão mais velho, muito parecido com meu pai, fala não sei quantas línguas, leu todos os livros, que era “o” inteligente e tal. Hoje não, que meu pai já faleceu, mas depois meus pais entenderam que toda essa inteligência, essa coisa poderia ter sido mais. Ele poderia ter sido mais exigido. Então eu, como terceira, também prestei lá o tal de vestibulinho. Entrei e isso me abriu um mundo de aula de filosofia, sociologia, aula de cinema. Passava de 16 mm. Cara, imagina toda semana com uma aula pra você entender o que que você estava assistindo? Foi bastante formadora assim.
01:17:37
P/1 - Qual é o nome dos seus irmãos?
R - Carlos, o mais velho, e Alberto, o mais novo. Então foi um tempo assim. Eu ganhei a cidade, eu ganhei todo esse entendimento. Eu tinha uma turma ótima, eu comecei a namorar, tava tudo certo. Aí a família resolve que vai morar no Rio de vez. E pra mim foi um transtorno. Foi um ano duríssimo, porque cada coisa que acontecia de legal era aquilo que eu ia perder. No fim, não fomos, ficamos. E essa história?
01:18:12
P/1 - Mas ficou, quem ficou?
R - Eu, a minha mãe e o meu pai.
P/1 - E a sua avó?
R - A minha avó depois foi transferida para o Rio de Janeiro, também para ficar com os netos. Essas histórias de família. Mas, de fato, abriu um mundo bastante diverso, enfim.
01:18:34
P/1 - Antes da gente falar do Santa Cruz, na escola anterior, alguma coisa te marcou lá, pro bem ou pro mal? Alguma professora, aluno, enfim, alguma situação?
R - Engraçado, né? Mais ou menos. Eu acho que eu tive uma experiência de aprendizagem da cultura formal do judaísmo. Aprendi a ler um pouco de hebraico, tinha essa vivência. Mas, sei lá, incrível essa pergunta. Nunca mais pensei sobre isso. Engraçado… Acho que não. Acho que sei lá, eu acho que eu tenho uma certa dificuldade com grupos mais fechados, sabe? Quer dizer, eu não me sinto, não sei, acho que é, não me sinto inteiramente parte, sabe, assim, sei lá. Eu acho que a grande experiência escolar que eu acho que foi lembrada com afetos, foi a minha experiência de estudante no Santa Cruz. Quer dizer, eu descobri que tinha um mundo de coisas interessantíssimas. Eu tive algumas aprendizagens que eu acho que levei pra vida. Faço coisas bem, por exemplo, eu escrevo bem, eu sei disso, isso é reconhecido e tal. Isso é muito da experiência de ter estado numa escola em que eu tinha que escrever dissertação, escrever bem, sabe? O dia que eu aprendi dialética, eu passei a entender História. Quer dizer, eu consigo entender movimentos. Tive experiência. Por exemplo, era aquele momento da igreja católica, eu acho que a igreja católica progressista foi especialmente formadora no sentido de uma cultura humanista, no sentido de você ler filosofia. Era a época das comunidades de base. Pensa, eu em Paúba, litoral norte, onde a gente tinha uma comunidade de base em que a gente atuava. Algumas experiências foram muito importantes, eu acho, de experiência escolar. Depois eu vou contar. Depois que eu acabei as faculdades, eu passei um ano na França, eu fui estudar, e muito dessa postura de estudantes, ser capaz de ler e entender, produzir e tal, é dessa experiência escolar de aprender a ler um texto longo, comparar 2 textos, escrever um terceiro, ser conciso na escrita. Depois eu aprendi aqui também no primeiro projeto que eu peguei, o Luiz Egypto, que era o jornalista. Nunca esquecerei Luiz Egypto, porque ele: “escrever é cortar”, a gente fazer a pesquisa e tal, mas o texto final, teve o da Odebrecht e tal, acho que aprimorei, mas essa condição da escrita, do texto bem feito, é dessa experiência escolar. Essas e uma série de outras experiências que eu acho que foram altamente formadoras; a minha cultura cinematográfica, a minha leitura de textos clássicos, e outras coisas. Mas isso, de fato, foi marcante se a gente pensar em termos de escola assim.
01:22:26
P/1 - Você se lembra do primeiro dia que você foi lá?
R - Perfeitamente. Era uma condição muito interessante, porque, até então, nós fomos a última turma em que os meninos vinham do ginásio e as meninas entravam pelo vestibulinho, porque tinha sido uma escola de meninos, né? Então, os que estavam ali e tinha algumas místicas de quem vinha de fora, era muito melhor estudante do que quem tinha vindo de dentro. Não sei quando isso é verdade, mas também isso é relevante no momento. Então a gente tinha uma sensação meio de escolhidos, de “ungido”, sabe? De ungidos, eu acho que tem isso. Isso era reafirmado o tempo todo. Nós formamos a espinha dorsal da sociedade brasileira e outros quetais. Tinha essa essa percepção, e tinha também a percepção de tá chegando num lugar lindo. Até hoje o campus é belíssimo. Até hoje é uma delícia lá e ver que muitas coisas não mudaram, numa condição de cidade que está sendo toda colocada abaixo. Eu voltei no Santa Cruz, por vários motivos, os meninos estudaram lá, depois trabalhando em escola privada dessa turma, tive vários encontros lá. Me dá uma alegria entrar no hall e reconhecer ali o lambri de madeira, o chão do corredor, a janela da minha classe, entendeu? E aquele jardim belíssimo de fato. Eu me lembro dessa chegada, desse chegar nesse lugar lindo, e a gente com a sensação, “nós entramos”, “olha nós aqui”
01:24:32
P/1 - Como foi essa prova? Tinha prova?
R - Tinha prova. Essa prova era um tal do vestibulinho, tinha gente que estudava muito, tinha cursinho pra entrar, pensa. Só que eu tinha uma amissíssima e a gente resolveu estudar junto. A gente tava na escola diferente e a gente estudou uma tarde. Tinha os livros, a gente tinha o livro de crônicas que se lia pra pro vestibulinho e tinha lá uma lista de coisas, sei lá, a gente tinha aprendido, alguma parte não e tinha prova de conhecimentos gerais. Vamos dizer assim, que eu cresci numa casa, em conhecimentos gerais estava posto, né? Quer dizer, tinha você assinava jornal, revista, não sei o quê. Essa parte, não sei quais foram os meus resultados, mas de fato, se eu gabaritei alguma coisa, foi essa. O fato é que tinha e, não sei se ainda tem isso, acho que pro colegial ainda tem, mas mudou muito. Agora eu acompanho os editais porque com essa coisa de inclusão racial, eu tô tentando ver, tem três escolas na região com projeto de inclusão racial e a minha meta é ver se eu consigo colocar todos os netos de uma de duas das cuidadoras da minha mãe, porque são crianças espertíssimas. Mas tinha edital, tinha tudo e eu estudei, passei, acabou. E assim, foram uns anos, como todas as adolescências. Mas foi de muita aprendizagem, muita descoberta de coisas de mundo, de uma porção de coisa. Enfim, é essa experiência.
01:26:27
P/1 - E você falou do que foi aprendendo e tal, como foi importante, mas como era o dia a dia, as aulas, os professores?
R - Era árduo, e de imensa exigência, de uma imensa carga horária.
P/1 - 7:10 tava lá, né?
R - 7:10 e 3 vezes por semana até às 5:30. Cara, se estudava muito. Achei engraçado, semana retrasada, uma das professoras lá fez 100 anos, saiu até uma matéria no jornal e tal, pediram relatos e tudo. Ela era duríssima com todo mundo e é incrível como isso povoou hoje as memórias como excelente professora, “me ensinou a estudar” e tal. Era de imensa exigência. E depois, quando a gente avançar pra minha vida profissional, eu acho que isso também mudou muito da visão que eu tenho sobre pra que serve a escola pra todo mundo, mas era profundamente exigente. Eu penso que tá correto, de quem você vai ser profundamente exigente, de quem tem todas as condições pra responder a sua exigência, né? Era profundamente exigente. Isso resolveu muito a minha vida, que veio depois, no sentido de dar conta de uma opção de coisas. Era exigente, tinha aulas interessantíssimas, tinha laboratórios super equipados, interessantes. Tinha um espaço muito legal. A gente tem falado muito de espaço para as crianças pequenas, de verde e tudo. Ali onde tem o Shopping Villa-Lobos era mato e o que tinha em frente também. Então, no fim da tarde, a gente sentava no jardim e via o pôr do sol, onde tem aquele paredão de prédios, a gente via o pôr do sol. Final do dia. Cara, quem tem oportunidade de sentar no jardim da sua escola e ver o pôr do sol no fim do dia, pensa? E era profundamente exigente. A gente estudava muito, a gente lia muito e muita coisa e muita apostila, e muita exigência. E muitos de nós davam conta, outros resolveram que não queriam dar conta. Teve de tudo. Eu, recentemente, reencontrei duas amigas com quem eu não convivia há uns 30 anos ou mais, aqui no bairro, uma tava de bicicleta, não sei o que, agora a gente se encontra a cada 15 dias a gente almoça. E dava tempo pra absolutamente tudo no sentido de ir no festival de jazz sexta à noite e emendar e fazer prova de física às 7 da manhã. Se eu tiver que fazer isso hoje em dia, eu morro. Mas a gente dava conta bem, e tinha coisas interessantes e outras bem menos, outras o pensamento a respeito de educação mudou muito, né? No sentido de considerar coisas, rever coisas. Mas eu acho que foi altamente formador, como score.
01:30:05
P/1 - E alguns professores te marcaram? Qual o nome deles? Que que dava aula?
R - Olha, eu tinha uma aula, que inclusive acontecia debaixo da árvore sempre que possível, que na época tinha 2 revistas. Se eu falar isso agora, aqui, nesse contexto, as notícias chegavam pela Veja e pela Isto é, tá bom, a gente lia. Tinha que ler a revista inteira, uma vez por semana e uma aula de atualidades. Discutia algumas matérias específicas da revista. Aí quando mandaram todo mundo embora da Veja e se chegou à conclusão que o conteúdo não é, aí tinha que ler, Isto é, mas, cara, era uma revista inteira que se lia, né? Vamos dizer assim. Então isso era muito importante, era o pleno professor de história. Muitos anos depois, eu fui trabalhar com a esposa dele, não sei como ele está e se está. O fato é que ele teve Alzheimer e o professor de história, talvez não lembro nem mais a própria história. Ironia. É difícil, e isso era genial. Eu acho que tinha uns laboratórios muito interessantes, as leis eram outras, então a gente abriu o sapo, barata, competiu quem conseguia subir com mais de clorofórmio a pipeta ficou todo mundo trelelé, mas todas aquelas experiências de ótica. A gente fez o laboratório, portanto, viu o raio para lá, viu pra cá, não sei. É todas aquelas experiências de origem da vida. Enfim, uma série de coisas tinha lá para ver, para funcionar. Eu acho que isso era legal. Eu me encantei com estudar filosofia. De fato, isso me abraçou, né? No sentido de pensar sobre as coisas, de ler. De fato, acho que isso me encantou. E tinha cinema toda semana para melhorar a cultura fotográfica e dar beijo na boca, que são todas as coisas altamente formativas da sua adolescência.
01:32:26
P/1 - E quem eram as pessoas que você fez amizade nessa época?
R - Então, eu tinha um monte de gente conhecida. Tinha 2 amigas e comecei a namorar. Tinha uma vida que me tomava 100%. Minha mãe dizia, ela era educadora e dizia que era uma escola antropofágica, que ela engolia os alunos e devolvia 3 anos depois. O fato é que eu acho que no primeiro eu me encantei, no segundo também, no terceiro ano, eu acho que eu comecei a… No momento que eu tinha que definir o que eu queria ser, que vestibular eu ia fazer, isso começou a me atrapalhar muito. E eu arrumei um namorado muito mais velho. E aí, essa convivência entre namorar um cara muito mais velho e ainda ter essa turma, ficou uma coisa, vamos dizer assim, difícil de articular. É muito interessante isso porque a gente, a minha turma, a cada 5 anos se encontra, depois da rede social se encontra todo dia e piorou, porque tem a turma que virou bolsonarista e etc. Mas por que que eu tô falando isso? Então tinha essas turmas, o que é liberal, que não é liberal, que não sei o quê, e eram bolhas, né? E agora, quando a gente se encontra 40 anos depois, é tão irrelevante. Todas essas coisas são totalmente irrelevantes, mas ali elas tinham sentido, eram importantes e tal. Então eu acho que esse fim foi mais melancólico, né? Eu não sabia o que pra que que eu servia. Essa frase é interessante. Eu me lembro numa entrevista longa de um publicitário, acho que foi o Washington Olivetto “olha, você saber pra o que você serve é uma coisa boa na vida, porque você consegue botar a sua energia nisso”, e é verdade. E eu sempre tive um milhão de dúvidas. Eu acho que as dúvidas me consumiam muito. Então o final foi complicado, eu não consegui articular as turmas que eu tinha com um namorado muito mais velho que já estava em outra, o pra que que eu servia? O que que eu ia ser na vida? Aí entra um tempo mais difícil. Eu prestei um monte de faculdades. Entrar na faculdade era baba, a questão era: qual e como, e pra quê, o que eu quero ser quando eu crescer? Eu acho que isso me atormentou muito tempo, sabe? Até que um dia, conversando com o meu caçula, que estava numa dúvida atroz entre pegar o primeiro emprego ou fazer um mestrado, para onde ele estava praticamente aceito, com bolsa e com tudo. Aí ele me perguntou assim “você teve muitas dúvidas quando você tinha a minha idade?”. Eu adorei. Eu falei: “André, eu continuo tendo todas essas dúvidas”. Não sei, é diferente da amiga que resolveu ser médica, quando ela tinha 14 e nunca mais se colocou outra questão. Mas não era o caso. Então esse fim foi mais melancólico, porque eu sabia muito pouco o que eu queria para mim. Então, eu começo um curso de pedagogia, entro em artes, que eram as duas áreas que me interessavam profundamente, assim mais, mas também não queria trabalhar em escola. O fato é que aos 17 anos, está cedo para caramba para você saber para que você serve. Acho que isso foi dureza até eu acertar esse passo. Você tem que me dizer até que horas a gente vai? Porque nossa, já deu um tempão. “Eu vou fazer educação e artes” Eu levava com os pés nas costas.
01:36:54
P/1 - As duas faculdades?
R - Eu levava as duas. Logo no início foi meio complicado porque essa coisa da cidade começou a me atrapalhar. Eu não dirigia, porque eu tinha 17 anos. Aí eu comecei a fazer Pedagogia e, pelo terceiro ano, eu fiz o vestibular de novo, entrei em Artes. É essa a história. Aí eu acabo essas 2 faculdades também muito na dúvida para o que eu servia na vida. Mas aí eu passei um ano viajando. Eu mochilei um ano e acho que esse também foi uma condição importante, no sentido de ficar meio solto e procurar minha turma. Quando eu termino a educação, eu falei: “não, eu quero fazer educação, eu não quero trabalhar em escola”. Eu fui trabalhar no MAM, no espaço de arte gráfica e algumas outras coisas, serviço educativo.
01:38:08
P/1 - Mas você entrou em que ano na faculdade?
R - Eu fiz o vestibular em 81 e aí eu começo a Pedagogia em 82, me formo em 85 e as Artes em 83, e me formo junto porque a meta ali era ir. Essa sede de viagem.
01:38:33
P/1 - E você ou a sua família, alguém que você conhece, você falou que tudo isso aconteceu durante a ditadura ainda, você sentia a presença de alguma coisa assim ou não?
R - A gente tem algumas algumas histórias interessantes. Primeiro que tinha um cara. Com clareza, na minha casa, todos entendiam que era uma ditadura, que tinha gente sendo torturada, que tinha gente desaparecendo, os professores da Vocacional foram presos, soltos, que tinha livro que não era para ter em casa. Tinha um educador que eu acho que ele era do sul, que se chamava Leo Kessel, e andaram atrás dele. De vez em quando ligava alguém em casa procurando ele. E aí se explicava que não era da família, que não sei o que. Uma vez ligaram, a minha avó tentou explicar de onde vinha. E se sabia quem era milico, que o que estava se vendo era muito ruim. Mas eu me lembro, Bolsonaro, meu pai já não estava mais… Uma vez eu perguntei: “mas como era a vida da ditadura? Não sei o quê, lembra?”. Meu pai falou: “olha, a gente jogou livro fora, tinha coisas que não se falava, mas a gente viveu, cresceu, criou nossos filhos”, como quem diz assim “olha, toca sua vida e se concentra. Cuidado com o que fala”. Mas não tinha, vamos dizer assim, ninguém estava envolvido em nada que pudesse gerar algum tipo de questão, entendeu? Só uma vez que esse meu tio muito engraçado deu pros meus irmãos uns walk talkies lá no Rio e eles começaram a pegar faixa do cidadão, mas faixa da polícia, não sei o quê. E um dia veio lá e grampearam os negócios e foi aberto uma ação e meus irmãos só falavam bobagem no walk talk, entrava na faixa do cidadão, o que eles falavam foi gravado, foi entendido que poderia ser código. Foi um bafafá, teve que botar advogado e meu pai falou: “se fosse em época normal, deixava vocês lidarem com isso sozinhos, mas nesse momento não é possível”. Aí meu pai contratou um advogado para mostrar que eles estavam brincando com os aparelhos que pegava a faixa de polícia. Foi um cão. Foi uma confusão, mas, tirando isso, não havia essa presença. Eu me lembro de ir, esse lado voltando, isso eu me lembro. Porque é uma época que meu pai viajava muito ainda, tinha uma prática de ir ao aeroporto. Engraçado. Levar e pegar. Eu acho que uma ou duas vezes eu fui buscar o meu pai, eu fui embarcar no período que meu pai morava, estava trabalhando no Rio, a gente ganhava as passagens, imagina, delícia, ligava e dizia assim: “tá sol aí?” “tá sol”. Pô, chegava e ia direto pra praia, imagina. E calhou de eu ver exilado chegando no aeroporto. Eu me lembro, porque tem os que estão na mídia até hoje, mas tem mais um monte de gente que estava exilado, e teve um período, eu acho que foi por 81, que estava todo mundo chegando. Muitas vezes eu vi gente chegar no aeroporto, era emocionante essas pessoas chegando.
01:43:00
P/1 - Mas como era?
R - Porque é o seguinte, teve um momento que de fato o perseguido, não podia voltar de jeito nenhum. E aí, essa tal da distensão que foi do governo Figueiredo, sobretudo o governo Figueiredo, as pessoas começaram a voltar. Então isso era fartamente anunciado na mídia, as pessoas iam ao aeroporto, e eu acho que ainda não tinha Cumbica, não me lembro. Eu lembro que tinha Congonhas. Eu me lembro até em Congonhas pra embarcar pro Rio, ou pro meu pai chegar, não sei, ter gente chegando do exílio. Foi alguém que ficou 20 anos fora, 15 anos fora, e tem uma festa. Ter gente no aeroporto e ter família. Pô, o cara não voltou porque não quis, né? É muito diferente. Eu, recentemente, tava em Boston e peguei o metrô e me atrapalhei, e uma senhora brasileira falou: “quer que eu te ajude?”. Falei “quero. Eu não estou conseguindo me ajeitar aqui”. E aí a gente ia pro mesmo lugar e era muito distante. E aí ela me contou daquela história clássica: chegou, entrou pelo México, atravessou o deserto, foi presa, ficou naqueles negócios que eu não sei o nome nos Estados Unidos, que quem foi pego tá lá, sei lá, 18 anos, ela não pôde voltar porque ela não tem papel lá. Aí eu falei assim: “mas a senhora não tem saudade, não tem vontade?” Ela falou: “não tenho vontade nenhuma. Agora, então, que meus filhos conseguiram entrar aqui, tenho saudade nenhuma”. Isso, esse auto exílio, vamos dizer assim, não tem nada que ver com esse do cara não poder voltar. E é incrível porque se repetiu. Então a filha dela aconteceu exatamente a mesma coisa, ainda sobre o Trump que ele tava separando adultos e crianças. Essa história, eu me lembro disso, mas ditadura militar… Eu me lembro perfeitamente da morte do Herzog. A história do Rabino Sobel se recusar a fazer um enterro na condição de suicida. Isso eu lembro porque cruzou com uma condição da comunidade judaica. O suicídio hoje é visto um pouco diferente, mas no cemitério, o lugar do enterro do suicída é diferente dos demais, e eu me lembro perfeitamente que o Sobel se recusou a fazer um enterro desse jeito. Então isso foi falado, isso eu ouvi em casa, né? E tinha uma condição que o fato do Sobel ser cidadão americano sempre possibilitou a ele certas falas e certos atos que outros não puderam fazer ou não quiseram. Mas isso eu me lembro da ditadura perfeitamente, porque na verdade, os pais dele eram imigrantes como os meus avós, igualzinho. Então isso eu me lembro. Me lembro de “vai ser a missa, não vai ser a missa na Sé”, isso eu lembro. Mas lembro como uma condição bem doméstica, não diferente disso. Mas eu acho que isso é como disse o meu pai: “criamos os filhos, mudamos de casa e tocamos a vida”. Era isso. Não mais que isso.
01:46:56
P/1 - Agora me conta, como foi as suas duas faculdades, então?
R - Então, foi profundamente sofrido fazer a escolha. Sei lá porque cargas d'água, eu marquei Psicologia na USP, Pedagogia na PUC, Artes na FAAP, mas podia ter botado uma temática aqui e Química lá. Eu entrei na PUC super bem e eu não entrei na USP porque a minha nota de Biologia, na época, para entrar na Psicologia, você precisava ter o número uma quantidade de X na Biologia, porque a Psicologia da USP era mais comportamental e biológica. E eu entrei na PUC muito bem. Comecei o curso, levei com o pé nas costas aquilo lá. Mas, quando eu entrei, já tinha um monte de menina que tinha feito curso normal, já trabalhava em escola. Cara, eu não me via nisso. E aí comecei a dar aula particular. O fato de ter feito um curso de um colegial ótimo, me botou numa condição que eu podia dar aula de qualquer coisa, menos de Física, porque eu não tenho condição de entender uma série de coisas da área de física, balística, enfim. E comecei a dar muita aula particular e ganhar grana, e conseguia fazer duas faculdades ainda, fazer aula de inglês e de francês no meio do dia. Muitos anos depois, quando eu fui estudar o Barroco, eu entendi que tinha uma relação com a vida barroca. Quer dizer, o terror é o vazio. Quem precisa fazer tanta coisa para sentir que é algo ou não é. Mas eu fazia essas coisas todas e levava muito bem. E sabia que ao final daquilo, a minha meta era viajar. E enfim, viajei. Primeiro fiquei em Londres um tempo e eu ia na aula de inglês e, de tarde, eu ia nas palestras que tinham de graça nos museus ingleses. Era uma coisa impressionante assim. Então eu tinha feito Arte, mas eu fiz quase uma formação complementar. E a história da arte, de ver o mundo, foi outra vez que abriu totalmente a minha câmera, meio assim. E depois eu encontrei uma amiga que eu tinha conhecido anos antes, e a gente viajou uns meses e fui ver o que eu tinha estudado de história da arte, fui ver de verdade. Quase nada de dinheiro, dormindo em albergue ou em qualquer lugar e, lá pelas tantas, qualquer convivência muito longa, tem uma hora aqui desanda e tal. Essa minha amiga voltou para o Brasil. Eu continuei e fui para Israel. Eu tinha estado lá uns anos antes, num programa de dois meses num Kibutz. E eu tenho família lá também. Essa é outra experiência familiar louca, né? Quer dizer, você vê a pessoa três vezes, mas é sua família. Cheguei lá cabeluda, tinha mochilado muito, tinha entrado em todos os museus, estava exausta, emocionalmente exausta. Eu me lembro que o último museu que eu fui antes de decidir que eu ia para Israel dar um tempo, eu queria ir pro kibutz, porque esse negócio de trabalhar na terra põe a sua alma em ordem. E aí, eu cheguei lá, era na casa do primo da minha avó materna, toquei a campainha, nem falava direito alguma língua que eu conseguia falar com eles, mas se entendia e eles entenderam direitinho que eu estava exausta. É só dois passos atrás, nessa dança, ainda na Europa, eu descobri que tinha um curso genial, que era de Museologia, na escola do Louvre. Só que eu não podia me matricular. Eu teria que voltar para o Brasil para pedir para ser estudante. E o fato é que aí, da onde que eu saí? Eu estou confundindo… Mas enfim, o fato é que eu cheguei na casa desses primos da minha avó, e eles entenderam direitinho quem estava chegando. Estava com cabelo imenso, uma mochila, mas estava derrubada, não tinha mais informação possível. Eu estava exausta de tanto museu, de tanta arte. Me lembro, o último museu que ainda vi foi na Grécia, eu acho que é. Peguei o avião de Atenas pra Israel. E eu me lembro de passar pelas salas e chegar à conclusão que eu não tinha mais nenhuma nova informação que eu podia captar, absorver, que eu tinha chegado num estresse. Eu estava escrevendo um negócio aí para um livro semana passada. “Infoxicação”, acho que era um neologismo desse, que tem a ver com o uso de tecnologia e rede social, que nada! Foi depois de ali que eu vi que existe uma síndrome de Florença que “chega, não é mais possível”. E aí eles entenderam tudo, me deram uma comida quente. Esse primo da minha avó adorava assistir desenho animado. Ele falou: “vem aqui”. Eu deitei entre os dois na cama e assistimos Mickey Mouse, que ele adorava, e eu fiquei uns dias, me reestabeleci e fui para um Kibutz à beira do mar. Um dia eu trabalhava na colheita de algodão, das 5 da manhã às 2 da tarde, e todo dia, às 2 da tarde, eu ia à praia todos os dias no Mediterrâneo. E aí o pessoal diz assim: “vamos sair? Porque tem gente do mundo inteiro”. Eu dizendo “não, não posso sair. Eu estou aqui me refazendo”. “Vamos ao cinema?” “Não, não vamos ao cinema”. “Vamos na cidade comprar não sei o quê? Primeiro que nem dólar valeu bem os suecos dinamarqueses. O dinheiro deles valeu um montão. E aí eu fiquei uns 4 meses nisso. Primeiro eu trabalhei no fim da colheita de algodão. Eu dirigi um tratorzinho pra retirar os canos da irrigação, porque era uma agricultura toda irrigada. Depois eu trabalhei nos enxertos das mangas e não falei que eu tinha formação de nada. Fiquei super na minha, porque eu sabia que eu queria aquilo, era terra, era colher, era não sei o que lá. Mas aí um dia alguém descobriu que eu tinha formação na área de educação e aí me disseram: “olha, esse programa de voluntários você paga a sua estadia com trabalho. A gente precisa de você na casa das crianças”. Aí eu fui trabalhar com as crianças de 2 e 3 anos. Era muito divertido porque elas achavam muito interessante ter uma adulta que não sabia falar. Então o catatau de 2, 3 anos vinha com não sei o que colorido e começava a ensinar as cores. O outro me ensinava não sei o que, eles achavam, e dizia assim “olha como ela fala, ela parece um bebê”. Eles tinham 3 anos. Aí eu trabalhei na casa das crianças ainda dentro de uma utopia, porque a ideia do kibutz era uma utopia, era totalmente socialista nas decisões e nos meios de produção. As crianças moravam todas juntas porque no início do Estado e pouco antes, era também uma condição de segurança. Mas junto, eu fui lendo o livro do Bruno Bettelheim, o psicólogo que eu tinha lido na faculdade que analisou essas crianças de kibutz, que dormiam em dormitório, todo mundo junto e não sei o quê e tal. E esse kibutz, eles estavam dando dois passos para trás. Eles tinham decidido que esse negócio de você deixar o seu filho no fim da tarde pra ele dormir com as outras crianças e não na sua casa, as mães não aguentavam. Enfim, eles estavam refazendo, revendo a sua utopia. E tinha sido um kibutz à beira mar que eles tinham sido inicialmente pescadores. Eu fui conversando com as pessoas e uma senhora me contou que no início essa questão era tão importante que até as roupas eram socializadas. Ou seja, ninguém tinha a sua própria, e era um lugar absolutamente lindo e à beira do Mediterrâneo, era um kibutz rico que tinha até escultor. Quer dizer, tinha dinheiro para mandar dois caras estudar escultura em Veneza e voltar. Então tinha escultura, lindíssimo. E eu fui trabalhar com as crianças nesse momento dessa revisão. Ainda trabalhei um pouco na cozinha e vi o fim, acho que já se encaminhava para o fim dessa visão, dessa possibilidade de uma vida socialista. E tinha coisas interessantíssimas. Porque tudo era desse “nós”, não voluntários, a gente só fazia bagunça, todos os tipos de bagunça. Tinha o “Toga Party”, que todo mundo se vestia de lençóis, tinham a boate que funcionava no bunker, tinha uma porção dessas coisas. E tinha, do ponto de vista da educação, essa revisão de que os pais, as mães não aguentavam. Tinha família que tinha vindo morar nesses kibutz, porque no outro as crianças ainda moravam todas juntas. E aí eu trabalhei na casa das crianças e foi uma experiência linda, né? Mas aí eu achei que eu tinha achado a minha turma, comecei a fazer a papelada pra ir pra Paris e aí voltei pro Brasil nessa perspectiva de poder voltar pra França. E acabou um ano de uma viagem que tinha sido o sonho de muitos anos, e foi bem legal.
01:58:06
P/1 - Só perdi alguns detalhes, mas qual era o nome desse kibutz?
R - Esse kibutz chama kibutz Palmachim, e era um kibutz que produzia concreto protendido, que naquele momento estava super bem de dinheiro. Porque, por exemplo, eu não contei aqui, mas um tempo atrás eu tinha ido passar só 2 meses, eu fiquei no kibutz de uma imigração brasileira chamada Bror Chail, que era o kibutz vizinho desse que foi atacado. Se fosse naquele tempo, eu estaria naquela festa, com certeza porque era ali, mas esse outro era muito diferente, e eu estava num programa. Quando eu fui, que eu estava exausta de viajar, de mochilar, de cada dia dormir numa cama, e de cada dia conhecer pessoas diferentes e não parar em lugar nenhum. Esse eu fui como voluntária, que era um programa que contava crédito. Tinha uma turma de suecos que estava lá contando crédito para faculdade de ciências sociais que eles faziam na Suécia, outro na Noruega, tinha as inglesas. Era uma garotada de 20 e poucos anos, trabalhando e se divertindo muito, porque além de tudo, era do lado da praia, era do lado da cidade. E foram 4 meses. Eu cheguei, guardei meu passaporte, o dinheiro que eu tinha, não sei falar, e falei “agora eu tenho que parar para saber o que que vai ser a minha vida daqui para frente”. Mas eu parei colhendo algodão, até que sacaram tinha alguém da área de educação e eu comecei a namorar um membro do kibutz. Então também começou uma articulação para me fazer ficar, obviamente. Eu falei “Ah, estou precisando ficar, é muito difícil viver aqui sem falar em hebraico”. Me arrumaram uma professora, mas eu achei que tinha que retomar e voltar para França, entendeu? E aí, aí é o resto da história. Mas acho que é hora de parar porque essa infância minha, prolonga. Chamava Palmachim, era um kibutz lindo à beira do Mediterrâneo, que produzia concreto protendido e vendia bem pra caramba. Então, essa condição de dar bem de vida possibilitava os dois quererem estudar fora. Chegou o inverno incrível, comprou roupas novas pra todas as crianças. Aí a senhora com quem eu conversava e falou assim: “imagina que quando tudo começou, a gente achava que a gente não devia ter nada de propriedade nossa? A gente partilhava as roupas”, pensa. Então ela meio deu risada e falou: “olha só as crianças estão todas de roupa novas”
02:01:05
P/1 - Mas você voltou para Paris para voltar para o Brasil?
R - Não, eu voltei, como é que foi a minha passagem?
P/1 - É só essa última dúvida.
R - Eu voltei para cá e eu tinha feito um application lá. Um application porque era em francês, pro curso de Museologia. Eu falei, “cara, é isso que eu quero fazer”. Imagina, o kibutz tinha fim de semana “o que nós vamos fazer? Vamos cavar?”. Porque ali é um território que se você cavar acha azulejo, caco romano, se você cavar mais você acha grego, se você cavar mais, você acha não sei o quê, é certeza que alguma coisa você acha. O kibutz tinha um museu arqueológico, porque eles acharam mosaicos inteiros. E um Museu de Israel falou assim: “mosaico, não. Pelo amor de Deus, fica com vocês porque não tem”. É um território muito antigo. É tanto que tinha ali uma experiência que depois eu fui estudar isso, quando eu fui estudar Museologia, que chamava “arqueologia experimental”, por exemplo, tem uma festa judaica que tem a ver com lamparinas que o azeite durou mais e tudo. Eles sentavam com as crianças de 4 ou 5 anos com as lamparinas, pegaram o algodão, não sei o que, como é que iluminava? Pegaram uma lamparina de sei lá, mil anos, botaram o algodão, botaram o óleo e botaram, falou, “porra, mas é uma lamparina assim, mas tem 300”, entendeu? Então, tinha essas coisas, né? Aí eu entendi que eu não sabia bem o que eu ia fazer, mas eu tinha certeza que eu queria seguir trabalhando com educação, e eu sabia que tinha que a ver com memória e com o museu. Isso estava claro. E eu tinha passado em Paris, porque a prima da minha tia morava lá, trabalhava lá, casou com francês, e ela falou: “vamos tentar, vou lá te ajudar com a papelada e tudo. Se der certo, você vem”. Então tava com isso engatilhado, mas foram quatro meses interessantíssimos. Primeiro que eu me permiti não fazer nada, porque eu trabalhava, né? Mas era, sobretudo, dar um tempo. Aliás, tenho pensado muito sobre isso porque eu acho que agora tá na hora de eu parar para dar um tempo outra vez.
Parte 2
Projeto Memória Oral Museu da Pessoa
Entrevista de Zilda Kessel
Entrevistada por: Lucas Torigoe (P/1) e Heloisa Ruas (P/2)
São Paulo, 05 de setembro de 2024
02:03:59
P/1 - Pelo que eu me lembro, você tinha falado que tinha voltado do kibutz, veio para o Brasil, e aí?
R - Então, vamos lá, eu lembrei de uma coisa que eu acho que ilumina muitas das outras, que eu acho que é nesse período que eu fiquei pelo mundo e foi estreitando a minha relação com a instituição museu. Então, eu acho que isso é uma coisa importante porque quando eu visito os museus europeus e tudo, eu começo a ver naquilo alguma coisa que era objeto do meu imenso interesse. Apesar de eu ter ficado exausta de ver tantos, algumas coisas foram interessantes. Por exemplo, o que veio a acontecer depois, no curso de Museologia, os museus ingleses, sobretudo, e depois eu vou entender quando eu vou fazer minha tese, já nascem como instituições educativas. Ao contrário, por exemplo, dos museus franceses, que eram coleções que existiam e, em algum momento, se considerou que aquilo era mais do que o patrimônio de uma família real e tal, os museus ingleses já nascem com uma vocação de educação. Eles se constituem como um lugar de aprender. Alguns deles estão, inclusive, já relacionados com escolas. Há coleções reais e tudo, mas há coleções que são estruturadas já com a perspectiva de ensinar. Eu acho que isso me capturou. Eu visitei um museu de ciência que tinha uma coisa que, nossa, pra nós, isso é super tosco, mas era uma primeira simulação, que era o seguinte: você tinha que botar um foguete em órbita. Aí você dizia quanto de combustível, qual propulsão? E aí você simulava se você conseguia botar o negócio em órbita ou não. Ok, você botava muito combustível e o negócio não saía da atmosfera; você botava pouco, não era suficiente. E ali era museu de ciência, mas eu fiquei siderada com a ideia de você conseguir trazer mais informação sobre aquilo. Por exemplo, eu tinha juntado uma grana para fazer essa viagem, dando aula particular de todas as disciplinas, menos de Física, porque eu não tinha alcance. Quando eu começo a ouvir aquilo, eu falo, “cara, mas isso é. Isso faz todo sentido em me ensinar alguma coisa que eu não consegui entender”. Então, eu acho que isso me capturou, quando eu resolvo que eu quero fazer Museologia e tudo, tinha essa perspectiva da educação. Eu só não considerei que essa vocação educativa diz muito mais respeito aos museus americanos do que aos museus franceses. E o próprio curso de Museologia era um curso super voltado para o estudo da obra de arte. Então, uma boa parte do curso e da escrita da minha monografia, eu fiz no laboratório de pesquisa dos museus da França, que tinham a ideia de, por meio de ciência, espectrometria, raio-x, não sei o quê, você entender mais sobre a obra ou você datar, porque você sabe, por exemplo, que durante o século tal, o branco era feito com chumbo. Então, se você tirasse uma partícula mínima, você saberia datar. Evento: teve “inaugurou-se o acelerador de partículas do Museu do Louvre”. A gente foi ver a máquina. Depois, eu fiz estágio no laboratório pra entender esses usos da memória não visível. É interessante isso como ideia, né? Mas foi nesse contexto que apareceu lá um curso que era informática aplicada à Museologia. Foi quando os computadores chegaram, e eu fiquei siderada com essa oportunidade. A minha monografia foi sobre isso. Eu trabalhei com uma parceira e a gente inventou lá um protótipo de um videodisco interativo para ensinar conceitos de arqueologia. O que era isso? Os conceitos de arqueologia, a própria arqueologia, quando a gente vê no museu, é lindo. Cara, mas a vida real é ficar com o pincel, tirando as coisas, cavar e tal. E como você explica esses conceitos? Aí a gente fez um projeto para o museu de arqueologia de Saint Germain, que é numa área de metalurgia. Então, você consegue descobrir para que uma coisa era usada em função do que você vê e tal, no microscópio, o tipo de ligação e tal. E a gente fez um projeto que era ensinar esses conceitos e a ideia de ter um computador na sala de exposição. E foi um período interessante, porque cada vez que a gente ia na orientação, a tecnologia tinha mudado. Pra vocês terem ideia, o must era um videodisco interativo com o que guardava. Eu não lembro mais o número: 12.000 imagens, 50.000 imagens, e virava o lado, pensa, virava o lado, é ótimo! Aí quando a gente chegava para conversar com ele, dizia, “não, já temos uma outra tecnologia para guardar imagens”. E eu fiquei muito impressionada com isso tudo. Aí foi oferecido um curso disso pelo Ministério da Cultura. Eu fui fazer o curso e daria para contar horas sobre isso. Mas eu acho que, de ponto alto dessa história, tem: primeiro, essa experiência desse encontro de arte e tecnologia, que eu fiquei profundamente interessada, fiz o curso, tal. E eu fiz um estágio no Museu d'Orsay, na documentação, e também foi uma outra descoberta incrível, que é, por exemplo, eu tinha feito artes aqui, mas eu sabia zero de artes latino-americanas. Isso não estava no currículo. E eu fui trabalhar numa parte da documentação do Museu d'Orsay, que é um museu que cobre 1848 a 1905. Então, tem a parte da documentação das obras, mas tem a parte da arte que foi feita no mundo nesse mesmo período. Então, tinha estagiária que sabia japonês, constituindo dossiê da arte japonesa nesse período. E eu, minha função foi constituir um fundo de documentação sobre a arte brasileira nesse período. E foi uma experiência linda, porque me permitiu primeiro fazer o que eu tinha que fazer e também fuçar coisas que estavam ali. Então, por exemplo, artistas viajantes que viajaram no Brasil, viajaram no que hoje é Argentina, Paraguai, Uruguai. E aí eu pude aprender a arte desses lugares, que tem uma relação profunda com a arte brasileira, mas que a gente não aprende. O que depois se liga com uma compreensão de que a memória é sempre uma curadoria, a memória é sempre uma escolha, e você tem as coisas que são iluminadas e coisas que são apagadas. Quer dizer, o próprio currículo escolar sempre é isso. Então, como é que eu faço uma faculdade de artes em que eu aprendi muitíssimo sobre a arte europeia, certa arte europeia, porque nesse mochilão, quando eu cheguei nos países escandinavos, por exemplo, eu não conseguia olhar e datar coisa que em outros lugares bastava olhar e dizer assim: “isso é coluna tal, isso é período tal, isso é neoclássico”, pelo corte da pedra, essas coisas. Então, essa foi uma experiência super interessante, de poder descobrir a arte latino-americana nos dossiês do Musée d’Orsay, que é um museu francês. Aí, quando eu volto para o Brasil, o Itaú Cultural está nascendo. E eu, por conta dessa interação, porque, veja, eu não tinha internet, não tinha nada disso. Então, como é que eu constituí o primeiro fundo de documentação desse período? Eu mandei uma carta para a Pinacoteca dizendo: “estou constituindo isso no Musée d’Orsay, eu preciso de imagens, textos e tal para fazer isso”. E eles me mandaram um, sei lá, um monte de documentos. Eu organizei lá. Eu voltei lá um ano depois e depois eu nunca mais voltei. Então, não sei como isso está, mas, assim, tem um primeiro passo nessa organização que eu contribuí. Me agrada isso na minha memória. Bom, e aí eu volto. O Itaú Cultural está nascendo. Eu ainda tive um contato com a Pinacoteca, quando fui assinar para trabalhar lá, porque, afinal, eu era a pessoa que tinha feito... me apareceu, não me apareceu, eu tinha mandado um currículo para o Itaú Cultural, que na época era Instituto Cultural Itaú, depois ele muda de nome.
02:14:03
P/1 - Desculpa, que ano foi isso?
R - 1989, foi quando eu voltei. Eu voltei em setembro, sei lá, e fui contratada em outubro. Mandei o currículo, não só tava escrito ali que eu tinha feito um curso de informática aplicada em educação, que eu tinha a perspectiva do trabalho educativo, e eu tava vindo da França. A primeira pessoa que desenhou o Itaú Cultural, quando o Olavo Setúbal diz assim: “eu quero ter um instituto”, ele chama o Ernest Mange, que foi um arquiteto urbanista, que foi presidente da EMURB quando o Olavo foi prefeito de São Paulo. Essa é a história. E ele diz: “cria o instituto que você quiser”, e o Mange diz assim: “nossa questão é a divulgação da arte”. E o Itaú é um banco que é líder em tecnologia. Lembrando que num país em que a moeda vai dormir com um e tem que acordar com outro, você precisa ter um domínio da tecnologia incrível para fazer isso funcionar. E aí ele desenha isso, ele está abrindo o Itaú Cultural, mandei o currículo e fui contratada. E eu acho que também isso se liga às coisas que eu fiz depois pelo seguinte, eu entro como monitora, porque aliás, eu fiz o depoimento do Mange, eu acho que está no acervo aqui do museu, posso estar enganada porque eu não sei bem pra que eu fiz, então eu posso ter feito pra outro projeto, mas enfim, pra outra coisa ou pra ele mesmo, não me lembro. Aí o Itaú Cultural é o seguinte: eles tinham conseguido botar imagens pra dentro do computador. Parece ridículo. Eu tenho imagem disso numa feira que eu fui e que eu estou segurando uma imagem impressa, colorida. E isso rendeu uma foto na Revista Manchete, só pra vocês entenderem, vocês não sei em que momento vocês nasceram dessa coisa, mas eles tinham feito duas coisas: um era uma base de dados com obras de arte, tinham conseguido botar 500 imagens dentro de um computador, e que você conseguia ver numa tela, isso é pra internet, tá? E tinham feito vídeos que contavam trechos da história do Brasil e a produção cultural naquele período. E achavam que só ter isso era suficiente pra ensinar arte. E descobriram que faltava uma coisa fundamental, que é o que depois se estruturou mais, e melhor, num conceito fundamental que é da mediação. Ou seja, não basta só você ter conteúdo e dizer pros educadores “usa esse conteúdo”, precisa alguém fazer algo que se chama mediação. Eu entrei lá como monitora e sai de lá 9 anos depois, com uma área que eu tinha 15 monitores, um bando de gente. E o desafio ali foi construir alguma coisa, o projeto que trouxesse as pessoas pra verem obras de arte no computador. E eu acho que vale um parêntese aqui, que depois aconteceu com o museu também, e daí eu vou contar como, porque a minha relação com o Museu da Pessoa começa ali de alguma maneira, que houve muita crítica sobre se o azul que a gente tá vendo é de verdade. A obra de arte é o azul, não é o azul, que a imagem que a gente vê na tela da arte não é a imagem real e a percepção é outra, porque no computador a imagem, a luz é emitida, e na obra de arte ela é refletida… Enfim, olha milhões assim, se assemelha muito a quando, depois, o museu abre e a academia também faz um Congresso. Isso a Cláudia Leonor pode contar melhor que chama história oral e ética, discutindo se uma instituição não acadêmica podia fazer um projeto de memória. É uma loucura! Parece que eu tô falando da pré-história. Bom, fato foi que a gente enfim implantou um programa de receber as escolas, de ensinar arte. Eu acho que esse é um falso problema. Hoje ninguém vai falar disso, né? As pessoas pagam pra ir ver uma projeção, essas exposições que traz Salvador Dalí, Leonardo Da Vinci, o caramba, é tudo projeção. Quer dizer, ninguém ousa dizer não, não estamos ensinando porque não é obra. Até porque vale lembrar que a nossa aprendizagem de arte, por exemplo, foi feita em livro, em slide, e essa experiência é incrível porque, por exemplo, eu nunca esqueci que eu aquele o casamento do “O Casal Arnolfini”, que é um quadro que está na National Gallery, em Londres, e eu sempre vi no slide, era imenso, e eu cheguei no museu e ele era pequenininho. Quer dizer, eu não sei se ainda é assim, mas no início, nas fichas aqui do museu, a gente colocava a medida da foto, não sei se ainda põe. Eu me lembro que isso foi uma discussão “não, mas o real não é real”. Isso hoje é completamente irrelevante, na medida em que a própria produção da imagem digital já nasce como digital e, às vezes, não existe nem a física. Bom, vamos dizer assim, que são discussões que apareceram. Enfim, criou-se um projeto pedagógico que as pessoas visitavam, era uma coisa do vídeo dar o contexto e aí mostrar as obras. A tecnologia era dois, chamava-se Winchester, que cabia só 250 imagens. É legal essa história porque, de alguma maneira, essa discussão das Humanidades e do que é digital tava posta ali. Quer dizer, os caras do banco se viraram em 20 para conseguir botar a Tarsila para dentro do computador, o que é um feito. E o pessoal das humanas, sobretudo da academia, diz assim “mas esse não é o azul, é o azul”. Cara, tava ali. E a gente conseguia imprimir e fazer a fila na rua para ganhar uma impressão de uma obra. Porque livro de arte é caro, quer dizer, hoje é até mais barato de produzir, todo mundo produz na China. Mas pensa, são grandes tiragens de 3000. Você imagina essa possibilidade de você ganhar de graça? Bom, e eu acho que aí eu não lembro a sequência correta. Tem que olhar a data de um poster que tá aí fora da primeira exposição do Heranças e Lembranças aqui em São Paulo, que eu visitei nesse contexto, eu conheci a Karen. Minha família é imigrante judia do Rio de Janeiro. Na exposição tinha foto porque eu tinha uma tia-avó que foi do Teatro Iídiche, e a gente se conheceu nesse contexto. E aí eu tenho problema de data. A gente começou a conversar, vi o museu nascer e tal. Eu não sei se é concomitante antes, mas ela vem no Itaú Cultural e diz assim: “será que a gente não podia inventar alguma coisa de história oral aqui?”. E aí a gente vai conversando e se cria ali um evento de história oral que tinha a seguinte característica, tinha uma série de palestras. Então, “história oral e documento”. Eu tenho folheto aí, não sei se vocês têm. Eu acho que nessas caixas que eu trouxe, tem e tinha isso e tinha a gravação de relatos sobre, eu acho que é sobre a história de São Paulo. Isso deve estar no acervo. Não me lembro mais, mas a gente coletou depoimentos ali e fez o evento, veio uma porção de gente, esse folheto existe. E, junto com isso, nasceu uma amizade e a gente seguiu. Depois a gente inventou um outro projeto, que aí na época, o Zé, com aquela ideia da Carta Cuba, Carta Brasil e tal, carta não sei o quê, a gente fez o Itaú cultural, chamou o Zé. E a gente fez um negócio muito interessante sobre a história de São Paulo, mas que aí era uma coisa, botava um cara numa ponta do Viaduto do Chá, e outro na outra ponta, e se trocava impressões sobre São Paulo, e isso integrou uma exposição. Depois a gente fez um outro evento que também deve estar aí no acervo que eram umas oficinas de vídeo e o produto final era uma viagem à Paranapiacaba, onde a gente gravava um vídeo, e foi uma história ótima. Primeiro que as oficinas foram legais. Eu acho que teve algumas outras coisas de história oral também que a gente ofereceu, e no que a minha área foi crescendo, quer dizer, a minha primeira equipe era uma “euquipe” que só tinha eu de monitora, mas depois eu coordenava oficinas, fazia um monte de outras coisas. E a gente fez algumas oficinas de história oral ainda antes de existir isso como área aqui de educativo. E essa foi uma viagem a Paranapiacaba, que se filmava, e depois se aprendia a editar na própria câmera. Eu não me lembro bem. E foi uma farra esse negócio, porque tinha enredos. Aí foi ensinando e eu tava assim, estávamos: eu, o Renato, meu marido, que foi inclusive o personagem de uma ficção que era uma morte lá, estava o Zé, estava a Karen, e estava o Mauro Malin, que é do conselho nesse grupo. A gente pegou o trem, foi lá, filmou, depois teve as aulas de edição, então as pessoas editaram, sei lá, se fez um processo inteiro e que tinha relato, tinha outras coisas. Então eu, ainda no Itaú Cultural, que na época ainda era Instituto Cultural Itaú, a gente fez essa oficina de memória oral, a gente fez algumas outras coisas, que ainda também não chamava roda de história, tinha outro nome, mas que eram todas ações eu acho que tirando essa, que tinha os caras nas duas pontas da Paulista, que foi genial. Parece óbvio, mas não existia celular. Tá bom, então? Vamos deixar as coisas claras. Precisava de Walk Talk, a produção precisava de Walk Talk, precisava de videomaker nas duas pontas. Eu não sei se eu tenho, se alguma coisa desse material tem. E eu não sei se foi do meu grupo, que era essa história desse assassinato ou foi outra coisa, que alguém esqueceu de apertar o botão rec ou apagou, né? Veja. Parece tudo uma bobagem, mas todas essas questões tecnológicas eram todas muito complicadas. Num projeto que eu acho assim, eu brinco, mas eu acho que a Karen sonhou o Facebook antes do Facebook, sonhou com coisas da internet que hoje se faz baba, tanto que hoje você entra no site do museu, é isso que tem, as pessoas colocam suas histórias, tem ferramenta pra isso, sobe a imagem, mas imagina sonhar isso sem a experiência da rede social, por exemplo? O problema é que a questão tecnológica era de fato um problema. Como é que a gente conseguiu fazer essas oficinas? Porque a gente tinha área de vídeo do próprio banco, porque tinha a câmera do próprio banco. Pensa nisso, eu fiz um, também não chamava essa palavra, mas um benchmarking na própria Avenida Paulista. Isso aqui tá cheio de centro cultural, nenhum abre de noite. Naquela época, o Itaú botava ônibus pros seus funcionários. Eu falei: “olha, vamos fazer o seguinte, por que que a gente não propõe pra quem nos patrocina?”, que não é esse o termo que se usava, “da gente poder usar os ônibus na hora que eles não estão levando e trazendo o funcionário”. Então, a gente conseguiu usar os ônibus da empresa pra ir buscar a criança na escola, lá no cafundó do Judas, longe pra caramba. E depois que acabava o transporte, a gente também podia usar, e eu trazia gente pra pra visita noturna. Então pensa, não tinha metrô, ainda não estava funcionando. A gente viu inaugurar o metrô da Paulista, né? Depois essa coisa “vamos filmar”. Eu filmo com o seu celular. As crianças nascem com isso, filmando. Agora num contexto em que isso custa caríssimo. O banco tem. Então a gente conseguiu fazer isso. Tinha filmado uma série dessas coisas. Eu acho que isso é legal.
02:28:23
P/1 - Desculpa te interromper, antes de você continuar, mas tem essa questão da tecnologia que eu achei muito interessante. Mas essas oficinas você falou assim, a gente tava pensando em história oral.
R - Se fez oficina de história oral, se fez roda de história, que não tinha esse nome, mas eu até trouxe um material aí pra Renata de oficinas. Aliás, eu não trouxe. Eu tenho uma caixa de coisas do Itaú e pode ser que tenha coisa do museu lá também. Tem que olhar. Eu não olhei isso, mas a gente olha. E enfim, junto com isso, tem histórias ótimas. Essa de Paranapiacaba é ótima. Depois o museu funcionava na Cardeal. Não sei se alguém falou. Enfim, a primeira sede foi na Cardeal Arcoverde, num andar lá que primeiro dividia, depois não dividia mais. Eu acho que a Alice fez as primeiras conversas pro que seria um… com algumas oficinas e tal. Isso ainda era meio conversado, né? E aí teve um momento que eu fiquei no Itaú. Eu acho que vale contar, porque isso é mistura um pouco a história pessoal quando museu, foi uma amizade que foi se estreitando. Eu e a Karen, a gente ficou grávidas absolutamente juntas, né? O Jonas e o Ariel têm 2 dias de diferença. Tem uma história ótima. Uma vez, grávida ainda, eu fiquei presa no banheiro da outra da primeira sede e todo mundo, “nós vamos chamar o chaveiro, fica calma, fica calma”, eu estava grávida. Eu dizia “gente, eu estou, eu estou presa no melhor lugar do mundo pra uma grávida que é no banheiro. Tudo bem, vocês conseguirem abrir, está tudo certo”, mas enfim. E aí eu ainda estava no Itaú Cultural. Primeiro eu tive o Ariel, que tem 2 dias de diferença com o Jonas, depois eu tive o André e, eu já estava ensaiando, quando eu tive o meu primeiro filho achei normal trabalhar 50 horas por semana, deixar ele ir na creche, etc., quando eu tive o meu segundo filho, eu tive certeza. Não queria isso na minha vida. O dia que eu deixei ele com 40° de febre no pediatra com a babá, porque eu tinha uma reunião importante no Itaú Cultural, eu falei: “não, tem alguma coisa muito errada na minha vida”. E eu já tava prospectando, querendo sair. Aí a Karen falou assim, “olha, tá pintando um negócio aí da Odebrecht, mas é um espaço museológico, não é só projeto de história oral. E vamos desenhar junto, não sei o que”. Então começamos a desenhar, conversar e tal. E nesse meio tempo eu saí do Itaú Cultural e esse foi o primeiro projeto que eu trabalhei aqui no museu, que foi esse espaço museológico, tá pra Odebrecht, que eu imagino que ainda exista até hoje no prédio, que é do lado do Shopping Villa-Lobos. Mas o shopping não tinha sido construído, só tinha o prédio e um andar era para contar a história da Odebrecht, é essa história. Então era um espaço museológico, eu acho que certamente ou vocês entrevistaram ou vão entrevistar o Luiz Egypto. Ele pode contar a história desse projeto com muito mais propriedade que eu, porque ele fez todas as entrevistas. Agora, o que eu acho que vale só dizer é o seguinte: para Odebrecht, memória era negocial. Quer dizer, eu consigo vender um projeto pra perfurar o mar do norte ou a hidrelétrica na encosta do vulcão, se eu mostro que eu sei fazer isso. E a Odebrecht tinha um espaço de preservação dessa documentação de todas as obras, de tudo, olha muito melhor do que boa parte dos museus que a gente tinha aqui, climatizado, tudo em ordem, né? Então a ideia era poder construir um espaço museológico que contasse isso pra visitante. Era a memória como um elemento de negócio. Então esse foi o primeiro projeto que eu trabalhei. Eu tive acesso às entrevistas, mas eu não, eu não fiz os depoimentos. O Luiz coordenou isso. Se eu bem me lembro, é um capítulo da história do país, se você juntar a Odebrecht e o BNDES todas essas, mas aí era: o que que a gente escolhe disso para ser um espaço visitável? E esse foi o trabalho que foi super Interessante, porque eu acho assim que super realiza o que era lapidar na fala do museu, o que era se eu fizer a história oral, se eu coletar os depoimentos, isso pode servir um conjunto muito diverso de produtos, né? Eu não sei dizer se tinha tido outras exposições, quantas antes, mas ali se estruturou uma exposição a partir de um projeto de memória, deu origem a outras coisas, que eu espero que estejam preservadas, porque desse vendaval de Lava Jato, Odebrecht e tudo, não sei quanto que isso se preserva, mas a gente pode olhar pra pros depoimentos, pra todas as coisas e construir alguma coisa que era espacial. Era esse o projeto.
02:34:06
P/1 - Desculpa, como é que espacialmente era essa exposição, o que tinha?
R - Tinha sim, a Odebrecht tinha uns livros sagrados que era a “Tecnologia Empresarial Odebrecht”, uma bíblia, né? E eu me lembro que todo mundo ficou encantadíssimo com aquilo. Tinha uma história de empresário parceiro, que quem liderava o projeto, ele era lido como um parceiro e não como um funcionário. Aí teve uma onda disso aqui, depois tinha uma outra coisa que era, como é que tinha? Bom, todo mundo teve que ler esse negócio, os 3 volumes e tal. E era assim, como é que a gente vai contar essa história? Então tinha lá na TEO, Tecnologia Empresarial Odebrecht, eram livros verdes, a gente teve que entender tudo aquilo. E eu me lembro assim que foi quando eu conheci o Luiz Egypto e posso dizer que muito do que eu aprendi, o que é editar texto, escolher e tal, então? Tinha lá uma história de lapidar a história original, que sei lá se era o Emílio, sei qual que era a Odebrecht que andava na praia, encontrou uma raiz e viu que, mesmo nas piores condições, a raiz conseguia lá sobreviver. Então tinha que ter uma raiz lá, uma foto da raiz. Depois tinha uma coisa que era a linha do tempo, e aí estavam postos ali os desafios que foram sempre quer dizer, escolher o trecho a que se queria uma coisa que apertasse o botão e ouvisse aquilo. Enfim, que hoje é baba, né? É baba que eu digo, eu coordenei tecnologia educacional na escola. A gente faz isso com o menino de segundo ano. Então vamos fazer um site aqui da linha do tempo de sei lá o que, o menino monta sozinho isso no dispositivo dele, crianças pequenas fazer isso. Agora pensa, um tempo que não tem internet, não tem tela tátil, não tem não sei o que, não tem nada disso. Então vamos dizer assim, que eram esse desafio. Então, a exposição tinha uma linha do tempo. Eu acho que tinha umas coisas que viravam e tinha imagem, tinha um mapa e que tinha todos os pontos do… Tinha um planisfério, né? Os pontos onde a Odebrecht estava presente, que mais que tinha, foi feita a exposição. Não sei se está lá, porque inclusive a empresa mudou o nome, portanto, toda essa tralha, não sei, não sei de nada. Enfim, mas esse foi o projeto, né?
02:37:10
P/1 - Vamos voltar um pouquinho. Me fala sobre a primeira sede do museu. Vocês lembram que a altura da Cardeal?
R - Cardeal Arcoverde, não vou lembrar o número, mas é entre a Morato e a Fradique, o prédio. Eu lembro que no início, quando a Karen alugou, ela tinha metade e tinha uma outra pessoa que era a dona do resto. Mas quando teve foto na imprensa, tudo isso, a Karen conta melhor do que eu, fazer uma foto grande assim e aparece um monte de computador. E esse era um mote importante, vamos dizer assim. Eu acho que era isso. Era um andar, o museu inteiro era uma sala cheia de armários. Às vezes tinha muita gente, às vezes tinha pouca gente, mas era o que tinha, era o andar. Deve ter foto disso, porque acho que a Renata deve ter. E tinha esse banheiro, tinha o dentista do lado. Na verdade, era um andar e tudo se fazia ali.
02:38:23
P/1 - E taqui era dividido em equipes, quem tava quando você chegou, você lembra?
R - Tá, eu vou contar. Tem histórias ótimas. Esse foi o primeiro, foi o da Odebrecht. Aí eu tinha pesquisador, tinha basicamente a Karen, o Zé e a Rosali. Tinha uma secretária que era a Sheila. Variou quem cuidava dos vídeos, que era uma estante. Não mais que isso, e tinha graça de ser no meio dessa confusão, Pinheiros era isso. E esse foi o primeiro projeto meu, esse da Odebrecht, o segundo, porque ainda não tinha o educativo, nem tinha verba para ele, nem nada disso, eventualmente tinha uma oficina ou outra e tal, quando tinha, a gente desenhava e tal, o segundo projeto foi o da Rhodia Farma. Era um projeto de livro, dos 80 anos da Rhodia Farma, bem no que é a metodologia do museu, fazer entrevista e tal. Outro dia a Renata me perguntou sobre isso “Zilda tem vídeo, entrevista 2 vezes”. O negócio é o seguinte, gravar em vídeo era caro. Então a gente pra esse projeto, por exemplo, não tinha verba. A gente fez as entrevistas em áudio. Quem fez a orientação foi a Cláudia Leonor. E eu achei muito engraçado, porque as primeiras entrevistas ela foi conosco e pô, era um equipamento. Eu lembro, a Cláudia assim “afasta aqui, afasta ali”. Só que era um banzé na casa dos outros, né? E aí a gente mandava transcrever, voltava, e aí transformava o áudio que a gente não gravava em cassete, mas transformava em cassete. Aí para mandar para transcrever, voltava. Aí a gente escolhia, escolheu daqueles 20 depoimentos, a gente escolhia os trechos. E um dia chamou de volta os depoentes, todos um dia só, que foi na sede da Rhodia, lá em Santo Amaro. E aí regravou, refez só aquelas perguntas que a gente achava que era highlights, entendeu? Hoje são outras questões. Mas foi assim e naquela ocasião eu inventei o negócio. Eu inventei 2 coisas que eu acho que foram legais. Uma é que tinha um refeitório, e eu sempre tive muito imbuída dessa questão de as pessoas tem que ver o que está acontecendo e tal. Então a gente mandou fazer uma vitrine com coisas que a gente foi encontrando ao longo da pesquisa, de maneira que pudesse de alguma maneira ser partilhado não só o produto final, mas o cotidiano de achar coisas. Eu acho que isso foi legal. E teve uma outra coisa legal que a gente inventou, um almanaque da memória da Rhodia. Então, enquanto a gente ia fazendo a pesquisa, a gente ia soltando almanaques, que era um negócio que desdobrava lá pros funcionários saberem o que estava sendo feito, o que estava sendo achado. Acho que é uma coisa que foi legal, no sentido das pessoas se apropriarem e verem e tal. E tem nesse projeto, quando eu saí do Itaú Cultural, eu tinha uma equipe grande. Eu chego no museu, lembro direitinho, porque nesse projeto, no da Odebrecht, eu só peguei uma ajuda, alguém pra pra quando foi a hora de selecionar o material, porque tinha o designer da exposição, que foi indicado pela própria Odebrecht e tal, já tinha a equipe dos pesquisadores, o meu trabalho era trabalhar com esse cara indicado por eles para fazer a exposição. Então eu não precisava de muita ajuda, mas no da Rhodia, eu precisava de pesquisador, e eu tinha saído do Itaú Cultural muito cansada dessa história de fazer gestão de gente. E aí diziam “você tem que contratar”, eu dizia “ai, me deixa só esse primeiro mês, 2 meses sem ninguém, deixa eu só trabalhar”, como se de fazer gestão não fosse trabalhar. Mas aí chegou o momento que começou a entender as primeiras coisas, na hora que delimitou quem vamos fazer entrevista? Começa quando? Quando vai ser? Precisou contratar dois pesquisadores. E aí tinha uma pasta de currículos, que é como era o RH nas priscas eras. Aí eu olhei, currículo, li, eu olhei, olhei. No Itaú Cultural, eu tinha tido a experiência de contratar muita gente, demitir e tal. E tinha uma história “a Zilda tem olho bom para esse negócio”. Aí eu olhei aquilo, eu falei, “olha, achei aqui a pessoa”. Eu falei “eu tenho aqui uma Rosana, essa menina é legal porque ela é historiadora, mas tem experiência de produção” e esta assim foi contratada a Rosana, que aqui está até hoje, que eu digo que é a primeira dama do Museu da Pessoa, é a Rosana, a Rosana é a primeira dama. Contratei a Rosana e contratei o Tico. O Tico é o Zé Carlos, que é historiador, que deve ter aparecido aí. Eles foram os pesquisadores desse projeto e foi muito legal, gerou um livro e foi num momento muito complicado da Rhodia, porque estava sendo implantado o SAP. Sabe o que é SAP, né? São esses programas de gestão que hoje estão em todo lugar, inclusive aqui certamente, que faz um trabalho de documentar todos os processos e depois informatizá-los. Agora, esses esses processos, todos eles são detratores de memória, 5 k, Kanban, todos esses que eu que eu tive a oportunidade de ver em memória empresarial, eu acho que muitos desses sistemas de gestão, não sei agora, mas eu vi isso chegar na escola recentemente. É aquela “desfaça-se de todos os documentos que você não precisa. Eficiência é… Estava se implantando também aquelas coisas de ambiente que não tem mais sala. Então as pessoas, em vez de terem uma sala, uma gaveta, não tinha gaveta pra não ter bagunça. E esses processos, são momentos ótimos para as pessoas botarem as coisas no lixo. Isso eu vi na Rhodia e foi interessante, porque o mercado dos farmacêuticos é milionário, que era com a produção de mídia incrível, livros, cadernos, não sei o quê. Antes da mídia eletrônica, essa coisa toda, os propagandistas viajavam de cidade em cidade, de consultório em consultório, e davam pros médicos que eram o grande foco deles, orientação sobre remédio, melhores remédios, não sei o quê. E, por exemplo, eles descobriram que pra não jogar fora a propaganda tinha que ter alguma coisa legal. Então, a Rhodia tinha era tinha sido muito sofisticada. Então eles fizeram no sentido de quem eles empregavam para as relações públicas, por exemplo. Então eles fizeram convênio com o MASP e, de um lado, era a reprodução das obras de arte do MASP, lembrando que as pessoas não compravam livro de arte assim, e no verso era a descrição do remédio, por exemplo. E o cara que cuidava disso era o cara chamado Enock Sacramento, que é crítico de arte até hoje. Então tinha materiais incríveis. A gente achou isso, achou almanaques desenhados pelo Ziraldo, pelos grandes desenhistas, que hoje eu adoro um leilão na internet de __________ (02:47:30) e esses almanaques da Rhodia, de todos esses medicamentos vale grana. Então tinha desenhos do Ziraldo e coisas lindas. O livro foi feito, tá aqui. Então a gente entra na Rhodia num momento em que tiraram, porque para implantar SAP, como é que faz? Você pega um funcionário chave de cada área, você cria um comitê, na época era assim, bota outro para fazer o trabalho dele, para ele documentar todo o processo. Então tava um clima péssimo, porque esses caras se sentiam importantes, mas tinham medo de depois não ter os seus cargos de volta. Os que entraram, eram mais jovens para substituir. Na verdade, estava se substituindo todos os processos por processos mais informatizados. Então, falar do passado e ser portador de uma memória não era uma coisa que estava sendo valorizada. Ao mesmo tempo, resolve se fazer um livro. Então é nesse ambiente que a gente entra, né? E desse projeto tem coisas incríveis. Por exemplo, a Rosana descobriu e foi num bar, num restaurante aqui em São Paulo, que reúne todos os propagandistas. E ali ela descobriu histórias incríveis. Depois ela descobriu, ela foi na reunião, mas a gente não sei se ela ou Zé Carlos descobriram, que tinha uma história assim: a história da Rhodia se mistura com a história de Santo André. Tanto que as famílias que eram funcionários quando o filho chegava 13, 14 anos, mandava chamar o menino para trabalhar na Rhodia. Na cidade, as pessoas não andavam com identidade, elas andavam com cartão da Rhodia. Era uma coisa super, vamos dizer super da cultura local. E aí eu me lembro que nesse projeto, a Rosana descobriu o “Chá das Rhodianas”, o que era o Chá das Rhodianas? As mulheres trabalhavam até se casarem e engravidarem. Quando elas engravidavam, de um período que foi áureo da Rhodia, elas saíam, mas era tão constituinte da identidade ser ou não da Rhodia que essas mulheres continuaram se encontrando. Aí foi lá a Rosana no Chá das Rodhianas, descobriu o restaurante dos caras. Então, foi um projeto legal e calhou que indicaram para nós, o texto final, em geral, era feito por um jornalista, e foi o Chico, que tinha sido meu professor de história na escola. Total coincidência. E eu acho que o livro conseguiu trazer essa graça, porque teve um período áureo, no sentido da da empresa ser de fato constituinte de uma identidade, que conseguiu ser captado. E também, do ponto de vista de imagem, por exemplo, pra botar no livro as propagandas atuais, elas não tinham a menor graça, porque já era feita por agência e tal. A gente agora as coisas mais antigas eram lindas. No ponto de vista artístico, você tinha desenhista, pessoas que viraram artistas depois ou eram artistas, mas não ganhavam o suficiente e desenhavam os almanaques, então tinha um material muito saboroso. E foi quem trouxe lança perfume para o Brasil. Eu me lembro no carro, me emprestaram para ir fotografar tubos de lança perfume, rodouro metálico. Então tinha uma relação com o Carnaval. Então esse foi um livro , eu tinha feito o projeto da Odebrecht, fiz esse do livro do da Rhodia. Desse projeto, tanto a Rosana quanto o Zé Carlos foram pro primeiro projeto da Vale, que acho que esse foi um dos grandes projetos, não sei quanto ainda se tem e se continua fazendo. Eu acho que sim. Eles foram pra esse projeto e eu, depois disso, fiz alguns projetos que eram projetos de exposição de museu que eu coordenei a produção de um documento do Flamengo, da Embrapa, da Abril, que eram projetos que eles não eram propriamente de memória, no sentido de coletar depoimento e tudo. Eles eram de fazer o projeto do que poderia vir a ser, que aí foram experiências outras interessantes. Aí eu não fiz mais nada de memória empresarial. Eu fiz esses, por exemplo, o Flamengo que é um espaço expositivo. Muito bem, o que vai ter dentro do espaço expositivo do Flamengo? Então a primeira aproximação pra desenhar isso tem que entender um pouco da história da instituição, mas tem que ter, nesse tinha um monte de consultores, esse tinha uns 10 consultores, esse do Flamengo, que era o que não sei se eu fiz primeiro do Flamengo ou da Abril, mas era assim, a turma que vai desenhar o museu. Então o escritório um era Arquiprom, por exemplo. Então olha, a gente começa a pesquisar e chega à conclusão, dá exemplo do Flamengo. A gente entendeu que é uma religião. Então, pô, tem que ter uma sala de voto aqui. Porque quando eu fui ao Flamengo algumas vezes, primeiro tinha todos os esportes, fui visitar o pessoal do remo e coisa e tal. O que a gente vai fazer? Vamos pensar num espaço em que as pessoas possam experimentar o que é fazer remo, não sei o quê. Tem um espaço interativo de jogos, de brinquedos, não existia o Museu do Futebol, tá? É de brinquedos que as pessoas que simulam o futebol, tem totó, tem não sei o quê. Quem a gente chama? Chama alguém experiente de interatividade em museus, é outro consultor, mas o que a gente faz com todos esses objetos e tudo? Isso aqui é uma religião, cara. Eu visitei um “apartamengo” no Rio, de uma pessoa que fez tudo alusivo. Vi a cerimônia de um cara fazendo a doação para o Flamengo de uma arca, que era o Tesouro do Flamengo. O cara era do Espírito Santo. Durante anos ele juntou coisas do Flamengo, ele vinha para os jogos, ficou velhinho, viu que os filhos não se interessaram, mas ele quer doar para o Flamengo. Isso era uma cerimônia, a doação do Tesouro do Flamengo. Aí para entender isso, eu fui no Museu Nacional, conversei com o maior especialista da questão das torcidas, Leite Lopes, chamava o cara. Então você vê que pra pensar, o museu o produto final era o documento, e o meu trabalho era articular esses todos pra dizer como tinha que ser. Então foi incrível. Foi um período, por exemplo, que eu conversava com qualquer pessoa, porque eu tava entendendo coisas sobre futebol. E quando você sabe falar sobre futebol, o frentista vira seu amigo, o feirante, e todo mundo vira samba e dizer assim: “E amanhã, Corinthians ou Flamengo?” “Ah, vai ser o coringão”. Eu falo “Ah, mas talvez o Flamengo, porque vai jogar fulano”, quando que ele ia saber disso? Entendeu? Então essas foram experiências lindas de fazer esses documentos. Por exemplo, teve do Flamengo, teve da Abril, que eu fiquei quase 2 meses aí no prédio da Abril pra gente. Eles queriam fazer no térreo uma experiência pedagógica, né? Eu escrevo bem, essa coisa de educativo, de visitante, era da minha gaveta, vamos dizer assim. Então, de novo a Abril foi a mesma coisa. Tinha que entender o que era, pra entender que experiência a gente ia proporcionar pra quem fosse visitante. Eu tinha vindo do Itaú com uma vasta experiência de atender visita, de fazer mediação. Esse da Abril foi outra experiência incrível, que a gente fez as entrevistas e era uma coisa louca. Também tinha uma questão que era quase religiosa. Parecia que o Victor Civita ia abrir a porta a qualquer momento, porque tudo que se falava era “o seu Victor nos ensinou a não sei o que, não sei o que lá”. Eu fui uma noite ver a preparação da distribuição da Veja para entender a logística, porque a gente pensou que a gente queria ter um espaço em que as crianças viessem entendessem qual era o processo, desde de escrever o fato até chegar na casa de alguém. Então essa foi outra que foi legal. Eu acho que eu fiz essa, fiz essa do Flamengo. Aí apareceu uma da Embrapa, eu tinha tido meu segundo filho. Eu comecei a ter medo de voar, eu comecei a ter pânico de voar. Aí eu falei assim: “eu ajudo tudo, mas eu não posso viajar”, porque eu tive uma das idas da Odebrecht, a minha primeira crise de pânico. Sentei no aeroporto, falei “eu vou morrer”. Aí até viajei, mas fiquei péssima. Enfim, depois tive que me tratar para isso. Aí, a Cláudia, que também ficou minha amiga, eu falei, “Cláudia, é o seguinte, eu te ajudo a fazer, eu escrevo o texto”, entendeu? “Mas esse…” Porque fazia parte do processo, ir a Brasília ver os terrenos para ver onde podia ser o museu. Aí eu falei, “ó, eu faço tudo, mas eu não garanto que eu viajo com você se eu ficar, ok? Eu vou para Brasília para apresentar junto com você, mas você vai comigo, segurando na minha mão”, eu viajei o mundo, gente, não é uma loucura. O homem da vida você tem melhor. E aí esse da Embrapa foi igual. Ela chegou a visitar a Casa de Farinha para ver como funcionava, porque a ideia da exposição é que mostrasse o produto desde a sua condição na agricultura até chegar na mesa. Tinha uma sala com esse desenho. E esses projetos eram curtos e eles eram uma delícia, porque tinha que ter um monte de consultor pra rapidamente ajudar a gente a desenhar. Foi nesse contexto que eu conheci os meninos, somos todos velhos, do Estúdio Preto e Branco. Porque para o projeto do Flamengo, a gente entendeu que entrar na exposição tinha que ser uma sensação igual ao jogador entrar no Maracanã lotado. Então, eles desenharam o que seria essa entrada e, ao final desses projetos, tinha alguém para orçar essa tralha toda. Eu lembro que no do Flamengo, tinha uma menina, eu esqueci o nome, mas ela era craque de fazer orçamento, porque, sei lá, a gente inventou que ia ter uma sala de ex-voto. Eu fui entrevistar o… como chama o cara que inventou o museu afro, que é artista, que faleceu ano retrasado. As coisas dele foram a leilão recentemente? É daqui a pouco eu lembro, ele é, mas a gente foi conversar com ele, entendeu? E na verdade, era uma grande articulação de ideias que deveria virar um volume. E eu lembro, eu tenho até cópia disso. Eu fiz uma cópia para mim de cada um, fiz do Flamengo o da Embrapa, eu ajudei a Cláudia a fazer, e na apresentação eu fui para Brasília, já estava melhor no meu pânico de voar, fizemos da Abril, nada disso virou. Mas do ponto de vista de entendimento, abriu milhões de janelas na minha vida, no sentido de entender como é que você faz curadoria para mostrar para o outro essa experiência? E aí, junto com isso, estão começando as conversas sobre um projeto educativo, né? Como a gente faz, faz oficina, chegamos a fazer oficina aqui e ali. Mas se estruturou no momento em que a Karen vira fellow da Ashoka e conhece a Silvia do Avisa Lá, que tinha uma condição toda estruturada de fazer formação de professores, porque é o objeto do trabalho dela, né? E aí a gente começa a fazer reuniões pra tentar entender o que a gente podia propor como proposta, que desenho tem que ter? O que a gente vai dizer pra escolas que a gente tá ensinando? E aí eu me lembro que a gente começa a fazer algumas reuniões e se chega num desenho que era alguma coisa que é o seguinte: o que eles sabiam fazer? O que o Avisa Lá faz é trabalhar, formar professores pro ensino de leitura escrita mais interessante, consequente, não sei se são essas palavras aí, isso era melhor pegar lá no site deles, mas e que junto com isso, a gente pudesse, dentro dessas aprendizagens, que na verdade são metodologias, de trabalho por gênero, e que a gente pudesse proporcionar uma aproximação do uso de tecnologia, de usar computador para que isso pudesse contribuir com leitura e escrita, e que a gente pudesse trabalhar com conceito de memória, né? A expertise do Avisa Lá era como fazer isso, como ensinar e tal, e a nossa era falar de tecnologia e de memória, aprendendo a lidar com isso e juntar. Aí eu acho que é 1990 que aparece a primeira oportunidade da gente fazer os projetos, com 2 patrocinadores diferentes. Um é o Instituto Pão de Açúcar, que está inaugurando, usando a casa Pão de Açúcar, na Vila Isabel, que é um lugar super tradicional, um bairro super tradicional do Rio, com uma história incrível, o frevo foi trazido ali, tem escola de samba, é um bairro planejado, o Boulevard foi desenhado com as medidas dos boulevards franceses, as calçadas tem pedra portuguesa, Noel Rosa andava ali, quer dizer, era um lugar pleno dessa história. A história do Noel da fábrica de tecido é ali quando apita da fábrica de tecido, e isso é instituto Pão de Açúcar e, em Minas tem, se eu não me engano, é CTBC. Aí se formam as primeiras duplas de trabalho. Eu fui trabalhar com a Edir Fonseca, que era do Instituto Avisa Lá. E a Cláudia Leonor foi trabalhar com a Silvana Augusto, que era dupla. Então, éramos duplas, e era um desenho que a gente primeiro fazer uma primeira oficina de memória com o que o curso teria e tal. Aí a gente tinha lá um processo, escolhia 2 escolas, e a gente passava aí uma vez por mês. Isso variou, depende de quanto dinheiro tinha, quão longe era, etc. E a gente atuava diretamente com as crianças em 2 escolas, uma de manhã, uma de tarde, filmava trechos. E gente, filmar trechos significa levar o tripé, apoiar uma câmera, filmar, e de noite no hotel, tá? O mundo é do VHS, tá? Não tô falando nada digital, de noite no hotel decupar. Ou pelo menos minutar e escolher os trechos pra, no dia seguinte, encontrar os professores de várias outras escolas e fazer a formação dos demais professores a partir de textos que a gente levava e dessas filmagens. É uma loucura esse negócio. A gente pensa hoje, fazer isso não é nada com a tecnologia que a gente tem hoje. Fazer isso com a tecnologia que a gente tinha era o cão. Mas a gente aprendeu a fazer isso. Inclusive, eu tive uma experiência de um assalto a mão armada, porque a gente tinha, sei lá, Coopertáxi, eu fiquei no aeroporto carregando o tripé e a câmera, não sei o quê. Não reparei que eu fui seguida por motoqueiro e eu tinha que era de Ribeirão, essa chegar aqui no Singularidades pra dar aula de noite. E na hora que eu abri a porta “mão ao alto”. Não era mãos ao alto mas era arma na cabeça. Eles queriam o celular. Eu tava cheio de equipamento, porque a câmera de vídeo era uma câmera de vídeo, tinha um tripé e um monte de coisa bom, mas esse é o detalhe. Então a gente esse foi um processo de adaptar a metodologia do museu pra sua potência, de trabalhar com memória na escola. E a gente teve que aprender um monte de coisa, por exemplo, que não dá para fazer transcrição. Por outro lado, as crianças era um rito tão bonito porque começava com a própria memória deles, eles desenhavam e escreviam. Depois começava a levantar a história do bairro, identificar pessoas que pudessem contar essa história para as crianças, fazer o convite. Eles vinham, faziam o depoimento. O projeto ainda existe aí, vocês sabem como ele funciona? Não, não sei quanto mudou, não sei, não tenho mais notícia, mas enfim, e então a gente entendeu que não dava pra botar a criança pra transcrever, mas nem precisava, porque elas ficavam tão sideradas com as histórias. E a gente também que elas lembravam tudo, produziam um texto. E aí desde o primeiro veio a ideia de que tinha que fazer uma exposição. E desse projeto assim, cuja metodologia vocês tem isso mais do que documentado aí, acho que não precisa falar muito. Eu acho que vale a pena contar algumas coisas, mas eles iam desenhando coisas e tal. E eu me lembro, uma vez, tocou com a campainha, eu moro aqui embaixo porque eles tinham que mandar pelo correio pra cá ou pra mim, desenhos das crianças que seriam usados nas exposições. Tocaram quer campainha, eu falei “quem é?”. E era uma professora do Rio, ela falou “não, eu estava vindo para São Paulo, resolvi trazer pessoalmente porque esses desenhos são preciosos”. Pensa o sentido disso? E teve outras coisas incríveis. Por exemplo, em Vila Isabel ainda se levantou coisa incrível, a origem do jogo do bicho foi ali, né? Tem uma série de histórias interessantes, mas, sobretudo, eu fiquei profundamente impressionada que no momento em que as crianças, o avô de uma vem lá ser entrevistado, o cara analfabeto, e ele nunca passou da porta da escola, né? Ele vem lá e conta a história. As crianças começam a escrever porque ele tá falando de uma história que faz sentido pra elas, né? Em Santos, por exemplo, a gente tem uma história linda, Santos foi outra experiência linda, então a gente conseguiu trazer as professoras para fazer entrevista. Um cara que foi condutor do bonde de Santos e ele conta para as crianças, e eles perguntaram, mas “como é que o bonde acabou?”. E ele conta, aos prantos. E as crianças desenharam porque o bonde acabou, porque queimaram o bonde. E o cara veio vestido a caráter, com a roupa, e ensinou para as crianças como é que ele… enfim. E eu fui ficando muito impressionada com essas coisas, no sentido de como isso era constitutivo de identidade, né? Por exemplo, em Vila Isabel, tinha uma escola, que tinha um monte de criança que era do abrigo, e ser do abrigo, do orfanato ali, que não se usa mais esse termo, mas é a mesma coisa, as crianças não tinham nenhuma memória material de si mesmos. Você sabe que a nossa lembrança não é só feita do que a gente lembra, mas no que nos contaram, isso tudo depois eu fui estudar, e as crianças sem nenhuma memória material de si mesmos, que não sabiam como eles eram bebês. Por exemplo, eu posso contar para vocês como eu era como bebê, porque eu ouvi minha mãe contando, “você era um bebê assim”, “era assado”. E foi muito incrível, porque começou a contar a história da escola, a gente voltou outra vez e a gente, o menino, eu falei assim “Ah, porque aqui era o jardim?” “Não. Antes daqui do jardim era assim, assim. Aqui tinha não sei o quê”. Quer dizer, aquela memória que foi contada por alguém foi de fato incorporada à memória dele. Ele passa a ter uma memória lá. E eu fui ficando profundamente impressionada com essas questões, profundamente impressionada. E aí? Eu falei, quer saber? Eu vou, vou estudar esse negócio. E aí eu fiz um ano que eu assisti umas disciplinas na USP e tal, e eu fiz um projeto para falar de educação e memória, que teve idas e vindas. Mas o fato é que esse meu mestrado foi “A construção da memória na escola, uma discussão sobre história, memória na contemporaneidade e tecnologia”, sei lá. E o estudo de caso foi do projeto do museu do do Memória Local, né? Em que ali eu acho que a grande pergunta era tentar entender. Qual era o lugar da memória na escola? Considerando que eu tinha visto, era profundamente interessante no sentido de criança que não tava escrevendo, começa a escrever porque, em vez de contar histórias de não sei quem, conta a história da servente da escola, que ela conta quando foi abrir a escola lá em Ribeirão e as cobras descendo o muro. A gente sacou na orientação das professoras que o mecânico do bairro, era o cara que mais sabia do bairro. No morro de Santos teve uma história linda que alguém contou para as crianças que primeiro, para casar, a noiva tinha que descer o morro, porque a igreja só tinha lá embaixo. Aí a primeira coisa que em mutirão se construiu a escada. Pra pelo menos ela descer e não sujar o vestido ou o padre subir, porque já era possível o padre subir, mas não tinha igreja, e depois eles constroem a igreja. Quer dizer, qual é o sentido dessa memória pra essas crianças que não tem nem endereço ou correio, não sobe, conta uma história como essa, essa e outras, né? Teve uma outra que foi levantada que tinha uma igreja lá numa área portuária lá do Santos, um lugar barra pesada, e tinha a história, a escola do samba do Padre Paulo. Como é que começou a história do samba do Padre Paulo? Ele tentava fazer a missa e o pessoal ficava fazendo zona lá fora e batucando. Até que alguém jogou uma pedra lá dentro e pega a Pedra. Olha que história a lapidar. Até que alguém pega a pedra, vai lá fora e diz assim “olha, menino, vocês têm a pedra e tal. Por que que a gente não faz aqui uma escola de samba ou qualquer coisa assim?”. Essa história da escola de samba do Padre Paulo. Agora olha quanta referência sobre a pedra que construirá a sua igreja. E isso deixava os meninos absolutamente siderados. Uma escola em Santos era do lado da Vila Belmiro. Diego e Robinho. Diego tinha sido aluno da escola, ele foi lá depois. Acharam outro da terceira divisão. O cara foi lá e contou que que mistura com os imigrantes espanhóis dessa Escola Jabaquara. E essas histórias todas me impressionaram muito. Então faço algumas coisas. Primeiro, eu vou ver onde que a memória está nos currículos oficiais. Naquele momento era parâmetros curriculares e construo de alguma maneira um registro da experiência que a gente teve, e analiso isso à luz dos historiadores, enfim, do sentido da memória. E ouvi de diretoras assim, primeiro essa em Vila Isabel falou para mim “a gente via todos esses responsáveis, porque não é pai, não é mãe, não é avô, são os responsáveis do outro lado do portão e a gente não tinha ideia que eles sabiam tanta coisa para contar para as crianças”. Isso da boca de uma diretora. Então eu vou olhar para essa experiência do museu, à luz da pedagogia que eu conheci e tal, e o meu mestrado é isso, né?
03:13:54
P/1 - Só uma coisa, você tá falando de várias facetas do museu que aqui tinham que existiam ao mesmo tempo, né? Então, por exemplo, de fazer, pensar espaços museais, na época essa era uma faceta.
R - Eu fiz esse trabalho aí. Eu não sei os tempos, eu tenho um pouco de dificuldade, mas eu sei que, por exemplo, o BNDES gerou uma linda exposição, fruto da pesquisa. Os projetos Memórias do Comércio todo, não sei se todos, mas eu imagino que sim, todos geraram exposições. Por exemplo, a do Rio foi linda, “Um balcão na capital” é um livro lindo. Coincidentemente, a minha tia que mora lá deu um depoimento porque eles foram dos primeiros que tiveram concessionária de carros, quando a barra era um Areal. Eu me lembro, a minha família é do Rio e foram comerciantes. Então essa foi uma exposição linda e teve muito empréstimo de objetos. A exposição foi do Sesc. Então, muitas vezes você tem exposições coladas no projeto de memória. Esses que eu te contei, eu não sei quantos foram feitos, eu me lembro desses 3, pode ser que tenha tido outros, foram projetos cujo, vamos dizer assim, o Flamengo era dentro de uma coisa maior, teve cabine, teve um monte de coisa, tinha isso da Abril, foi só isso, não sei se teve outras coisas. Então esse era um não vi essa palavra tá errada. Mas era uma área que teve um momento que isso foi feito, tinha projetos que tinha livro, nãnãnã, tinha exposição. Quando eu começo a trabalhar, ainda teve alguma coisa simultânea com isso e depois eu fiquei só no educativo. Então eu não sei outras coisas que rolaram. Às vezes de orelhada, a gente sabia, entendeu? Mas eu entrei nesse mundo do projeto educativo, de fato, e fiz só isso. Aí eu fiz meu mestrado, com foco nisso. E até 2007, quando eu saí, eu fiz só isso. Projetos de memória totalmente relacionados com o pedagógico, com essa potência pedagógica.
03:16:34
P/1 - Nessa época não havia a sistematização da TSM ainda, né?
R - Não, a gente trabalhou.
P/1 - Junto.
R - Trabalhou junto porque foi assim. Vamos ver se eu consigo articular. Esse primeiro momento, eu acho que, olhando com essa distância, a gente tava construindo esse como ensinar as escolas a fazer projeto, né? Então tinha componente. Tinha o trabalho por projeto, que isso já é uma metodologia. Tinha a questão do sentido da memória, né? A minha memória, a memória pessoal, a memória dos quais são as coisas da memória? Tinha o processo de escolher um depoente que fosse significativo. Tinha ensinar a fazer roteiro, depois tinha o que a gente faz com esse roteiro, depois na questão do produto. Então, acho que na primeira versão era o Renato Theobaldo, que era uma pessoa muitíssima especial, um artista maravilhoso que fazia aquela nossa experiência virar uma exposição. E a gente ainda estava entendendo e ensinando a metodologia. Não tá entendendo porque, por exemplo, a gente no contexto da escola, a gente sabe como é importante as crianças todas encontrarem os seus desenhos, a sua produção numa exposição grande. E no primeiro ano, óbvio, ele o artista e ele escolheu aqueles mais interessantes, juntou e coisa e tal. Isso virou um problema. Então, no ano seguinte, a gente entendeu que existia um produto final grandão que ele fazia, mas que a gente deveria fazer produtos pequenos com as crianças, que elas se sentissem todas representadas, né? Então daí saiu os livros de pano, que deve ter aí, pequenas revistas, outras coisas. Então isso foi uma aprendizagem. No início, a gente achou que tinha que não reproduzir, mas ter elementos que para nós eram caríssimos, por exemplo, transcrição. Como é que vai transcrever? As coisas são pequenas. Então isso a gente transformou numa outra coisa que as crianças faziam a entrevista, uns desenhavam e escreviam, e quando acabava, a gente fazia os títulos, cada um escrevia um pedacinho e tal. Então tudo isso foi se acertando. Eu não sei se eu posso afirmar isso, mas aí teve um grande evento que eu esqueci o nome, que foi no Sesc, não sei se já falava de tecnologia social da memória, não me lembro. Mas a gente teve um dos eixos ou trilha. Não sei bem o nome disso foi “memória e educação”. Eu já tava muito enfronhada com isso. Então eu mapeei quem falava sobre isso. Essas pessoas fizeram mesa, inclusive eu, nesse material que eu trouxe pra Renata, eu achei a tese da mulher que a gente chamou. E eu me lembro que a gente já ia escrevendo os passos do processo, essas coisas. Primeira parte, segunda parte, como é oficina e tal, que de alguma maneira, isso articulado e discutido, eu acho que dá para dizer que é o embrião da Tecnologia Social da Memória, no sentido de escrever o passo a passo, sobre quais conceitos repousos a metodologia. E eu lembro que teve alguma coisa até esse nome veio da história das tecnologias sociais, do Banco do Brasil, da fundação, não me lembro direito. Eu sei que a gente foi procurando escrever, e eu acho que para isso contribuiu vários processos diversos. Por exemplo, a gente fazia o registro minucioso do que a gente fazia no trabalho com os professores. Eu não sei que pedaço eu estava na minha tese, mas tem lá no pedaço que faz um passo a passo. Outras oficinas foram sendo feitas e também ou foi havendo esse registro. E eu acho que algum momento posso estar enganada, não me lembro direito, mas eu me lembro que a Imaculata, é alguém que também juntou vários textos para escrever. Não sei se teve um momento que eu sei que tem uma coisa da Fundação Banco do Brasil que eu não me lembro bem, mas de escrever isso. Então, se você ver, por exemplo, o volume desse evento que teve no Sesc, tem lá um pedaço que é a metodologia, vamos dizer assim. Então encarta, ficha de imagem, ficha de não sei o que lá, autorização, a orientação de como fazer. Eu acho também que junto com isso tem outras instituições que passam a estar junto e dialogar. Eu lembro, por exemplo, que eu fui dar uma oficina pros fellows da Ashoka, quando se começou a conversar de que que eles deveriam fazer com a memória deles, por exemplo. Eu não sei depois como isso andou, mas eu acho que há uma soma de sistematizações desde a primeira ação. Elas falam para o próprio projeto, mas tem algum momento que isso se junta para uma escrita da Tecnologia Social da Memória. Isso aparece no banco de projetos, a gente vai ensinar o outro a fazer. Eu me lembro que mais de uma vez teve oficina que era a ideia do ensinar a fazer. Tem o Paul, tem momentos que ele está aqui. Depois teve uma vez que a gente que veio um outro cara, Tom, pode ser. Imagina, a gente foi fazer uma oficina com ele para fazer as nossas videobiografias, qualquer coisa assim. Só tinha computador Mac que a gente podia cortar lá na Metodista. Pensa, saia uma van daqui, ia pra Metodista, pra gente aprender a fazer isso com ele. Que disso veio depois as rodas de história que eu lembro que a Carol fez com adolescente. Então acho que isso foi se desenhando. Em algum momento isso ganhou esse título e essa condição mais estruturada. Eu sugiro que a gente foi fazendo sistematizações pontuais. Em algum momento tudo isso se abraça, me parece, se eu bem me lembro. Quer dizer, essa é a memória que eu tenho.
03:23:43
P/1 - Agora, então, pra escrita do livro, que foi financiado pela Fundação Banco do Brasil, esse processo você não acompanhou de perto?
R - Não sei se teve um livro. Primeiro era um banco de experiências. Por exemplo, eu sei que no evento do Sesc tem um volume. Eu inclusive chama “história falada”. E tem lá uma parte grande que é um como se faz. E esse como se faz de alguma maneira, sistematiza o que a gente tava ensinando desse como se faz, né? Então eu lembro que nas oficinas tinham momentos bem estruturados, metodológicos, que que é uma ficha de foto, que que é uma ficha de ficha de documento, então essas metodologias, eu acho assim da minha memória. Assim, a Karen sempre foi muito cuidadosa com essa coisa, a metodologia, o jeito de perguntar, como perguntar, como construir a entrevista, como fazer roteiro. Tanto que eu usei isso em outras 10 situações na minha vida que mais ou menos projeto de memória. Eu faço assessoria numas escolas na Bahia pra parte de tecnologia educacional, mas a minha aproximação com a instituição, meu primeiro processo, eu quero conversar com algumas pessoas para fazer levantamento. Aí sempre me sai uma lista de diretor, mantenedor “não, eu quero uma professora antiga, uma professora atual, eu quero um servente”. E essas entrevistas, as pessoas se assustam, porque eu não entro, como é que é isso, aquilo, mas que a escola se frequentou? Então eu acho que, eu não sei em que momento se põe o título Tecnologia Social da Memória, nem sabia do livro. Eu me lembro que tinha uma relação com isso que eu não sei qual. Eu lembro que no evento do Sesc tem um pedaço do livro que tem toda a orientação do como se faz. Eu acho que tem um momento que isso tem um nome desse de história local num local, teve um momento que a CTBC, não lembro direito a história, mas o fato é que se escreveu um caderno metodológico. Eu que escrevi, que era a Memória oral na escola, em 8 passos. Então, como começa o projeto? Quais são as primeiras atividades que faz com as crianças? Qual é a segunda? Qual é a terceira? Com ilustrações da própria produção das crianças, dos projetos que a gente tinha feito. Depois desse, eu sei que vieram, eu não tava mais, mas vieram vários outros mais ou menos nessa pegada. Quer dizer, a gente faz o projeto com as escolas, a gente também faz um manual metodológico. Há uma constância disso e tem um monte, não me lembro exatamente, eu me lembro que a gente fez oficina, que foi na ação educativa que estava, eu lembrei disso essa semana que eu fui no restaurante, estava o Rodrigo Mendes, que foi fellow da Ashoka. Estava lá e tinha uma porção de outra, que a gente foi ensinar metodologia, acho que isso tinha uma constância de ensinar metodologia para as instituições e de necessariamente sistematizar aquilo que você está ensinando. Eu acho que, por exemplo, do Itaú Cultural, não sei se vai estar nesse material que eu trouxe, mas a gente chegou a fazer coisas e tem apostila. Então você tem um monte de material de formação que em algum momento que já preexistia, mas em algum momento se consolida. E tem os filhotes dos projetos. Eu imagino, posso estar enganada, eu não tava aqui quando começa o projeto dos núcleos, mas eu acho que quando você vai multiplicar a metodologia, necessariamente essa questão de você sistematizar, tá posta. Então sempre teve muito material, material da oficina, o caderno da oficina, qual é o roteiro que nós vamos fazer? Quem que a gente vai entrevistar? Isso tá posto lá. Essa é a minha memória disso.
03:28:03
P/2 - Agora que voltou pra memória local e pra metodologia, qual o critério pra escolher as escolas?
R - Ai tinha um negócio incrível que é assim. Primeiro, houve mudanças ao longo do tempo, tá? Mas logo no início era uma coisa assim, a gente desenhou isso, a gente aprendeu com Avisa Lá porque eles já sabiam. Mas, por exemplo, a gente ia fazer uma oficina com vários professores, coordenadores de várias escolas. Isso está explicadinho lá na minha tese, tem no meu mestrado, tem escrito lá. Então a gente fez na casa do Pão de Açúcar, no Rio. Pra esse início, eu me lembro que eu editei uma exposição, inclusive contando a história do Pão de Açúcar pra ficar lá. Bom, e a gente faz a oficina e aí se faz uma pergunta às escolas. O projeto vai ser assim, assim, assado. Funciona assim, serão 8 atividades durante um ano, vai recolher os desenhos, você pode participar das formações, mas nós vamos escolher duas escolas pra onde a gente vai fazer ação direta. Quem quer ser essa escola? Eu me lembro que as escolas meio que se candidatavam e a gente ia visitar. E, por exemplo, esse jeito de visitar pra escolher, isso foi uma coisa que a gente aprendeu com Avisar Lá. Então, por exemplo, você entra na escola, não tem nenhum trabalho de nenhuma criança na parede, isso é um mau sinal. Cadê a produção das crianças? Tem uma coordenação que abraça o projeto? É importante porque a professora luta sozinha, se não tiver coordenadora é legal. Tem alguma professora que se destacou na oficina que você gostaria? Então, qual é a distância entre uma coisa e outra? E esses eram elementos que a gente usava. Às vezes deu certo, às vezes deu errado pra cacete. Em Vila Isabel, a gente escolheu uma professora que foi o máximo, só que ela falou “Ah, mas eu não quero todo esse trabalho”. Tinha de tudo. E eu, nesse momento, faço um trabalho de formação com escolas públicas no Brasil também. É sempre difícil esse negócio porque tem mil outros atravessamentos, essa palavra está na moda. Mas assim, muda a gestão, tem ciumeiras, o coordenador se aposenta, o professor está se sobressaindo demais, dá uma ciumeira e começam a boicotar o cara, tem meio que de tudo, sabe? Mas a gente tinha esses critérios de olhar o lugar, de entender, de entender o clima, que não chamava assim também, mas enfim, de fazer essas escolhas, né?
03:31:04
P/1 - Vocês primeiro formavam os professores e depois os alunos, é isso?
R - Não, era tudo junto. A gente ia, trabalhava numa escola de manhã, na outra de tarde com as crianças, então era uma sala específica. E no dia seguinte a gente trabalhava com os professores e com os vídeos decupados. Isso foi junto. Um ciclo que foi inteiro, que foi lindo, foi o de Santos, que virou política pública. No primeiro ano a gente trabalhou nesse desenho. No segundo ano a gente escolheu professoras com coordenações, eu acho, e elas multiplicaram. E no terceiro ano, foi para todas as escolas de Santos e a gente foi. No primeiro ano, a gente tava na sala de aula, no segundo ano elas que formavam as colegas, entendeu? Não sei como isso tá, mas essa foi uma experiência completa. Foram uns 3 anos e virou naquela ocasião, virou política pública, todo mundo trabalhava. E a gente ia justificando. E o fato de ter escrito mestrado, ter pesquisado isso, eu conseguia com o desenvoltura e dizer assim “olha, quando você tá trabalhando isso, na verdade, isso no currículo oficial tá escrito aqui ó”. Quando eu tava fazendo as minhas disciplinas do mestrado, eu fiz uma vez um trabalho que tentava justificar, por exemplo, o pensamento do Paulo Freire, o trabalho com a memória. Então, o fato de ter um pé na universidade… E teve também o momento que eu passei a dar aula no Singularidades, o que fazia com que eu tivesse uma desenvoltura no sentido de articular teoria e as práticas, o projeto de prática pedagógica do museu, como uma coisa altamente relevante. Dizer “olha isso aqui, está lá nos parâmetros curriculares nacionais, aqui, aqui, aqui. Então este trabalho é isso aqui. Isso aqui não é a mais”, com a questão da leitura e escrita, o Avisa Lá tinha total domínio sobre isso. Mas no que diz respeito tanto a memória quanto o uso de tecnologia e tal, eu passei a ter muita propriedade em propor esse tipo de coisa. Dizer “o ensino de história hoje diz respeito a você trabalhar com pessoas no cotidiano. A história do cotidiano no tereré tereré”. Eu conseguia justificar muito bem o projeto na escola diante do que eu conhecia, da proposta e do que eu conhecia da estrutura da escola, dos projetos curriculares e etc. Então eu acho que super se justificou. Vamos dizer assim, né?
03:33:57
P/1 - Uma dúvida que eu fiquei, você falou que o Avisa Lá trouxe muito essa questão da leitura e da escrita. Mas por que trabalhar com desenhos? É uma, foi uma escolha pedagógica específica?
R - Porque no momento… Nossa, essa história linda. Porque é um processo de registro. Você registra de várias maneiras diferentes, a escrita é um jeito de registrar, mas o desenho também é, e tinha no projeto todo um processo de uma produção gráfica, até porque isso virava exposição. E para virar exposição, você tem que ter uma produção de desenho. Então tinha no processo todo uma coisa que eles orientavam para contribuir para melhorar o desenho das crianças. Olha, tem coisas ótimas. Elas começavam a fazer auto retrato. Você pensa que é uma coisa muito simples. Aí você entra numa escola que a comunidade é toda evangélica e dizem que as crianças não podem fazer auto retrato porque isso é idolatria. Pensa que a vida é fácil? Não é fácil. Então, lembrei disso. Isso foi, não sei se foi em Campinas, não me lembro, mas tinha toda uma coisa também de ir fazendo produção gráfica, seja porque também tinha um momento que se fazia foto e tal, mas também porque gerava uma exposição e a exposição era midiática, era importante para o patrocinador ter uma linda exposição e elas foram todas lindas. Não sei se é ainda o Renato que tá fazendo ou não? Eu sigo ele aí nas redes. Ele tem feito muita coisa de ópera, a cenografia, não sei, mas era brilhante o que ele fazia era muito legal, então tinha um cuidado com essa parte gráfica, então tinha que botar as crianças pra desenharem, entendeu? Obviamente. E, por exemplo, a CTBC, que foi uma das patrocinadoras, teve um número que ela pegou desenhos do projeto e botou nos cartões de telefone, lembra quando tinha telefone público e botava cartão? E os cartões eram todos vários dos projetos dos desenhos das crianças. Então tinha esse trabalho gráfico também bonito, as crianças desenhavam, então era bem legal. Eu fiquei muito encantada. Anos depois quando eu resolvi fazer doutorado, ainda tem profundamente a ver com essa questão da memória. Porque, por exemplo, no Rio eu ainda voltei em algumas escolas, eu tinha uma questão que as crianças produziam livros lindos. E aí, ao conversar com a bibliotecária, diz assim: “olha, você não vai tombar esse livro porque” “Ah, não, mas isso não é livro” “não, isso é livro” “não, mas só tem esse” “sim, só tem esse que é uma edição só, mas é livro. Eu conto a história da escola”. Cara, não dava para convencer elas de que aquilo era livro como outra coisa qualquer. E teve uma escola que eu voltei lá, sei lá eu porque, lá no Maracanã, a escola funcionava dentro do Maracanã, e não havia mais nada material da passagem do projeto pela escola, mas o virtual estava preservado, no site do Museu da Pessoa. Então meu doutorado já não tem mais a ver com o museu, ele discute se os ambientes virtuais de aprendizagem são espaços de memória? Isso antes da pandemia. Tá bom? Eu defendo que sim. E com a pandemia mostrou que na verdade essa interação, ela tá totalmente preservada nesse espaço, você consegue ver o currículo, isso é outra história. Então, teve um momento, acho que a IBM doou em Vila Isabel, eles fizeram alguma coisa conosco para as crianças terem computador para botar as histórias para dentro. Isso é parte 1, o lado A, o lado B, é que não funcionava, não subia no site. O site não abria. Essa coisa também, digitalizar a imagem do jeito que a gente faz hoje era outra pedreira. Mas quer dizer, eu acho que a gente, no meu ponto de vista, de fato, coisa que a gente continua buscando, que eu enfim continuo na área, diz respeito a ter um uso competente, mas sobretudo significativo de tecnologia. E eu acho que o projeto super se justifica por essa condição do digital. E lá atrás, quando a gente ainda tava ralando pra ensinar essas coisas.
03:38:51
P/1 - E como é que vocês faziam o processo de organização com eles, de processamento, colocar no site? Você falou de algumas dificuldades.
R - Era assim, você fazia as entrevistas, deve ser do mesmo jeito hoje, eu de vez em quando encontro a Márcia e a Sónia também, mas se fazia um texto coletivo e aí se tirava os trechos e as crianças desenhavam e ilustravam o que gerava livro, revista, mural. No morro de Santos, pasmem, as crianças passavam frio na escola. Ficava no morro, escola tudo com cimento queimado. Enfim, teve uma escola que fez o “tapete da memória". Cada criança ganhou um quadrado e desenhou um pedaço da história, e fizeram um grande tapete para as crianças sentarem ali em roda e não passarem frio. Então foi o tapete da memória, teve cartão, teve pequenos livros, eu imagino que esteja aí no acervo, tem livros de pano, essas coisas, quer dizer, e tem situações absolutamente lindas. Por exemplo, eu lembro que em Santos, é interessante essa coisa da imigração, porque a primeira onda de imigrantes, isso a gente viu quando foi fazer a exposição para o metrô, então tinha lá um dos bairros de Imigrante italiano que chegaram como Imigrante, né? Mas da segunda geração, os imigrantes já não eram esses, eram outros, vinha da Bahia, não sei o que. Eles eram racistas! Em Santos, teve uma experiência interessante porque teve um morro que uma primeira ocupação era imigrantes da Ilha da Madeira. As mulheres sabiam bordar. E a gente conseguiu até que uma fosse dar depoimento. Ela dizia, mas antigamente é que era bom, agora vieram todos esses nordestinos analfabetos, não sei o quê. E era uma coisa de bordar, que estava se perdendo porque ela não estava ensinando pra ninguém. E aí aconteceu que foi feito uma entrevista com essa senhora e, a partir disso, ela encontrava as crianças lá na rua do morro. “E minhas crianças”, e abraçava e beijava. Teve algumas experiências muito contundentes nessa coisa do discurso do museu. Muda o seu jeito de ver o mundo. Muda mesmo. Essa mulher vê essas crianças como nordestina. De repente, eram as minhas crianças que tocavam na porta dela. “Vim ver a senhora”. Aí, faz a exposição, a mulher virou um totem lá. Então, a gente, a partir do primeiro ano, entendeu que tinha que ter vários produtos, porque um que era mais midiático, patrocinador, outro que garantia que tivesse todos os desenhos das crianças, outro que fosse do uso cotidiano. E aí, óbvio que cada projeto que você fazia, você contava o que fizeram os outros. E isso, foi se enriquecendo, foi ficando mais interessante.
03:42:10
P/1 - Só pra entender, as crianças, no caso, não trabalhavam com sistema de dados com base de dados do museu. Elas não inseriam?
R - A gente fazia um momento lá que elas consultavam, a gente levava impresso, a gente conseguiu ensinar os professores a fazer inserção de histórias ou de fotos. Mas assim, eu vou te contar, em Santos, por exemplo, tinha Linux. Eu sei usar qualquer coisa que precise. Eu sempre digo assim, me dá 48 horas que eu uso qualquer programa. Então, lá era Linux, por exemplo, mas mesmo quando já vem a internet, até hoje você tem escola com problema de acesso à internet, para subir uma foto, cara, levava 40 minutos. Eu ficava assim, muito contrariada, porque a gente se preparava, organizava a oficina, conseguia computador emprestado e levou tempo até, no meu ponto de vista, até que a gente tivesse tecnologia suficiente. Não é só uma coisa, é o Banco Itaú ter tecnologia para gente lá, o que era de ponta tinha, mas eu estava grávida do meu filho. Quando eu fui ver a primeira palestra sobre “www”, foi na USP, eu, já com barrigão, me lembro disso perfeitamente. E aí logo a gente teve. Eu ainda estava no Itaú Cultural, e eu me lembro que eu tinha o meu computador, que internamente funcionava em rede ali, mas era interna, quando a gente começou a trabalhar com isso, eu lembro que eu tinha um livro do lado do computador pra esperar a imagem compor. Agora você imagina na Secretaria de educação de Santos da periferia, você fazer uma imagem subir. Mas eu acho que mesmo as situações que a gente não conseguia, a gente conseguiu mostrar o que era aquilo. A gente conseguiu mostrar isso. Eu guardei uma cópia de uma foto que tem assim “aluna, não sei o que, coloca sua história no computador”. Isso entrou na revista. Então acho que a gente tropeçou muito. Eu acho que conforme foi andando, isso foi se resolvendo. Mas eu acho que ainda é uma questão hoje, qual é o uso de fato que você deve ter dessas tecnologias na escola? E essas tecnologias na escola, todas elas, têm que ter um sentido de aprendizagem. E eu acho que você chegar numa escola de qualquer lugar dizendo, “olha, nós vamos entrevistar as pessoas que são daqui, olha nós temos a tecnologia para botar essa informação lá para dentro”. Eu acho que a metodologia é de fato consistente. E ela, de verdade, contribui para um uso interessante, e para um processo que é dar visibilidade a quem não tem. Um dos últimos projetos que eu fiz aqui, o museu estava fazendo a história da Escola Pueri Domus. Eu fiz só uma contribuição, no sentido de fazer uma linha do tempo da história da educação pra articular o que eles estavam fazendo? E depois eu fui trabalhar no Pueri Domus. Quando eu saí do museu, um dos uma das instituições que me chamou e falou, “olha, você fez aquele trabalho com o museu, você não quer vir trabalhar conosco e tal?”. “É, mas o que que eu vou fazer?”. O fato é que eu fui trabalhar com tecnologia educacional e um ou dois anos depois, abriu um Pueri Domus dentro da favela de Paraisópolis, e eu fui dar as oficinas de tecnologia e amarrei com a professora de artes, que era uma era uma oficina de arte e tecnologia. E nas minhas oficinas, a gente fez processos de história local dentro da favela de Paraisópolis. A gente entrevistou as pessoas, levantou dados. Depois os meninos tinham uma fala que só aparecia na imprensa. As histórias horríveis de Paraisópolis, de violência, etc. Aí a gente criou um blog com pequenos relatos sobre as histórias dali, mapeamos com os meninos. Eu fiz um trabalho, por exemplo, tinha um texto de um sociólogo do Cebrap sobre Paraisópolis. A gente pegou esses textos, o censo e esse material e diz assim, no censo de, sei lá, 1990, não lembro mais, tinha tantas religiões. No censo de 10 anos depois, as denominações tem muito mais. A gente mapeou todas as denominações que tinham, fez uma análise de território. E muito disso vem dessa metodologia, de você construir uma história pelas narrativas, de você valorizar o local, de você criar produtos. Nem sempre isso é perfeitamente puro, mas não é essa a questão. A questão é esse sentido. E eu acho que de fato, o esse projeto, essa visão, dá conta de construir primeiro o uso das tecnologias pra algo que a gente acreditou que elas seriam, que é o da democratização e a voz. A gente achou que era só isso. Acho que foi ingenuidade nossa. A gente tá vendo aí, outras questões bastante complicadas. Só o fato da tecnologia não é suficiente para ser democrático muito antes, pelo contrário, né? Vivemos uma crise aí. Mas eu acho que como metodologia, como uma ação pedagógica, eu acho que a gente constituiu um projeto profundamente significativo, e que em situações muito diversas proporciona dar voz, fazer um uso consequente. Por exemplo, eu depois fui trabalhar para uma escola particular, em que o meu desafio inicial era criar a base de conhecimento da escola, a ideia de que a escola joga tudo fora e cria tudo de novo todo ano e tal. E no que eu constitui o desenho, eu falei: “OK, a gente vai organizar a documentação, mas a gente tem que produzir documentação também. Essa tem que ser de história oral”. Só que aí eu comecei a trabalhar com os alunos pra produzirem isso. Quando eles foram crescendo, que a cada ano tinha um outro grupo, teve um TCC que eles fazem com os meninos lá, e as alunas resolveram dar voz aos funcionários. Então eles entrevistaram as mulheres da limpeza, que elas estavam em busca da voz desses funcionários que nunca são ouvidos. Aí o professor de história me procurou e falou: “Zilda, eu sei que você não faz isso, mas dá para você orientar esse grupo”. E eu orientei com o material que eu tinha do museu, o que eu tinha produzido anos antes. Isso é um trabalho lindo. Então eu acho que toda essa abordagem é muito significativa para o trabalho na escola. Eu não conseguiria te dizer quem influenciou quem, mas você vê como isso hoje super faz parte. É um gênero de discurso, as crianças aprendem a fazer em momentos diferentes. Já esqueci a pergunta. Mas tá dado a resposta.
03:50:33
P/1 - Como você teve a experiência de ver as crianças entrevistando, aprenderem a entrevistar? É diferente ensinar um adulto, um jovem?
R - Eu acho que elas aprendem, e isso também dá potência. Eu acho que ele não é específico desta metodologia e tal, mas é sobretudo, você reconhece as crianças como potências. Eles sabem, você senta com eles, diz “ó, nós vamos fazer assim, vai funcionar assim, isso é legal, isso não é legal, vamos treinar e tal”. Eles viram donos das coisas. De fato viram. Você orienta o que vai ser feito, mas eles se apropriam com muita competência. Tanto é assim que recentemente eu fui aí, esse prêmio que se faz pros núcleos, eu fui ler lá os as propostas, eu fui do comitê aí da escolha. Você vê claramente, você faz uma formação correta, você leva em consideração o contexto, o território, as crianças muito pequenas aprendem e fazem com muita competência. E eu acho que nem assim também essa situação de funcionário de escola, por exemplo, na hora eu estou dando esse essa última experiência, eu acho que tem também, e isso vale para todos os depoentes, que é o seguinte: alguém parar pra ouvir a sua história, num tempo em que não se para para nada, e também eu tô lendo aquele coreano que escreve em alemão e faz os livrinhos pequeninos, e eu nunca lembro o nome dele. “Sociedade do cansaço, sociedade, não sei o que”. Eu acho que a gente vive um tempo de profunda competição pela atenção. É isso que todas essas mídias fazem. E eu acho que esta condição de parar para ouvir o outro é super potente. Então você imagina, essa última experiência que eu tive, eu tive com crianças maiores e menores, uma escola de elite em que essas crianças estão cercadas por empregados, e acham que o mundo é assim, que a gente tá vivendo um tempo, a desigualdade é muito complicada, em que as pessoas, as crianças, são influencers. Tem criança que tem assessoria para ser influencer, youtuber e o caramba. Quer dizer, você pega alguém de uma outra classe social que circula no seu ambiente te servindo e senta para escutar a história dela, eu acho que assim se estabelece ali um vínculo que tem algo, sei lá, é de uma experiência de totalidade, no meu ponto de vista, de uma escuta que é total, você olha no olho, você não consulta outra coisa, você prepara as suas perguntas. E num ambiente em que a gente está lutando bravamente, acho que não é nem pro uso dos dispositivos digitais e de tecnologia ser consequente, ter algum sentido e tal. E eu acho que essa escuta do outro num tempo, essa gravação, esse se preparar para, coloca os meninos e as meninas numa condição de muita potência. Eles gravam, eles fazem, eles escrevem, eles usam, eles constroem os discursos mais velhos. Essas meninas que eu orientei adolescentes, queriam dar voz às mulheres que trabalham na escola e que ninguém escuta essas mulheres, pensa como essas mulheres se sentiram nesse dia. Não é que elas ganharam um presente pra escola. Nada disso. Mas é que essas outras pra quem elas limpam o chão, limpam a parede e tal, sentaram pra escutá-las, isso foi o resultado de um trabalho. Eu acho que isso é de uma potência imensa, e no caso da escola, eu acho que a enfim tem um monte de coisas que viraram ritos escolares e que talvez a gente fosse parar: Por que a gente faz isso? Mas por que a gente usa o tempo dos meninos, que hoje a coisa mais difícil é atenção deles, para ensinar isso ou aquilo? Então, você ter no contexto da educação o uso de uma coisa mobilizadora e consequente como essa, eu não conheço um monte, sabe? Assim, continuo achando que é de fato um processo de conhecimento.
03:55:57
P/1 - Quando você falou em crise, né? Acho que a questão de ensinar a usar tecnologia, não adianta.
R - Eles já sabem
03:56:04
P/1 - Já sabem, eles não precisam do Museu da Pessoa pra externar sua voz, né? Então o que resta um pouco é essa postura, né?
R - Eu acho o seguinte, eu acho que é qualificar esses usos, né? Eu acho que diz respeito a qualificar. Eles são usuários. O que a gente sabe hoje? Quer dizer, eu fiz um doutorado sobre isso. Quando veio a pandemia, tudo que eu ia fazer, a base de conhecimento, a memória da escola, o caramba, eu tive que botar 1000 alunos e 200 professores pra usar tecnologia, ambiente digital, não foi simples esse tempo. E o que a gente sabe? Ao mesmo tempo, agora acabou de ter um novo documento curricular do Ministério sobre o que a gente tem que ensinar de tecnologia. Muito bem. O que eu acho é o seguinte, o instrumental, eles se apropriam com muita competência, eles usam qualquer coisa, eles decupam vídeo, eles gravam, eles sobem. Porém, você qualificar essas experiências, sistematizar esses saberes. Ok, eu gravo qualquer coisa, mas vamos falar de corte. Vamos tentar entender porque no talk show, por exemplo, quem entrevista tá mais alto do que quem tá sentado. Vamos tentar entender o que a propaganda política tá querendo te dizer que ela não tá te falando. Quer dizer, a leitura dessas coisas. A escola ainda é a instituição que pode proporcionar uma reflexão sobre isso. Então a molecada tá sabida, a gente bota eles para ensinar, a gente não tem problema nenhum, mas eu acho que primeiro, ainda se entender a diferença desses discursos todos, é mais urgente do que nunca, entendeu? Depois, eu acho que tratar aquilo que a gente produz. A gente não tem mais problema de produzir imagem e subimagem, vamos combinar. Isso era um problema lá no projeto em Santos, que usava Linux, que o negócio não subia, não sei o que, não tem mais. Porém, o que a gente faz com toda essa produção e que sentido a gente dá? Que narrativa a gente constrói? Sobretudo, eu acho que tem que ser cada vez mais autoral e da nossa experiência, porque se não for autoral e da nossa experiência, tem pronto. Ou a gente pede para fazer, a gente ficar craque em fazer prompt que se produz tudo. Então, eu acho que nunca foi tão importante a gente organizar os dados, entender que produção é essa, que escolha que a gente faz, e como é que a gente dá a ver? Como é que eu partilho com outro uma experiência que ele não viveu, mas eu quero que ele conheça? Eu acho que esse é um desafio da sociedade, e é uma função da escola, então acho que nesse sentido nunca foi tão, vamos dizer assim, presente, fazer projeto de memória na escola, porque essa condição de escolha de produção, de edição, quando eu estava justamente montando a estrutura da base de dados de conhecimento da escola, chegou o momento que eu estava com muita dúvida sobre a questão das imagens. Porque se repetiu uma experiência que foi a minha lá de fazer a minha monografia na França, que a tecnologia estava mudando muito rápido. A gente estruturou num programa que a gente indexava não sei o quê. E, de repente, a gente viu que os professores não estavam botando essa base, que era muito complicado, porque no Google Fotos, por exemplo, o negócio já entrava com todas as coisas que a gente teria que indexar o negócio, já se indexava sozinho, né? E aí eu chamei um cara que é o Miller, que ele acho que a última vez que eu soube dele, ele estava gerindo o acervo da Moreira Salles, e ele viu a mudança da tecnologia da fotografia. Ele estava em Manchester, lá com a Kodak, do químico para o digital. E eu fui assistir uma palestra dele, ele diz o seguinte, que boa parte das fotos que a gente faz hoje, a gente vai ver uma única vez, que é no dia que a gente faz, no momento que a gente faz, e não vai ver mais. Impressionante isso. Não vai ver mais. Seja porque a nossa produção é tamanha que são milhares e milhares. Seja porque a gente não organiza e vai se perder, seja porque a tecnologia ela vai mudar e não vai ler o que você fez. Então a gente construir objetos, a gente construir narrativas, a gente organizar a narrativa juntamente com o objeto ou a história da pessoa, com as suas fotos e essa construção de sentido, ou a gente faz isso, ou a gente está produzindo dado e dados sem indexação, sem uso e sem outro, não significa nada. É interessante pensar que o remédio, porque a gente vive uma superprodução de memória e ao mesmo tempo, uma superprodução de esquecimento o tempo todo. Essa fala dele foi incrível. Quando eu vi, ele foi… Muito provavelmente as imagens que você produz, você nunca mais vai olhar. Então eu acho que a possibilidade de você poder refletir sobre essa produção no momento que não se reflete porque é tão baba de fazer, diz respeito a um projeto bem desenhado. E eu acho que ainda a escola é a instituição competente pra criar essas discussões sobre o que que a gente produz, pra quem que a gente produz? Como é que a gente torna a nossa experiência interessante pros outros? Tudo bem, eu gravo uma entrevista inteira, mas a gente vai assistir essa entrevista inteira? Não, não vai. Então a gente vai ter que editar. O programa para editar, os meninos fazem no celular. Agora refletir sobre que edição é essa, é uma condição de aprendizagem. E eu entendo que a escola ainda é um lugar legal, portanto, o projeto de memória na escola ainda é alguma coisa potente, até para discutir os outros usos que estão sendo feitos. Porque você também pode produzir entrevista sem entrevistar ninguém. Você diz para o programa, eu quero que o personagem fale isso, isso e aquilo e ele fala. Esse é outro assunto que não é para agora, mas eu ainda vejo um projeto de memória na escola e tudo, como muito potente dessa apropriação.
04:03:29
P/1 - Depois dessas 3 experiências que você contou, em Santos, no Rio de Janeiro, Vila Isabel, você trabalhou com memória local?
R - Eu trabalhei ainda em Ribeirão Preto, Campinas e aqui em São Miguel Paulista. E também é uma história incrível, da cidade, São Miguel Paulista era outro lugar até a nitroquímica chegar.
04:04:06
P/1 - E isso foi aí, até 2007, e aí você saiu?
R - Eu saí do museu em 2007.
04:04:14
P/1 - E nessas outras 3 experiências, a metodologia, a tecnologia, a sua forma de formar mudou ou não, como é?
R - Olha, eu acho que ela mudou pouco. Até onde eu sei, ainda mudou pouco. Eu acho que é o pouco que nem os outros projetos do museu. Eles têm algo de comum, que é o jeito de abordar, e tem as adaptações necessárias pros territórios. Eu não vejo assim uma imensa diferença. Depende um pouco que Secretaria de educação se encontra, o que as pessoas querem? Quanto quem está patrocinando entra mais ou entra menos? Mas eu acho que tem mais ou menos essas características. Não me lembro muito e não sei como funcionam os núcleos, se funciona ou se não funciona. Então eu sei pouco sobre isso. Depois, quando se constitui o conselho e tal, eu fico sabendo, pelos números ou pelos documentos, que me parece que ainda tem mais ou menos o mesmo funcionamento. Até onde eu sei, não sei mais sobre isso.
04:05:46
P/1 - E depois da sua partida em 2007, você começou a integrar o conselho automaticamente ou demorou?
R - Levou um tempo até isso se constituir. Aí eu não sei te dizer as datas. Fui fazer outras coisas depois. Tem um hiato aí que eu não sei bem qual que é, não me lembro mais.
04:06:14
P/1 - Mas você voltou a trabalhar intimamente com o museu depois disso, ou não, nunca mais?
R - Não, não voltei a trabalhar. Voltei quando se constituiu o conselho. Aí tem reunião do conselho, me dispus a contribuir pra esse trabalho de memória. Aí depois o André, meu filho, veio fazer um estágio. Aí, às vezes, ele dizia assim: “Ah, hoje a gente viu, não sei o que, mas a Renata não sabe o que é”. Aí eu disse “Bom, diz pra mim aí que se se tiver a ver comigo, eu te mando”. E aí algumas coisas apareceu. O que aconteceu é que assim, algumas pessoas ficaram, seguiram minhas próximas, né? A Karen continuou próxima, continua minha amiga, a Rosana. A Cláudia, eu vejo menos, mas quando vejo, adoro ver. Outro dia, encontrei a Gisele aqui. Agora eu acho que como experiência, como metodologia, isso foi andando por outras coisas que eu fui fazendo com mais presença ou menos presença da questão da memória. Na experiência de Paraisópolis, por exemplo, a metodologia foi fundamental para um trabalho que eu fiz com os meus alunos de ensino médio que dizia respeito a compreender melhor o espaço de Paraisópolis. Consegui comparar isso com o estudo da cidade. Então tem essa abordagem quando, sei lá, tem uma série de outros momentos que essa metodologia reaparece, não é que reaparece, ela de fato virou uma metodologia de trabalho para outros contextos meus e de quem eu tive que orientar, ou calhou de eu orientar. Por exemplo, alunos na escola ou sei lá, tem um momento lá mesmo de escola, em que sei lá, tem coisas relacionadas à questão da memória, também segui sendo reconhecida como alguém que sabia isso, né? Então, quando essas meninas no médio querem trabalhar com as histórias das funcionárias. O professor está a dizer, “ó, fala com a Zilda que vocês vão ter que entrevistar. E tem jeito certo para fazer isso”. Quando eu chego nessas escolas que agora eu trabalho na Bahia e querem entender o que é aquilo lá. “Não, eu quero o meu primeiro mês, eu preciso fazer umas entrevistas que eu preciso entender esse negócio”. Então acho que tem a ver com isso. Por exemplo, essa semana me ligou uma pessoa que eu conheci fazendo projeto do Pueri Domus, e ela faz grupos de formação de professores e coordenadores há milhões de anos. Eles produzem um monte de material. E ela me ligou e falou assim, ela tá mais velha, “como é que a gente poderia organizar toda essa produção? Isso, isso e aquilo?”. Aí eu falei: “olha, Cleide, tem muitos jeitos, mas eu acho que o seu trabalho com os professores nesse cotidiano, eventualmente você devia constituir um núcleo” “Ah, como é que eu faço?” “Não, entra lá no site, não sei o que e tal”, então acho que isso permanece assim, tem essa coisa. Me prontifiquei a vir fazer entrevista e se houver interesse e tal. Mas eu tenho essa proximidade, seja pelas pessoas, eu continuo considerando que esse negócio de trabalhar com a memória e são contextos diversos, mas eu ainda vejo sentido se essa pergunta, entendeu? E ainda continuo achando que a área de educação precisa lidar com isso, porque ao mesmo tempo que se fala de milhões de inovações, o que a gente tem visto é muito retrocesso. É como se a experiência dos professores não valesse. Essa é uma área que é a experiência. Enfim, vale pouco, tem sempre alguém com uma grande novidade que também é super detrator de memória. Então acho me parece que seja isso.
04:11:06
P/1 - E pra você, como é tá do outro lado, sendo entrevistada desse jeito mais ou menos?
R - Olha, eu vou te falar uma coisa, eu tenho pensado muito sobre isso. Porque um belo dia você se dá conta ou que você é mais velho do grupo que está trabalhando, mil questões dessas. Primeiro é super Interessante, agora fica muito claro como essa é uma construção conjunta minha e sua, se a gente olha o que eu contei e o que eu não contei, acho que tem a ver com isso. Eu acho que é um encontro de escolhas minhas e suas, e é uma parte da história. Acho isso. Eu acho que também vem num momento interessante. Eu, daqui a 2 meses eu faço 60 anos, porque é um susto. Num belo dia você se dá conta de que tem 60 anos, cara. Então, certamente ainda tem um monte de coisa para fazer, mas não tem mais a vida inteira pela frente. E poder parar para falar disso e para pensar sobre isso é, ao mesmo tempo disruptivo, mas assim, pô, mas você o que é você quer e o que é que você não quer nunca mais? E isso diz respeito a pensar sobre o que você fez? Pra terminar, eu fiquei anos trabalhando, eu voltei na iniciativa privada e o ano retrasado eu falei, “cara, eu não quero mais trabalhar pra essa classe social nem dentro dessa estrutura. Eu quero voltar ao terceiro setor”, só que eu já não estava no terceiro setor há uns 8 anos. E saquei que ele mudou muito, mudou seu linguajar, suas análises de impacto, virou um lugar de economistas, é interessante. Aí eu fui fazer um MBA sobre gestão do terceiro setor na faculdade de economia, fui lá, fui da UFRJ. Então, poder pensar sobre o que eu quero, eu não quero mais, diz respeito a pensar sobre a sua memória. Eu acho que são vários dos turning points que você vai vivendo e poder parar para contar é legal. Eu, desde o ano passado, meus filhos não moram mais em casa, então eu penso assim: O que que eu vou fazer? O que eu quero fazer agora, né? Eu quero continuar morando aqui ou não? Que lugar que eu quero morar é que trabalho eu quero voltar a fazer e qual que eu não quero fazer nunca mais? E eu acho que essa condição de parar para contar é super Interessante para se fazer essas perguntas, sabe? E para pensar sobre os seus tempos. E eu acho assim que ela é, [intervenção] Há uma há algo de retrospectivo. Você está falando de um passado, mas há também algo de prospectivo, o que que eu quero disso? O que eu não quero nunca mais, o que eu vou ser nos próximos anos? Eu acho que são experiências muito importantes, no sentido dessas paradas, elas são, às vezes, revolucionárias. Porque assim, “olha, isso eu quero nunca mais”. O que que eu vou fazer do meu tempo? Eu achei um barato aqui, porque eu acho que se alongou muito na minha infância. E pensando bem, tem umas coisas interessantes na infância, outras não tem o menor interesse.
04:15:48
P/1 - Você não falou dos seus filhos, por exemplo.
R - Eu falei dos meus filhos, que foi uma experiência incrível. Eu podia passar horas aqui falando dos meus filhos assim, tenho milhões de história para contar. Teve esse novo lugar, quando meu filho mais velho saiu de casa, eu falei assim: “olha, não foi só você que mudou de lugar, mas a sua saída me levou para um outro lugar, que é o lugar de quem não tem mais filho em casa”, por exemplo, que é muito diferente, eu acho que tem a ver com isso. Não abordei essa história dos meninos e tal da minha casa. Você me perguntou muito da casa da minha infância. E essa, de fato, ela está na memória, porque eu não vou nem ver o bairro para não me chatear de ver o que virou o Brooklin. Eu achei interessante, mas assim eu acho que é uma imensa oportunidade e é uma imensa janela. E eu acho que eu me sinto um pouco como várias pessoas que eu entrevistei, né? Eu, muitos anos atrás, entrevistei a Laurinda, professora lá da PUC. Depois eu encontrei ela, eu dando aula na mesma faculdade, porque ela falou para mim: “Zilda, aquele dia foi um dos dias importantes da minha vida”. Quando morreu o doutor ______, eu entrevistei ele para o Projeto da Rhodia, ele foi presidente da faculdade, diretor da faculdade de medicina e depois o centro de memória. E o neto dele era meu vizinho. O dia que ele morreu, a família funcionou igual o menino tava brincando, dizia: “cara, teu avô morreu, você sabe quem foi o seu avô?” . Eu sabia mais do avô dele do que ele, porque eu tive o privilégio de ter tido 2 horas que o avô dele me contou a história dele. Eu acho que é como disse a Laurinda, ela falou para mim: “olha, esse rito foi uma coisa muito importante na minha vida”. Foi uma mulher que tem uma história linda. E eu acho que, de fato, muda o seu jeito de ver o mundo. Acho que se estabelecem laços que são fundamentais. Eu com a Rosana, a gente entrevistou a Angelita Gama, no Projeto da Rhodia, essa médica maravilhosa e tal. A gente saiu de lá, ela era nossa chapa, A gente ama. E ela pegou COVID e ficou entubada 30 dias. E eu tenho um amigo que ia ver um paciente vizinho da cama, e eu dizia todo dia: “como é que ela está?” Ele dizia: “Zilda, quem que você?” Eu falei, “eu entrevistei essa mulher, eu tenho um vínculo profundo com ela”, entendeu? Essa história. Eu acho que é um privilégio, é uma alegria, e acho que é uma curadoria de uma escolha que você fez aqui. Não contei, por exemplo, essa experiência de parar e se perguntar que que vou fazer da minha vida daqui para frente. Eu tive um câncer inesperado, sem sintomas, não sei o que, isso faz 13 anos. Esse também foi um momento que ocupou um ano da minha vida. E um belo dia, quando acabou eu falei: “cara, e agora, o que que eu vou fazer?” Eu acho que poder contar uma história é também parar no retrospectivo e dizer “putz, olha o que me aconteceu, olha o que foi a minha vida”. Mas também é prospectivo. E nesse ponto é legal, eu achei legal.
04:19:24
P/1 - A sua entrevista teve 2 partes, entre 1 e outra você pensou em alguma coisa também? Entre a parte 1 e essa parte hoje você ficou refletindo sobre essa experiência ou não?
R - Olha, eu tenho umas coisas mais interessantes, porque ainda juntou que teve da Secretaria de Educação, porque me chamaram lá para falar de um projeto de memória que eu comecei a fazer lá e que fatalmente cruzou com o que eu já tinha feito na vida. Não sei se por acaso, mas essa semana eu peguei as 3 mídias externas de fotos que eu tenho, e resolvi botar em ordem. Vai levar 10 anos, mas não importa. Olhando essa entrevista, eu acho sim, que é muito interessante. Conheço a metodologia, estudei teoricamente esse negócio, tem uma porção de coisas que tem o que entrou, não entrou. Eu acho assim, que é um privilégio poder contar sua história, que é diferente de outras experiências. E eu acho que, em resumo, eu vou me repetir, mas eu acho que é isso. Quer dizer, eu acho que é uma experiência retrospectiva, mas ela é altamente importante. Te proponho assim, é uma pergunta que você faz, OK, você contou, você fez até aqui, você fez. Muito bem. E agora, o que você vai fazer desse tempo que você tem pra frente? É muito incrível, porque o fato de você conhecer o conceito não faz com que isso seja menos forte, que eu contei essa história inteira. Olha o que eu já fiz! Bom, e daqui para frente, o que eu vou fazer disso? Eu acho que é lindo isso. Acho que a gente parar para fazer isso com os outros. Eu tenho algumas, eu entrevistei, eu fiquei, sei lá, 7 anos aqui, qualquer coisa assim. Tem histórias inesquecíveis da minha vida, que mudou minha vida de fato, mudou meu jeito de entender o mundo. Ouvir a história de alguém, ajudar ela a construir. Eu acho que esse é um dado, esse lado aí é bacana à beça. Agora esse de você contar nessa condição dessa escuta, do que você constrói tudo, ele alimenta das perguntas necessárias pra você fazer com que o tempo que você tem a viver seja legal, possa ser bacana para você e para os outros. Enfim, acho que tem a ver com isso. Então queria agradecer o tempo e a atenção, que é o que menos tem hoje em dia. Essa experiência de totalidade, de parar o tempo para fazer isso. Acho que foi legal, é isso.
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