VLI – Estação de Memória: Porto & Pesca
Entrevista de Santina Gonçalves Barros
Entrevistada por Ane Alves
Cubatão, 08/08/2025
Entrevista nº: VLI_HV003
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrito por Arielle Paro
Revisada por Ane Alves
P/1 - Dona Santina, muito obrigada por nos receber nesta entrevista. Prometo que eu não vou me estender muito pra senhora não ficar sentindo muita dor. Para iniciar, eu gostaria que a senhora se apresentasse falando o seu nome completo, a data de nascimento e a cidade e o estado que a senhora nasceu.
R - Tá ok. Eu me chamo Santina Gonçalves Barros. Nasci 21/03/1951. Cidade Valparaíso, interior de São Paulo.
P/1 - Dona Santina, a senhora sabe porquê os seus pais ou quem batizou a senhora de Santina? Porquê o seu nome?
R - Eu acho que sim, acho que foi minha mãe, não sei. Que o meu pai só via na rua, só bebendo.
P/1 - Mas ela não falou porquê escolheu esse nome.
R - Também não sei se foi ele ou se não foi, que eu também... Minha mãe já morreu há muitos anos.
P/1 - E eles chegaram alguma vez contar pra senhora como que foi o dia do seu nascimento?
R - Não, eu só sei por causa do documento.
P/1 - Mas eles não falaram assim: “ah, você nasceu num dia que tava assim.” Nunca teve essas conversas em casa?
R - Ah, sim. Teve. Eles falavam que eu nasci dia 21 de abril. Mas como o meu pai estava bêbado e registrou dia 21 de março. Então, ficou nessa. Aí, eu… Todos os dois meses eu faço aniversário.
P/1 - Dois aniversários.
R - É.
P/1 - Quais os nomes dos seus pais?
R - Meu pai é Lilo Gonçalves da Silva.
P/1 - E eles nasceram lá em Valparaíso mesmo?
R - Não, meu pai é do Ceará.
P/1 - Você sabe a história, porque ele se mudou do Ceará para Valparaíso?
R - Ah, não.
P/1 - E a sua mãe, era de onde?
R - Minha mãe é da Bahia.
P/1 - E quando a senhora puxa assim na memória, qual a primeira lembrança que vem da sua infância?
R - Na minha infância, fui criada no interior. No...
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Entrevista de Santina Gonçalves Barros
Entrevistada por Ane Alves
Cubatão, 08/08/2025
Entrevista nº: VLI_HV003
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrito por Arielle Paro
Revisada por Ane Alves
P/1 - Dona Santina, muito obrigada por nos receber nesta entrevista. Prometo que eu não vou me estender muito pra senhora não ficar sentindo muita dor. Para iniciar, eu gostaria que a senhora se apresentasse falando o seu nome completo, a data de nascimento e a cidade e o estado que a senhora nasceu.
R - Tá ok. Eu me chamo Santina Gonçalves Barros. Nasci 21/03/1951. Cidade Valparaíso, interior de São Paulo.
P/1 - Dona Santina, a senhora sabe porquê os seus pais ou quem batizou a senhora de Santina? Porquê o seu nome?
R - Eu acho que sim, acho que foi minha mãe, não sei. Que o meu pai só via na rua, só bebendo.
P/1 - Mas ela não falou porquê escolheu esse nome.
R - Também não sei se foi ele ou se não foi, que eu também... Minha mãe já morreu há muitos anos.
P/1 - E eles chegaram alguma vez contar pra senhora como que foi o dia do seu nascimento?
R - Não, eu só sei por causa do documento.
P/1 - Mas eles não falaram assim: “ah, você nasceu num dia que tava assim.” Nunca teve essas conversas em casa?
R - Ah, sim. Teve. Eles falavam que eu nasci dia 21 de abril. Mas como o meu pai estava bêbado e registrou dia 21 de março. Então, ficou nessa. Aí, eu… Todos os dois meses eu faço aniversário.
P/1 - Dois aniversários.
R - É.
P/1 - Quais os nomes dos seus pais?
R - Meu pai é Lilo Gonçalves da Silva.
P/1 - E eles nasceram lá em Valparaíso mesmo?
R - Não, meu pai é do Ceará.
P/1 - Você sabe a história, porque ele se mudou do Ceará para Valparaíso?
R - Ah, não.
P/1 - E a sua mãe, era de onde?
R - Minha mãe é da Bahia.
P/1 - E quando a senhora puxa assim na memória, qual a primeira lembrança que vem da sua infância?
R - Na minha infância, fui criada no interior. No interior de São Paulo, naquelas fazendas, junto com a minha mãe. Minha mãe criou a gente tudo sozinha. Sem marido, porque meu pai bebia muito, então ela mandou ele passear e cuidou de cinco filhos, tudo junto. Então, ela levava a gente pra roça, junto com ela. Eu fui criada dessa maneira. Aí, depois, quando eu tinha seis anos, eu vim pra cá. Ela mudou pra cá. Que ela arrumou um rapaz e mudou pra cá, pro Casqueiro. Aí, eu fui criada no Casqueiro também. Fui criada no Casqueiro. Aí, depois ela não deu certo com o meu padrasto. Ela ainda teve dois filhos com ele. Que ele justamente agora vai fazer cem anos, meu padrasto. Então, ela não deu certo com ele. E ficou a gente cuidando, morando ali no Casqueiro. Do Casqueiro, eu saí do Casqueiro com 14 anos de idade. Estudei no Casqueiro, tudo. E mudei pra Vila São José.
P/1 - A senhora saiu de lá com seis anos?
R - É.
P/1 - E lá tinha quantos filhos? Quantos irmãos?
R - Lá era cinco.
P/1 - Era cinco? A senhora tá em que lugar dessa escadinha?
R - Ixi, deixa eu ver... Acho que deve ser a quarta.
P/1 - E, com seis anos, mas a senhora lembra das brincadeiras? Se você brincava com seus irmãos lá em Valparaiso?
R - Ah, nós brincava de subir no pé de manga, que eu ficava sozinha dentro de casa. Tinha vezes que ela não levava a gente pro sítio, que era muito perigoso. E deixava a gente trancado dentro de casa. E dentro de casa tinha muito pé de manga do lado. Aí, nós pegava, subia no pé de manga e tudo. Escondido dela, que ela deixava a gente quase trancado. Foi assim.
P/1 - E quando vocês iam pra roça com ela, vocês trabalhavam, ajudava de alguma forma?
R - Não, não. Não trabalhava, não. Ela deixava a gente embaixo de um pé de manga, também. Que tanto onde nós morávamos, na nossa casinha, tinha pé de manga, como lá onde trabalhava. Trabalhava num cafezal também, cuidando de café, essas coisas. Mas nós não fazia nada, não. Que ela não deixava.
P/1 - E a senhora começou a estudar lá?
R - No Casqueiro.
P/1 - A senhora sabe como seus pais se conheceram?
R - Ah, não.
P/1 - Não? E a sua mãe veio pra cá com o seu padrasto. Ele era daqui? Você sabe como surgiu a ideia de mudar pra...
R - Não, ele era... Sabe que eu não me lembro não? Sei que nós viemos pra cá. Deve ter conhecido lá, no interior. Em Araçatuba, sei lá, naqueles lados do interior que eu não sei.
P/1 - Mas não sabe... a senhora era pequena, né?
R - Muito pequena.
P/1 - Aí vocês moraram lá no Casqueiro e começou a estudar na escola lá no Casqueiro?
R - Sim, no Ortega.
P/1 - E você lembra alguma coisa da escola? Como que era?
R - Eu me lembro, sim, que eu era… No primeiro ano eu era travessa. Aí, eu achava que tudo que a professora estava ensinando era errado. E o que eu fazia, eu achava que tava certo. E o que ela fazia estava errado. Entendeu? Aí, tem uma coisa que eu nunca esqueci. Que ela me deu uma nota, dez, que era aquela um e o zero. E eu tinha feito a lição todinha. Aí, eu falei… Cheguei em casa chorando, briguei com a professora, discuti. “Mãe, ela me deu um zero. Eu fiz tudo direitinho, ela me deu zero.” Aí, eu ficava com aquilo ali, chateada. Chateada, sempre levava. Aí, quase todo dia apanhava da minha mãe, quando chegava da escola. Quase todo dia apanhava. Que eu também não era boazinha. Não vou dizer que eu era boazinha, que eu não era. Aí, eu estudei, que ver, até a quarta série. Porque antigamente as crianças não podiam ficar sem trabalhar. Porque os pais trabalhavam e deixavam a gente sozinha. Então, não podia. Aí, os meus irmãos foram pro Juizado de Menor, dois que moravam com ela, os outros não moravam com ela. Que as outras trabalhavam fora, minha irmã mais velha. E o outro saiu de casa também, o mais velho. Então, nós ficávamos assim, dentro de casa. Aí, não podia. Aí, o juizado veio, levou os dois, um mais velho que eu e outro menor. Levou, ficou lá na... Acho que é na Júlio… Um negócio que tinha no… Não me lembro o nome do colégio. Que tinha em Santos. E eu, ele me arrumou um serviço com nove anos, pra eu ir trabalhar na casa dos outros, porque eu não podia ficar em casa sozinha. Aí, o juizado foi, que eu estava na terceira série, estava bem adiantada na escola. Ele falou assim: menina, pra que mulher trabalhar? Pra que mulher estudar? Os meninos vão ficar lá no colégio, mas você não vai estudar mais. Aí, minha mãe não me deixou mais estudar. Me colocou para trabalhar de pajem em Santos. De pajem de uma criança também. Aí, eu fiquei de pajem lá naquela escola um bocado de tempo. Aí, quando eu voltei, voltei de novo, fui estudar de novo. Eu fui estudar de novo, escondido dela, mas fui. Aí, quando penso que não, o juizado bateu de novo na minha casa. O filho dele era um cabra sem vergonha. Aí, eu falei assim: quer dizer que a gente somos pobre não pode estudar? O seu filho pode. A gente não pode estudar. Aí, minha mãe não comprava nem caderno, nem nada, estudava com o caderno dos outros, tudo dos outros. Falei: mas eu vou estudar, tudo que eu puder fazer… Eu vou estudar. Estudei até a 5ª série escondida da minha mãe. Apanhava pra caramba, mas eu ia. Entendeu? Estudei... Não estudei mais porque era admissão naquele tempo, que eu queria estudar para ser professora. Mas minha mãe não deixou por causa desse juizado. Aí eu falei: tudo bem! Mas estudei até a 5ª série. Não completei porque não tinha condições de manter os livros, condições de fazer tudo. Não completei. Aí, depois de tudo isso, aí pra trabalhar, pra ajudar minha mãe… E foi também por causa disso que o Juizado levou, que a gente ia pra Maré, na Ponte Nova, no Casqueiro, ia eu e meus dois irmãos, pra dentro do mar para catar caranguejo, pra poder ajudar na minha casa, ajudar a minha mãe. Aí, nós ia pegar caranguejo e pegava marisco. Eu conheci junto com a mãe do meu marido, nós ía junto. Pegava caranguejo e marisco pra se manter.
P/1 - E vocês pegavam esses caranguejos e marisco e vendiam onde?
R - Não, o caranguejo nós entregava para a mulher que morava aqui. Que ela já faleceu, há muitos anos, morava na beira da pista. Ela comprava caranguejo, marisco dos pescadores. Ou então trocava por feijão ou por carne. Entendeu? E nós fazia. Porque minha mãe começou a trabalhar, então nós, para não deixar a nossa mãe com fome, nós íamos fazer isso aí, pegava e comprava as coisas para não faltar comida para ela. Nós não pensávamos nem na gente.
P/1 - Mas nessa época vocês estavam morando no Casqueiro ou já tinham vindo para cá?
R - Não, no casqueiro. Isso tudo é casqueiro. Aí, depois, quando chegamos… A minha mãe falava assim: aí, meu filho, a mãe começou a trabalhar agora, não tenho como sustentar vocês. “Não mãe, não se preocupe não, nós não vamos pegar nada de ninguém, mas nós vamos trabalhar.” E nós trabalhávamos, pegando esse caranguejo, siri. Tem vezes nós pegávamos lata, vendíamos num ferro velho que tinha ali, no Casqueiro. Tudo. E nós ia se mantendo desse jeito. Tinha vez que ela chegava da Cosipa, que era antiga Cosipa, naquele tempo começou. Minha mãe era cozinheira de lá. E ela chegava chorando. “A mãe não trouxe nada pra vocês comer.” Eu falei: não, mãe, nós compramos coisas pra senhora. Nós fomos, buscamos caranguejo, pegamos marisco. Então, nós fazíamos assim: nós comprávamos meio quilo de feijão e a farinha. Cozinhava um caranguejo e dava pra ela. Não vendia todo. Nós deixávamos sempre alguma coisa para quando ela chegasse, tinha o que comer.
P/1 - E vocês comiam com ela?
R - Não, tinha vezes que nós comíamos um pouquinho, porque nós lavávamos a louça nas casas dos outros. Nós fazíamos o que podíamos. Porque ela falava assim: se um dia eu pegava vocês pegando alguma coisa dos outros, vocês apanhavam. Nós apanhava.
P/1 - Dona Santina, aí era a senhora e mais um irmão?
R - Mais dois. Era o Luiz e o Júlio. O Júlio era o menor e o Luiz era maior do que eu. E nós íamos se virando. Nós se virava. Entendeu? Aí, nós nunca deixamos a minha mãe com fome. E ela chegava, “mas vocês vão ficar sem comer?” “Não, nós já comemos.” Tinha vezes que nem comia. Porque no outro dia nós íamos para a escola e nós comia. E ela ia trabalhar com fome. Então, nós pensávamos na mãe e na gente não. Nós pensamos nela.
P/1 - E nessa época o padrasto de vocês não estava mais com vocês?
R - Não, minha mãe já tinha largado. Não, que ele batia nela, então ela deixou ele. Ela largou dele e ficou cuidando da gente. Aí, nós estávamos assim. Aí, depois ela voltou de novo com ele, ainda arrumou mais dois filhos. Arrumou mais dois filhos. Foi onde nós moramos na Vila São José. Nós moramos lá na Vila São José. Onde era a antiga Socó. Nós mudamos pra lá. Aí, meu padrasto veio e fundou aqui a Vila dos Pescadores, que era a antiga Vila Siri. Foi ele mais cinco pessoas que fundaram aqui.
P/1 - Ah, ele é um dos fundadores daqui?
R - Ele é um dos fundadores.
P/1 - Como que é o nome dele?
R - Aprígio dos Santos.
P/1 - E a senhora sabe o nome dos outros fundadores?
R - Um era Nelson, o outro era Nicanor. Só assim que eu sei, os outros tudo... Não sei realmente todos os nomes deles. Um, era o menino ali, mora do lado da minha casa. O tio dela também junto. Tem um outro que era o... Ah, eu esqueci o nome desse. Sei que eram cinco, que fundou a Vila. Que veio e invadiu. Porque minha avó queria mudar, então eles vieram e invadiram a vila, e fizeram um barraquinho pra minha avó. Essa casa aqui que eu tô morando.
P/1 - A senhora lembra como que era aqui? Como que eles invadiram? Tinha cerca, alguma coisa?
R - Não, não tinha cerca não. Eles abriram um caminho que era naquela rua ali.
P/1 - O trilho do trem já tinha lá?
R - Já tinha, o trem já tinha. Tinha muita casa da ferroviária. Ferroviária tinha casa, mas aqui dentro pra favela não tinha. Então, eles abriram um beco ali, um caminho aí e vieram coisando. Abriram um lugar, minha avó fez uma casa. Minha avó fez uma casa. Tem um moço também chamado Sebastião. Esse Sebastião Preto já morava aqui.
P/1 - Então, sua avó foi a segunda moradora daqui?
R - Sim. Foi essas cinco pessoas, cinco moradores. Aí, depois, nós fomos crescendo, eu fui crescendo, tudo. Aí, eu vinha… Eu catava marisco aqui, na Beira da Maré, era um jamboleiro que tinha. Tinha aquele marisco Bico de Ouro, que chamam. Bico de Ouro, aquele que era mais bonito que tem, que ele é preto e amarelo. E nós catávamos ali. Nós enchiamos a lata de 20 litros, assim.
P/1 - Você e os seus irmãos?
R - Eu e meus dois irmãos. Depois que ele pediu pra minha mãe tirar eles de lá do abrigo.
P/1 - Ah, sua mãe conseguiu tirar os filhos que foram pra lá.
R - Conseguiu tirar, depois de dois anos conseguiu tirar eles de lá. Conseguiu tirar e nós trabalhávamos. Entendeu? E hoje, graças a Deus, eles são muito boa pessoa, todos dois. Todos nós, graças a Deus, ninguém nunca foi... Negócio de roubar, essas coisas, não. Sempre trabalhamos...
P/1 - A senhora lembra quantos anos a senhora tinha quando mudou pra cá, pra Vila?
R - Quando eu mudei pra cá, eu tinha... Minha avó morou antes. Eu tinha 14 anos quando minha avó veio mudar pra cá. Acho que foi em 1960, um negócio assim, ou é 50 e pouco. Um negócio assim, minha vó. Aí, eu vim, com 15, 16 anos, eu vim pra cá. Onde eu conheci meu marido também, que nós morávamos… Aí, nós mudamos pro Casqueiro de novo.
P/1 - Voltou pro Casqueiro.
R - Pro Casqueiro de novo. Aí, nós viemos pra cá, eu vim pra cá do Casqueiro, aí onde comecei a conhecer meu marido.
P/1 - Você conheceu ele lá no Casqueiro?
R - Não, nós vivia conhecido, mas não era tanto assim, aquela amizade.
P/1 - Aí, como que começou a amizade?
R - Nós era até compadre de fogueira.
P/1 - Ah, é?
R - Não tinha nem interesse, que ele morava com uma mulher e eu também fiquei noiva, tudo. Só que eu casei cedo, que antigamente a gente casava cedo. Aí, foi onde eu casei, depois eu desmanchei. Incrível, quando eu desmanchei com um rapaz, que eu descobri que ele tinha outra, desmanchei com ele. Aí, vim pra cá, pra casa da minha avó, chorar as mágoas. Aí, quando eu cheguei, encontrei ele, também tinha brigado com a outra mulher também. No mesmo dia. No mesmo dia. Aí, foi onde nós nos conhecemos. Ficamos assim. Aí, foi indo, foi indo... Aí, depois, meu padrasto, mudamos pra Vila São José de novo.
P/1 - A senhora já casada com o Sr. Francisco?
R - Não. Ainda não. Ainda depois que passou muito tempo. Aí, eu fui. Nós mudamos… Minha mãe mudou, na verdade, para a Vila São José. Aí, nós fomos pra lá, começamos a namorar. Mas a minha mãe não queria que eu casasse com ele. “Minha filha não casa com catador de caranguejo. Minha filha não.” Nem meu padrasto queria. Aí, depois meu padrasto pegou e falou: Peraí, como não vou querer? Porque eu fugi de casa. Depois de um bocado de tempo eu fugi de casa.
P/1 -
Fugiu de casa pra namorar com o Sr. Francisco?
R - Sim. Vim morar na casa da minha sogra, que ela também já estava morando aqui. Aí, quando cheguei aqui, meu padrasto veio. “Tá pensando o quê? Tu mora com a minha filha, não é minha, mas é criada, é como se fosse minha. E tu vai ficar morando com ela assim? Você vai casar com ele.” Fez igual aquele. “Tu vai casar…” Aquela história… E fez casar. “Vai casar sim. Te dou um mês pra tu casar com ela. Tu vai casar com ela. Tá pensando que eu tenho filha pra dar pra pião assim?” Nós fomos e casamos no civil.
P/1 - Conta como que foi o casamento?
R - Nem imagina. Nem imagina, que casamento. O casamento foi assim: Nós casamos, ele foi, marcou. Meu padrasto foi lá e marcou, levou meu marido como se fosse assim: Agora tu vai casar?
P/1 - Foi o seu padrasto que marcou?
R - Marcou, ele mais a minha mãe foi. “Ela é minha filha, eu cuidei dela, é minha filha.” Porque ele nunca teve filha. Depois que ele largou a minha mãe, depois de muito tempo que ele teve uma filha mulher. “Ela é minha filha, eu não vou deixar você morar com ela… Tá pensando o quê? Tá achando que você achou ela na na rua.” Aí, fez aquele fuazeiro todinho. Aí, foi, casamos. Ele foi lá no civil, marcou um mês. Um mês. Dentre namoro e casamento, foram seis meses. Foram seis meses. Aí, com um mês que marcou lá, nós casamos. Se você vê, minha mãe veio. “Nós não temos dinheiro pra fazer festa.” Não tinha dinheiro pra nada. Não tinha cama. A cama era a rede de pescar, que tinha em cima de um colchão.
P/1 - E vocês foram morar aonde? Continuaram morando com a sogra?
R - Do lado da sogra.
P/1 - Do lado da sogra?
R - É, depois nós compramos um barraco do lado da sogra. Porque ela também era catadora de caranguejo. Aí, nós fomos morar... É uma comédia. Dá pra fazer até um filme. Aí nós fomos morar lá na coisa... Agora o casamento. O casamento, quando eu fui…. dá até vergonha. O vestido compramos. Um vestido simples, todo de renda, que até hoje eu me lembro... Não, renda não. Um vestido todo no brilho, que até hoje eu não me esqueço, que é um pano bonito, todo brilhoso. Fomos casar. Casamos. Aí, quando chegou na hora do almoço, aqueles primos dele tudo ali, aqueles nortistas, pra comer, tudo criado de uma maneira. E veio aqueles nortistas, tudo criado…. Minha criação foi de outro jeito. A dele foi outra. Aí, aqueles nortistas tudo comendo com a mão, aquelas coisas, tudo comendo com a mão e jogando por baixo da mesa, aqueles pedaços... Aí, jogava aqueles pedaços de osso embaixo da mesa, toda aquela bagaceira toda. Eu falei, “eita, danosse!” Falei: mas e agora? To aqui! Já casamos, vou fazer o quê? Deixa eles comerem. Deixa eles comerem tudo, matar a fome, que não é todo dia que tem. Deixe. Aí, eles comeram, assim, aquela tonelada. Também depois de nove meses eu tive a minha filha mais velha. Aí, tive a minha filha mais velha.
P/1 - Como que é o nome da mais velha?
R - Cláudia. Tem muita coisa no meu casamento, muito sofrimento. Sei que eu ainda, com tudo isso, eu ainda fui pescar com nove meses, igual eu falei aquela história da Marly, que ela acha que é mentira minha.
P/1 - Não, a senhora vai contar aquela história direitinho daqui a pouco. Mas deixa eu perguntar só uma coisa antes.
R - Pode falar.
P/1 - A Senhora, desde pequenininha, já pegava os caranguejos e os mariscos?
R - Sim, desde pequena.
P/1 - E a senhora já trabalhou em alguma outra coisa?
R - Não, eu trabalhei depois de 60 anos, eu trabalhei... Igual vocês fazem, assim, de comunicação.
P/1 - Aonde?
R - Trabalhei pela Petrobras. Pela Petrobras do Rio de Janeiro. Deixa eu ver o nome dela, daquela Petrobras. Ah, esqueci o nome. Eu trabalhei... Até um dia eles vieram até aqui me conhecer. Falou: Poxa, Dona Santina, estou atrás da senhora. Sumiu? Que eu andava por todos os lugares para falar com os pescadores. Todo canto eu ia com os pescadores. Mas foi quando eu tinha 60 anos.
P/1 - A senhora ia falar o quê com os pescadores?
R - Assim, igual você está fazendo.
P/1 - Uma entrevista?
R - Sim, eu entrevistava os pescadores. A gente entrevistava, eram mais de dez mulheres. Nós íamos. Tinha vezes que eu chegava dez horas da manhã. Ó, uma hora da manhã, em casa. Nós chegávamos muito tarde, porque era longe. Íamos para Caruara, Ilha Diana, Conceiçãozinha, São Vicente. Todos esses lugares nós saíamos, aquele monte de mulheres, para fazer entrevista com os pescadores. Único lugar que eu vim trabalhar foi esse. A não ser quando eu tinha nove anos, tive que trabalhar como pajem. Então, foi isso aí.
P/1 - E depois que casou com o Sr. Francisco, aí ia pescar vocês dois juntos?
R - Quando não tinha ninguém pra pescar com ele, eu ia. Ele não gostava não, mas eu ia. Ele nunca gostou de eu ir pescar com ele. Ele falou: não, não vou fazer isso nada. Casei contigo pra tu ir pra Maré. Falei: não, você não tem ninguém pra pescar, vamos embora. Eu ia pescar com ele. Pescava peixe. Olha, era muito... Ajudava ele em tudo na pescaria.
P/1 - Conta a história que você contou pra Dona Marly?
R - Contei e ela desafiou até hoje. Ela não acredita. Eu fui buscar, fui pescar com ele. Tem uma pescaria que você cerca o rio. Quando a maré tá cheia... Não, quando a maré tá vazia, você cerca. É gamboa que chama. Chama gamboa. Que hoje em dia é proibido. Aí, quando enchia a maré, nós ia lá e suspendia a rede. Aí, como o peixe, na enchente da maré, ele entra na gamboa. Ele entra na gamboa todo. Aí, quando vai secando, a gente vai lá de novo… Quando for pescar, nós tira aqueles paus e vai pegando os peixes que ficou preso lá dentro. Justamente, estava eu… Ele estava com uma canoa, mais ou menos... O barco era seis metros, mais ou menos, o barquinho, era pequeno. Aí, foi eu e ele. Então, eu falei: Caramba! Não sabia que ia pegar aquele peixe todo. Não sabia que ia pegar aquele peixe todo. Aí, lá vai eu e ele. E eu grávida. Mas como eu andava de saia e bermuda por baixo. Eu dava risada, porque eu falei: Meu Deus, se eu tivesse sem bermuda? Mas eu gostava de ajudar ele. Aí, eu peguei… Nós pegava aquele monte de peixes. Eu falei: e agora? Pegava um aqui, ele escapava do outro lado. Pegava e escapava do outro lado.
P/1 - Com a mão?
R - Com a mão. Aí eu falei: sabe de uma coisa? Eu tô de bermuda e tô de saia. Aí, foi onde eu peguei a saia e fiz um tipo de puçá com a minha saia. Aí, foi onde eu comecei a pegar. Falei: ó, já ajudou. Aí, comecei a pescar com a saia, nesse sentido. Porque eu estava de bermuda, né? Aí, então, eu comecei a pegar, fazendo uma saia como se fosse um puçá. Aí, foi onde eu pegava e colocava no barco. Aí, eu falei: agora sim, agora eu to melhor. Entendeu? Agora tá melhor, porque pegamos peixe com puçá. E era tanto do peixe, menina. Nesse dia pegamos uns 100 quilos, mais ou menos. Enchemos o barco. Só que era aqui perto. A gamboa era aqui perto, a Gamboa do Nego Morto, era aqui perto. Se fosse longe não dava pra vim.
P/1 - E porque hoje em dia é proibido pescar de gamboa?
R - Não sei porque que é, acho que é porque vem todo tipo de peixe.
P/1 - E aí não pode?
R - Não pode. Não pode não.
P/1 - Porque tem peixes que são proibidos de pescar?
R - É, não pode pescar mais assim, de secar gamboa. Nem aquele que você faz aquelas madeiras cercadas no rio, não pode mais, estaqueada. Essa que nós estava era estaqueada. É que é de cerco, estaqueada que chama. Não pode mais aquela pescaria também de você fazer o cerco, de cerco no meio do rio, não pode mais. Não pode. Tem muitas pescarias que não pode. Entendeu?
P/1 - E vocês pescavam antigamente de gamboa. Pescava também com rede?
R - Rede também.
P/1 - Anzol vocês usavam pra pescar?
R - Não, meu marido nunca pescou com anzol. Meu filho pesca com anzol, meu marido não. Meus filhos pesca com anzol, mas ele não. Anzol, garrafa, mas ele nunca pescou sobre isso não. Era peixe, caranguejo e siri. Entendeu?
P/1 - E hoje em dia vocês ainda pescam?
R - Não, ele não tá pescando agora que o barco dele quebrou. O barco dele quebrou e a idade dele não dá pra ele ir sozinho mais. E também não dá pra mim acompanhar ele, que também pela minha idade também não posso acompanhar ele. E eu vendia. Quando ele pegava o caranguejo eu ia pra pista.
P/1 - Vocês vendiam caranguejo na pista. E os peixes?
R - Não, os peixes também eu vendia. Eu fazia umas fieiras, eu já sabia quanto que dava o quilo. Quantos peixes que dava um quilo, eu sabia. Tinha aquelas fieiras que a gente pegava dentro do mato, aquelas varas, que amarrava o caranguejo. Nós fazia, desfiava ele e ficava tipo de um cipó. Eu tô esquecendo o nome dele, daquele mato. Então, a gente pegava aquilo e amarrava os peixes, e punha dentro de uma caixa de isopor, tampava direitinho, punha gelo, que comprava gelo no posto de gasolina. Que antigamente não tinha água nem luz aqui. Não tinha água nem luz, nós usava querosene. Até hoje eu não me esqueço, que era o querosene chamado Querosene Jacaré. Que era do bom, querosene. Nós comprava no posto. Tinha a geladeira também, que era a querosene.
P1 - Geladeira a querosene?
R - Geladeira a querosene. Hoje em dia é rico, é chique. Hoje em dia televisão a bateria. Hoje em dia ninguém não chega nisso. Tu não vê no sítio? A geladeira é a querosene e a televisão é a bateria de carro. Nós pegava aquelas baterias desse tamanho, levava pro posto pra carregar, e trazia.
P/1 - A Senhora lembra que ano que chegou a luz aqui?
R - Olha, sei que depois de 17 anos. 17 anos de casada, aí chegou a luz.
P/1 - Então, mais de 17 anos depois que a senhora morava aqui?
R - É.
P/1 - E a água, como que você faziam no começo?
R - A água também foi mais ou menos, quase tudo junto. A água nós pegava pelas casas. Nós ia nas casas, pegava nas casas da estrada, que tinha as casas da estrada. Até no Casqueiro nós chegamos a pegar água. Pra lavar roupa, nós lavava… Tinha um pé de árvore lá embaixo. Tinha uns poços de água, nós ia, pegava, lavava lá. Ou então no cano que tinha aqui atravessando, que ia pra Santos. Nós pegava de barco. Quando não tinha, nós fazia todo meio, onde tinha água nós ia buscar água pra lavar. Entendeu? Pegava água da chuva. Hoje em dia, você não pode deixar água da chuva parada, porque você pega dengue. Mas naquele tempo ninguém tinha dengue. Ninguém tinha dengue, é Deus que guardava. Nós pegava, cobria, enchia aquele... Eu, tinha vez que eu enchia um barco dele que estava quebrado. Eu punha um plástico, a chuva batia… Até eu cai uma vez, grávida do meu menino. Caí de barriga dentro d'água. Que eu fui fazer, pôr a bica pra cair água dentro do barco. Pra sobrar no outro dia pra lavar roupa. Nós era como se fossem os índios.
P/1 - Dona Santina, você e o Senhor Francisco pescando, vocês viviam só da pesca?
R - Era só da pesca. Teve um tempo que ele trabalhou. Teve um tempo que ele trabalhou fichado. Mas não foi muito tempo. Foi pouco tempo.
P/1 - E vocês conseguiam pegar bastante peixe aqui na época?
R - Sim, sim.
P/1 - Aí todos os peixes vendiam na pista?
R - Alguns. Alguns nós vendíamos, outros levávamos para o entreposto em São Paulo.
P/1 - Levava para onde?
R - O entreposto em São Paulo. Tinha um rapaz que comprava siri, peixe e levava para São Paulo.
P/1 - E tinha que fazer alguma preparação nele antes para levar?
R - Não, não.
P1 - Do jeito que pescava. Só lavava. Levava assim. Antigamente tinha muito pescado aqui. Hoje não tem. Hoje por causa dessas indústrias aí não tem mais peixe como antigamente. Antigamente, você podia contar história, porque tinha. Hoje em dia, se tu contar história, tu é mentirosa. É mentiroso, entendeu?
P/1 - Hoje em dia não dá mais pra viver da pesca?
R - Não, totalmente não. Totalmente não, porque não pega. A gente vive por viver. Eu vivo por viver. Se tu chegar lá, o peixe tá lá. Pode pegar hoje, tá aquele peixe. Amanhã, tu pode vir, que ele tá do mesmo jeito, porque não tá vendendo como antigamente. Entendeu?
P/1 - Mas a senhora falou que nem a senhora e nem o Senhor Francisco tá conseguindo pescar. E os filhos que estão indo pescar?
R - Não, os filhos, cada um mora na casa deles. Nós estamos vivendo do jeito que tá, porque eu sou aposentada pelo LOAS. E ele é aposentado na aposentadoria dele. Então, põe aquelas meia dúzias de cloro na prateleira, pra poder ir vivendo. E o peixe, lá de vez em quando, aparece um pra comprar. Não tá mais aquilo. Que eu trabalho isso aí voluntário, já me deu vontade de tirar até essa placa, tirar daí. Porque se você trabalha voluntário, não tá vendo, não te ajuda.
P/1 - Dona Santina, me explica como que funciona a placa que tá ali na frente, de Colônia, porque aqui é Colônia Z…
R - Não, aqui não é Colônia, aqui é Capatazia, é uma auxiliar da Colônia. Antigamente, quando era da Usiminas. Usiminas ainda ajudava alguma coisa. Mas depois não ajudou mais, ninguém ajuda mais. Porque a Marinha fala assim: eu puxei lá, tá que vocês estão recebendo. Mas como que eu estou recebendo, que não cai na mão da gente? Como que recebe se não cai na mão da gente? Porque nós trabalhamos dessa maneira, o que eu faço aqui, que eu recebo na minha mão aqui, é quando eu pego a festa do pescador, que é dia de junho. Aí, nós faz, aí ganha um churrasco pra fazer para os pescadores. Pra mim não. Não ganho nada, nem para pagar as cozinheiras que faz, nem para pagar ninguém que me ajuda. Ninguém ganha nada. Nós trabalhamos voluntariamente aqui. A Marly não, a Marly tem um CNPJ. E nós não. Nós aqui, pela colônia, não tem nada disso. Lá, de dois em dois meses, quando eu estou precisando, “me arruma aí uns R$150,00, aí” Aí ela: vou ver, Dona Santina, se pode arrumar. Aí, sim, me arruma. Ainda, vou ver. E eu com a placa aí. Já me deu vontade de tirar. Tem hora que desanima você fazer uma coisa assim. Desanima de você estar ali ajudando e tu não ter nada.
P/1 - Mas essa placa foi um projeto da Usiminas?
R - Começaram com a Usiminas. Entendeu? Começou com a Usiminas, isso aí. E o Seu Okida. Mas aí… Também não tem nada pra mim fazer. O computador não tem, já foi. Que eles deveriam pegar e dar um computador também e dar um estudo, ensinar você a completar o estudo do computador, para você fazer um curso, para você fazer. E trazer alguns papéis para você ir fazendo. Porque eu fico o dia todo assim… Olha, vocês vieram agora porque eu estou sem fazer nada. Mas se eu tivesse alguma coisa para fazer, não é não? Já era uma ajuda, assim, que eu ia fazendo alguma coisa e ajudava eles e me ajudava também. Mas eu não... Nós não ganhamos nada. Tem hora que meu marido fica até chateado. Mas fazer o quê?
P/1 - Dona Santina, na época que vocês pescavam, viviam só da pesca, como que era um dia de pesca? Que horas que tinha que ir pescar?
R - Não, tem vezes que nós chegava de madrugada. Agora, se era estaqueada, nós não saía de madrugada. Da estaqueada. Agora, ele tinha uma rede também, que era três redes, uma dentro da outra. Nós pescava aqui, o rio era limpo. Fazia aquele engodo de sardinha, tudo, nós jogava e pegava os peixes. Aí, no rio. Esse rio antigamente era muito bom, tinha sardinha, tinha até boto. Tinha até boto. Aqui tinha boto. Aqui era muito bom, aqui. Isso é, depois que teve uma limpeza, que antes disso tudo era poluído. Era poluído. Depois que a Usiminas chegou e começou a trabalhar, aí limpou um pouco. Começaram a limpar, fazendo aquela dragagem, aí limpou um pouco. Porque mais antes, ninguém comia o peixe daí também, não. Aí, depois que começou a vir, veio boto, veio sardinha. Aqui era praia. Aqui era a praia do Casqueiro. O pessoal vinha tomar banho tudo aqui. Porque era tudo branquinho, a praia era branquinha.
P/1 - Hoje em dia não dá nem para tomar banho, nem pescar?
R - Hoje não dá, que juntou muita gente, muitas pessoas morando. Que todo mundo precisa, né? Aí, vem morar tudo aí, estragou. Não tem mais essa praia como era antigamente. Era a praia do Casqueiro.
P/1 - Dona Santina, a senhora veio do interior de São Paulo pra cá.
R - Pra cá pra Vila não, pro Casqueiro.
P/1 - É, mas pra cá, pra Cubatão. E como foi a primeira vez que a senhora viu o mar?
R - Ah... Posso falar uma coisa? Primeira vez que eu vi o mar, fiquei com medo. E quando eu vi o caranguejo? Você nem imagina o que aconteceu. Quando minha mãe saiu, meu padrasto, conhecia o caranguejo, porque ele era daqui, conhecia. Aí, meu padrasto falou, assim: ó, cozinha esses caranguejos, que depois que eu vim pra cá, eu vou comer esses caranguejos. E toco. Eu pus o caranguejo no fogo. Eu tinha mais ou menos uns oito, nove anos. Eu pus o caranguejo no fogo. E o caranguejo que nunca cozinhava, nunca ficava mole. E aí, eu peguei, punha o garfo, e nada, o caranguejo não cozinhava. Nunca imaginava que eu ia viver disso, né? Aí, eu peguei o caranguejo, joguei lá na grama, que tinha uma grama no quintal, joguei tudo. Falei: Isso não presta, tô cozinhando várias horas aqui, não cozinha essa coisa. Joguei lá na grama. Quando ele chegou. “Cadê o caranguejo?” Falei: joguei lá, não presta, tô furando aí, nunca cozinha. Falou: menina, esse negócio não fica mole, não. Quando ele olhou lá, tava em cima da grama. A sorte que era na grama, né? Vermelho lá, todo vermelho. “Tá bom o caranguejo.” “Ah, pra mim não presta. Pra mim não presta, não fica mole.” Eu achava que tinha que ficar mole.
P/1 - E quando comeu, gostou?
R - Depois, aí sim. Aí depois eu vi. Falei: ah, é assim. A carne é branca, mas eles ficam vermelhos. Eu rio, que até hoje eu não esqueço disso aí. Você contando a história, você mesmo dá risada. Aí, eu falei: meu Deus do céu.
P/1 - E o mar, como que foi? A senhora também vinha tomar banho aqui na Praia do Casqueiro?
R - Sim. No Casqueiro ninguém tomava banho, mas aqui sim. Aqui era muito maravilha. Chega branquinha, a areia. Tinha um jambolão ali que o pessoal vinha fazer piquenique ali embaixo. Eu lembro por causa do jambolão.
P/1 - E a senhora lembra mais ou menos quando começou a mudar isso, começou a ficar poluído?
R - Quando começou a povoar, o pessoal. Chegando povo, cada vez chegando povo, nego já cortava de um lado e do outro. Ali o homem já começou a criar porco, começou a fazer uma criação grande, e coisa. E foi indo. Aí, estragou tudo. Aí, vinha muita gente precisando também pra morar, invadiu os mangues, invadiu tudo. Igual o Brasil, quando começou. Quando começou, invadiu tudo, invadiu tudo, até hoje. Está cada dia mais. Assim, dessa maneira.
P/1 - Eu estava conversando ontem com a Dona Marli e ela estava contando que vocês tinham um grupo de mulheres aqui antigamente. Eu queria que a senhora contasse um pouco desse grupo.
R - Na realidade eu era vice desse grupo. A mulher do cara, do presidente, era presidente, eu era vice-presidente. Foi nesse grupo que nós trouxemos a água e a luz. Trouxemos quase tudo. Abrimos o PAMOS, assistência social. Eu fui a primeira do PAMOS, só a primeira. A mulher do presidente era a segunda. Assistência social, que era lá... O PAMOS era ali onde é a creche. Quando você vem, não vê aquele que tem uma caixa d'água em cima? Onde fica um bocado de gente ali na frente, ali era o PAMOS. Aí, não tinha escola, não tinha parquinho, não tinha nada. Aí, depois nós fomos… Quando chegou a água, nós corremos atrás da água, que não tinha água aqui. Nós corremos atrás de conseguir a água. E eram vinte mulheres. Tem algumas mulheres que ainda estão vivas. Então, tem algumas mulheres que estão vivas. Nós brigávamos sempre, mas nós sempre estávamos fazendo trabalho. Vinte mulheres que conseguimos correr atrás da prefeitura para conseguir água. Nós conseguimos água, luz, telefone. Aqui antigamente tinha até correio. Tinha de tudo aqui antigamente. Mas depois que começou um tal de assalto, não tinha. Que o correio era uma caixinha que eles punham, a pessoa punha a carta, para o correio pegar. Teve até um banco lá na Santa Júlia. Aqui era uma maravilha. Não sei se você já foi pro lado de Cananéia, que vem aquele lugar bem bonitinho, tudo limpinho. Aqui era assim também. Tudo. E foi difícil. Quem conseguiu água aqui, não sei se meu marido falou. Nós íamos pra prefeitura… Foi o Carlos Federico. É, Carlos Federico, que ele conseguiu água aqui, pra nós. Só que conseguia só até a linha. Aí depois da linha, veio pra dentro. Porque nós começamos a brigar, que poderia acontecer um acidente.
P/1 - Até a linha, como assim? Você tinha que pegar água lá?
R - Lá na pista. É, aí nós pegava...
P/1 - Era tipo um cano e vocês tinham que...
R - Era uma mangueira, aí nós pegava pro lado de cá. Nós enchíamos o balde e pegava pra trazer pra dentro de casa. Isso depois de muito tempo de nós pegar pelas casas, ainda lavar as roupas assim. Depois de muito tempo. Depois de dezessete, dezoito anos. Aí, depois com tudo, depois com o tempo, aí nós pedimos, lutamos, fomos pra São Paulo. Juntamos aquelas mulheradas, nós começamos a falar que era perigoso alguém morrer na pista, na travessia do trem. Porque o trem também, o pessoal andava no trem também. Era meio do pessoal ir pra Santos, tudo. Que ali naquela pista ali era o ônibus também que passava pra ir pra Santos e tudo, era ali naquela pista ali. Aí, nós pegou, começou lutar, nós fomos pra São Paulo. Fomos na porta da prefeitura com um monte de panelas, pedi que queríamos água, queríamos água, queríamos água. E conseguimos água até pro lá de cá. Conseguimos pro lado de cá. Aí, veio o Federico e mais uma deputada, que eu não me lembro mais o nome da deputada.
P/1 - Aí, quando a água veio pra cá, já veio encanada, direitinho nas casas?
R - Não, não. Ainda demorou bastante. Aí, foi onde tem o parquinho lá. Onde tem o parquinho, puseram um chafariz ali, de umas quatro, cinco torneiras, ali. E o pessoal ia lá, buscava a água e punha pra casa. Ali no chafariz. Aí, depois do chafariz, nego começou a tomar banho. Aquela mulherada, tomando banho de biquíni, tudo ali. Virou bagunça. Aí, nós lutamos para que viesse água para as casas. Sempre mudança de vereador, prefeito. Nós começamos a lutar. As mulheres tudo. Aqui tivemos até ônibus, dentro da favela. Dentro da favela, nós tinha ônibus. Que foi no tempo do Doda, o vereador Doda. Nós andamos muito, muito. Aí, teve uns que nós fomos lá… Que a ferroviária depois não deixou ninguém abrir a ferroviária. Porque eles puseram aquelas telas e não deixavam ninguém abrir a ferroviária. Eles punham de manhã, de noite, e no outro dia o povo ia, de noite o pessoal ia, cortava as telas para o pessoal passar. Isso aqui é muita coisa.
P/1 - Como que é viver em comunidade aqui? Vocês se ajudam?
R - Vou dizer pra você, a comunidade pra mim, eu sou assim, eu já ajudei muito. Eu ajudei muito. O que eu posso ajudar mesmo agora com o povo é só fazer a festa pescador e festa das crianças no final do ano, e pronto. Que eu faço com as crianças. Só isso. Que eu arrecado presente pelas empresas, a VLI, a Petra. Muitas empresas ajudam, para isso que eu ajudava. Mas antigamente nós tínhamos assistência social. A primeira assistência social que nós tivemos aqui, foi cada morador, nós saía de carrinho, cada morador dava um pouco de coisa. Cada morador dava o que eles quisessem. Se tinha um quilo de arroz, eles dividiam no meio, e nós levava lá para assistência social. Lá pro PAMOS, que era PAMOS. Aí, depois nós conseguimos juntar, juntava aquilo, nós víamos as pessoas que eram mais necessitadas, e fazia uma cesta para doar para aquelas pessoas que eram mais necessitadas. Entendeu? Aí, nós fomos sempre conseguindo fazer as festas, a fazer as festas e mais festas que tinham. Tinha muita festa, trazia muita gente, muitos cantores. Entendeu? Aqui toda vez na festa dos pescadores. Aí, também teve uma vez que nós fizemos aqui com a Igreja Católica um jantar. Daqui até lá embaixo, um jantar comunitário. Mas os próprios moradores, uns ajudaram os outros. Mas tinha um pessoal da Igreja Católica, que chamava… O nome de mulher, meu Deus do céu… Que ela tinha uma igreja lá em Santos, e ela ajudava também a pastoral da criança. Que nós tivemos muitos cursos pela pastoral também. Muitas coisas pela pastoral. Entendeu? Aí, ela ajudava a fazer esse jantar comunitário. Mas os moradores levavam as comidas, e eles traziam as misturas. Ela fazia no Natal, isso aí. É sobre isso aí que nós ajudava.
P/1 - E hoje em dia como que é organizada a Festa dos Pescadores?
R - A Festa dos Pescadores, o churrasco é direcionado a mim. Pra mim que eu trabalho com as colônias, que é só as colônias que recebem ajuda das empresas. Só as colônias. Então, eu, como sou um braço aqui da colônia, também, quando tem as reuniões lá eles me chamam. “Dona Santina, dá pra vir pra cá, porque vai ter uma reunião.” Esse ano foi da VLI. Esse ano foi da VLI. “Que nós vamos nos reunir para ver a festa dos pescadores.” Falei: sim, dou um jeito, eu vou até lá. Entendeu? Eu faço isso aí, então. Esse ano foi uma benção a festa dos pescadores. Foi muito bom. Foi muito bom. Só que não trouxe cantor, nada. Mas teve pessoal que ia passear de barco. Foi muita gente de barco.
P1 - Teve passeio de barco?
R - Foi muita coisa. O São Pedro e São Paulo passearam de barco. Porque antigamente era só São Pedro. Nós já trouxemos banda municipal pra cá. Aqueles dois que faziam… Que canta, aqueles dois… O grupo Katinguelê, também trouxemos pra cá. Trouxemos muitos cantores. Até aquele carro… Como chama aquele carro?
P/1 - Trio elétrico?
R - Isso. Nós trouxemos pra cá, pra Vila. Ficou lá no começo da Vila. E o pessoal fazia as barraquinhas pra vender as coisas. Ali enchia, enchia. O povo já não gosta de bagunça. Hoje as festas aqui que tem, são os funks. É o povo que faz as festas aí. Mas as festas que a gente fazia, era muito assim, dessa maneira. Era muito boa.
P/1 - Dona Santina, a senhora e o seu Francisco tiveram quantos filhos?
R - Seis.
P/1 - Quais os nomes dos seus filhos?
R - A mais velha é Cláudia, Francisco, Marcos, Fernanda e Flávia. Quantos que deu aí? Pode ser que eu errei.
P/1 - Deu cinco.
R - Não, foi seis.
P/1 - Então, deu seis. Não deu?
R - Não. Deu seis?
P/1- Espera aí, vamos de novo.
R- Pra mim não errar. Cláudia, Francisco, Marcos, Fernanda, Renata. Isso, agora deu seis.
P/1 - E todos eles moram aqui, na Vila?
R - Não, um mora em Aracaju. Essa que tá aqui comigo, mora em Ourinhos. Que ela está aqui comigo esses dias aí, que ela tem problema também, meio mental, não sei se vocês já notaram, quando ela começa a falar assim. E a mais velha também deu problema. Porque a outra, a minha mais nova, deu câncer. Morreu de câncer. Então, essa que morreu de câncer, as outras ficaram tudo, que são tudo muito agarradas uma na outra, aí sofreram muitas coisas. Que nós era da igreja, começava a orar, orar, jejuar, pra poder ver se Deus curava. Falei: não, eu acho que é bom a gente fazer as coisas controladas, porque a mente de vocês vai ficar meio fraca e vai prejudicar vocês. Como aconteceu. Falei: Deus está trabalhando, deixa Deus trabalhar. Se Deus quiser curar, ele vai curar. Se Ele não quiser, ele também não… O outro foi pra Aracaju, tá lá, morando lá. Uma mora na Praia Grande. Deixa eu ver. Deixa eu ver se eu não erro. Essa em Ourinho. A outra também é Praia Grande. Duas na Praia Grande. A mais velha e a Cláudia e a Renata é na Praia Grande. E a Fernanda em Ourinho e o menino em Aracaju.
P/1 - Dona Santina, e como é que é ser uma mulher pescadora? A senhora sofria algum tipo de preconceito, os homens falavam: ah, o que ela está pescando?
R - Não, tu sabe que eu nunca liguei? O preconceito pra mim é uma pessoa que não vale nada, que não tem vergonha na cara, faz coisa que não presta. Pra mim esse é o preconceito, mas se você trabalha, não importa o seu trabalho, você é honesto. Se o seu trabalho é honesto, eu não ligava pro que falavam. Entendeu? Eu não ligava. Eu não era catadora de lixo. Entendeu? E também já participei do lixo. Quando eu tinha uns porcos, que tinha um lixão ali, eu ia buscar comida pros porcos ali. Meu marido, “mas tu vai…” “Vou buscar comida pros porcos ali.” Ele achava ruim comigo quando eu ia. Falei: vou sim. Tem esses porcos aí, vou dar comida com o quê? Que os peixes, nós estávamos trabalhando pra pescar. Falei: não, vou buscar sim. Eu vou buscar comida pros porcos sim. Eu ia lá, punha uma luva e ia. E trazia as coisas. Agora, o resto eu não tinha medo, não. Eu ia pra pista, saía daqui de quatro horas da manhã, o pessoal levava de perua, ia um bocado de mulher junto, ficava lá na Pedro Taxi, que era a antiga Pedro Taxi, que hoje é a Manoel de Nóbrega. E eu nunca tive vergonha de pescar, nem de vender, não. Ele que não deixava. Mas eu não tinha vergonha, não.
P/1 - Eu queria que a senhora contasse umas histórias de pescador pra gente.
R - Sobre?
P/1 - Ah, essas histórias que dizem, “ah, isso aí é história de pescador, não é verdade.”
R - Se for essas mentiras, eu não sei falar.
P/1 - Não, mas então conta pra mim um dia que aconteceu alguma coisa marcante. Que a senhora foi pescar e aconteceu alguma coisa marcante.
R - Pra mim só foi essa.
P/1 - Só a da saia? Não tem mais nenhuma?
R - Só.
P/1 - Não tem mais nenhuma boa assim?
R - Não, não. É só essa. Só essa. Agora o que foi na pista. Na pista eu fui vender caranguejo e eu deixei, que estava já de madrugada, já estava passando de onze horas da noite, tinha que vir embora, a Pedro Táxi estava cheia de carros. E a perua nada de me buscar. Quando veio buscar, não dava pra levar. Eu tive que arrumar um táxi, um carro, pra pegar, pra trazer pra cá. Aí, eu deixei o caranguejo lá no meio do mato, quando cheguei, os guaxinim tinham comido tudo. Agora, o resto de história de pescador eu não sei fazer não.
P/1 - E como que era essa perua? Essa perua era contratada?
R - Não, era a Kombi. Era a Kombi, era a do meu marido. Meu marido, foi a primeira Kombi que foi dele.
P/1 - Aí, pegava o pessoal aqui, tanto homem quanto mulher?
R - Que ele trocou… Nós chegamos a morar até em Cananéia também. Nós morávamos em Cananéia também, já moramos lá. Aí, quando voltou pra cá, ele trocou esses porcos pela perua. Perua não era essas coisas, antigamente. Era perua meio veinha, mas dava pra trabalhar. E nós ia vender. O pessoal levava, ele não sabia dirigir, não. Mas tinha um pescador que levava. Ele emprestava a perua pro pescador. Aí, o pescador levava as mulheradas, cobrava uma taxa. E levava para coisar e trazia.
P/1 - Ia só mulher na perua?
R - Mulher e homem. E todos se respeitavam, um ao outro. Todos se respeitavam.
P/1 - Ia quantas pessoas, mais ou menos?
R - Na perua era mais ou menos umas oito. Tinha umas três, ou quatro mulheres e o resto era homem também. Mas nós dividíamos, cada um ficava no seu ponto. Lá na Pedro Táxi, cada um tinha seu ponto. Mas não podia as mulheres também ficar tão longe também de homem, que… Não tinha também tanto assalto. Sei que nós vendia caranguejo.
P/1 - Eu queria saber se a senhora quer falar alguma coisa que eu não perguntei. Deixar registrado na sua história.
R - Sobre?
P/1 - Sobre a sua vida. Alguma coisa que a senhora queira contar. Ou deixar alguma mensagem para quem for ver essa história.
R - Ah, nossa vida de casal também não é tão cheia de altos. Tem altos e baixos, como todos os casais. Sempre foi altos e baixos. Entendeu? Uma hora quase que joguei tudo pra cima. Mas depois a gente pensa, põe o pé no chão, não é aquilo que a gente pensou. É outra situação. Na vida temos que olhar o que está crescendo perto da gente. Porque se você abandona aquilo que está crescendo perto de você, então você está sendo egoísta. Nós temos que pôr o pé no chão e saber realmente o que é certo. E para mim era esse que é certo. Aí, depois de 17 anos, com tudo isso, nós casamos na igreja católica.
P/1 - Ah, conta pra gente do casamento na igreja católica.
R - Foi bom. Não foi ruim não, porque pelo menos foi só lá, fez lá, e pronto. Cada um veio pra casa e acabou-se.
P/1 - Não teve festa?
R - Não.
P/1 - E aí, já tinham os filhos?
R - Já tinha, já tava.
P/1 - Foi todo mundo assistir o casamento?
R - Foram. Nós fizemos aqui, o primeiro casamento comunitário foi aqui.
P/1 - E tinha neto também, quando vocês casaram?
R - Não. Não, não tinha neto não. Acho que eu tinha uns vinte e poucos anos. Não, tinha mais. Que foi depois de 17 anos de casados. Tinha mais. Foi tudo bom. E nós sempre foi aqui. Antigamente era uma benção. Nós já tivemos casa de material elétrico. Aqui era um comércio total. Era cheio. Nós vendíamos para outras vendas, nossas coisas. Aqui nós já tivemos açougue, já tivemos sorveteria.
Estava com a pressão baixa, viu!
P/1 - Está melhor agora?
R - Tô. Eu tomei remédio de pressão, quando subi pra cá tomei.
P/1 - Não era aqui? Quando vocês viram morar aqui na Vila, não era aqui nesse espaço? A primeira casa não era aqui?
R - Não, o comércio era na outra rua lá.
P/1 - E aí, como vocês vieram pra cá?
R - Aqui era a casa da minha avó. Aí, depois, eu morava aqui. Eu morava aqui. Aí, nós pegamos... Nós tínhamos um sócio lá, na Beira da Maré, lá nós tínhamos um sócio. Aí, nós pegamos, desmanchamos a sociedade, pusemos pra cá. Meu marido falou: não, mas não vai dar. “Vai sim! Vamos fazer lá em casa.” Aí, fizemos uma casa de madeira, tudo. Não era aterrada ainda, não. Tava começando, que foi no tempo do Nei Serra. Aí, começamos aterrar, aterramos. Aterrava até com a terra lá de baixo. Eu ia buscando a terra. E ele tirava o sarro de mim.
P/1 - A senhora buscava a terra?
R - Do lado de lá da pista. Eu trazia no carrinho. Trazia e ia jogando. Lixo eu não jogava fora, eu abria o buraco e jogava o lixo. E ia aumentando, ia aumentando, ia aumentando. Mas eu joguei muita terra aqui dentro. Aí, depois veio o Nei Serra, ajudou a por um bocado de aterro. Aí, ficou aquela vala. Aí, meu marido achava impossível fazer isso. Eu falei: vamos fazer sim. Vamos fazer lá em casa. Nós diminuímos a casa e vamos fazer o comércio lá. Vamos parar com négocio de sociedade. Sociedade, não. Vamos ficar nós dois. Aí começou. Mas como?
P/1 - Mas esse comércio que ele tinha, a sociedade, era de peixe? Era de vender o peixe?
R - Não, era mercado mesmo. Tinha bebida, de tudo quanto é jeito. Tinha tudo. Tudo, ali era tudo também. Como aqui também foi tudo, depois. Aí, eu comecei a abrir… Sabe com o que eu comecei a abrir esse aqui? Que ele achava impossível. E todo mundo tirou o sarro da casa da gente. “Vocês vão deixar lá pra vir lá naquele lugar lá, que só tem mangue, só tem aquela vala lá?” “Não tem problema, vamos continuar. Nós não começamos na vila também sem nada? Vamos fazer tudo sozinho?” E falei: além do mais, você foi sócio dele, se tiver uma agulha, corta a agulha no meio, eu quero a minha metade. Porque eu trabalhei aqui feito doida. Não é pra dar pra ninguém, não. Metade. Uma agulha, dividir no meio. Mas eu quero toda a minha metade, eu quero.” Aí, ele trouxe pra cá, tudinho as coisas. Aí, eu fazia o quê para abrir? Bolo. Eu comecei a fazer bolo. E comecei a fazer bolo, bolo de várias cores. Eu punha bolo rosa, pegava suco de laranja, de laranja e morango, fazia aqueles bolos rosas. E o pessoal… Não é que Deus abriu a porta. Nego, vinha comprar o bolo. Comprou o bolo e nós começamos a chamar o freguês.
P1 - Vendia a fatia de bolo?
R - É. Uns compravam o bolo inteiro, outros compravam as fatias. Aí, começou a chamar freguês. Começou a chamar o freguês. Aí do freguês… Já tinha um pouco da mercadoria que tinha tirado, pusemos também. Aí, pronto, começou Deus abençoar. Abençou, abençou. Teve uma hora que quase fechou também. Aí, apareceu uma senhora…
P/1 - E nessa época do comércio, também fazia pesca?
R - Pescava também, pescava também. Ele pescava e eu ficava ali também. Mas tinha de tudo. Aqui era um comércio de tudo. O carro passava, o caminhão parava aqui na frente. Já teve Casa do Norte, punha aquele saco de farinha. Minha casa, nós dormíamos em cima das mercadorias. E hoje nós não temos mais nada, só pela fé. Aí, nós fizemos tudo aquilo ali. E esse aterro, dessa rua, não ia ser pra cá, ia ser só para a de lá. Mas como eu tinha conhecimento na prefeitura, eu cheguei e falei: vocês deviam pegar, fazer esse aterro lá na outra rua também. “Mas não, Dona Santina, como é que nós vamos fazer lá, se tem aqueles canos que o pessoal atravessa?” “Vai quebrando os canos e vai amontoando, vai coisando e vai arrumando.”
P/1 - Que canos eram esses?
R - Eram os canos da água. Porque as águas atravessavam daqui pra lá. “Vai quebrando e vai arrumando.” “E essas passarelas?” “Também vai quebrando e depois vai arrumando. Vai arrumando, vai arrumando. E vai dar tudo certo.” Ele falou: é, vamos pensar. Aí começou a jogar o aterro. Começou a jogar o aterro, começou a jogar o aterro. Começou daqui pra lá. E foi jogando daqui e já pondo os canos e aterrando. Pondo, pondo, pondo. Foi até lá. Chegou até lá já estava pronto. Falei: tá vendo, não foi difícil.
P/1 - Dona Santina, mas as pessoas iam chegando, tinha um controle? Ou quem chegava aqui falava: vou fazer um aterro aqui e vou construir minha casa aqui?
R - Aqui não, era terra sem dono, ninguém tinha documento. Ninguém tinha documento. Foi igual Cabral, ele descobriu o Brasil, ele tinha documento? Então? Nosso lugar também foi assim também. Entendeu? Sei que o negócio da água, nego trazia aqueles postes… Da luz, trazia postes nas costas pra fazer a ligação, pra fazer as coisas assim, de luz. A água também. Minha casa foi a última a fazer a ligação de água. Eu com um bocado de menino, meu marido com o rapaz lá, que já tinha uma casa de elétrica ali na frente, o rapaz que já faleceu, que chamava Tião. Aí, eu falei: quer dizer que vocês vão deixar eu mesmo sem água, com um monte de roupa pra lavar? E eu lutei pra caramba, vocês vão fazer isso? “Ah, mas a senhora vai ficar por último.” Falei: não, vocês vão fazer isso agora. Eu tinha uma autoridade danada. “Ou vocês vão fazer isso agora, ou o negócio vai pegar pra vocês. Faz isso agora, que eu preciso. Tá? Ou vocês fazem ou eu saio da sociedade agora.” Porque eu era uma força na associação. “Eu saio agora da associação de vocês. Vai ou não vai?” “Não, Dona Santina…” “Vai por.”
P/1 - A associação que a senhora está falando é a associação que a senhora estava me contando das mulheres?
R - Sim. Eu fazia parte, eu era a força ali. Eu quando dava ordem para a mulherada, tinha que obedecer. Eu falei: não, é assim. Ou vocês fazem, ou então vamos acabar com isso aqui agora.” “Não, Dona Santina…” “Você vai duvidar? Dúvida?” “Não.” “Então, ponha lá. Você não acabou. Põe aquela água, que eu estou com um bocado de criança lá e um monte de roupa para lavar. Ou vocês colocam, ou então, vamos acabar com isso aqui agora.” Num instantinho colocaram a água, colocaram tudo. Eu falei: é isso aí. Isso aí, se vocês querem que eu te ajude, também tem que ser assim. É ou não é? Tem que ser assim.
P/1 - Essa associação não tem mais?
R - Não. Associação agora é a Associação Comunitária do Bairro, lá.
P/1 - E a senhora faz parte ainda?
R - Não. Não, o que eu faço parte só é essa do pescador aqui. Não é associação, é Capatazia Z1 da Vila dos Pescadores. Entendeu? Até essa menina que estava trabalhando com vocês, como chama ela? Que ela saiu da área.
P/1 - Fernanda?
R - Não, a Fernanda tá agora, a outra...
P1 - A Beth?
R - A Beth, Ela falou: vou ajudar a senhora, Dona Santina, que eu estou vendo a senhora muito… Está desamparada aí, está precisando de uma força. Foi onde ela saiu. Foi onde ela saiu. “A senhora está precisando de uma força aí.” Eu falei: vocês que sabem. Mas eu gostei muito da Beth. Todas elas eu gostei. Até muitas que trabalhavam comigo estão com a Marly. Estão com a Marly, junto com o Sérgio Pompeia, junto com o Bolívia, entendeu? Estão tudo com ela, porque eu tinha deixado... Teve uns dias que eu fiquei chateada e tirei a placa. E eles ficaram com raiva, que eu tirei a placa. Aí, depois que veio o negócio da Ultracargo, aí começaram com aquela... Falei: não. Não, não pode ser. Quer dizer que vai virar bagunça aqui? Espera aí. Vou pôr a placa de novo. Pus a placa, onde vinheram dar valor aos pescadores. Falei: não é assim. Não é assim. Vamos dar valor a isso aí. Pode virar um angu que quisesse. Que virou aquele angu na Ultracargo. Não sei se você sabe, que apareceu tanto pescador. Mas o culpado foi lá, no chamado... Onde faz os grandes lá? Sei lá. Como chama? Que eu me esqueci. Que é lá na costa. Que eles falaram assim: olha, Dona Santina, o pescador tem família, e tem muito dinheiro pro pescador. O pescador não é só ele e a mulher não. Ele tem mulher, filha, filho, tudo. Tudo ajuda, todos eles têm direitos. “Mas como?” Tem direito. Aí, foi onde juntou. Ah, o pescador o que não sabe fazer é filho, Graças a Deus. Então, fez muito filho. Foi muito filho que foi. Aí juntou. Foi gente pra caramba. Parece que os papéis iam sozinhos. Eu que não levava nenhum. Quis perguntar pra mim qual o nome do fulano. Eu sei que foi muito papel. Até hoje eu não sei como é que foi aquilo. Entendeu? Até hoje eu não sei. Eu sei que eu falei: olha, não me meto nisso, hein? Eu tô falando pra vocês que vocês são pais, que vocês têm documento aqui comigo. Tudo bem. Vocês que têm um documento comigo, pode fazer. Chama sua família, como eles falaram, tem direito, sim.
P/1 - Quantos pescadores tem aqui com documento, tudo certinho?
R - Eu agora tô meio por fora um pouquinho, mas tem… Pescador com documento, deve ter uns 80, cento e pouco.
P/1 - Aqui na vila?
R - Com os filhos. Mas muitos não estão trabalhando na ativa, não. Muitos trabalham, trabalham, e continuam pagando o documento.
P/1 - Até porque a senhora falou que agora não dá pra viver só da pesca, né?
R - Não dá. Porque as empresas acabam mais com tudo.
P/1 - Dona Santina, e agora com as empresas, vocês já chegaram alguma vez ir lá jogar a rede pra pescar e pegar lixo?
R - Ah, muito. Muito. E não é tão lixo. Não é tão lixo. Também as empresas estão tampando o lugar dos pescadores pescar. As empresas, a maior parte das empresas estão tampando o lugar dos pescadores pescar. Entendeu? E não pergunta nem o que tem. Eles já vieram fazer reunião. Sim, já vieram fazer. A Tetra veio fazer reunião, a VLI. Antes da Tetra, a VLi veio, trouxemos tudo, o pessoal que toma conta lá, trouxemos lá no parquinho. Foi quase vaiado todos eles. E foi pela Marinha, até. E hoje são tudo assim. E fizeram maior... “que não pode fazer isso, que não pode…” Eles fizeram uma tal de uma cava ali no rio, fizeram uma cava. Que eu também não sei nem onde é essa cava. Mas fizeram uma cava, que não sei o que. Falei, cuidado, que quem cava pode cair na cava. E justamente foi o que aconteceu. Caiu tudo na cava, que são tudo comendo no mesmo pano. Então, essas coisas, tem muitas coisas que a pesca está acabando por causa das empresas que tampou. Porque quando eu comecei em 2003, não tinha tanta empresa. Quando foi em 2010, já não tinha mais quase lugar. E está fazendo cada dia mais, está fazendo cada dia mais. Então, os pescadores hoje em dia têm que ver realmente, as empresas têm que ver realmente o que vai fazer. Mas o pescador hoje em dia só quer dinheiro, não quer um acordo, porque eles têm filhos. Eu já falei: vocês não querem fazer uma indenização para o pescador. Aí, eles falam assim: indenização Dona Santina, não dá pra fazer, porque nossos filhos? E meus netos? Falei: tu sabe se eles vão querer ser pescador como vocês? Mas eles não entram num acordo. Eles não entram num acordo como tem que ser feito. Entendeu? Não entram num acordo. Eles pensam tudo que eu ganho dinheiro aqui. Eu, pra mim fazer isso aqui em cima… Eu vou te contar, essa parte e não te contei. Vou contar. Minha casa, quando eu tinha um comércio lá embaixo, trabalhar para as empresas, as empresas vinham vender coisas para mim. Não era empresa de pesca não, era empresa que vende mercadoria. Vinha trazer tudo para cá. Trazia carne seca, feijão, arroz, farinha, tudo em saco, tudo bastante. Pão, eu vendia pão, vendia sapato, vendia carne seca, vendia de tudo aí embaixo, aí embaixo. E era de madeira, aqui embaixo. Aí, eu cismei de comprar. E apareceu uma mulher lá, ela morava aqui, mas mudou para Campinas. E falou: Dona Santina, tem um lugar lá em Campinas que estão vendendo um terreno. Você quer ir comprar? Vamos lá ver esse terreno e comprar. Eu, sem dinheiro. Sem dinheiro. Falei: eu não tenho dinheiro, mas vamos. Vamos. Aí fomos e compramos. Ela até hoje está morando lá. Aí fomos comprar esse terreno. Comprei o terreno. Paguei em poucas prestações. Porque tinha o tal de Uber. Uber, Urfa. Um negócio assim. Que aumentava, todo dia aumentava os juros do dinheiro. Todo dia aumentava, quando você ia pagar, você não conseguia pagar. Aí, eu peguei e falei: meu Deus, e agora? Eu não vou poder pagar esse terreno. Aí, não paguei mais. Aí, fiquei, tudo bem.
P/1 - Perdeu o terreno?
R - Não, escuta só, tem coisa ainda. Depois de dois anos, eles mandaram um… Como é que chama? Não é carta não, vem pelo correio.
P/1- Telegrama?
R - Isso. Pelo correio. Pra mim. Mandando eu ligar para aquele número. Falei: mas eu perdi esse terreno. Por que esse pessoal tá pedindo pra me ver? Aí, eu liguei pra lá. Eles falaram assim: Dona Santina, dá pra senhora vir aqui? Eu falei: mas peraí, pra ver o quê? Esse terreno eu não já perdi? “Não. O terreno é da senhora. No tempo que a senhora deixou de pagar, nós também deixamos de receber aqui, que não tinha como receber.” Que aumentava todo dia, não tinha como receber, fazer a soma do Urf, sei lá, um negócio assim. Não tinha como. Aí, eu falei: tudo bem, eu vou até aí. Aí, chamei meu irmão. Nós fomos lá, eu, meu irmão, a mulher dele e o meu marido. Fomos lá. Quando chegamos lá, eles falaram assim: ó, tá aí, o terreno é seu. Se a senhora quiser pagar, ficar com ele, a senhora paga. Se a senhora não quiser, a senhora põe pra vender. A senhora faz o que a senhora quiser. Continua pagando, a senhora faz o que a senhora quiser. Falei: tá ótimo. Aí, eu vim pra cá, desci. Aí eu sentei com o meu irmão, tudo. Falei: vamos fazer um negócio? Tu quer entrar de sócio comigo nesse terreno? Ele falou: ih, Santina, não vai dar pra mim entrar de sócio, não. Falei: vamos entrar. Ele desistiu, mas no outro dia ele veio. Vamos entrar de sócio. Falei: olha, é Deus. Aí, começamos a pagar, ele dava metade e eu dava a outra metade, no terreno. Aí, pagamos o terreno. Depois que terminamos de pagar aquele terreno, aconteceu o quê? Ele queria ficar na frente, mas eu tinha o comércio. Eu tinha o comércio, eu queria também um lado na frente. E ele também queria na frente. Falei: para não dar confusão entre a gente, você quer na frente, eu também quero, para terminar o meu comércio, que eu quero mudar para cá. “Eu não quero.” Então, vamos vender. Aí, nós fomos onde vende terreno. Como que se chama?
P/1 - Imobiliária.
R - Imobiliária. E falamos: nós vamos vender o terreno, tem como? Já tinha pago tudo já. Falou: tem! Nós vamos fazer uma placa e pôr lá. Fizemos uma placa num dia, no outro dia o comprador chegou, um japonês. E comprou em dólar, em dólar. Deu mil e duzentos e poucos dólares para cada pessoa, para cada um. Deu mil e duzentos e pouco para o meu irmão, mil e duzentos e pouco pra mim. Aí, foi onde eu… Oxi, dei graças a Deus. Não teve briga, não teve nada. E eu fiquei na minha casa e ele ficou na dele. Que morava lá em Santos. Aí, eu peguei, arrumei minha casa. Construí minha casa embaixo, todinha a cozinha. Paguei o pessoal que eu tava devendo dos comércios, das que eu comprava as compras, paguei. Nós enchemos mais de mercadoria, enchemos mais de coisa. Enchemos tudo. Aí, foi indo, foi indo, foi indo. Ainda veio gente denunciar a gente que não podia fazer a casa, levantar mais de um metro. Aí, o fiscal veio e falou: não. Eu vim aqui porque denunciaram a senhora. E eu tô vendo que a senhora tem um bocado de filho e quer fazer sua casinha. Pois a senhora vai fazer a sua casa do metro que a senhora quiser. Ninguém vai empatar a senhora de fazer. E o cara com ele. Ninguém vai empatar a senhora de fazer sua casa, não. Pode fazer sua casa. Aí, eu fui, comprei os materiais tudo. Comprei, paguei. Fizemos a casa, embaixo. Embaixo. Fizemos a casa todinha, cobrimos a casa. Minha filha foi. Aí, enchemos de mercadoria também. Olha, a igreja ajudou pra nós fazer o piso, que o dinheiro todo não dava. Porque o dólar naquele tempo era muito mais do que o dinheiro, do que o cruzeiro. Era cruzeiro. Aí, nós fomos, fizemos a casa, só não fizemos o piso. Aí, a igreja evangélica deu um piso que sobrou, o material que sobrou da igreja lá. Nós pusemos no chão. A outra veio... Foi assim, devagarzinho. Deus mandou. Tudo Deus mandando. Mas sempre tem que ter uma pessoa firme para falar. Não pode ficar, “não, não posso.” Não posso, não vou. Não. Tem que falar: eu vou fazer, e Deus na frente. Sei que aí depois, com muito tempo… Agora eu vou falar dessa parte aqui. Dessa parte aqui. Aí, essa parte aqui o que aconteceu. E eu não podia nem fazer, essa parte, que eu não tinha como. Ninguém achava, que eu nunca ia fazer. Mas como eu estava cuidando de dois, três bisnetos meus, quer o pai deles está preso. Eu tenho que falar a verdade que é bom. Os pais deles estão presos, então eu estava cuidando dos três bisnetos. Conforme eu estava cuidando dos três bisnetos, aquilo me falou: vai lá dar entrada na aposentadoria. O meu faltava um mês só, não, nove meses para completar, da pesca, que eu pagava INSS pela pesca. Eu aposentei com 71 anos. Daí eu fui lá no Cras, falei com o cara do Cras, depois fui lá no outro também. Falou: não, a senhora pode se aposentar. Aí, eu arrumei uma advogada. Eu arrumei uma advogada do INPS pra poder dar entrada na aposentadoria. Aí, depois que eu dei entrada na aposentadoria, eu pedi empréstimo. Como eu tô emprestada até hoje por causa desse empréstimo. Que eu sou aposentada pelo Loas. Meu marido não. Meu marido é aposentado normal. Mas por causa desse empréstimo, eu recebo duzentos e pouco por mês. E ele está recebendo R$900,00. Então, por isso que tem coisas que a gente fica até desanimada. Desanima. E é assim a minha vida. Tenho um bocado de neto, um bocado de bisneto.
P/1 - Como é ser avó? Já tem até bisneto.
R - Tenho bisneto. Acho que tenho o mesmo tanto de neto e de bisneto, viu. Se eu tiver uns 14 netos, tenho uns 14 bisnetos. Tenho bisneto, é que o meu celular está lá embaixo, senão você ia ver. Tenho bisneto. Tem um que nasceu nem tem dois meses. E tem um que ela vai casar… A minha neta vai casar agora, mês que vem.
P/1 - Dona Santina, como foi contar um pouco da sua história pra gente hoje?
R - Pra mim foi ótimo. Só fiquei triste, foi isso, que a minha filha morreu de câncer. E uma ficou com problema mental e a outra também ficou, duas.
P/1 - Tem quanto tempo que a sua filha faleceu?
R - Ela morreu, ela tinha 30 anos. 33 anos. Deixou uma filha com 7 anos. Que já faz muito tempo. A filha já tem 21. Quantos anos tem?
P/1 - Não sou boa de contas.
R- Também não. 14. Então, a filha já tem 21, vai casar agora, esse mês que vem, a filha dela. Porque estava fazendo faculdade de odontologia, do dinheiro que ela recebeu.
P/1 - E você que ficou cuidando da filha dela?
R - Fiquei uns tempos, depois ficou com a mãe do pai dele. Cuidou lá. Agora eu tô…
P/1 - Ela só tinha essa filha?
R - Ela só tinha essa. Foi sete anos de luta. Fazia os cursos pelo SENAI, com os pescadores e cuidava dela. Uns dias que eu ia pra São Paulo. Levava pra cuidar dela. Eu não ia nos cursos. Cuidava dela e da menina. E a menininha do lado. Nós ia, que a prefeitura arrumava os carros pra levar a gente. Pra levar pra Beneficência Portuguesa. Pra levar ela pra cuidar. Foi muita coisa, muita coisa. Depois foi essa outra que tem problema mental. É muito problema.
P/1 - A senhora é uma mulher forte.
R - O pessoal ai… Eu vou dizer pra vocês, eu sou uma mulher forte mesmo. O mais forte é Deus na minha vida. Porque, sinceramente, se não fosse Deus na minha vida, acho que eu não faria isso tudo mais, não. Não faria isso tudo. Tem hora que eu falo: meu Deus, eu sei que tu... Hoje eu não tô indo pra igreja. Porque muitas coisas, a gente ficou desanimada. Muitas coisas desanimam. Mas não é Deus que é o culpado. Não é Deus que é culpado. A gente tem hora que briga até com Deus. Tem hora que eu brigo também. Eu falo: meu Deus, tantas coisas Senhor, tantas coisas que eu já fiz pro povo, tanta coisa. E minha família, como é que tá? Aí, eu construí isso aqui com o dinheiro do empréstimo. Construí isso aqui. E parece que Deus estava cuidando, que justamente, a minha filha chegou de Ourinhos e já vai ficar aqui. Entendeu? Ficar pelo menos num quartinho. O resto, quando eu precisar de um trabalho assim, tem. E é assim.
P/1 - Muito obrigada, Dona Santina.
R - Eu acho que eu cansei mais vocês, do que vocês se cansaram.
P/1 - Não. Eu tô preocupada com a senhora.
R - Por quê?
P/1 - Porque está com dor nas costas, ficar sentada aí.
R - Não, minhas costas... Não, hoje eu não tô.
P/1 - Não?
R - Não. Hoje eu tomei remédio. Essa noite eu tomei muito remédio. Minha filha fez massagem nas minhas costas. Mas hoje eu não estou com dor nas costas. Ontem eu estava. Ontem eu não estava aguentando nem falar. Porque o meu colchão…
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