Projeto: Programa Conte Sua História - Conte aberto
Entrevista de Fanny Feigenson
Entrevistada por Rosana Miziara e Sofia Tapajós
São Paulo, 12 de novembro de 2022
Código da entrevista: PCSH_HV1195
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:21) P1 - Fanny, obrigada por estar aqui conosco, vai enriquecer nosso acervo. Você fica à vontade pra parar a hora que você quiser, responder o que você quiser. Eu vou pedir pra você respirar fundo, fechar os olhos e ir buscando as imagens mais antigas que você tem, assim, pra gente ir ganhando foco.
R - E começando.
(00:47) P1 - É. E eu vou perguntando, daí você vai.
R - Tá bom.
(00:52) P1 - Tá bom?
R - Ok.
(00:53) P1 - Só dá essa respirada, pra ir conectando com o que a gente vai trazer. Fanny, você poderia falar seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Então, meu nome é Fanny Feigenson, eu nasci em 24 de junho de 1949. É uma data que eu gosto, 24 de junho, porque é dia de São João e eu acho muito bom.
(01:22) P1 - Fanny, e você nasceu na cidade de São Paulo?
R - Eu nasci em São Paulo, sou a filha caçula de cinco filhos.
(01:31) P1 - Como que é o nome dos seus pais?
R - Meu pai se chamava (Leipzig?) Feigenson; minha mãe, Jacobina Feigenson.
(01:42) P1 - Vamos falar um pouquinho das origens familiares da sua mãe: você conheceu os seus avós maternos?
R - Não, eu não conheci nem avós, nem primos, nem tios. Eles vieram, meus pais, com meus irmãos mais velhos, irmãs, vieram da Letônia, Riga, e toda a família foi morta durante a guerra. Tanto do lado de pai, como do lado de mãe. Então eu só tive meu pai, minha mãe e minhas irmãs.
(02:13) P1 - É mesmo.
R - É.
(02:15) P1 - E você sabe a história dos seus avós?
R - Olha, eu sei…
(02:20) P1 - Como eles eram…
R - Isso. Eles… o da minha mãe, minha mãe morava em Riga, é uma cidade lindíssima, os prédios de arquitetura Art Déco, então tem uma estética muito apurada. Minha mãe estudou em escola alemã,...
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Entrevista de Fanny Feigenson
Entrevistada por Rosana Miziara e Sofia Tapajós
São Paulo, 12 de novembro de 2022
Código da entrevista: PCSH_HV1195
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:21) P1 - Fanny, obrigada por estar aqui conosco, vai enriquecer nosso acervo. Você fica à vontade pra parar a hora que você quiser, responder o que você quiser. Eu vou pedir pra você respirar fundo, fechar os olhos e ir buscando as imagens mais antigas que você tem, assim, pra gente ir ganhando foco.
R - E começando.
(00:47) P1 - É. E eu vou perguntando, daí você vai.
R - Tá bom.
(00:52) P1 - Tá bom?
R - Ok.
(00:53) P1 - Só dá essa respirada, pra ir conectando com o que a gente vai trazer. Fanny, você poderia falar seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Então, meu nome é Fanny Feigenson, eu nasci em 24 de junho de 1949. É uma data que eu gosto, 24 de junho, porque é dia de São João e eu acho muito bom.
(01:22) P1 - Fanny, e você nasceu na cidade de São Paulo?
R - Eu nasci em São Paulo, sou a filha caçula de cinco filhos.
(01:31) P1 - Como que é o nome dos seus pais?
R - Meu pai se chamava (Leipzig?) Feigenson; minha mãe, Jacobina Feigenson.
(01:42) P1 - Vamos falar um pouquinho das origens familiares da sua mãe: você conheceu os seus avós maternos?
R - Não, eu não conheci nem avós, nem primos, nem tios. Eles vieram, meus pais, com meus irmãos mais velhos, irmãs, vieram da Letônia, Riga, e toda a família foi morta durante a guerra. Tanto do lado de pai, como do lado de mãe. Então eu só tive meu pai, minha mãe e minhas irmãs.
(02:13) P1 - É mesmo.
R - É.
(02:15) P1 - E você sabe a história dos seus avós?
R - Olha, eu sei…
(02:20) P1 - Como eles eram…
R - Isso. Eles… o da minha mãe, minha mãe morava em Riga, é uma cidade lindíssima, os prédios de arquitetura Art Déco, então tem uma estética muito apurada. Minha mãe estudou em escola alemã, que era uma estrutura mais ligada com a questão da cultura. Então, inclusive, pra ela foi muito difícil descobrir de repente [que] os alemães que ela amava, a cultura alemã, e que de repente se tornaram assassinos da família toda. Então, pra ela, ela viveu muito essa contradição. Meus avós maternos, o que eu sei é que meu avô materno tinha uma loja muito chique em Riga, que vendia coisas assim: bordados, luvas, chapéus. Coisas pra se arrumar. E eles se chamavam… a minha mãe, [o nome] de solteira, se chamava Bernard.
(03:35) P1 - E você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R - Então, meu pai, ele vem de um vilarejo chamado Dagda, quatro horas de Riga, era um Shtetl, e um Shtetl era uma aldeia pequenininha. Shtetl, em iídiche, é aldeia. E é assim, quando ele era adolescente, eu fiz uma pesquisa: 70% das pessoas que viviam nessa aldeia eram judeus. Então, era era algo assim: o judaísmo não tinha esse caráter pesado de ortodoxia, mas era uma coisa cultural, onde tinha as festas, tinha os rituais, ia na sinagoga. E meu pai perdeu o pai muito jovem, muito menino, ele tinha cinco anos quando o pai morreu. Qual era a profissão do meu avô paterno?! Ele ascendia a sinagoga todo dia às seis da manhã pros homens irem rezar na sinagoga. E aí uma vez ele pegou a pneumonia e então… e aí meu pai, desde muito pequenininho, teve que trabalhar.
(04:53) P1 - Ele fazia o quê?
R - Ele foi trabalhar com oito anos, mais ou menos; ele foi trabalhar numa farmácia, pra ajudar a sustentar. Ele sempre conta que ele tinha uma vaca e ele tinha que, dava sustento à família e ele tinha uma calça. E uma vez ele foi chorando pra irmã que ele não aguentava aquela calça de tão pesada e a irmã não comprou outra calça. Isso, ele sempre lembrava. Ele, depois, [na entrevista] a gente vai contar mais, ele se tornou um cara aqui no Brasil e São Paulo, ele fez uma empresa de, chamada Telespark, de rádio e televisão, que foi muito importante na época que ele fez, na década de cinquenta. Então foi um cara que tinha uma determinação absurda.
(05:51) P1 - Mas aí ele perdeu a família na guerra? Ele e a sua mãe. E ele se conheceram depois ou não?
R - Não, eles se conheceram lá, eles casaram em…
(06:01) P1 - Se conheceram nesse vilarejo?
R - Não, em Riga. Riga era a “cidade bacana”, onde tudo acontecia.
(06:08) P1 - Festa…
R - É. X. Não lembro, mas Riga era… e meu pai saiu, meu pai era um cara… ele começou a vida dele de ganhar dinheiro sendo importador e exportador de linho. Então, isso, eu acho, também, que fez ele se salvar, porque todo mundo morreu porque ninguém acreditava que ia acabar do jeito que acabou. Ninguém. Então, é assim, chegou uma hora… é engraçado, eles se conheceram, casaram, a minha irmã mais velha… em 1937 ela nasceu. A Jude, a segunda, ele foi pra Bélgica, ela nasceu em Bruxelas, a minha irmã, a segunda, mas ele voltou pra Riga. E aí quando a minha mãe tava grávida da terceira, ele foi pra Estocolmo primeiro, sozinho, e chamou minha mãe com as minhas irmãs e aí eles nunca mais voltaram. Mas ninguém acreditava, ninguém, porque os alemães eram amigos dos judeus. Eu eu tinha um tio que era um cara que era um advogado, eles todos se estabeleceram na cidade de Riga e que era uma cidade muito importante comercialmente, economicamente, então todos ficaram.
(07:47) P1 - E ele conta… suas irmãs, elas tinham quantos anos quando mudaram pra Estocolmo?
R - Ah, a Nene nasceu lá em 1940, a Jude tinha dois anos de idade e a Hanna tinha três anos de idade. Era uma loucura.
(08:05) P1 - E como é que foi? Eles, seus pais contavam?
R - Então, aí aconteceu a primeira tragédia, que eu inclusive conto no Memorial, no livro que eu fiz em função do pós-Doutorado em Psicologia Clínica, e eu conto a história da minha família, a história pessoal e a história da minha arte. Então, eu conto que eles chegaram, meu pai chegou a Estocolmo primeiro e chamou ela, a minha mãe, e as minhas irmãs. Quando eles tavam chegando em Estocolmo, ela grávida, minha mãe, os alemães pegaram o navio e levaram de volta pra Riga. Porque é assim: a Suécia tá aqui, a Letônia tá aqui e o Báltico… a distância é muito pequena. E aí aconteceu uma das tragédias da minha família, que ela foi violentada e ela foi violentada, abusada [enquanto] grávida. Ela chegou em Riga, pegou um papel do médico [dizendo] que ela tava grávida, que ela tinha que encontrar o marido e ela pegou o último navio, conseguiu escapar e encontrar o meu pai. Então foi o início… eu acho que assim, eles… eu não sei o quanto ele se amavam, eu acho que eles não se amavam profundamente, eles brigavam demais, eles tinham conflitos, eles eram muito diferentes, meu pai e minha mãe, e o que aconteceu [é] que meu pai ficou um cara cada vez mais overexcited, viajando o mundo todo pra fazer a fábrica de rádio e TV, e a minha mãe, que eu fiquei grudada, por ser a caçula, ela ficou muito passiva, muito melancólica. E essa foi a minha criação: de um lado um pai overexcited e de um lado, a mãe extremamente melancólica… mas me indicou o ‘caminho das pedras’ pra arte. Isso é muito interessante também. E a coisa foi tão feia que, quando eu tinha três anos, então, 1949… 1950, 1951. Em 1952, ela chegou… eles chegaram no Brasil em 1941, em plena guerra.
(10:39) P1 - Por que ele escolheu o Brasil mesmo?
R - Ele queria ir pros Estados Unidos, mas os Estados Unidos não deixou os judeus entrarem naquela época. E aí meu pai, tem a história famosa, meu pai encontrou o embaixador brasileiro e ele falou assim: “O Brasil precisa de homens que nem você”. E, provavelmente, ele conseguiu, em plena guerra, eles chegaram em Santos, no Brasil, em 1941.
(11:09) P1 - Você sabe qual é o embaixador?
R - Não.
(11:12) P1 - Mas eles se encontraram onde? Estocomo?
R - É, Estocolmo.
(11:16) P1 - E seu pai…
R - Aí eu digo…
(11:17) P1 - …tava na importação do linha.
R - Tava… não, aí parou por causa da guerra. Eles passaram dois anos em Estocolmo, eu sei que meu pai estava enlouquecido de não trabalhar, ele até foi atrás de fazer, falaram, pra deixar mais calmo: “Vai fazer hipnose”, ele fez. E que era época, eu acho que, de Freud e todo… ele fez, mas parece que ninguém conseguia hipnotizar ele. Você imagina a figura, quem era. A figura era foda. (risos) Desculpe.
(11:48) P1 - Mas vem cá, e ele… mas eles estudaram, seus pais?
R - Meu pai não, meu pai é Self-Made Man. A minha mãe terminou, eu acho, o colegial. Eu acho.
(12:04) P1 - E nesse período, eles viviam do que lá em Estocolmo?
R - Meu pai ganhou muito dinheiro como importador de linho - e exportador - e mandou dinheiro pros Estados Unidos. Tanto é, que é muito interessante, depois de muito tempo, que ele já tava morando em São Paulo, ele mandou uma carta pro governo brasileiro… eles deixavam entrar um X valor todo mês pra eles viverem, mas aí meu pai escreveu uma carta pro governo, falando se não podia aumentar o valor, porque ele queria fazer um business aqui. Então, é assim, o governo limitava, mas ele tinha dinheiro, porque eu acho que ele ganhou muito dinheiro, na época, na Europa. E aí ele, chegando aqui, eles foram morar numa casa grande, na esquina da [Rua] Maranhão com Sabará, então se percebe que eles tinham um padrão.
(13:05) P1 - Você nasceu nessa casa?
R - Não, eu fui gerada nessa casa e aí ele se mudou, nós nos mudamos, em 1950, prum prédio na avenida Higienópolis, 265, chamado Prudência, feito pelo Rino Levi. O cara sabia. O cara, meu pai, era um cara muito interessante, desse lado, porque teve um outro lado que ele era muito violento, ele era um pai patrão. Porque - eu escrevo no livro - o cara salvou a família, entendeu? Aí ele chegou com muita, uma bola muito grande, né? E ele era muito charmoso, muito sedutor, né? E eu acho que era uma geração onde eram muito mulherengos, né? E minha mãe era uma mulher muito bonita, mas she lost everything, she lost friends, family (TR: ela perdeu tudo, amigos e família) e tinha um cara, que [ela] falava: “Oh, God, quem é esse?”. Eu acho que tinha… eu faço terapia, análise, já faço acho há trinta anos, graças a Deus. Então, “quem é esse cara?”, só que não tinha coragem de se separar. Vai fazer o quê? A gente sabe de muita gente que não tinha coragem, nessa geração. Meu pai é de 1899 e minha mãe, de 1911. Meu pai faleceu em 1986 com 86 anos, e minha mãe, nos anos dois mil.
(14:51) P1 - E até quantos anos você morou nesse, em Higienópolis?
R - Até eu casar.
(14:56) P1 - Como é, que lembranças você tem de Higienópolis nessa época?
R - Ah, eu era… é assim, eu sempre fui muito, muito sensível. Eu sou pffff. Também tem no livro. Eu sou muito ‘antena’. Eu não sei se vocês assistiram, eu tenho um filme… como é que chama? É o nome do cara. É um artista judeu e aí tem uma cena nessa série que ele senta com o pai e, de repente, toda a família que já morreu, tá em volta, sentado junto. Essa era a minha sensação, eu sentia os mortos dentro do meu apartamento. E como as minhas irmãs eram mais velhas, tinha diferença de dez, onze e doze [anos], eu era muito sozinha. Então eu era a pobre menina rica. Eu tinha governanta, eu tinha mãe, eu tinha um apartamento grande, mas eu era muito sozinha. E minha mãe sacou, eu acho isso. Tem o lado de perceber e, ao mesmo tempo, essa coisa cultural, então, ela me deu aulas de piano, aula de dança, ela me levou a professores, e aula de arte. Foi aí que começou a minha salvação.
(16:17) P1 - Mas ela, pra ela, ela tinha assim…
R - Não, ela não fazia nada.
(16:21) P1 - Mas ela tinha essa percepção.
R - Ela tinha essa percepção. Então, ela dava aula pra todas as minhas irmãs, de piano, de flauta.
(16:32) P1 - Ela era mesmo uma professora?
R - Não, uma professora. Ela, não. Ela chegava [junto]. E eu, olha, Higienópolis, que também eu tenho no livro, tinha a Praça Buenos Aires, na [Avenida] Angélica, e adorava ir lá e brincar. Eu, com três anos, tive um acontecimento forte também, a gente chegou… meu pai é assim: ele adquiria muitas propriedades. Então, ele adquiriu, em 1950, um sítio chamado Sítio Sete Lagoas, no quilômetro 24 da BR-116. E aí a gente tava voltando do sítio e não viram que eu entrei dentro do elevador, e aí eu quis sair, eu tinha três anos de idade, e o elevador fechou na minha cabeça: foram dezessete pontos. Quase morri, provavelmente, mas me salvei, sobrevivi. Aí eu até escrevo no livro [que] foi a primeira vez que eu encarei a morte, fisicamente, e sobrevivi.
(17:46) P1 - Você, na hora que aconteceu isso, tem sempre lembrança disso? Você sente essa…
R - Ah, olha, a coisa é tão forte, que meu doutorado eu fiz dentro do elevador do Centro Universitário Maria Antônia, que é da USP. Eu fiz o doutorado na ECA e fiz dentro do elevador. Eu enchi, transformei o elevador num armário de roupas femininas, todas penduradas e todas tinham cores cor-de-rosa. Eu, o meu cabelo, a minha vida toda foi de laranjas, vermelhos, rosas, vinho, sempre trabalhando nessa escala de cores. E aí eu resolvi, porque a minha tese de doutorado falava sobre ritos de passagem e a análise de dez anos do meu trabalho com instalações. Hoje em dia, eu já tenho 45 anos trabalhando com arte. A arte e eu, nós somos uma coisa só. E o dar aula também.
(19:01) P1 - Voltando um pouco para aquele apartamento de Higienópolis, que lembranças você tem? Algum acontecimento. Tinha festa lá, seus pais recebiam…
R - Não, não, meus…
(19:10) P1 - Alguma data.
R - Não, meus pais… é assim, eles comemoravam as festas judaicas, ele reunia na casa a família e a gente, cada ritual, cada festa era comemorada com todo seu ritual. E por quê? Isso é interessante. Quando meu pai achou que tinha perdido a minha mãe, que tinha perdido a mãe e os filhos. E ele jurou, ele não era kosher… kosher é você comer, não pode misturar porco com leite, não come peixe sem escama, tem uma série de regras. Ele falou que se ele encontrasse a família dele outra vez, ele virava kosher. Então a gente respeitava todas as festas. Ele, no sítio, convidava pessoas da comunidade judaica, ele, logo que chegou, se juntou no asilo dos velhos, que tinha na Vila Mariana, e ele ficou amigo da família Kopenhagen, dos Chocolates Kopenhagen, da família Mingle, Kulikovsky. Ele tinha algumas pessoas que ele convidava no sítio pra comemorar as festas judaicas. Então é assim. Mas, em casa, na Higienópolis, era um ambiente muito tenso, muito tenso. Ele fazia de tudo pra estar em conflito com a minha mãe e brigando com ela. Ele bebia e eu sempre em alerta quando é que ele ia estourar. Era exciting nesse sentido. Então…
(21:14) P1 - Como ele era com você?
R - Ele era mais tranquilo comigo, porque eu era a última, eu acho. São três mulheres, aí vem um homem e vem eu. Então eu acho que, assim, eu num senti… eu sentia a tensão da casa… o prédio era lindo, tinha paisagismo do Burle Max, tinha ladrilhos e eu me liguei muito com a estética desde o começo. Mas ele sempre estava brigando com algum dos filhos, ele precisava criar um lugar de tensão. Era muito tenso.
(22:00) P1 - Mas eles contavam histórias, ou ele ou sua mãe, desse período, deles virem, de como…
R - Não. A turma toda que se salvou e que chegou aqui, não falava nada. Minha mãe só falava assim - eu não sei se é em iídiche, alemão: “(22:21) (língua estrangeira)”... não… “(22:22) (língua estrangeira)”. É assim, (22:25) (língua estrangeira): doença e morte é da porta pra fora. Aqui dentro, não tem. Não, eles não falavam. Falava um pouquinho, meu pai falava da vaca que ele tinha, de uma calça só, ele lembrava quando ele queria brigar com a minha mãe, ele falava de uma… o cara era louco, né? Ele era, realmente. Ele falava de uma sopa de presunto que minha mãe serviu pra ele quando ele voltou do cemitério, [depois] de enterrar a mãe dele, que era religiosa. E essa sopa sempre era lembrada. Puta que o pariu!
(23:13) P1 - E comidas? Você tinha comida…
R - Ah, maravilhosas. Maravilhoso.
(23:18) P1 - Quem que cozinhava?
R - A minha mãe mandava. Minha mãe era fina. A minha mãe era… eu amava ficar na cozinha. Eu brincava de fazer desenhos com açúcar queimado. Ela odiava. Cozinha, não. Então ela tinha essa coisa, que é o quê? É a criação. Entendeu? E eu nunca entendia. Mas ela sabia mandar bem. Então ela ia no Bom Retiro, comprava a carne kosher, comprava, matava frangos, fazia assim e ela sabia explicar e aí pegava uma boa cozinheira e ela fazia.
(24:03) P1 - Que comidas você lembra?
R - Ah, Gefilte fish, é… tipo varenikes, tipo… as festas, tinham todos aqueles rituais. E os rituais, é muito engraçado, eu lembro muito dos rituais. Então é assim, um ritual, que eu fiz o mestrado com esse ritual, eu não sei se vocês conhecem, é o ritual de sacrifício: é o Kaparot. Então você pega galinhas brancas e galos. As mulheres e meninas, eu criança, você pega uma galinha e reza com a galinha na tua cabeça. [Isso é] total dos judeus atravessando a África com os rituais de sacrifício. E aí você matava… depois de rezar, depois do ano novo ou durante o ano novo, Yom Kippur, que é o dia do perdão. E aí você mata a galinha e os galos e você zera teus pecados do ano que passou e você começa do zero. O que que eu fiz? Eu fiz no meu mestrado uma instalação onde eu pus na gaiola uma galinha e um galo juntos e então eles representam a vida, eles podem gerar vidas e aí era uma três andares de prateleira que eu coloquei dentro da biblioteca principal da Universidade Mackenzie, que eu já dava aula. Por quê? Porque memórias de um… judaicas, pessoais. E a memória dos livros que estavam lá, que o Mackenzie é… o Mackenzie agora tem 157 anos. Então, é assim: tinha a galinha e o galo e tinha um vídeo que eu produzi de mãos quebrando ovos, representando a morte. Então foi o primeiro trabalho, um dos primeiros trabalhos que eu trabalhei com a questão de um ritual judaico transformando-se em um trabalho de arte contemporânea.
(26:22) P1 - Voltando lá pra esse ritual, qual é a sua primeira memória, de experiência… tenta lembrar e descrever como foi esse ritual, o primeiro, que você viu a galinha.
R - Puta, uma loucura! Porque… então, a sensação era muito louca, porque imagina as galinhas correndo no quarto. Cobria-se com jornal, tinha tapete, o barulho dos pés da galinha e do galo em cima do jornal. A gente pegava a galinha e ela escapava, e a gente, com a galinha, falava: “Puta, e se ela fizer cocô agora em cima da minha cabeça?”. Então… it was fun, it was a lot of fun. Muito legal. E era divertido! Meu pai tinha um lado divertido e como ele tinha dinheiro até um certo momento, ele tinha muito poder: ele fazia e acontecia, entende? E a gente se divertia. E depois ia na mesa e comia, ia ralar e o pão. Mas, no geral, é muito interessante: minha mãe não teve uma amiga próxima a vida toda. Ela não conseguiu. O trauma foi tão grande e meu pai, ele teve amigos mais relacionados com o negócio e com a questão judaica do asilo dos velhos que ele participava. E quando - vamos voltar depois, quando você quiser… mas quando ele… porque ele ‘subiu’, se tornou um cara poderoso na indústria de rádio e TV; ele caiu e teve que fechar a empresa: não sobrou um amigo. Um amigo! Então ele não… ele tinha dificuldade, e minha mãe também. Então, agora, voltando: você falou de rituais. Tinha um ritual lindo, que eu também, no Instituto Goethe, fiz uma exposição e lá tinha umas vitrines colocadas na frente da biblioteca. A vitrine foi feita por um escultor. Essa vitrine tinha a forma de um caixão. Falei: “Huuum”. Peguei essas vitrines, coloquei no espaço que tem um jardim, no Instituto Goethe, e enchi de um… numa vitrine, enchi de ovos, porque o ovo é um símbolo forte no judaísmo: você come o ovo e pensa na Páscoa; e quando você volta do cemitério, de enterrar algum ente, você come também o ovo, porque o ovo tem, é redondo. Então, o que é de baixo, vira pra cima, de cima, vai pra baixo. A vida tem ups and downs, eu acho que é isso. Aí eu peguei o ovo e fiz a instalação. Eu fiz outras obras com ovo. E na outra vitrine, eu coloquei colheres, que é um ritual judaico antes da Páscoa… o que que ele fazia? Ele punha um pouco de farelo de pão.
(29:51) P1 - Seu pai fazia?
R - Meu pai. Meu pai, rezando, ele rezava pra cacete.
(29:56) P1 - Ele que trazia esses rituais?
R - Sim. Sim, ele que trazia.
(29:59) P1 - Chamava vocês, as irmãs.
R - Sim. “Vamos lá! Vamos rezar!” e abre o livro. E eu não entendia nada e ficava ouvindo, ouvindo, ouvindo. E aí ele pega, ele pegava uma pena de peru, de um espanador provavelmente, pegava uma colher de madeira e colocava o farelo do pão nessa colher de madeira. Enrolava tudo e no dia seguinte queimava. Por quê? Simbolicamente, pra dizer que a casa estava limpa, pra durante uma semana na Páscoa judaica, que você não come nada que cresce: nem pão, nem batata. E aí, pra se… aí muda os pratos. É muito louco! Então tinha um conjunto de pratos que eram usados durante uma semana, durante a Páscoa. Mas a lembrança que eu tenho, que é muito rica, que eu fiz o trabalho, é essa colher queimada e que ele enrolava. Ele que fazia todas as regras. Ele… por exemplo, tinha uma reza que eu gostava de ouvir. Ele… tem um Tefilin, uma caixinha que tem uma reza dentro e que põe no braço todo dia uma caixinha de couro, e tem uma fita que vai… não, põe aqui na cabeça e põe no coração, e passa pelo braço. Por quê? Pra juntar o raciocínio com o afeto. Isso é o sentido do Tefilin. E todo dia ele rezava. E a reza era uma coisa interessante, porque os judeus quando rezam muitas vezes tem uma coisa de se balançar. É como entrar em transe. Um mantra. E eu achava aquilo o máximo.
(32:22) P2 - Seu pai explicava o significado?
R - Sim! Pensa, pensa o que que é a Páscoa judaica? É pra lembrar o povo judeu, que deixou de ser escravo, ficou quarenta anos no deserto e chegaram como homens livres na Palestina. Então, sim, porque se fala muito, cada… ah, disso ele falava e era ótimo. Ele era um excelente, exímio contador de história. Eu acho que peguei isso um pouco dele.
(32:57) P1 - E como é que suas irmãs sentiam isso? Todos absorviam isso? Tinha… como era, inclusive, sua convivência com suas irmãs?
R - Então, como as minhas irmãs… quando eu tinha… a minha irmã casou com vinte anos, eu tinha oito anos, então… ela falou que sempre lembra que ela me ensinou a escrever e ler, não lembro. Eu lembro de outras coisas das minhas irmãs. Agora, elas foram logo embora, com quinze, dezesseis anos elas foram estudar [fora], porque elas não aguentavam o que acontecia dentro de casa. Eu acho que é isso. Então elas logo foram estudar. E olha que louco! Quando eu fiz o livro… o que que aconteceu [é que] eu comecei a conversar com a minha irmã mais velha, que mora em Jerusalém agora, ela tem, agora, 85 anos, aí ela falou assim: “Ah, não, você não sabia? A mamãe tentou se matar”. Falei… eu, velha, puta velha já, sabendo uma história… falei: “É”, “É, quem salvou ela foi as empregadas”. Eu falei: “Uau!”. Eu tinha três anos de idade. Aí eu fui conversar com a Jude, com a minha…, é a segunda - A Hanna é a primeira. - “Ô, Jude, você sabia que a mamãe…?”, “Não, eu não sabia”. Então olha o grau de desconexão da família, da falta de comunicação entre os componentes. Então, e eu, por isso que eu não falava quando criança, né? Ainda mais, menina bem educada não fica falando muito, fazendo… né? E aí quando eu comecei… e ainda estudei no Dante Alighieri, né, uma escola super-repressora, né? Quando eu entrei no cursinho, eu não… até eu não parava de falar palavrão. Falei: “Gente, eu tô me libertando”. E aí, minha mãe falou assim: “Você tá muito diferente desde que você entrou no cursinho”. (risos) Dezoito anos eu tinha. E então é assim… eu acho muito louco essas histórias. Então, ninguém falava assim: “Puta, olha o que aconteceu com a mamãe”. E essa desconexão, infelizmente, eu acho que ela é resultado - e isso é muito importante pra ela - da guerra, ela é resultado do que aconteceu da tragédia: a minha família ficou destruída, desconectada. E como meu pai brigava com cada um dos filhos… ele escolhia, tipo assim: “Hoje eu vou ficar brigado com Fulano, brigar com o Ciclano”. Aí ele brigava comigo… não, brigava não! Ele parava de falar comigo! Aí eu chegava pra minha mãe e falava: “Por que ele tá bravo comigo?”. Minha mãe: “Num sei”. Aí, depois de alguns dias, meu pai chegava pra ela e falava assim: “Por que ela parou de falar comigo?”. Então, era isso. Esse era o clima. Mas posso dizer? Eu só posso agradecer, porque eu me tornei cada vez mais forte. Eu acho que eu me salvei na arte e no, me tornei educadora, professora. Então, passaram por mim já quarenta mil alunos.
(37:03) P1 - Pegando o assunto educação, vamos voltar: com quantos anos você entrou na escola?
R - Eu entrei com… então, isso, it’s a good story. Eu entrei, eu acho que primeiro fui na… eu fui numa escolinha na Avenida Paulista, tipo, um maternal e um um jardim de infância e depois entrei no primário no Mackenzie. No jardim de infância, já gozaram da minha cara. Foi um bullying bonito, porque eu me vestia que nem uma menina europeia. Então, minha mãe me colocava combinação embaixo do vestido. (risos) Magriiiinha. Falando de magrinha, eu acho bem interessante lembrar - você vê como são as coisas -, eu nasci pequeninha, de cesariana… a minha mãe sempre falava que ela não tinha mais força, tá? E aí logo pôs enfermeira, pôs governante, quando eu… sei lá qual. Aí ela contava outra história interessante, que quando ela começou a dar de mamar pra mim, eu virava a boca. E eu sempre falei assim: “Como será que ela me deu? Pra eu virar a boca”. Ou eu era tão frágil que eu não sabia como mamar. Quando eu tinha alguns anos de idade, eu era muito magra e eu vomitava toda a comida que eu comia. Então, imagina o que eu tinha dentro da minha casa Mas ok, eu acho que no livro eu escrevo também que é a maior felicidade foi quando eu entrei na escola. Eu saía daquele lugar de inferno. Posso dizer? A gente ia pro sítio, eu amava brincar no sítio, mas era complicado. E quando a minha mãe me… piano nunca amei, era uma coisa de gente fina, né? Mas como eu era uma menina sempre muito boazinha e educada, eu me formei professora de piano com dezoito anos. Eu toquei doze anos. Aí eu tava fazendo cursinho e fui ter a possibilidade de aprender, de continuar o meu estudo com o Gilberto Tinetti, que era um professor de piano superbom, ele falou assim: “Eu te pego como aluna, mas você tem que tocar quatro horas por dia o piano”. Falei: “Quatro horas?” e eu querendo entrar na faculdade. Larguei e nunca mais voltei. Agora, eu entrei no Mackenzie… tem uma história bonita do Mackenzie: quando meus pais chegaram, em 1941, e foram morar perto, morar em Higienópolis e perto do Mackenzie, minha mãe pegou as crianças que tinham, sei lá, quatro anos, três anos e na mesma hora o Mackenzie pegou as criança, minhas irmãs pra ficar no Kindergarten (jardim de infância) lá no Mackenzie. Então… eu sempre conto essa história, eu acho que eu… o Mackenzie é uma segunda casa pra mim, vou fazer quase cinquenta anos de, dando aula. Aí eu fiz o primário no Mackenzie. Eu era…
(40:45) P1 - O Dante, quando que você foi pro Dante?
R - Eu fui com doze anos.
(40:50) P1 - Mas antes você tava no Mackenzie?
R - No Mackenzie. E eu amava, porque eu era… o que aconteceu? Eu era palhaça. Eu gostava, então, eu fazia peça de teatro, eu tocava piano e tinha, tem um auditório enorme no Mackenzie. Fazia tudo lá e me divertia pra cacete.
(41:09) P1 - Você tinha amigas? Quem eram suas amigas?
R - Aí eu sempre… porque eu sou extrovertida, então isso também eu acho que me salvou, né? Eu sou muito sensível, mas sou extrovertida. Eu faço amizade rapidinho. Então eu tive amigas no primário, tive amigas no Dante e sempre consegui, através que eu tenho esse jeito expansivo, de fazer amizades.
(41:42) P1 - E por que você trocou? Você era do Mackenzie e foi pro…
R - Porque minha mãe… era tudo minha mãe, né? Ela me levava pras aulas: “Tá, o professor é legal, agora você vai começar”, ou tal professora. E ela achou que eu tava meio não sabendo como enfrentar um ginásio, e aí, no terceiro ginasial, ela me colocou no Dante, que era uma escola que dava francês, italiano, inglês, entende? Mas pffff, terrível, né? Muito repressor. Mas terminei. Aí eu fiz amizade, fiz um grupo de amigas. É, deve ser. E aí eu fiz dois anos de cursinho…
(42:27) P1 - E qual matéria você gostava mais?
R - Ah, então, eu acho que sempre gostei das línguas. Por quê? Porque a minha mãe metia sempre uma governante estrangeira pra falar outra língua comigo. Então tinha uma inglesa, depois tinha uma francesa. Então, eu, desde criança, [ficava] ouvindo outras línguas. E então acho que é isso. Aí eu queria ser professora de línguas, né? Mas eu via aqueles professores, eu falei: “Eu não vou ser mais professora”. Aí eu fiz dois anos de cursinho pra entrar em arquitetura, entrei na arquitetura, 1970, 1971, eu fiz arquitetura. Era época que o Mackenzie fazia os arquitetos, estudantes estudarem junto com os engenheiros físicos e matemáticos. Eu só tirava zero. Zero eram as minhas notas. (risos) Falei: “Não, deve tá alguma coisa errada”. Aí eu só ficava jogando carta no diretório, falei: “Não, eu acho que não vai dar”. No segundo ano de arquitetura, eu fui trabalhar numa galeria de arte chamada Chelsea, na Augusta, e aí… 1970, 1971. Em 1972, eu fui fazer licenciatura em artes plásticas, aí eu só tirava dez. Eu falei: “Eu estou no lugar certo”.
(43:57) P2 - E por que você decidiu entrar em licenciatura em artes plásticas?
R - Porque eu, assim… então, eu, quando criança, tinha aulas de pintura; depois, quando eu tinha uns dez anos, minha mãe me colocou noutro lugar; quando eu tinha quinze anos, eu fui estudar com uma puta artista, muito boa, educadora, que é a Yolanda Mohalyi. Uma artista muito boa. Depois, quando eu tinha dezesseis anos, eu comecei a ter aula com o [Samson] Flexor, que é um artista também que foi muito importante. Os dois, imigrantes refugiados de guerra e dois judeus também. Tanto a Yolanda, como o Flexor. Então, é assim, a arte, ela foi me acompanhando e eu fui gostando, porque a arte cura. A arte é o lugar onde quando você desenha, quando você pinta, você tá… and you forget everything (e você esquece de tudo), todas as tristezas, angústias e você se foca no fazer. E aí, até agora eu tô fazendo a exposição no Centro Histórico e depois de muitos anos, eu voltei a trabalhar com desenho e pintura, porque durante, desde a década de noventa, eu comecei a trabalhar com instalações e agora eu voltei a apresentar meu trabalho como desenho e pintura. E aí as pessoas falam: “Mas Fanny, que incrível, né? Você trabalha com pastel, com nanquim e com… e tudo, tudo tem uma potência”. Eu falei: “Tava tudo dentro de mim”.
(45:47) P1 - Fanny, você tem trabalhos dessa época, dessas aulas?
R - Sim.
(45:50) P1 - Da adolescência?
R - Sim. Sim, tenho. Tenho sim. Let’s see. Está aqui, justamente.
(46:09) P1 - Seu pai te incentivava? Ou era só sua mãe?
R - Olha, meu pai tinha… é engraçado, minha mãe tinha um gosto muito burguês, conservador, os móveis eram clássicos; o meu pai tinha uma pegada moderna. Então, ele chamou, por exemplo, Henrique Mindlin, que era um arquiteto carioca, pra fazer a fábrica dele; os rádios eram feitos com madeira linda que ele criava um projeto que era famoso, os rádios. Pela qualidade do rádio, mas também pelo design. Então… mas quem cuidava de mim, eu ficava debaixo das asas da minha mãe. Porque o cara viajava pra cacete, né, então… olha, tá aqui: página 46. Ó, aqui tem dois trabalhos que eu fiz com seis anos de idade. O que me espanta nesse trabalho e eu tô trabalhando há tantos anos com educação, é a qualidade da composição, das cores. Eu tinha seis anos de idade, olha, sabe? Ao mesmo tempo, olha a nuvem que tem aqui em cima. Então… mas olha que bonito. E aí o sol sempre rindo, sorrindo. E eu quero mostrar um trabalho, que é muito interessante e muito simbólico dessa época, que é… Aqui também, [na página] 44, que é legal aqui, pra ver. Aqui outro: ó, a festa de São João, do meu aniversário, e aqui um lago com as pessoas brincando em volta do lago. Mas tem um trabalho que eu fiz nesse memorial, vamos ver se… onde é que tá, que é interessante, que [é] de um barco. Mas eu fiz um trabalho que juntou… aqui: página 29. Olha o que eu fiz. Essa pintura é muito interessante e muito forte. Então é assim: tem um cara aqui, de chapéu, meu pai usava esse chapéu. Então, o cara fazendo “tchau!”, vai viajar e aqui o menino e a menina. Eu tenho um irmão, que é quarenta… ele é de 1944, cinco anos mais velho do que eu. E aí tá aqui. “Tchau!”, né? Mas o que [é] que eu fiz? Quando eu tava fazendo meu pós-doc, coloquei eu, com meses, dentro do barco, como se fosse o útero viajando com meu pai. Isso eu fiz faz, sei lá, quatro anos, três anos. E eu acho muito significativo. Porque, na verdade, eu acho que esse lado de potência, de arte, foi dado pelo meu pai. Eu tenho uma história que eu quero lançar ainda, que é a história de uma formiga e de uma loba, e eu criei essa história. Tipo assim, eu acho que eu tenho dentro de mim a formiga e a loba. A formiga é a bem educada que vai buscar a folhinha, chega na casa [e] segue a linha: então, o meu casamento, eu tive filhos bonitinha, tudo bonitinho. E o lado loba é a potência de criação, é a arte. Então… e eu tô escrevendo um livro que eu quero também fazer.
(50:26) P1 - Voltando… (risos) eu tô sempre voltando.
R - That’s ok!
(00:50:31) P1 - Como é que seu pai foi pra esse caminho do rádio e da tevê?
R - Meu pai…
(50:38) P1 - Chegou aqui, ele começou…
R - Então, ele começou… ele tentava… ele comprou uma propriedade no Paraná, se não me engano, pra fazer o linho. Viu que não ia rolar. E aí ele começou a… muitos judeus da geração e que fugiram de perseguição, começaram a fazer negócio com carros importados e eu acho que aí que ele teve a ideia. Porque ele era um comerciante, ele vendia a mãe se precisasse, né? Ele teve a ideia de chamar dois engenheiros pra construir um um rádio pra colocar no carro. E aí ele começou na garagem da Rua Maranhão, foi lá o primeiro lugar que ele começou a construir os rádios. Depois, ele alugou na Vila Jaguar… não, na Vila Anastácia, ele alugou uns galpões e depois ele construiu a fábrica dele em Jaguaré. Então era assim…
(51:54) P1 - Qual o nome da fábrica?
R - Telespark.
(51:57) P1 - Ela foi a maior, na época?
R - Ela era muito grande, junto com Invictus, que também pertencia a uma família judaica, junto com ABC. Só que foi feito um livro, uma época, não sei qual, chamado Ditadura dos Cartéis, quando… meu pai teve, uma época, 1200 funcionários. Era muito grande. Só que o que aconteceu? Eles abriram as portas pras empresas de fora e aí ele não se cuidou dessa parte, aí teve os sindicatos, tudo, e aí ele foi tendo problemas muito sérios. Ele criou a fábrica, ele criou a Telespark em 1950 e fechou em 1975. Então, era um, ele era um workaholic. Ele adorava falar dos planos, dos projetos. Ele era um lobo, né? E ele gostava muito de contar histórias, mas ele não contava as histórias das dificuldades, ele gostava de contar as histórias das conquistas dele.
(52:21) P1 - E quando você morou, você morou com ele até que ano?
R - Quando eu casei. Eu casei com 25 anos, então, em 1975 eu casei.
(53:33) P1 - Você foi percebendo esse declínio na sua casa?
R - Ah, sim.
(53:37) P1 - Como é que foi essa…
R - O declínio foi que…
(53:41) P1 - ______.
R - (sinal de dinheiro) É, que não tinha dinheiro. Mesmo que dentro de casa a gente tinha, ele… mas eu acho que a gente percebia que ele tava lutando com muitas dificuldades pra num ceder de fechar a fábrica e o business dele. Foi uma coisa que eu acompanhei profundamente. Agora, foi muito interessante também. Teve uma hora que ele não tinha dinheiro. Aí eu casei. O ano que ele perdeu o apartamento da Avenida Higienópolis, porque na época… não é… agora você não, você pode reivindicar que você mora no, mesmo que está quase perdendo em leilão, você fala: “Olha, eu tô morando”. Na época, ele perdeu o apartamento pro sindicato, teve que sair. Então, minha mãe sofreu duas grandes derrotas em 1975; e eu casando. A derrota que ela teve que sair do apartamento dela, que ela viveu desde que ela chegou, e eu casei, que eu era o ‘rabo’ dela.
(54:57) P1 - E pra que lugar que eles foram?
R - Eles foram morar no sítio, no Sítio Sete Lagoas, que era meia hora de São Paulo. Então… mas o mais bonito, e eu admiro muito: eu tenho amor e ódio pelo meu pai, mas porque eu acho que ele foi muito sacana, porque ele formou uma família doente. Ele não precisava ter feito isso. Porque os meus irmãos… é uma família que continua brigada. E ele que formou essa família. Com certeza. Eu tenho consciência, eu sou a única que faço terapia, eu sou a única que tenho essa awareness about the family. Mas olha que interessante. Aí ele foi morar no sítio. Aí, pouco a pouco… porque tudo, estava tudo preso por impostos que ele deixou de pagar, mas aí ele teve uma ideia: tinha uma fazenda que ele tinha comprado em São José dos Campos e a fazenda tava entre duas grandes fábricas, Rhodia e Matarazzo. Ele falou: “Hum, eu vou lotear a fazenda toda em pequenos lotes e vou vender pros operários que trabalham nas fábricas”. E aí ele começou, conseguiu novamente a ter o pinga pinga pra poder viver. E isso aconteceu quando? Vamos dizer, aconteceu em 1980. Ah, ele viveu mais uns dez anos. Aí ele alugou um um apartamento perto da Hebraica, na Praça Germânia. Então, eu admiro muito [que] ele nunca desistiu. Ele nunca desistiu.
(56:52) P1 - Qual foi a primeira vez que você se apaixonou?
R - A primeira vez que eu me apaixonei, eu acho que estava na faculdade. Eu fui meio lenta. Eu sou agitada, mas tem esse lado de afetividade, de afeto, que eu sou meio… eu já tava, eu acho, fazendo arquitetura, me apaixo…
(57:18) P1 - Você já tinha namorado antes?
R - Ah, os namorados meio bestas, né? Tinha como adolescentes, sim, mas não era, eu não era… eu tinha que resolver as minhas questões de identidade, eu não tinha essa coisa de… mas eu acho que tinha uma coisa, que era da minha geração, [que] eu não podia ficar sem namorar, entendeu? Eu sempre estava namorando. Eu terminava com um, começava com um. Mas nunca apaixonadíssima.
(57:51) P1 - Qual foi o seu primeiro namorado?
R - Eu tinha dezesseis anos, fui no cinema com ele e ele queria me beijar e eu não gostei da ideia e aí eu briguei com ele. Era [o] famoso assim: quando o cara estava muito envolvido, eu brigava; e quando o cara não estava envolvido, eu ficava perseguindo ele. Entendeu? Bem “normal”, entendeu?
(58:17) P1 - E esse da faculdade?
R - Acho que ele morava em Curitiba e estudava medicina. Mas era aquela coisa de uma paixão que é uma paixão idealizada. Eu acho que só com o… quando eu comecei a namorar com o Jean, eu tinha 24 anos, casei e agora eu sou casada há 47 anos, né? Então, é assim, aí eu já tava mais velha, tava me formando e eu… mas essa coisa afetiva é muito complicada, porque eu acho que tem a ver com a estrutura familiar. Medo, né? O medo da paixão, o medo de tá… o que que vai acontecer, se ligar muito, né? Porque era uma coisa… eu me lembro uma vez, a minha mãe, quando brigou… porque aí quando eles brigavam, estourava, abria, né, as comportas e eu lembro dela chorando no quarto, chorava, chorava e eu falava: “Mãe, mas porque que você tá chorando?”, “Por que que eu deixei minha mãe?”, e ela morreu na guerra. Então essa coisa do afeto, né, era um negócio muito complicado.
(59:43) P1 - Que lugares que você frequentava na adolescência; na faculdade? Você saía por São Paulo?
R - Não, eu era meio bobinha. Não, a minha mãe não gostava e eu queria agradar ela. Eu ia pra faculdade, não ia em bares, em… ela sempre achava: “Não! Mas você vai fazer isso???”. E eu falava assim: “Mãe, sabe qual é o teu problema? Você não tem amiga e as tuas amigas não têm filhos, então você não sabe o que é normal, você acha que eu sou uma pessoa enlouquecida”, entendeu? E como o marido era um louco, que fazia [e] acontecia, né, ela não queria, entendeu? Então ela me prendia muito. Olha que louco, estudava no Dante, que era na frente do Trianon, fiquei menstruada com quinze anos… eu não ficava, que eu era muito magrinha. Fui no médico, aí ele me deu um laudo, eu menstruei. Aí ela chegou pra mim e falou assim: “Agora que você está menstruando, você não pode entrar mais no Parque Trianon”. Olha que louco, assim que ela explicou sobre a sexualidade. Falei: “Não mãe, pode deixar que eu já… minhas amigas já me falaram”.
(01:01:08) P2 - E como você ia pra escola? Qual o transporte?
R - Ah, eu ia… a minha mãe tinha motorista e eu ia de carro, de motorista.
(01:01:18) P2 - [E] entre a faculdade?
R - Pra faculdade, eu morava colado ao Mackenzie.
(01:01:25) P1 - Do lado.
R - É. Mas no Dante, agora, no terceiro colegial, quando meu pai estava já com certos problemas, ele pegou um um Fusca ‘pé de boi’, que era um Fusca mais vagabundo e ele reformou, quando eu tive dezoito anos, quando eu fiz, ele me deu. Não, ele sempre foi… e nunca, não chegava, assim, falar: “Olha, desculpe, mas você vai ter que sair da faculdade” ou “essa escola não”, continuava. Ele foi…
(01:01:55) P1 - E amigos seus, amigas, eles iam na sua casa?
R - Muito pouco, muito pouco. Eu não gostava, porque sempre tinha muita observação, crítica. Mas ia, ia. Mas era uma casa… né?
(01:02:15) E seu marido? Daí você conheceu ele onde? Como foi?
R - Meu marido, eu conheci o Jean, ele, justo, tava voltando do (Imebe?), na Suíça, que ele foi estudar um MBA e ele tava meio solteiro, tinha 36 anos, eu tinha 25 ou 24 e aí uma prima, que nós tínhamos feito cursinho junto, a Nete, falou assim: “Tem um primo e a mãe tá me buzinando que queria que ele saísse e conhecesse outras pessoas”, e aí a gente se conheceu. E aí a gente começou a namorar em 1974 e… mas ele não achou que ele ia casar, ele achava que ele ia continuar solteiro, mas aí ele terminou comigo. Ele brigou depois de um mês, eu fiquei desesperada e fui atrás, determinada que nem meu pai era e voltamos depois de um dois meses, e aí a gente ficou juntos e a gente casou.
(01:03:18) P1 - Quanto tempo depois vocês casaram?
R - Um ano. E aí a gente…
(01:03:25) P1 - Foi aí que você saiu de casa?
R - Aí eu saí de casa.
(01:03:28) P1 - Onde você foi morar com ele?
R - Na Alameda Casa Branca. A gente alugou um apartamento…
(01:03:34) P1 - Ele já tinha trabalho?
R - Ah, sim. Ele trabalhava na LTB, Listas Telefônicas Brasileiras. A gente… foi legal e eu já dava aula. No último ano de licenciatura, como eu tirava só dez, um professor chegou e falou: “Fanny, você não quer começar a dar aula?”. Então eu me formei e comecei a dar aula. Bem diferente [de] hoje em dia, [que] você não dá aula na faculdade se você não tem mestrado e até doutorado. Então eu comecei a dar aula. Eu dava aula no Dante, isso foi interessante. Aí eu dei dois anos no Dante, primeiro ano foi ótimo, eu dava pra menino pequeninho, eu tava fazendo licenciatura, aí no segundo ano, falou: “Começa a dar pra turminha de quatorze anos”, aí eles me mandaram embora no final do ano, porque eles falaram que eu era livre demais com os alunos e, pra mim, foi a primeira vez que me despediram, [que] foi um negócio, assim, muito forte. Mas, naquele ano, me convidaram pra começar a dar aula na faculdade e foi o máximo. E aí eu nunca parei mais.
(01:04:50) P1 - No Mackenzie?
R - No Mackenzie.
(01:04:52) P1 - No Dante, você dava aula de…
R - De educação artística.
(01:04:55) P1 - E no Mackenzie?
R - Comecei a dar aula de composição, no curso de artes plásticas.
(01:05:01) P2 - E que [é] que você sentiu quando você começou a dar aula no Mackenzie?
R - Ah, eu… dar aula sempre foi pra mim uma ‘sarna’. Eu amava e amo, senão eu não ia aguentar tantos anos. Mas quando comecei a dar aula, eu era muito exigente. Over, exigente. Então, com os anos que passaram, eu consegui ficar mais branda, né? Eu tinha um grau de exigência muito grande com os alunos.
(01:05:39) P1 - Seu marido, ele tinha compreensão desse teu lado artístico? Valorizava?
R - Valorizava. Sempre me valorizou muito. Eu pude fazer qualquer coisa: fui fazer teatro, fui fazer formação de teatro, mas larguei tudo que eu chegava; fui fazer umas fotos, uma época. Eu falei assim: “Eu vou fazer fotos de publicidade”, eu acho… eu achei legal, queria… sempre querendo uma coisa nova, sabe? Inquieta, né? Não aguentava muito. Coitadinhos dos meus filhos, aquela coisa de formiguinha, eu não aguentava, ser uma uma mãe bem educada, aquilo me deixava… coitadinhos. Com a minha ansiedade. Eu falo pros meus filhos… e pro meu filho, eu falei: “Como você sofreu, Ricardo”.
(01:06:33) P1 - Quanto tempo depois de casada você teve filho?
R - Dois anos… Eu casei [em] 1965, [então], dois anos.
(01:06:41) P1 - Como que é o nome da sua primeira filha?
R - É a Tatiana. É a minha filha, que nasceu em 1977. Uma menina maravilhosa.
(01:06:53) P1 - Que [é] que mudou na sua vida depois que você foi mãe?
R - Então, it was not easy. Eu lembro de uma cena muito forte, de eu com a Tati e todo mundo foi num lugar pra nadar e eu falava assim: “Que porra é essa que eu tô fazendo aqui?”. Eu acho que aí entra toda uma discussão que tá sendo feita hoje em dia; qual é o filme, famoso, né, faz pouco tempo, da mãe… um filme brasileiro, né? É isso: “Que [é] que eu faço com isso? Tá todo mundo lá e eu”, entendeu? Eu era imatura também, tinha 28 anos. E aí nasceu o Ricardo e eu ficava falando assim, pra mim mesma: “Cresce, cresce logo, pra eu voltar a trabalhar com arte”.
(01:07:42) P1 - Quanto tempo depois, nasceu Ricardo?
R - Dois anos e nove meses.
(01:07:50) P1 - E depois você…
R - E aí o Ricardo era de uma intensidade, que eu falava assim: “Só pode ser espermatozoide”, (risos) entende? A Tati, gostosinha, meiga, né? E ele PRUF. A minha neta agora, que tem um ano e oito meses é igual a ele, então tem a ver com personalidade. E a Tati era um doce.
(01:08:20) P1 - Você parou de dar aula nesse período ou você continuou?
R - Não parei nunca. Eu parei de fazer arte.
(01:08:28) P1 - Quanto tempo?
R - Eu parei uma média de… o Ricardo… seis anos. É, eu parei durante seis anos. E era muito angustiante, eu lembro. E eu transmitia isso, né? Quer dizer, uma história enlouquecedora, familiar, né? Perdi meus avós… tem essa história, não sei se vocês sabem, que dizem que é provado cientificamente, tem a ver com DNA, que você guarda quatro gerações de estresse emocional. Então, que a minha avó, por exemplo, morreu, né, foi morta, aí vem minha mãe, aí vem eu e vem a Tati. Então são gerações que guardam todos os traumas de antecedentes. Tanto é que a Tati fez mestrado doente, ela fez um mestrado lindo, e um trabalho dela, porque ela fez a defesa… não é nem defesa, né? Quando ela mostrou o mestrado, ela fez uma exposição: era um trabalho que tinha a imagem da pele dela, cheia de hematomas, porque vivia tomando, fazendo coisa, e por cima um acetato impresso com os campos de concentração que tinham na Europa. Esse foi o trabalho dela.
(01:10:11) P1 - Ela fazia psicanálise?
R - Ela fazia psicanálise, mas ela foi pro… ela se formou em psicologia e foi trabalhar logo em psicologia social. Trabalhava em projetos sociais. Mas esse trabalho veio dela e mostra o quanto ela tinha internalizado o drama da família Feigenson.
(01:10:39) P1 - Seu marido, como é que ele era com você nessa criação dos meninos?
R - Ah, ele trabalhava muito, ele era executivo. Trabalhou na Abril, trabalhou na Gazeta Mercantil, no Estadão, sempre trabalhando na área comercial e ele dava pra mim pra eu decidir as coisas, mas acompanhava também. Mas era da geração de… entendeu? Ele punha dinheiro dentro de casa. Mas era um cara muito diferente dos casais hoje em dia, que eu vejo meu filho com a minha nora, [que] eles fazem absolutamente tudo junto, né? Nós não tínhamos isso. Eu fazia tudo. Eu ficava no Guarujá com as duas crianças, indo pra praia, voltando naquele lugar cheio de prédios. Eu achava horroroso, mas não fazia nada. Sabe por quê? Porque eu acho que eu tinha uma resiliência que veio da minha família. “Ah, é. É assim. Ah, meu pai briga com a minha mãe, minha mãe briga… mas é assim, eu tenho que aguentar”. Então tinha um lado meu: “Eu tinha que aguentar”. É interessante isso.
(01:11:59) P1 - Só voltando um pouco na sua casa antes, se falava de política?
R - Meus pais eram conservadores. Não sei se eles seriam bolsonaristas (risos) hoje em dia, mas não se preocupavam muito na questão social. Você vê que a minha mãe não deixava, não queria que eu entrasse na cozinha e demorou muito pra ela aceitar uma cozinheira que era uma mistura, provavelmente, de negra, indígena e… e aí ela aceitou, mas muitos anos depois. Primeiro, eram empregados que vieram da Europa.
(01:12:37) P1 - E que ano que você fez Mackenzie? A faculdade.
R - 1970.
(01:12:42) P1 - E de como que era o movimento estudantil lá? Você tava ___________
R - Não, totalmente não participando de política, porque a minha família não era. Hoje em dia, eu sou muito politizada. Por quê? Porque desde que eu comecei a dar aula na arquitetura, que é mais ou menos dez anos, a gente trabalha muito questões sociais, a questão do negro, do racismo estrutural, a questão das camadas. Então, hoje em dia, eu tenho uma outra consciência política, mas a minha educação familiar, não. Eu acho que eu não sei, eu acho que eles eram extremamente conservadores e eu acho que tem a ver assim: “Puta, passamos por tanto”, mas provavelmente lá eles também seriam, não sei. Meu pai era preocupado na questão judaica, então ele foi presidente do asilo dos velhos que era um asilo importante, né? E ele construiu prédio, ele cuidava.
(01:13:50) P1 - Na Vila Mariana, tem até hoje.
R - É, isso aí. Que hoje em dia quem cuida é o Hospital Einstein. É esse mesmo.
(01:13:59) P1 - E seu marido é judeu?
R - Meu marido é judeu.
(01:14:03) P1 - Suas irmãs e seu irmão casaram com judeus?
R - Todos eles… Só a Jude, a segunda, ela não casou. Todos os outros casaram com os judeus e tão casados ainda.
(01:14:19) P1 - E fala uma coisa, você e seu marido, vocês criaram seus filhos no judaísmo?
R - Criamos com histórias que a gente ia contando, a gente ia na sinagoga, mas, hoje em dia, eu não vou mais na sinagoga. Eu tenho a minha história judaica, mas eu não quis colocar meus filhos em escola judaica, que eu achava que segregava demais, mas eles estudaram no Horizontes, que era uma escola que a (morar?) Esther, que é a mãe do Gilberto Dimenstein, né, ela dava aula de judaísmo na escola, então aí eu achava legal. E aí a Tati fez Bat Mitzvah na CIP (Congregação Israelita Paulista) e o Ricardo fez Bar Mitzvah, também na CIP.
(01:15:14) P1 - Você frequentava, então, a CIP?
R - Não, eu ia… quando criança eu ia no asilo dos velhos, com meus pais. E meu pai era um cara que tinha um poder absurdo, todo mundo esperando ele chegar, o rei e a rainha, pra começar a reza. Ele era um cara importante na comunidade do asilo dos velhos. Depois, nós fomos uma época rezar na [Sinagoga] Beth-El, onde hoje é o Museu Judaico e depois a gente começou ir na Hebraica.
(01:15:46) P1 - E com o seu marido, na CIP vocês chegaram a ir?
R - Hum, muito pouco. A gente ia meio junto.
(01:15:56) P1 - Mas como é que seus filhos, então, você escolheu a CIP pra ir?
R - Porque era mais a minha cabeça. Mais liberal, judaica.
(01:16:05) P1 - E com quantos anos?
R - Ela foi em campo de, no camping, ela foi, eles foram no NR, mas a gente… a CIP faz a nossa cara. É isso.
(01:16:19) P1 - Você disse que você voltou a trabalhar, fazer arte. Quando…
R - 1986.
(01:16:25) P1 - Depois de seis anos.
R - Isso.
(01:16:27) P1 - Como que foi essa decisão, essa retomada?
R - Olha, eu tinha uma angústia que eu precisava… eu intuía que a minha angústia ia melhorar se eu voltasse pra arte. E eu acho que tem uma coisa de fazer arte, ser reconhecida, porque eu sou carente, eu tenho um problema de carência, fodida, entendeu? E é legal, você faz exposição, você é bom, vende trabalho. “Ah, bonito teu trabalho”, “Hum!”. Dava: “It’s good!”, entendeu? Então eu acho que isso. Tem uma coisa, hoje em dia, eu vejo o lugar da minha arte… antigamente era assim, dar aula e fazer arte eram duas vias diferentes. Hoje em dia, eles viraram uma coisa só. Eu, pra mim é muito mais importante chamar os alunos, conversar sobre meu trabalho, a exposição que eu tô fazendo. Eu vejo que é muito legal. Eu tenho 73 anos agora, demorou bastante.
(01:17:49) P1 - E qual é o trabalho que marca essa retomada?
R - É esse aqui. É um. É assim, eu… [em] 1985, Ricardo tinha cinco anos de idade, né? Eu chamei modelos pra eu desenhar em casa. Eu vou mostrar. Tá aqui. Então é assim… é interessante. Vamos ver aqui, página 49. Então, assim, bem romântico, né? Punha modelo e ficava desenhando, né? Mas acontecia um negócio esquisito, que em vez de eu fazer o desenho suave, né, do modelo vivo, de repente aparecia essas figuras expressionistas, que eu falava: “Que esquisito, né?”. Aí um dia - olha aqui, meu querido -, eu deixava… olha esse trabalho. E eles não estavam… olha essa figura. E elas eram bonitinhas, entendeu? Aí eu punha tudo na sala, os trabalhos, o João um dia chegou pra mim e falou assim: “Esquisito essas pinturas. Por que você tem que fazer essas pinturas tão horrorosas?”. Aí um dia eu fui com ele pra Nova Iorque, lá tem os artistas expressionistas, tem um artista, o (Diconen?), maravilhoso, que [meu marido] falou: “Nossa! Você tá pintando igual a eles!”. Falei… o pior é que eu ficava… na época, eu tinha, sei lá, 35 anos, eu ficava mal, falava: “Por que que eu estou pintando [isso]?”. Pra mim, hoje em dia, é tão claro e um puta trabalho bom. Trabalho bom, que tem presença, que tem composição, que tem cor. Então é isso. Mas aí eu percebi que o drama tava dentro de mim. Aconteceu um negócio bem interessante: anos… 1985, 1990, existia aqui, começando na Alves Guimarães, e depois na Rua Moraes, o lugar onde os pais levavam as crianças pra trabalhar com arte, fazer teatro, chamado Arvoredo. Não sei se você… tá. O Arvoredo foi um lugar muito importante, por quê? A minha irmã, a terceira, a Noêmia, ela era uma das donas do lugar. Mas eu comecei a levar meus filhos e eu comecei a participar de grupos de educação, grupo pra conversar sobre… e num dos grupos tinha que pensar a questão das origens. Foi lá que eu comecei a trabalhar, fazer trabalhos ligados, pensar qual era a minha história. Foi lá. Até fiz umas fotos, posso mostrar. Muito interessante. Como eu tinha modelo vivo, falei: “Hum, eu vou fazer umas fotos de mim e vou desenhar a partir das minhas fotos”. Quais as fotos que eu fiz? Assustada, refugiada, fugindo. Então, tava tudo dentro de mim. Vou mostrar pra vocês. Ó, página 31. Interessante. 31, aqui. Bom, aqui, por exemplo, essa é uma performance.
(01:22:33) P1 - Essa é você?
R - Sou eu. E aqui eu comecei a desenhar a partir das fotos. Isso foi em 1986. Então você percebe, vocês percebem que a inquietude… eu sou uma pessoa muito inquieta e muito intensa. Eu tenho esse lado russo muito forte, né? E aqui, lembra a história do avental? Quando eu comecei a trabalhar com, já, sei lá com quantos anos, quarenta, 45, cinquenta. Aquele famoso avental branco que a minha mãe colocou, se transformou num avental de chumbo e um xale de chumbo bordado de algodão, porque o xale, eu tive muita carência de afeto e eles não conseguiam, ela não conseguia, minha mãe. Ela cuidava de mim, mas pra ela era difícil essa coisa do afeto. Ó, eu com dez anos de idade. Que mais?
(01:24:17) P1 - Fanny, você vendia seus trabalhos?
R - Sim.
(01:24:21) P1 - Como é que… quando, você chegou a ganhar dinheiro com isso?
R - Sim.
(01:24:25) P1 - Como que é essa parte?
R - Ah, eu… teve uma época que eu… [em] 1988, eu comecei a trabalhar. Eu sempre tive ateliê, agora o ateliê é na minha casa, um espaço grande também. Eu dormia com o Jean num quarto grande, que era assim: dois quartos, tinha um banheiro, a gente transformou num espaço só. E pra fazer escritório. Hoje em dia, esse espaço é meu ateliê. Então, é assim, eu sempre tive ateliê e, em 1988, eu comecei a trabalhar com o Paulo Prado, uma galeria que era uma travessa da Avenida Brasil e, em 1990, eu fiz uma grande exposição de pintura, foram, eu acho que, quarenta trabalhos e eu ganhei patrocínio. Eu tava feliz da vida! Aí, o que aconteceu? Veio Messieur Collor. E aí eu perdi o patrocínio, mas eu vendi todos os trabalhos. Só que eu sou louca, sou filha de pais loucos. Então, em 1991, eu falei: “Não quero mais pintar. Eu não quero ficar no ateliê pintando sozinha, eu não gosto”. Aí eu falei assim: “Vou fazer instalação, porque instalação” - eu fui inteligente na época - “se chama as pessoas, você conversa, se conversa mais do que ter um quadro bidimensional”, eu fazia pinturas. Então, eu comecei a fazer instalação, e tô voltando agora com essa exposição que eu contei pra vocês. Então, eu tive o Paulo Prado, vendi os trabalhos, as pinturas, depois eu fui pra Valu Oria, que era uma galeria na Gabriel Monteiro da Silva, e eu fiz trabalhos e exposições muito importantes também, e vendia. Inclusive, esse… eu fiz um vestido e no ano 2000, um vestido feito de plaquinhas de acetato impressas com imagens de revistas masculinas, [como], Playboy. E aí, então, aqui tinha peito, barriga, sexo, perna, ele era feito de pedacinhos de acetato. Esses vestidos foram, tiveram muito sucesso, eu vendi muito e um deles, o Gilberto Chateaubriand, que ele morreu agora, ele comprou e deu em comodato pro MAM do Rio, então meu trabalho tá lá. Então, eu tenho, eu tive… ó, as imagens. Por quê? Porque eu tava começando a trabalhar a questão da idealização que os homens colocam, o que é o corpo perfeito de uma mulher. E foi aí que eu fiz esse trabalho. Esse trabalho levou a esse outro trabalho da Barbie: a Barbie também é o protótipo do peito grande, cinturinha, quadril. Então eu fiz muitas exposições com a Barbie como tema, d’eu mulher fazendo uma crítica ao que estava acontecendo.
(01:28:24) P2 - E como foi esse processo…
R - Olha, eu pus num açougue, coloquei a Barbie no meio das carnes, mostrando que, sabe, que as pessoas que operavam, elas não viam que elas tinham músculo, que tinham carne. E aí foi esse trabalho, foi muito interessante. Que que você me perguntou?
(01:28:50) P2 - Como foi esse processo de transição entre a pintura pra…
R - Ai, eu fui, eu era danada, eu mudei rapidinho. O pior é que eu parei de desenhar e pintar, eu não precisava ter. Mas eu acho que tinha uma coisa, sempre minha, assim, de precisar cortar e começar outra coisa nova. Uma coisa de tábua zero: “Não, eu vou”... mas não é nunca tábua zero, porque pra fazer uma uma boa instalação ou um bom trabalho, veio o Flexor, veio a Iolanda, veio desenho. Você não produz do nada. Eu tive uma criação na área de arte primorosa, entendeu?
(01:29:37) P1 - Quem que eram os seus pares, interlocutores? Você tinha um grupo?
R - Não, eu sempre… assim como gozavam da minha combinação, os grupos não gostavam muito, me achavam meio estranha. O meu… eu tinha, tinha grupo, a Graziela Rodrigues, o Antônio Vitor, eu tive grupos, mas teve grupos que tinham muita, eles precisavam segurar o que eram deles. Então quando eu fiz doutorado, foi muito difícil pra mim, porque teve artistas que simplesmente me excluíam.
(01:30:17) P1 - Pode ____ esses artistas.
R - Olha, o Paulo Pasta, Leda Catunda, essa turminha me esnobou. E eu, talvez, o papel que eu fazia, o jeito de chegar neles, talvez não era legal também. Ou eu era carente, na minha carência afetiva. Então não sei o que aconteceu, não era só uma via, mas eu não tinha um acolhimento de jeito nenhum.
(01:30:56) P1 - Nesse momento, como é que eram as artes plásticas no Brasil?
R - Então, ela era muito problemática, porque… por exemplo, eu sou carente pra falar, adoro falar, chegava e falava assim: “Instalação, você não pode falar. Arte, você não pode falar”, você não pode explicar a tua obra. O que que aconteceu? Eu comecei a ficar contida, recolhida. Aí eu fui pra Alemanha, fiz muita exposição na Alemanha, em Berlim, em Colônia, fiz umas exposições muito importantes. O que acontecia lá? O galerista, a galerista chegava: “Fanny Feigenson nasceu na Letônia, ela passou, os pais, perseguição, foram…”, contava tudo! Então eu percebi que era uma coisa daqui, não de lá. É muito louco isso. E aí… mas provavelmente eu acho que eu tinha uma questão, talvez, que eu chegava de um jeito que não era legal.
(01:32:14) P1 - E o mercado de arte?
R - Na época?
(01:32:17) P1 - É.
R - Então, na década de noventa, eu vendia muito bem. Quando começou as instalações, eu fui pra Valu, eu vendia também. Mas tinha, eu não sei o que é. Claro, você… aí eu sempre penso: “Poxa, mas devia ter”, eu tinha outros colegas, eu tinha artistas. Mas sabe aquela coisa: “O que você tem, OK, mas você fica olhando a galinha do vizinho, que você não tem”. Eu acho que tem isso também. Eu acho que eu tenho muito essa coisa de querer e falar assim: “Foda-se!”. Entendeu? Fica com os que estão te aceitando. Eu acho que aí é uma neurose.
(01:33:01) P1 - E como é que foi indo esse processo de criar seus filhos e ir crescendo como artista?
R - Ah, eu acho que assim, teve o lado que ele se divertiu muito, tanto que eu fico muito feliz que eles são apaixonados, a Tati, tanto é que ela foi pra esse lado - infelizmente ela faleceu -, e o Ricardo, quando eles chegam numa cidade, eles vão no museu de arte contemporânea. Então pra mim é muito (Frignig?), em iídiche, é um prazer muito grande saber que eu transmiti uma coisa verdadeira. E era muito engraçada, vou contar uma cena quando eu levava os quadros pro Paulo Prado, que eu deixava eles no Horizontes, né, que era na Melo Alves, e aí um dia eu coloquei as telas na… eu tinha um, sei lá, um Fiat eu acho, pequeno e eu amarrei no teto do carro. (risos) O que aconteceu? As telas caíram em plena Avenida Rebouças. (risos) Aí para o carro, a Tati e o Ricardo queriam se enfiar debaixo do tapete do carro de tanta vergonha: “Mamãe, para o carro!”. (risos) E tinha um cara atrás que começou a pegar o quadro e colocar dentro do carro dele: “Moço! Essa tela é minha!”. (risos) E foi isso então. E eles iam nas exposições, a gente sempre, como eu sempre fui muito papagaio… papagaio não, eu falava, gente, eu sempre conversei de arte com eles, essa paixão, Van Gogh, porque que eu gostava, sabe? Eu acho que assim, eles tiveram esse caldo desde que eles nasceram.
(01:34:57) P1 - Quando que você… desculpa, quando foi descoberta a doença da sua filha?
R - Foi quando ela tinha dezenove anos. Ela foi um… até escrevi no livro, ela foi uma uma criança maravilhosa, uma adolescente, ela sempre foi lindíssima e com dezenove anos, ela ficou três meses sem diagnóstico, achavam que era depressão e ela tinha dores que migravam de um lado do corpo pra outro, tinha um [médico] clínico, horroroso, que achava que era depressão. Aí um dia ela não aguentou mais de dor, fomos no Einstein e lá começou a história dela com leucemia linfocítica aguda (LLA). Ela teve, durante dezoito anos, três voltas de doença, da leucemia, e fez dois transplantes. Quando ela melhorava um pouco, a gente ia viajar. A gente não se acomodou em nenhum momento. Até o final, eu ainda tinha esperança, porque ela sobrevivia, assim, quase morria e saía. Era uma fênix. Aqui, [no livro], está escrito. Então, a gente, o quanto a gente pode de aproveitar e de viajar e de curtir e de se curtir, nós quatro, a gente ficou muito junto. Muito junto. E pra mim foi uma dor que nunca vai passar - já faz sete anos -, porque nós éramos muito mais do que mãe e filha, nós éramos duas amigas profundas falando de arte, curtindo arte. Então não vai passar nunca. Ficou mais suave, um pouco, todo mundo fala, [mas] não passa. Foi interessante depois da terceira vez que ela ficou doente. A primeira vez foi em 1997, a segunda [em] 2003, eu tava fazendo doutorado, escrevia no hospital a minha tese de doutorado, e a terceira vez foi [em] 2006. E aí, o que aconteceu? Eu nunca parei de dar aula… ah, parei um ano e meio. Por quê? Porque eu falei assim, uma hora eu falei assim: “Vamos fazer uma coisa pra a gente parar de pensar só na doença e aí a gente mora no Portal, tem o Shopping do Portal, nós arranjamos uma loja, fizemos um projeto maravilhoso de loja e nós criamos uma loja chamada Chique Chique Lab de Criação, que foi maravilhoso. Por quê? Porque a Tati tinha amigas, que ela era uma das coordenadoras de um bazar chamado Bazar da Praça, onde eles chamavam artesões pra vender nesses, no Dia das Mães. Então ela tinha conhecimento, know-how de chamar produtos interessantes. Então a Chique Chique Lab de Criação vendia vestidos, roupas, objetos e ornamentos. E fez muito sucesso. E a gente viajava pra pesquisar e foi muito bom. Mas aí eu step back (me afastei) um pouco do meu trabalho pessoal. Isso aconteceu a partir de… nós criamos em 2007 ou 2009 e foi durante a Tati, foi seis anos que a gente teve muito na frente. O Jean cuidava da parte administrativa e nós cuidávamos da parte de o que a gente mostrava e vendia. Então, o meu trabalho de arte ficou um pouco step back, acho que foi isso também. Eu tive um período de hiato. Claro. Na verdade, né, você vê que coisa, se você pensar de 1997, eu já tinha feito meu mestrado; 2003, eu fiz doutorado e enfrentando um inferno na Terra.
(01:40:07) P1 - O risco dela morrer, ele era sempre presente?
R - Sempre presente.
(01:40:13) P1 - Essa questão da morte, durante esse tratamento, da Tati…
R - Ah, ela sempre tava presente. Aqui tá escrito. Se vocês puderem ler o livro, eu tinha muito medo o tempo todo, mas eu não transmitia, mas ela sabia disso. Mas a nossa batalha sempre… você vê. Quando ela fez o primeiro, a primeira quimio, nós fomos… era o, quem cuidou, que foi maravilhoso o tempo todo, foi o Nelson Hamerschlak, do Einstein, que ele é hematologista e oncologista. Então ele falou: “Vai pros Estados Unidos e vê se precisa fazer um transplante”. A Tati tinha dezenove anos. Aí os caras falaram: “Não, eu acho que”... e ela teve sempre remissão: a primeira vez, teve remissão; a segunda, teve e aí voltou. Voltou três vezes. E ela… os dois transplantes que ela teve, era não aparentado, não tinha nenhum parente e, no fim, a gente pediu pro pra família dos Estados Unidos, da minha irmã mais velha, todo mundo fez o teste: ninguém. Então ela pegou de banco de célula mundial. É raríssimo! Teve um momento que ela era um caso raro único de sobrevivência de fazer dois transplantes não aparentados e estarem vivos. Porque é raríssimo. Que [é] que acontece? Você faz o transplante, você adquire uma doença, que faz parte, chamada GDS… não, não é GDS. É uma doença… agora me escapou o nome, que é a medula nova não aceitar o corpo. Não é o corpo que não aceita a medula, a medula que não aceita o corpo. E aí ela começou a ter, depois do segundo transplante, problemas no sistema digestivo e que fez ela ficar magrinha, magrinha, magrinha, magrinha. E aí, o que [é] que acontecia? Ela pegava infecção, infecção, infecção. Ela morreu de uma pneumonia, com um 37 anos.
(01:42:28) P1 - Vocês verbalizavam a questão da morte?
R - Olha, eu acho que a gente verbalizava sim, porque a morte já veio na família. Entende? A gente falava dentro, a gente falava do que aconteceu com a família da minha mãe, com a família… tanto que ela fez esse trabalho, entende? Mas eu acho que ela verbalizava muitas vezes muito mais pela arte. Ou verbalizava também com o irmão, que é médico e eles moravam no mesmo prédio. Mas ela verbalizava, só que ela tinha muito receio de falar comigo. A gente falava através do trabalho, né, que ela tava fazendo, mas ela não queria fazer eu sofrer. Ela sabia. Mas eu full time: ela entrava no hospital, eu largava tudo, só não largava de dar aula, mas largava de tudo que eu fazia. Terminei o doutorado e não sei nem como, né? Foi na garra.
(01:43:38) P1 - E seu marido?
R - O Jean também. O Jean era… eu acho que assim, a gente não estaria junto hoje em dia se um não desse apoio ao outro e não fosse companheiro. Você sabe de tantos casais que se separa depois. Eu acho que a maioria se separa. Eu acho que teve um amor acima de tudo, que um deu força pro outro.
(01:44:06) P1 - Você tinha fé?
R - Tinha. Quando a Tati tava no hospital, duas semanas antes que ela morreu… porque assim, ela pegava infecção e curava; infecção e curava. Aí eu soube que uma bam-bam-bam do setor de transplante, de Seattle, eu acho, tava participando de um congresso em Foz do Iguaçu, falei: “Gente, eu vou lá e vou voltar no mesmo dia”. Fui lá, o doutor Nelson conseguiu pra eu conversar. Falei: “Olha, é o seguinte, ela vai sair dessa, mas nós precisamos resolver essa questão, porque ela tá ficando cada vez mais fraca. Então, faz o seguinte, você acha que você não pode reunir um grupo de pessoas de universidades e fazer um grupo Off Broadway, sem protocolo aprovado, pra gente ver se ela consegue”, e a mulher topou. Duas semanas depois, ela morreu. Foi muito difícil, mas eu batalhei até o fim. Eu tinha fé até o fim.
(01:45:20) P1 - Você falava com Deus?
R - Falava. Rezava. Aquele livro, Os, sei lá, Cem Nomes de Deus, a gente comprou, a gente rezava. E o último dia que a Tati viveu, eu tinha uma frase em hebraico: ________, que quer dizer: cura, alma e cura o corpo. Eu fiquei a noite toda: __________. Escrevia. E a Tati na minha frente. Aí, no dia seguinte… eu me arrependo de uma coisa… porque eu sempre fui muito corajosa, né? Tati teve hemorragias horrorosas e eu lá colada nela, entende? E aí quando a pressão dela tava pra cima e pra baixo, e aí o médico de plantão da UTI falou assim: “A senhora sai um minuto?” e eu saio. E ela faleceu. E eu me arrependo de ter saído, não devia. Ele não devia ter falado, ele foi filho da puta. Ele queria ficar mais tranquilo no trabalho dele. Tanto é… usado. Eu sou uma pessoa assim, eu vou falando e vai eu vou intuindo coisas, né? Eu vou lançar, eu vou convidar vocês, dia 10 de dezembro eu vou lançar esse memorial. Eu fiz um livro, né, e eu tô pensando que esse livro se torne piece of ____ (áudio falhou) em vários lugares. Falar da minha arte, mas falar da Tati, falar da nossa batalha, falar do que aconteceu na guerra e o que [é] que eu, quem sou eu hoje e o que [é] que eu quero conversar a respeito, entende? Eu acho que assim, eu tenho uma família destruída, meus irmãos roubaram, um quis roubar mais do que o outro. Eu acho que isso é resultado de começou na guerra, né? Infelizmente, esses são meus irmãos, entende? Então, eu também quero contar, ir em faculdade de medicina e contar, sabe, essa… a Tati ganhou, ela se tornou patrono do Hospital Einstein. Por quê? Porque ela era brava pra caralho! Chegava uma enfermeira às seis da manhã pra medir o pulso, ela chegava e falava assim: “Você precisa vim às seis da manhã [pra] medir o pulso? Não pode ser às oito? Qual é… ou tirar sangue?”. Então ela era… entrava o doutor Nelson no final - ele começou, né? -, entrava ele: “Eu não quero tanto médico perto de mim, eu quero o doutor Nelson só”. Aí o presidente do Einstein, que é o Claudio Lottenberg, quando ela faleceu, ele fez uma cerimônia que eu nem conhecia, chamada… não, não é (parachá?). Algum nome. Uma cerimônia com rabino, quando uma pessoa importante falece. E aí colocaram uma placa e ela se tornou patrono do hospital. Então, foi uma batalha muito… e no final, isso eu escrevo também, a Tati muitas vezes não tinha força. Só pelo olhar dela, eu sabia o que [é] que ela queria. E aí eu falava, eu me tornei a fala dela. Então, é uma história muito bonita. E eu tenho vontade de ir nas escolas de medicina, contar a história, porque não é uma história… por mais que ela falecesse, eu acho que assim, tem que ver esse lado do consciente emocional. E eu não acho que as escolas ensinam isso. Em nenhum lugar se ensina isso. Você acha que na arquitetura se ensina? Não se ensina, né? 90% dos professores são idiots. Eu falo com os alunos. Eu acho. E aqui, no final do livro, ó, tem aqui uma obra dela. Tem um um vídeo muito lindo dela que aparece no YouTube: ela dentro da loja, mostrando a loja e falando da batalha dela. Ela teve, foi capa da Carta Capital - foi acho que Carta Capital -; teve outdoors depois que ela fez o primeiro transplante de cordão umbilical e ela falava assim: “Eu tô curada”. Então, aqui é um trabalho que ela fez, “sobrevivo”. Olha que lindo. Aqui um croqui da exposição, aqui uma… ela fez uma série de obras que tiveram, como a mídia, materiais de hospital, então, o gaze… aí ela escreveu “corpo”. Aqui o que eu contei pra vocês, da pele com hematoma e o campo de concentração. Aqui é um desenho que eu fiz… porque o meu nome Fanny vem de (faiga?), que vem de vogel, que é pássaro em alemão. Esse trabalho eu fiz com vinte anos e eu não sabia que ia aparecer e parece um pássaro, uma fênix. Então, a fênix, na nossa história, ela vem dos meus pais que sobreviveram, vem comigo, com earnest que eu tenho em relação a minha família. Eu agradeço a minha família, deles serem o que eles são, meus irmãos, porque me tornou a pessoa mais consciente e crítica e que eu tenho histórias boas pra contar. E a Tati foi uma fênix também.
(01:52:30) P1 - Depois que ela faleceu, você parou de fazer arte? Por nenhum momento?
R - Não, nenhum momento. Fazer arte é uma condição pra minha sobrevivência como pessoa, como whole. Nenhum momento. Eu tenho uma necessidade muito grande de fazer, fazer instalações, eu me reúno com outros artistas e faço trabalhos, né? E em nenhum momento.
(01:53:13) P1 - Como é seu cotidiano hoje? Quais são as coisas que você faz, além de dar aula, trabalho de arte? Como é seu cotidiano?
R - Pro meu cotidiano, eu sou muito inquieta, muito ansiosa, como eu já falei. Então, na segunda-feira de manhã: às nove da manhã, eu faço Pilates; às dez, eu vou jogar tênis. Na terça-feira, eu dou aula das sete e meia às cinco e meia da tarde. Na quarta-feira, eu faço terapia online. Tinha uma época que a Ana Godói, que me ajudou a fazer essa primeira monografia, eu tinha toda semana encontro [com ela]. Na quinta-feira, eu jogo tênis, eu tenho aula, depois eu faço massagem; aí, de tarde, eu, muitas vezes, tenho tópico, que são oficinas que o Mackenzie oferece de disciplinas que estão relacionadas com a minha disciplina, que é Expressão, Representação e Cultura, [e] eu dou aula pro primeiro semestre de arquitetura. Sexta-feira, eu dou aula o dia todo. E muitas vezes [no] sábado eu vou almoçar no clube, aí eu fico fazendo nada. Comecei no sábado, a cada quinze dias agora, a fazer uma oficina de arte em casa. E domingo, em geral, a gente pega um cinema com o Jean, vai comer em algum lugar, vai num concerto no Osesp. E segunda-feira começa a rotina. Eu durmo mais ou menos às nove da noite, nove e meia, assisto um pouco um Netflix ou outro antes, um pouco. Descobri agora, então, a gastrite no esôfago, que me deu um certo susto, mas não muito, porque eu penso que é resultado de uma história de vida e num dá pra, num daria pra ser muito diferente. Depois que eu passei o que eu passei e com o que meus pais me transmitiram também e tudo isso eu absorvi. Eu sou muito porosa, sempre fui muito porosa. Então, OK. Tô aí, tô na vida e eu tenho uma sede de vida muito grande e gosto da vida. Foi muito triste o que… foi muito triste, desde eu perder todos os meus antecedentes… quando eu era pequena e falavam: “Ah, minha tia, minha prima, minha cunhada”, eu não sabia o que era, eu não tinha essa experiência, entende? Então, é assim, foi bastante… mas sempre me… ao mesmo tempo, eu sou uma pessoa… o Persi, que é meu analista, ele fala assim: “Mas você é uma figura trágica”. Eu tenho a tragédia dentro de mim. Ontem eu tirei umas fotos, né, pra um jornalzinho lá do Mackenzie e queriam saber da minha exposição e eu tô séria [nas fotos], e o Ricardo, meu filho, falou assim: “Mãe, mas por que [é] que você tá tão séria?”. Eu falei: “Mas eu sou séria”. O sério se mistura com o trágico e exigente, então muitos alunos acham que eu sou muito brava. Eu sou muito exigente, porque eu odeio aluno vagal, eu tenho um problema muito sério. E quando eu percebo que ele está vagal. Eu acho que tem uma coisa de querer aproveitar da situação, talvez. Uma das neuroses que eu tenho.
(01:57:21) P1 - Se você pudesse mudar, você mudaria ou nem mudaria alguma coisa na sua trajetória de vida?
R - Ah, eu não queria que a Tati morresse. O resto continuaria igual. Talvez, eu acho que, às vezes, durante a minha vida e especialmente a minha produção, é assim, eu meio que tinha uma tendência, hoje eu não tenho mais, de zerar: “Ah, eu vou fazer outra coisa”, como eu fiz, né? Da pintura, eu fui pra instalação. Eu acho que eu teria um pouco mais de cuidado de ver o que tava acontecendo. Mais focada. Eu acho que é isso. De vez em quando, eu me percebi sem tanto focar: “O que tá acontecendo?”. Por exemplo, 2004 foi meu momento áureo, eu fiz uma exposição no Itaú Cultural, eu fiz uma exposição enorme na Oca, junto com outros artistas, sobre a moda. E, de repente, eu meio que estacionei. Mas por que [é] que eu me estacionei? Tinha ataque. A primeira preocupação era a Tati. E talvez eu meio que: “Ai, eu vou descansar um pouco, tô cansada”. E você não pode, você não pode parar. Então, faltava às vezes, pra mim, uma percepção: “Vou continuar falando com Fulana, ela me convidou…”, talvez uma coisa desse tipo. Mas eu acho que eu tenho uma desculpa.
(01:59:11) P1 - Quais são seus planos pro futuro? Você tem planos?
R - Então, o plano de futuro é ter o livro, que eu vou agora fazer essa edição; mostrar a história… aqui até eu ia te mostrar, aqui tem as últimas coisas que a Tati escreveu, olha que bonito, onde ela falava sobre… ela tava ganhando alimentação de fora e ela falava: “Ai, tô com saudade de um arroz, de uma sopa”...
[Texto da Tati]: “E lá vem o caldo, arroz cozido, você combinou? Sim, com o médico. É que não veio pra gente e eu, na ansiedade pelo arroz com caldo, mas tudo bem, a maçã cozida vem. E que caldo farei, faremos com o livro? Bom encontro com a Tati Filinto, amiga, doutor Celso, médico, dois incentivadores, e depois minha terapeuta, Soraia. Juntos trazem uma ventania solar. O que vem por aí, não sei, mas gosto muito da ideia de reconectar com a minha dissertação de mestrado. E o reconecto e reconectar comigo, com a Tati, que já tinha vivido tantas experiências fortes e que já tinha escrito… ah, veio o arroz pra misturar no caldinho. Muito bom! Quando é que eu ia dizer isso? Agora”.
[Outro texto da Tati]: “Há uma certa combinação com os cateteres e como ficam suas trocas? Mais ou menos, bom ou funcionais. Cada enfermeira tem o seu preferido e eu pareço uma árvore. Cores, texturas, camadas, corpo, muito corpo, um livro corpo”.
E o livro vai se chamar Ventania Solar.
(01:01:45) P1 - Fanny, como é que foi pra você contar a sua história e ter a sua história no Museu da Pessoa?
R - Foi muito bom. Eu acho que toda vez que eu conto essa história, eu já contei algumas vezes, mas cada lugar que eu conto é muito diferente. Mas, pra mim, parece a criança que toda noite: “Conta de novo aquela história?”. E já que você me perguntou, eu gostaria de saber o que [é] que vocês acharam da história.
(02:02:24) P1 - Profundamente tocada. É lindo. Obrigada.
R - Obrigada.
(02:02:35) P2 - Obrigada também. Obrigada, Fanny.
R - Então, porque eu acho muito importante e é isso: “Conta de novo”. Porque, ao mesmo tempo, é tão louca, mas ela é redonda. Não é? Não tem nada fora do lugar. Se tem morte, se tem vida, se tem conquista e você tem arte. E a arte cruza toda a minha vida. E quando você fala assim: “Mas Fanny, você não parou?”, não parei. Então, essa produção, uma hora eu estava mostrando, agora, o último desenho, chama-se Cordão Umbilical. A última coisa que eu vou contar. Estava com um grupo de alunos e aí eu falei assim: “Olha, gente, esse trabalho chama Cordão Umbilical. Então, porque tem a coisa da mãe com o filho, filha, cordão umbilical, mas a gente tem outros cordões umbilicais” e aí uma menina adolescente começou a chorar. Falei: “Mas por que [é] que você está chorando?”, “Porque eu tenho como amiga um cordão umbilical e ela viajou, ela não está aqui perto”. Então, eu acho que isso é uma arte minha também, o jeito d’eu falar, eu trago, eu reúno as pessoas. Porque não é só falar da arte, não é só falar da parte, é falar da vida. E trabalhar com educação me trouxe isso. É isso.
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