I-O cordel em mim
Salomão Rovedo
O cordel passou por minha vida desde a infância. Entre os vários divertimentos que eu tinha para passar o tempo que gazeteava a aula, um deles era ficar ouvindo os poetas cantarem e venderem folhetos no Mercado Central.
Era a minha infância em São Luis do Maranhão. Como viram, não foi por um motivo nada nobre, porque a gazeta só dá como prêmio o atraso, a perda de ano, a repetência...
Enfim, foi isso. Nas praças e feiras, para vender os folhetos os cantadores usam a artimanha de cantar a estória até às vésperas do clímax, então paravam e anunciavam a venda do folheto. Quem quisesse saber o final tinha de comprar.
O ouvinte como eu, sem dinheiro pra comprar o folheto, ficava louco. Eu ficava por ali, esperando a venda se esgotar e quando o poeta começava a arrumar os folhetos na maleta, eu arriscava perguntar o desfecho do romance.
Ele olhava o menino com complacência e dava algumas dicas, contava o desfecho e então a gente se despedia com um sorriso cúmplice.
Chegado ao Rio de Janeiro nos anos 1960, por incrível que pareça, encontrei um ambiente que me proporcionava o mesmo prazer.
Como freqüentador assíduo de praças e mercados, neles encontrei muitos cordelistas na ativa, entre os quais, José João dos Santos (Azulão), José Gentil Girão (Seu Ventura), Apolônio Alves dos Santos, Cícero Vieira da Silva (Mocó), Elias A. de Carvalho, Expedito Ferreira da Silva, Franklin Maxado, Gonçalo Ferreira da Silva e mais raramente Sebastião Nunes Batista.
Todos eles continuaram a alimentar a minha imaginação, sempre com respeito e reserva de espaço: poeta é uma coisa, poeta popular é outra. Assim eu pensava.
Mas uma vez ousei pular a fronteira dessa formalidade: comprei um livro de interpretação de sonhos com o intuito de transformá-lo em cordel. Pronto o trabalho, levei os originais para a leitura crítica de Franklin Maxado, que tinha uma banca na Cinelândia. Passado alguns segundos de...
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Salomão Rovedo
O cordel passou por minha vida desde a infância. Entre os vários divertimentos que eu tinha para passar o tempo que gazeteava a aula, um deles era ficar ouvindo os poetas cantarem e venderem folhetos no Mercado Central.
Era a minha infância em São Luis do Maranhão. Como viram, não foi por um motivo nada nobre, porque a gazeta só dá como prêmio o atraso, a perda de ano, a repetência...
Enfim, foi isso. Nas praças e feiras, para vender os folhetos os cantadores usam a artimanha de cantar a estória até às vésperas do clímax, então paravam e anunciavam a venda do folheto. Quem quisesse saber o final tinha de comprar.
O ouvinte como eu, sem dinheiro pra comprar o folheto, ficava louco. Eu ficava por ali, esperando a venda se esgotar e quando o poeta começava a arrumar os folhetos na maleta, eu arriscava perguntar o desfecho do romance.
Ele olhava o menino com complacência e dava algumas dicas, contava o desfecho e então a gente se despedia com um sorriso cúmplice.
Chegado ao Rio de Janeiro nos anos 1960, por incrível que pareça, encontrei um ambiente que me proporcionava o mesmo prazer.
Como freqüentador assíduo de praças e mercados, neles encontrei muitos cordelistas na ativa, entre os quais, José João dos Santos (Azulão), José Gentil Girão (Seu Ventura), Apolônio Alves dos Santos, Cícero Vieira da Silva (Mocó), Elias A. de Carvalho, Expedito Ferreira da Silva, Franklin Maxado, Gonçalo Ferreira da Silva e mais raramente Sebastião Nunes Batista.
Todos eles continuaram a alimentar a minha imaginação, sempre com respeito e reserva de espaço: poeta é uma coisa, poeta popular é outra. Assim eu pensava.
Mas uma vez ousei pular a fronteira dessa formalidade: comprei um livro de interpretação de sonhos com o intuito de transformá-lo em cordel. Pronto o trabalho, levei os originais para a leitura crítica de Franklin Maxado, que tinha uma banca na Cinelândia. Passado alguns segundos de leitura, escutei ele falar de si pra si: “O homem é poeta!”
E foi assim que nasceu o \\\\\\\"Sá de João Pessoa\\\\\\\", poeta popular, com muito orgulho...
Rio de Janeiro, Cachambi, 22/03/2009.
II-Como me meti na Literatura de Cordel
Nasci na Paraíba, sem dúvida alguma o grande celeiro de poetas e cantadores populares. Portanto, ser paraibano pode parecer passaporte para a Poesia Popular, mas não é bem assim.
Muito cedo saí de João Pessoa. Não nego, porém, que minha curta vida nessa cidade – e também em Rio Tinto, terra onde viveu e morreu o grande poeta José Camelo (Pavão Misterioso) – não tenha sido alegrada por cantoria que se tivesse fixada na minha mente de modo espontâneo.
De lá pulei para São Luís e se não posso chamar o Maranhão de celeiro da poesia popular, pelo menos posso dizer que muitas vezes saí da escola e ia matar o tempo no Mercado da Praia Grande a ouvir folheteiro cantar, de megafone pendurado no pescoço, histórias fantásticas de amor e luta. Eram folhetos de capa colorida que vinham do Pará e reproduziam as histórias de Leandro Gomes de Barros, José Martins de Athayde, entre outros.
O poeta chegava entoando os versos em cantoria. A história quase toda numa carreira só, deixando os ouvintes atentos. Mas quando chegava ao ápice da aventura, ele parava. E agora? Quem quisesse saber o desfecho que comprasse o folheto.
Eu sofria que só o cão de rua: sem dinheiro para comprar um folheto sequer e sem saber o final da história. Ficava por ali, rondando o cantador, esperando os ouvintes fazerem as compras ou desistir, ir embora. Quando ficavam só eu ele, então perguntava bem baixinho, no pé do ouvido do poeta, qual o desfecho de tão emocionante aventura. Ele me olhava, pensando se poderia quebrar a tabu de nunca divulgar o desfecho a não ser vendendo o folheto. Alguma vez, contava, outras não dizia nada, pegava a velha maleta, se mandava embora. Em silêncio eu mandava a ele dois ou três xingamentos pela desfeita.
Anos depois – quem diria! – o fato iria se repetir em pleno Rio de aneiro, na Praça Mauá, desta vez tendo como cantador José João dos Santos, isso mesmo, o famoso “Azulão”, que depois viria a ser conhecido como Mestre Azulão. Isso é o que veremos daqui a pouco.
Estávamos em São Luís. Em lá chegando, fomos morar no Outeiro da Cruz, bairro distante do centro, onde a luz elétrica ainda não havia chegado. Menos mal, pelo menos à distância já se podia divisar a luz nos postes. Bom augúrio, pois a cada dia que passava, de poste em poste, ela vinha chegando a nossa casa.
Corria os últimos anos de 1940. Garoto, com meus 6/7 anos de idade, acordava cedo e ia sentar na calçada da casa para ver os tropeiros passando em direção à cidade, rumo das feiras, com seus produtos para venda. A tropa era composta geralmente de jumentos ou burros, mas lá uma vez ou outra, passava um carro de boi com as rodas cantando como uma sirena à distância ou um lamento tristonho.
Muitas vezes a tropa seguia silenciosa e em silêncio sumia lá no fim da estrada. Na maioria das vezes, no entanto, a cantoria, o aboio, gritos para animar as montarias e para manter desperta a tropa de trabalhadores da terra, incansáveis no seu labor. Todo o som varava a madrugada, pois sol ainda não raiara, avisando aos moradores que era hora de despertar.
Esse pedaço de infância foi o que sobrou. Depois a gente cresce e a graça acaba. A vida crua, o velho destino que cada um cumpre, acabou por me expulsar da Ilha Rebelde e eis-me no inicio dos anos 1960 em pleno Rio de Janeiro. Desta vez não foi o cordel que me atraiu e sim a luta dos Poetas Alternativos, ditos malditos, que batalham seus trabalhos nas ruas à moda dos poetas populares.
E não só nas ruas. Também enfrentam as dificuldades de arcar com as despesas de publicação, divulgação e venda dos livros. Essa afinidade era compensatória para ambas as classes de poetas (se podemos assim chamar) e alguém haverá um dia de analisar mais profundamente esse elo de união entre a poesia de cordel e a poesia alternativa. Deixando desde já bem claro que a poesia de cordel já é, por natureza, poesia alternativa.
Uma perfeita simbiose dessa irmandade criou corpo com o poeta Flávio Nascimento, que era cordelista e alternativo ao mesmo tempo. Era comum encontrá-lo na Cinelândia cantando e vendendo folhetos e livros, tendo como palco um caixote de madeira. Nomeava seus folhetos e pliegos de Cordel Urbano – isso lhe custou processo do cartunista Lapi (Luís Antônio Pires), que tinha patenteado o nome.
Participei junto com Lapi e Zé Andrade em evento organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian sobre poesia alternativa. Lapi era exacerbado quanto aos direitos autorais e mantinha um advogado de plantão para caçar os violadores de suas patentes. Só que Flávio Nascimento era, como se diz, um durango e me consultou desalentado sobre o que fazer. Dois ou três dias depois encontrei o Lapi e contei-lhe o drama que Nascimento vivia. Ele me prometeu retirar o processo, notícia que repassei a um aliviado Flávio Nascimento na primeira vez que nos reencontramos.
Só nos meados de 1965 fui encontrar o primeiro poeta de cordel no Rio de Janeiro – que não era outro senão o próprio Azulão! É bom começar pelos melhores. Estou para ver um lugar aqui no Rio de Janeiro onde esse poeta não tenha arriado sua banca: naquele tempo ele usava o caixote mesmo, outras vezes era uma valise que mais parecia uma maleta velha. Mas fui encontrá-lo na antiga Praça Mauá. Antiga pela conformação física (que não é mais essa de hoje), velha pela boemia e pela malandragem que ali se juntavam, avelhantada pelos bicheiros comandados pelo ancestral (e já falecido) Zica, homem cujo domínio na praça era legendário e incontestável, pois era chamado o dono da Praça Mauá – O Rei do Porto. Ali encontrei o Azulão e sempre que podia dava uma fugidinha do escritório, que era ali mesmo no Edifício A Noite, sede da também famosa Rádio Nacional.
Azulão decerto era reminiscente da geração de grandes poetas, cantadores, violeiros e repentistas, emigrada do Nordeste para o Rio de Janeiro. Há muitos mais, porém especializados numa ou noutra coisa. Azulão, não. Ele foi tudo isso aí em cima junto, sem dever nem a um nem a outro: era uma enciclopédia do cordel. A geração de novos poetas se assenhoram, estão chegando com todo vapor e todo talento, graças à escolaridade e experiência emprestada e deixada como herança por Azulão.
Autor dessa obra-prima que é O Trem da Madrugada, Azulão não encontrou dificuldade para assimilar os temas da cidade grande e com o talento que Deus lhe deu erigiu uma obra de cordel urbano sem igual. Os loucos da moda, Camisinhas para todos, O terror nas Torres Gêmeas, Os loucos da Moda, O mártir de San Quentin – Chessman e A escravidão moderna, são outros folhetos em que a crítica, a sátira, a política e a poesia se reúnem para comentar os costumes sociais da época.
Dono de uma memória incrível, Azulão só precisava de um empurrãozinho, uma citação, o primeiro verso, para depois declamar de um só fôlego todo o folheto, empolgado como se fosse a primeira apresentação. De vez em quando dava uma paradinha na récita e comentava em prosa as ocorrências criadas, sempre com o intuito de provocar ainda mais os ouvintes, espicaçá-los para a trama, aguçar a curiosidade e finalmente vender, que é o objetivo de todo bom folheteiro. Mas para os espectadores, Azulão era apenas um excelente cantador apresentando seu último trabalho.
Um dia seus óculos quebraram e Azulão ficou sem pai nem mãe, pois sem aquelas lentes fundo-de-garrafa ele ficava ceguinho. Com o folheto praticamente colado nos olhos dava inicio à história – e o resto da leitura era e memória que fazia sozinha. Se essa falhava (afinal, ninguém é de ferro!) a solução era inventar ali mesmo na hora e o improviso saía bem – tão bom ou melhor que o original.
Tempos depois, mexeu-se na estrutura da Praça Mauá, mudaram a Rodoviária (que era outro elemento de ajuntamento de gente naquele logradouro) para o fim da Av. Rodrigues Alves, o velho Zica morreu na Beneficência Portuguesa e Azulão procurou novas plagas. Já com as raízes revolvidas, ressurgiu em mim nova paixão pela poesia de cordel. Culpa do Azulão. Isso ocasionou um artigo para a revista cabo-verdiana Morabeza, que circulou entre os emigrantes daquela nação africana. Já naquele artigo, fazia um paralelo entre a poesia nordestina e a poesia africana, buscando similitudes.
Vagando pelas ruas do Rio de Janeiro, encontrei velho e desprezado, o poeta Seu Ventura - José Gentil Girão, que espalhava os folhetos para venda em qualquer calçada. Ele se queixava muito dos moleques que roubavam folhetos e saíam em desabalada carreira, que sua idade não mais permite encetar. Reclamava dos fiscais que sempre o persegue e o expulsa dos bons locais de venda. Reclamava até dos colegas cantadores que roubam suas ideias e depois publicam em seu próprio nome.
Reclamava também dos parentes que – segundo o próprio – devido a idade avançada, preferem vê-lo morto. Fora isso era teimoso e não gostava de ser chamado Vovô! Girão é também o típico poeta popular, desses que só relembra os versos se estiverem acompanhados de cantoria. Aí, tudo vem de chofre, a memória funciona como uma máquina. José Gentil Girão – o poeta vaqueiro – é outro poeta que precisa urgentemente ser ouvido e preservado pelas entidades que são criadas para guardar a memória e a cultura, mas se perdem nos labirintos burocráticos a na eterna falta de verbas. Na Praça XV e na Cinelândia, m tempo atrás, deixaram Poetas Populares venderem seus folhetos. Isso foi numa boca que consideravam a “\\\\\\\'poesia de cordel” um elemento cultural e artístico. Depois, tudo voltou ao normal, com os fiscais querendo dinheiro e perseguindo os folheteiros (expulsando do local e apreendendo os folhetos) e os poetas resistindo sem se curvar à exigência da propina.
Encontrei em setembro Sebastião Nunes Batista em plena Praça XV de Novembro, com sua banca, igual a qualquer poeta. Ali conversamos muitas vezes, mas ele se lamentava, pois teria que abandonar a praça, principalmente pela resistência que faziam os próprios colegas, pois ele já estava “arrumado”, por pertencer a uma instituição como a Casa de Rui Barbosa. Não seria justo – segundo eles – tomar o lugar de alguém que precisava da praça pública. Defendi a permanência dele ali, como direito adquirido, mas a sua personalidade pacifica falou mais forte e ele finalmente deixou de frequentar as praças do Rio.
A Praça XV de Novembro também me proporcionou os primeiros contatos com Raimundo Santa Helena, com Apolônio Alves dos Santos, com Gonçalo Ferreira da Silva, m com Marcelo Soares e com Joel Borges, estes dois últimos mais ligados à xilogravura. O Joel Borges é a hidra de várias cabeças: enquanto no Rio de Janeiro é xilógrafo (raramente cantador), em sua terra natal é folheteiro, poeta e cantador, sendo lá sua atividade de gravador mantida em plano secundário. Já Marcelo Soares era mesmo gravador, com a atividade poética mantida à distância, com vistas ao futuro.
Com esses contatos crescentes, meu envolvimento com a Poesia Popular aumentou consideravelmente e foi desembocar no Festival de Poetas e Repentistas havido na Cinelândia e onde conheci Franklin Maxado. Nessa ocasião apresentei a ele um novo poeta de cordel, o Sá de João Pessoa, que estreava com o folheto “O mundo misterioso dos sonhos”. O folheto mereceu a aprovação abalizada do Maxado Nordestino (e dos demais poetas que leram), além de muitos incentivos para que “continuasse e viesse engrossar a fileira dos cordelistas do Rio de Janeiro” – coisa que estava fora de minhas pretensões.
Assim o parto se deu. Daí em diante o poeta popular Sá de São Pessoa – nome dado por Franklin Maxado e aprovado por Raimundo Silva, Marcelo Soares, Ciro Fernandes e Zé Andrade – passou a frequentar e foi adotado pela Feira de São Cristóvão aos domingos, sempre aos domingos.
III-Macunaíma em cordel
Todo livro tem sua história. Este também tem. Quando botei nas mãos o romance Macunaíma, de Mário de Andrade, já estava um marmanjo de 45 anos de idade. Posso dizer que foi uma idade boa pra ler, porque já tinha percorrido muitos caminhos. Como leitor pude, desde o primeiro contato, tirar todo o sabor e prazer da rapsódia de Mário de Andrade. Poucos livros me trouxeram alegria logo na primeira leitura Macunaíma e Dom Quixote. Em seguida vem O mentecapto, de Fernando Sabino e Meu tio Atahualpa, de Paulo de Carvalho Neto.
Depois da leitura de Macunaíma virei fã de carteirinha do velho Mário. Comecei a querer abarcar todas as leituras de Mário de Andrade, tudo que fosse de seu tempo, tudo que a ele tivesse relação. De Macunaíma vi o filme, li o livro, assisti à peça. Nessa época eu estava também envolvido com os poetas de cordel da Feira de São Cristóvão e a conexão com a poesia popular foi imediata. Larguei o livro e comecei a transpor para versos populares a história de Macunaíma.
Quando já estava com cerca de 300 estrofes de seis versos produzidas (algumas foram publicadas no jornal D. O. Leitura de São Paulo), de repente me deu um estalo. O que eu estava fazendo era transpor minha interpretação pessoal de Macunaíma e não o romance Macunaíma. Essa linha não pareceu correta, porque certamente a minha memória iria falhar e não sairia um trabalho de gosto.
Parei tudo e comecei de novo.
Desta vez com o objetivo de transpor, de fato e o mais literal possível, escrevendo os versos com o romance de lado. E desta vez, já com o acréscimo de tudo que foi assimilado com a leitura de Roteiro de Macunaíma, de M. Cavalcante Proença (livro para o qual eu tinha uma continuação sonhada, mas improvável) e Moronguetá, Um Decamerão indígena, de Nunes Pereira. Livros recomendados para quem leu ou vai ler Macunaíma.
Bom, foi assim que tudo saiu. Mantendo o livro de Mário de Andrade colado, aproveitando ao máximo suas próprias palavras e expressões, como também o roteiro dos capítulos. Fácil? Não! Fácil não foi. Principalmente porque acabou se me assenhoreando todo o tempo, além de se mostrar um trabalho pesadíssimo, para o qual me faltou tempo e paciência para rever tudo com o devido cuidado. Por isso quase desisti (com escritores amadores acontece isso).
Agora um novo trabalho pesado tive: digitar para este e-Livro virtual. Foi duro, mas consegui! Para a introdução de cada capítulo tomei o exemplo de Bocage, que iniciava poemas (principalmente os juntados em Poesias eróticas, burlescas e satíricas), com um resumo que ele chamou toda a história numa décima. Aqui também tentei fazer assim.
Por outro lado, não posso dizer – porque me faltam condições e autocrítica – se o trabalho saiu a contento. Agora já estou muito distante do texto – e ele de mim. Agrava qualquer tipo de análise o fato de que não costumo reler o que escrevo. Assim, não posso fazer qualquer avaliação. Quando termino um trabalho, Deus me livre dele! Pronto – já é do mundo!
Ademais, para se saber se uma transposição dessa magnitude deu certo, é preciso que muita gente leia, para tirar desses leitores o depoimento de que o texto foi coerente e dele consegui tirar proveito e alegria como o romance de Mário de Andrade nos traz. Felizmente esse fato somente os leitores podem constatar.
Por fim quero dizer que quem fez a transposição de Macunaíma para a Literatura de Cordel foi realmente o poeta popular Sá de João Pessoa, que a esta altura já abandonou a poesia, mas deixou uma dezena de folhetos de cordel espalhados por aí para nos alegrar.
Rio de Janeiro, Cachambi, 15/04/2009.
IV-Por onde andou o cordel?
(Publicado no jornal O Galo – Natal (RN), novembro de 1988)
Intróito
1. De outro grande poeta,
Um tal Salomão Rovedo,
Leio de carona O Galo,
Jornal valente, sem medo,
Gostei muito – se gostei!
E assim não faço segredo.
2. Pois esse Galo é assim:
Bom de briga, barrufado,
Cantando à boca-da-noite
Um canto bem arrumado,
Diz-que é amor que tá sendo
Por outro amor raptado.
3. Galo antes de cantar,
Como sabe todo mundo,
Bate asas só três vezes
E anuncia num segundo
Que Galo bom não é gordo,
Mas forte, brabo e fecundo.
4. Se cantar fora de hora
Amanhã tem novidade,
Sabendo o canto de cor
Canta com amor e vontade,
Fecha os olhos inspirado
Como cantasse a saudade...
5. Gostei do Galo, repito,
É valoroso jornal,
Mostra que é o Nordeste
Também intelectual,
Cristo nasceu em Belém
E O Galo lá em Natal!
6. Quem tiver outro jornal
Que fale assim desse jeito
Pois mande aqui pro poeta,
Gosto do que é bem feito,
É o beiju do meu café,
A rede que é meu leito.
7. Senti falta do cordel
– Poesia popular –
Que na terra potiguar
Sei que não há de faltar,
Por isso mando um artigo
Pro Galo amigo editar.
8. Aqui quem fala pro Galo
Neste cantar besta à toa
É o poeta popular
Que faz poesia da boa
E se assina pelo nome
De Sá de João Pessoa!
Ao recuperar alguns trabalhos já publicados para transformá-los em livros digitais, quase sempre me encontro diante de estruturas culturais cujas referências se apresentam às vezes contraditórias, às vezes análogas, mas sempre surpreendentes. No meio tempo em que foram escritas e os dias de hoje muita coisa aconteceu, mas a principal foi o advento da internet e o imenso universo de informação que permeia os navegadores da rede.
No presente caso, o artigo Por onde andou o cordel?, publicado originalmente em novembro de 1988 e faz, neste 2010, 22 anos, se originou de uma peregrinação feita às cidades de Valparaíso e Santiago do Chile, em visita a parentes. Para satisfazer o velho vício que tenho e me mantém aceso, qual seja, o de rato de livrarias e sebos, mantenho sempre um lugar vago na agenda e só depois de cumpri-lo me dou por satisfeito.
Foi em Santiago mesmo, na Livraria Andrés Bello¹ , uma das mais conceituadas livrarias do Chile, que encontrei dois folhetos do poeta Vitalício Ulloa – El Barbecho² e La Siembra³, ambos de 1986. Para completar a sorte encontrei o livro Antologia de 5 poetas populares, de Diego Muñoz (1971).
Juntando a isso o volume do Martín Fierro – Ida y Vuelta, de José Hernández, tinha em mãos material suficiente para aguçar a curiosidade de saber até que limites a Literatura de Cordel havia chegado entre nossos vizinhos.
Em matéria de organização achei a vertente chilena bem mais avançada, já tendo sido recolhido tudo aquilo que se relacione aos primeiros impressos de poesia popular, cuja datação é muito semelhante à brasileira, os primórdios remanescendo ao Século XVIII. A publicação de pliegos sueltos culminou com a saída consagrada do periódico Lira Popular, que durou de 1866 até meados de 1930, sendo considerada A Época de Ouro da Literatura Popular Impressa, segundo excertos extraídos de http://www.memoriachilena.cl/:
“Com o nome de Lira Popular conhecemos no Chile os pliegos sueltos, impressos que surgiram em finais do Século XIX e nos quais os poetas populares publicavam suas poesias em décimas, antiga forma métrica que passou para a América com a Conquista, junto a outras variadas expressões literárias usadas pelo povo, como adivinhações, refrães, contos, lendas e romances.”
“Em cada pliego, o poeta incluía cinco ou seis composições em décimas, em geral glosadas de uma quadra, nas quais comentava – desde a sua própria perspectiva – os acontecimentos nacionais e os fatos locais que os afetavam. Mesclavam-se, assim, casos da atualidade, que faziam alusão ao humano, com fatos e personagens bíblicos, que punham em cena o divino, brindes, payas, contrapontos, cuecas e tonadas.”
“Cada pliego pertencia a um só poeta e estava encabeçado em geral, por toscas gravuras populares que ilustravam os temas, realizadas também por alguns deles. Os poetas vendiam seus pliegos anunciando-os aos gritos pelas ruas, mercados e estações de trem. Na Europa se chamava \\\\\\\"literatura de cordel\\\\\\\", pela forma com que seus autores ofereciam suas folhas penduradas em um cordel ou lenço, atados de uma árvore a outra. Os poetas populares publicaram também folhetos de pequeno tamanho com décimas e romances, assim como cuecas e canciones em moda na época.”
“No Chile, o tempo de maior auge de este tipo de imprensa popular se deu aproximadamente entre os anos 1860 e 1920 e seu primeiro colecionador foi o professor alemão e estudioso de nossa cultura Rodolfo Lenz, que doou para a Biblioteca Nacional cerca de quinhentos pliegos que fazem parte das três únicas coleções que existem no nosso país. A Biblioteca Central da Universidad do Chile conta com a Coleção formada por don Raúl Amunátegui com uns 850 pliegos e a Biblioteca Nacional, ademais, conserva a reunida por Alamiro de Ávila que contem 350 pliegos.”
“Afortunadamente, nos últimos vinte anos se tem reconhecido o valor, como fonte histórica, deste tipo de literatura popular. Estão começando a estudar nos pliegos temas como A Guerra do Pacifico, o Governo de José Manuel Balmaceda, problemas limítrofes e disputas eleitorais, entre outros. Também estão mostrando interesse os cantos por angelito e os cantos a lo divino em geral. “Especialmente valiosas são as gravuras populares com que os poetas ilustravam suas décimas, sobretudo as relacionadas com fatos trágicos e violentos: crimes e fuzilamentos.”
A minha alegria é ver que o material de 1988 não envelheceu e que, somado a novas informações obtidas graças à internet, dará muita substância a quem quiser enveredar pelo mesmo caminho.
NOTAS:
1 - Andrés Bello (1781-1865) - Lutou com Bolívar pela independência da Venezuela, Chile e
Argentina. Na Inglaterra conseguiu apoio na luta contra a Espanha. Naturalizado chileno, fundou a Universidade do Chile e escreveu o Código Civil.
2 - El Barbecho é o terreno ainda inculto, deixado em repouso para se revitalizar.
3 - A Semeadura.
Rio de Janeiro, Cachambi, 12/10/2010
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