Capítulo 60.
Charlô de Búzios
Em 1985, fui morar numa casa enorme, no Cosme Velho, com piscina e salões vazios, que usávamos para ensaios, festas, cursos de teatro, circo, capoeira. Da garagem, fizemos um teatro, onde Eugênia armava uma tenda para consultas de numerologia.
Havia uma casinha de bonecas feita de tijolos no quintal, e muitos quartos. Para que o valor ficasse acessível, precisávamos de pelo menos mais uma pessoa pra rachar o aluguel. Eu tinha acabado de conhecer o Charlô, como chamavam o Carlos, por intermédio da Ana Richard, e intuí:
- Eu acho que conheci um cara que toparia.
Topou na hora, entregou o apartamento onde morava, em cima do Baixo Gávea e foi morar conosco. Fez uma obra criando uma casa dentro da casa. Ele passou a ter quarto, sala, banheiro, cozinha e varanda privativos, e uma grande porta de vidro que dava direto na piscina.
Carlos casou com dezoito anos, teve filhos, o casamento durou vinte anos. Havia se separado há pouco tempo. Eu tinha voltado pra casa da minha mãe, separada, com uma filha pequena.
Ficamos muito amigos e éramos parecidos: eu tinha dois namorados e ele também. Eu revezava os dias de encontro, sem enganar ninguém, meus namorados sabiam um do outro.
Com o Carlos era melhor: os três conviviam na piscina.
Um dia, eu estava pegando meu solzinho de manhã, quando ele chegou e disse, sorridente:
- Casei!
Ele tinha conhecido o Celso na véspera, que foi morar lá. Depois conheceu o Marquinho, que não foi morar lá, mas era presença frequente.
O que eu ainda não sabia era que o Carlos era nômade. Assim que a obra ficou pronta, ele se mudou pra São Francisco.
A casa dele em Búzios ficava na Praia dos Ossos, primeira à esquerda depois da corrente, onde hoje é um hotel e não tinha cortina de chita. Tinha uns seis quartos, acho, e uma sala com uma grande mesa de sinuca.
Eu podia chegar lá com seis pessoas sem nenhum problema.
Uma vez levei primo, esposa e filha,...
Continuar leituraCapítulo 60.
Charlô de Búzios
Em 1985, fui morar numa casa enorme, no Cosme Velho, com piscina e salões vazios, que usávamos para ensaios, festas, cursos de teatro, circo, capoeira. Da garagem, fizemos um teatro, onde Eugênia armava uma tenda para consultas de numerologia.
Havia uma casinha de bonecas feita de tijolos no quintal, e muitos quartos. Para que o valor ficasse acessível, precisávamos de pelo menos mais uma pessoa pra rachar o aluguel. Eu tinha acabado de conhecer o Charlô, como chamavam o Carlos, por intermédio da Ana Richard, e intuí:
- Eu acho que conheci um cara que toparia.
Topou na hora, entregou o apartamento onde morava, em cima do Baixo Gávea e foi morar conosco. Fez uma obra criando uma casa dentro da casa. Ele passou a ter quarto, sala, banheiro, cozinha e varanda privativos, e uma grande porta de vidro que dava direto na piscina.
Carlos casou com dezoito anos, teve filhos, o casamento durou vinte anos. Havia se separado há pouco tempo. Eu tinha voltado pra casa da minha mãe, separada, com uma filha pequena.
Ficamos muito amigos e éramos parecidos: eu tinha dois namorados e ele também. Eu revezava os dias de encontro, sem enganar ninguém, meus namorados sabiam um do outro.
Com o Carlos era melhor: os três conviviam na piscina.
Um dia, eu estava pegando meu solzinho de manhã, quando ele chegou e disse, sorridente:
- Casei!
Ele tinha conhecido o Celso na véspera, que foi morar lá. Depois conheceu o Marquinho, que não foi morar lá, mas era presença frequente.
O que eu ainda não sabia era que o Carlos era nômade. Assim que a obra ficou pronta, ele se mudou pra São Francisco.
A casa dele em Búzios ficava na Praia dos Ossos, primeira à esquerda depois da corrente, onde hoje é um hotel e não tinha cortina de chita. Tinha uns seis quartos, acho, e uma sala com uma grande mesa de sinuca.
Eu podia chegar lá com seis pessoas sem nenhum problema.
Uma vez levei primo, esposa e filha, amiga, marido e americana – aquela que dançou e ganhou beijo na boca do Eduardo Dussek, sem ter ideia de quem ele era. Todos eram bem recebidos.
Eu inventava festas no próprio dia durante a praia. Cada um levava uma coisa, e era só avisá-lo pelo telefone (fixo).
Certa manhã, apareceu lá uma moça com um bebê recém-nascido e pediu pro Carlos tomar conta enquanto ela dava um mergulho rapidinho na Praia dos Ossos. O bebê dormia. Carlos aceitou. Mas acabou passando um dia de desespero porque a jovem mãe só voltou pra resgatar o bebê de noite.
Na pandemia, passei um mês numa das casas dele, já tinha vendido a da Praia dos Ossos e construído outra, em Geribá, com a mesma arquitetura da primeira, e ainda maior e com uma grande piscina. Eu fiquei sozinha numa casa de cinco quartos, piscina, churrasqueira, varandas, jardins e um grande espaço aberto. Ele ficou na casa menor, ao lado, com o João, a Adriana Alvarenga e o bebê Bochecha.
De noite, os gambás se enfiavam no latão de lixo. Às vezes eram pequenos e não conseguiam sair, ou derrubavam o latão, causando um estrondo no meio da noite, ou morriam afogados, quando chovia muito e entrava água no latão.
- Bota veneno, eu dizia, implicando.
Não eram gambás da Disney.
O Carlos resolvia de outro jeito: comprou um armadilha grande, tipo gaiola, tipo ratoeira gigante.
De manhã, o procedimento: transferir o gambá capturado para uma caixa, colocar no porta-malas, dirigir uns dez quilômetros e soltá-lo no mato.
Viajávamos muito juntos. No Sana, ele saiu pra caminhar de manhã cedo. Quando acordei, tomei meu café e saí para caminhar também. Várias pessoas dirigiam-se a mim, dizendo, sem que eu perguntasse:
- Seu marido foi para lá.
Eu não desmentia, tirava onda, Carlos é aquele coroa elegante, moderno de pensamento mas cavalheiro de antigamente, abre porta do carro, paga conta do restaurante, puxa cadeira.
Tivemos uma loja de fios, teares e acessórios de tecelagem, no Posto Seis, na Rua Gomes Carneiro, mas esse é assunto de um próximo capítulo.
Quando minha mãe estava muito doente, sem volta, para espairecer minha cabeça, ele me matriculou numa vivência de Danças da Terra, num terraço enorme na casa de um indígena chamado Cacá, em São Paulo. Dançamos muitas danças: indígenas, indianas, nordestinas, da África do Norte - ministrada por um negão de quase dois metros de altura, bem diferente da dança afro que eu fazia aqui no Rio, baseada nos pontos de Candomblé e nos movimentos dos Orixás.
E muitas outras danças, havia professores de toda parte do mundo.
Eu aproveitava a companhia do Carlos quando ele estava por perto. De vez em quando ia morar em outros lugares, bastava uma obra ficar pronta. Como foi pra Fortaleza e Salvador, onde ficou muitos meses.
Entre outros passeios longos: Porto Seguro, Morro de São Paulo, Jijoca e Jericoacoara, Sete Cidades, no Piauí e São Luiz do Maranhão.
Quando estava em Búzios, tínhamos que aproveitá-lo. Além da casa grande de Geribá, e da menor, tinha comprado uma casinha pequena na Aldeia, que precisava de obras. Carlos empenhou-se, fez as reformas necessárias, e quando tudo ficou pronto, ele se mudou pra Recife.
Mas Geribá sempre o trazia de volta.
Quando comecei a ler meus poemas em bares, o Carlos, corajoso, leu comigo. Pedimos ajuda ao amigo e ator João, e lá fomos nós para um lugar que minha irmã indicou. Era um bar gay em Botafogo, acho que se chamava Do Outro Lado.
Em dezembro de 1988, fomos passar o ano novo em Maringá, onde ele morava, amargando o assassinato recente do Chico Mendes, quando houve o naufrágio do Bateau Mouche.
Choveu muito, e estávamos todos tristes.
Eu tinha levado quatro pessoas, entre elas minha irmã e sua namorada.
Rosana, com sua alegria, salvou o primeiro dia do ano.
Foi uma pessoa lúdica e criativa, compúnhamos músicas, ela ao violão, temas brincalhões sobre nós mesmos. Carlos trabalhava com argila. Tem mãos de ouro.
Fez cursos de massagens, comprou uma maca dobrável, muitos livros e, quando estava tudo pronto, fechou a maca e interessou-se por meditação, depois jardinagem. Em Maringá, foi a primeira vez que eu vi e ouvi falar em kiwi, na casa dele havia mudas.
Depois do casamento prematuro e da homossexualidade assumida, quis viajar o mundo e seu mundo interno.
Quando o Rogério, que chegou a morar conosco na casa do Cosme Velho, foi pra Londres, Carlos foi junto.
Quando a Regina arrumou um namorado que foi trabalhar em Paris, Carlos telefonou, apresentou-se e foi pra lá. No inverno, voltou pra Geribá.
Quando herdou, com outros parentes, uma casa de pedra em Bane, no Líbano, onde sua mãe nascera, lá foi ele conhecer a casa.
Muitas vezes eu me confundia, sem saber onde ele estava:
Argentina, Venezuela , Paraguai, Uruguai, Colômbia; Nova York, São Francisco, Washington, Miami, Florida, Califórnia, México, Egito, Marrocos, Portugal, Espanha, França, Inglaterra, Holanda, Bélgica, Dinamarca Alemanha, Finlândia, Suiça, Suécia, Grécia, Turquia, Praga, Krakóvia, China, Singapura, Japão, Dubai ou Líbano?
Antes da Internet, mandava cartões de papel. Depois, fotos e mensagens.
Fez terapias, tradicionais e excêntricas, como passar dias com um grupo, todos nus na mata, fazendo sua própria comida, casa de taipa e fogueira.
Depois voltava pra Geribá, energizado.
Ele e Ana Richard fizeram um primeiro curso de teatro na CAL e ficaram tão imbuídos da arte cênica, que tudo era palco: a padaria, a praia, os restaurantes e bares.
A caminho de Búzios, os três, paramos num bar de estrada, e eles interpretaram um casal que brigava por bobagens, levantando a voz. Viraram o centro das atenções até cairmos na gargalhada e irmos embora, rindo mais ainda.
Outra vez, estávamos no carro fumando um baseado, sempre em direção a Búzios, quando fomos parados no Posto Policial. O guarda pediu os documentos do motorista e do carro.
Carlos achou que tinha perdido a carteira e saiu desesperado pro outro lado da pista pra ligar pra ex-mulher, sua sócia nos negócios, referência feminina e amiga na época. Ana viu um barzinho de beira de estrada e também saiu do carro, na larica. Eu fiquei sozinha, com o som alto, as portas bem abertas, e o guarda que, a essa altura, queria nos liberar de qualquer jeito.
Eu fui atrás da Ana e a encontrei comprando bananadas, empadas, jujubas, bombons, amendoins, refrigerante e café.
Quando voltamos para o carro com pacotes de guloseimas, Carlos achou a carteira no bolso da calça, e o guarda praticamente nos implorou para que fôssemos embora, seguíssemos viagem e liberássemos a pista.
Depois, fizemos juntos outro curso de teatro, e levamos conosco meu namorado Catu e meu irmão.
O Carlos ainda não tinha Facebook, então postei uma foto nossa brindando e marquei que tínhamos ficado noivos. Foi uma chuva de felicitações. Mesmo aqueles que sabiam da nossa amizade, mandaram votos efusivos de felicidades ao casal.
Os pais do Carlos venderam o apartamento de Ipanema e foram morar em casas com mais espaço nas cidades de Natal, onde eu fui passear, e em Campos do Jordão. Claro que o filho aproveitou. O pai dele estava usando cadeira de rodas, e precisavam de espaço.
Quando a irmã do nosso amigo Pablo Menezes ia se casar, em Aracaju, teve festa para a família. Se algum amigo viajasse, lá ia o Carlos também, e eu atrás.
Não fomos para a cerimônia, mas fomos pra Aracaju com a Sheila, e agendamos tantos passeios que só conseguimos ver o Pablo e o Nil Neves uma vez, quando foram nos ver no hotel e saímos para conhecer a cidade. Pablo é artista plástico, veio para o Rio de Janeiro, e morava em Búzios na época.
Navegamos pelo Rio São Francisco e foi uma experiência tão forte, que cada um de nós, em algum momento, enxugou lágrimas escondidas ouvindo Gonzagão.
Mas era da água fria de Geribá que eu tinha saudades, na volta.
Quando minha amiga Kris, linguista, foi trabalhar com os indígenas em São Gabriel da Cachoeira, na Amazônia, Carlos e eu fomos com ela. Ficamos hospedados numa ilha pequena para onde tínhamos que ir e voltar de lancha. Lá, pela primeira vez, vi um pé de açaí.
Navegamos pelo Rio Amazonas, pelo Rio Negro, e igarapés. Era época de cheia.
Havia uma mesa de madeira na parte rasa do rio. Vi uma mulher com panelas, roupas, um bebê, lavando tudo e todos, até ela mesma. Adorei aquele banho de tudo. A água doce tem essas vantagens.
Visitamos uma aldeia que ficava numa ilha. Fomos de lancha, levando uma avó indígena que não via os netos há um tempo. Lá, havia um menino que não andava porque \\\"caiu um raio\\\" perto dele. Carlos disse que compraria uma cadeira de rodas, e eu me encarregaria de enviar. Enviamos, mas soubemos, tempos depois, que o menino havia falecido.
Quando minha amiga chilena me convidou pra visitá-la, Carlos e Sheila foram também.
Minha amiga e o marido tinham um apartamento de dois quartos em Santiago, e outro em Concón que, descobri depois, era a praia que continuava Vina del Mar, no Oceano Pacífico. Fomos passar uns dias em Concón, e Carlos e Sheila se mandaram pro Deserto de Atacama.
Eu era fascinada por alugar casas fora do Rio, e ele dividia comigo, mesmo quando nem chegava a ir: Mirantão, Secretário e São Pedro da Serra.
Eu também alugava e rescindia os contratos, porém sem fazer obras.
Ganhei um concurso nacional de contos em Itatiba, fui pessoalmente receber o prêmio, com Carlos e Sheila.
Investigamos o que havia lá para turistas e, após a cerimônia da entrega do prêmio, visitamos o Zoológico e vinheiras. Era o que tinha.
Quando minha filha passou um feriado em Taquaril, Carlos quis saber onde era, alugou a mesma casa, e nos convidou pra ir junto: a Rita e eu.
Mas nenhum lugar desses, todos fascinantes, levou meu amigo de Búzios.
Graças ao casamento prematuro, hoje tem o privilégio de ser bisavô de quatro crianças.
Numa das viagens a Recife, conheceu o João. Foi e voltou, trouxe e levou dezenas de vezes durante anos e anos.
Hoje está casadérrimo e fidelícimo, terminando uma obra na casa da colina, e organizando, juntos, uma viagem pra Foz do Iguaçu.
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