A gente não tinha muito tempo para brincar.
Meu nome completo é Carmen de Mello Cordeiro. Nasci em 1952, em Minas Gerais, na cidade de Curvelo. Eu tinha três anos de idade quando nós viemos embora juntos para São Paulo.
A gente não tinha muito tempo para brincar. Nós éramos muito pobres, muito mesmo. Eu, meu irmão e minha irmã estudávamos de manhã. Quando chegávamos em casa, a gente comia o que tinha, e íamos trabalhar. Minha mãe passava e engomava a roupa para artistas da televisão na época, e eu costurava. Eu tinha sete anos de idade e a gente tinha uma máquina de costura. Chegavam uns fardos imensos de calça jeans para a gente colocar o bolso e o zíper. Eu aprendi aquilo com uma facilidade muito grande e com muita rapidez, eu ficava orgulhosa de mim, feliz que eu ajudava os meus pais costurando essas roupas. Era a nossa sobrevivência, nós trabalhávamos muito com isso.
Meu pai era mestre de obras, então ele trabalhava com construção. Eu, quando eu já tinha sete anos de idade, ajudava meu pai fazendo os contratos de emprego, para ele poder pegar serviço.
Quando não tinha o serviço, a gente saía na rua. Eu e meus irmãos, nós pegávamos uma carrocinha e saíamos nós três, de porta em porta, pegando o que a gente achava para manter a sobrevivência. No lixo, às vezes, a gente achava uma lata, às vezes achava uma roupa, ou um brinquedo. O que a gente achava com aquela carrocinha, a gente pegava para trazer para casa para o nosso uso. Eu e meu pai fazíamos muito isso, a gente passava o dia inteiro pegando aquelas coisas. Meu pai ficava triste por precisar fazer isso junto com a gente. Às vezes, eu pegava ele andando com a gente, puxando aquela carrocinha, e via algumas lágrimas no seu rosto, eu fingia que não tinha visto, não queria deixar ele preocupado com isso.
Eu sou uma mulher filha de Oxum
Os meus pais eram católicos. Nós fomos batizados na igreja católica, fizemos a primeira comunhão. Então, começou...
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A gente não tinha muito tempo para brincar.
Meu nome completo é Carmen de Mello Cordeiro. Nasci em 1952, em Minas Gerais, na cidade de Curvelo. Eu tinha três anos de idade quando nós viemos embora juntos para São Paulo.
A gente não tinha muito tempo para brincar. Nós éramos muito pobres, muito mesmo. Eu, meu irmão e minha irmã estudávamos de manhã. Quando chegávamos em casa, a gente comia o que tinha, e íamos trabalhar. Minha mãe passava e engomava a roupa para artistas da televisão na época, e eu costurava. Eu tinha sete anos de idade e a gente tinha uma máquina de costura. Chegavam uns fardos imensos de calça jeans para a gente colocar o bolso e o zíper. Eu aprendi aquilo com uma facilidade muito grande e com muita rapidez, eu ficava orgulhosa de mim, feliz que eu ajudava os meus pais costurando essas roupas. Era a nossa sobrevivência, nós trabalhávamos muito com isso.
Meu pai era mestre de obras, então ele trabalhava com construção. Eu, quando eu já tinha sete anos de idade, ajudava meu pai fazendo os contratos de emprego, para ele poder pegar serviço.
Quando não tinha o serviço, a gente saía na rua. Eu e meus irmãos, nós pegávamos uma carrocinha e saíamos nós três, de porta em porta, pegando o que a gente achava para manter a sobrevivência. No lixo, às vezes, a gente achava uma lata, às vezes achava uma roupa, ou um brinquedo. O que a gente achava com aquela carrocinha, a gente pegava para trazer para casa para o nosso uso. Eu e meu pai fazíamos muito isso, a gente passava o dia inteiro pegando aquelas coisas. Meu pai ficava triste por precisar fazer isso junto com a gente. Às vezes, eu pegava ele andando com a gente, puxando aquela carrocinha, e via algumas lágrimas no seu rosto, eu fingia que não tinha visto, não queria deixar ele preocupado com isso.
Eu sou uma mulher filha de Oxum
Os meus pais eram católicos. Nós fomos batizados na igreja católica, fizemos a primeira comunhão. Então, começou comigo a necessidade da religião de matriz africana na nossa família.
Eu tinha 18 anos quando fui me casar e fiquei doente, muito doente. O médico falou para mim que eu tinha tuberculose. Antigamente, essa doença era muito ruim, você precisava ficar em um isolamento. Eu fui internada. Na época, já tinha tido o meu primeiro filho, o Pai Carlito. Larguei o filho com a minha mãe, ele tinha seis meses, e comecei a tratar a tuberculose. Só que chegou um momento em que eu já tinha tomado todo tipo de medicação e eu não me curava. Um dia de noite, eu estava deitada na cama, era uma enfermaria que tinha umas seis camas. Quando eu olhei pela janela, vi um marinheiro na janela do terceiro andar. Comecei a gritar: “Tem um homem na janela, tem um homem na janela, tem um marinheiro na janela”. Começaram a vir as enfermeiras, chegou todo mundo. O médico chamou os meus pais e o meu marido. Ele disse: “tem que levar ela embora daqui, se deixar ela aqui, ela vai morrer, eu não tenho mais o que fazer para ela. O que ela precisa é espiritual\".
Era necessário para a minha cura que eu me tratasse religiosamente. Então, quando eu saí do hospital, eu já saí com essa missão. Meus pais conheciam uma senhora, que tinha um terreiro de Umbanda, essa senhora aconselhou os meus pais a fazer o meu santo e a cuidar de mim, porque o meu problema era espiritual e não tinha nada a ver com a medicina, se não fizesse eu ficaria sempre doente.
Eu precisava fazer as obrigações para me curar. Era uma cobrança espiritual, porque o Orixá vai te buscar, é um chamado. Eu já estava determinada, sabia que teria que passar por processos de iniciação. Iniciação é quando você se entrega, você se recolhe, faz um recolhimento espiritual para desenvolver, ou seja, para fazer esse Orixá entrar dentro da sua vida, dentro da sua pessoa.
Eu sempre soube que eu teria essa liderança dentro da casa de candomblé. Porque quando eu fiz o santo, fui escolhida. A senhora, a Ialorixás que fez a minha obrigação na época, disse que eu teria uma missão dentro da religião. Eu fui fazer o Orixá, fui raspar o santo, fui fazer as obrigações necessárias para ser Yalorixás. Eu me entreguei de corpo e alma porque não tive opção. Quando você é escolhido, você não tem livre-arbítrio. Você é escolhido, apontado, e ali está resolvida a tua vida. Você não pode simplesmente falar, “não, eu não quero”. Então, você é feito de santo mesmo.
As pessoas sempre falaram que eu era de Oxum. Falavam: “É filha de Oxum, ela é filha de Oxum”. Ser filha de Oxum é a minha essência. Eu não saberia ser outra pessoa, nem ser outra coisa. Eu não saberia ter outro Orixá na minha cabeça. É a minha personalidade, é a minha liderança, é a minha fé. Ser filha de Oxum é como ser filha do universo, filha da criação. Oxum é uma santa; dona do rio, da água doce, da fertilidade, do ouro e das cachoeiras. Ela foi, para mim, a primeira Ialorixás que existiu. Então, ser filha de Oxum, é ser eu. Eu sou uma mulher filha de Oxum.
Eu vivi minha religião
Dos 19 anos em diante, eu vivi minha religião, a maioria das coisas, quase tudo era voltado para o sacerdotismo. Eu tenho uma vida comum, uma vida pessoal, eu tive filhos, tive casamento, relacionamento, gosto de lembrar disso também, a gente dá risada, a gente brinca, a gente sai, viaja, passeia. Mas, a maioria das coisas com as quais eu convivo, na realidade, são religiosas. Eu tenho um amor muito grande por tudo isso,pela continuação da nossa ancestralidade, porque eu acredito que a nossa ancestralidade sofreu muito.
A nossa religião é oralidade. Então, eu gostava muito de escutar sobre a religião. Eu acredito que quanto mais você vive, mais você convive com o seu sagrado, com a sua fé, com a espiritualidade e a ancestralidade, isso se valoriza e isso não acaba. Muitas pessoas lutaram para encerrar a nossa religião, para que ela não existisse mais. Mas, cada vez que nós conversamos com uma pessoa, que conversa com outra pessoa, a gente propaga a religião, assim, deixamos aquilo fluir, aquilo florescer, aquilo acontecer. Então, a religião é maravilhosa. Eu nunca quis outra religião.
Um patrimônio comigo viva.
Eu queria um lugar sagrado para que nós pudéssemos cultuar da melhor forma possível. Eu tinha uma casa própria, que era um quarto, um banheiro e uma cozinha. Eu fiz do quarto, o lugar sagrado. Nós ficamos com o banheiro e a cozinha, o corredor, a gente usava para dormir. Assim, o Orixá foi me acompanhando, me ajudando, me protegendo. Um dia, o meu filho falou pra mim: “Mãe, nós temos que ter um lugar melhor, maior”.
Começamos a procurar um lugar para nós termos nossa roça de candomblé. Eu encontrei um amigo que falou: “Eu vou levar a senhora, Mãe Carmen, num lugar onde se a senhora gostar, vai ser bom para a senhora”. Era um lugar maravilhoso. Fui lá, encontrei a dona, bati na porta e falei para ela: “Olha, eu soube que a senhora está vendendo um lugar e eu queria muito conversar com a senhora sobre isso”. Ela nunca acreditou que a gente poderia comprar aquela roçai. Eu falei “Eu vou pagar à vista”, mesmo não tendo um centavo.
O meu filho falou: “Mãe, como nós vamos comprar isso?”. A gente tinha um carro, nós vendemos o carro. O meu filho, desde pequeno, desde antes dos 11 anos de idade, já trabalhava junto comigo. Ele conheceu uma senhora de Iansã, dona Bernadete, e fez um trabalho sério para ela, ela deu um presente muito grande para ele. Juntamos todo esse dinheiro e esse presente que a gente ganhou, além do dinheiro da venda do carro, dava para a gente pagar à vista. Eu fui para o banco, antigamente se fazia cheque administrativo. A gente foi para a casa da Dona, com aquele envelope dentro, aquilo era o ouro da nossa vida. Nós chegamos lá e ela falou assim para nós: “Não deu certo, né, dona Carmen?”. Eu falei: “Não, senhora. Deu certo”. Nós saímos dali proprietários.
A gente foi crescendo aqui. A gente foi arrumando, foi trabalhando com as nossas próprias mãos. Nós ganhamos muitas coisas boas por trabalhos ofertados às pessoas com resultados positivos. Fomos construindo, construindo, construindo, e se transformou no que é hoje. Então, a conquista daqui, para nós, é uma coisa muito forte, porque foi uma conquista com muita luta, muito sacrifício e muita fome. Nós passamos muita fome para poder ter as coisas. Não foi tão difícil para nós, porque eu passei muita fome. Meus filhos, os três primeiros filhos, também passaram muita fome. A gente comia assim; misturava o feijão, o arroz, o broto do chuchu e o broto de abóbora. A gente misturava tudo e fazia um ragu, a gente comia aquilo tudo junto. Então, nós estávamos acostumados a, simplesmente, viver. Até hoje a gente sabe conviver assim. Conseguimos comprar isso daqui, com todo esse sacrifício, com toda essa luta...
Hoje, nós somos patrimônio do município e do estado de São Paulo. Eu tenho a honra de Oxum, dos Orixás do universo, tenho essa casa tombada, patrimônio que comigo vive. Então, nós fizemos muita luta para chegar a tudo isso, porque a discriminação é muito séria. Eles tombam uma casa alugada, mas eles não tombam um terreiro de Candomblé.
Não gosto da morte
O que me deixa angustiada é quando eu estou jogando os búzios e vejo a morte. Eu não gosto da morte porque ainda não entendo essa perda. Eu tenho amor. Então, perder, para mim, quer dizer que eu vou sentir falta daquilo. Nós não estamos preparados para aceitar a perda. A gente perde aquela pessoa, a gente chora muito, depois vai se acostumando, mas não perde o vínculo, porque a gente se lembra todos os dias.
Eu aprendi que as pessoas, quando morrem, elas não desaparecem. Elas podem vir falar conosco, elas podem estar presentes no nosso dia a dia. Quando a minha mãe faleceu, a gente correu muito para tentar evitar a morte dela. No dia que ela se foi, eu senti mesmo que isso ia acontecer. Um dia eu estava dormindo e eu tive um sonho, foi uma visão. Ela chegava na minha casa, toda de branco, ela me olhava e não falava nada. Ela arrancou um pouco de uma frutinha que era uma maçã vermelha, jogou para mim e eu peguei. Depois, ela falou para mim: “Filha, eu te amo”. Quando eu acordei de manhã, eu acordei com a mão assim, como se eu tivesse pego de verdade aquilo. Essa foi uma das histórias que me ensinou que dentro da nossa religião, o corpo fica na terra, mas o espírito, a alma, a essência vai para um lugar onde nós vamos nos ver e nos encontraremos muitas vezes.
Então, todas as vezes que estou precisando muito falar com a minha mãe, eu falo com ela. Ela conversava com a mãe dela e eu, até hoje, converso com a minha mãe e tenho certeza que ela me ouve. Eu tenho sempre a sensação de que estamos muito próximos.
Então, a morte, para mim, é um momento certo. Eu sei que ela está ali, que a qualquer momento ela virá. Tem momentos em que ela vai te tirar o sofrimento. Tem momentos em que ela vai te tirar a dor. Então, a morte é necessária, mas a perda é ainda mais difícil.
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