Coisas de que me lembro
Vim ao mundo às duas horas da madrugada, do dia 14 de fevereiro, dia de São Valentim, no município de Birigui (SP). Deram-me um nome diferenciado, cuja origem me intriga até hoje. Minha mãe dizia que havia visto esse nome num livro. Mas não é provável. A explicação mais plausível é que minha mãe escolheu o nome Valter. Mas quando, no cartório, perguntaram ao meu pai:
- Que nome ia dar ao filho?
Meu pai deve ter respondido algo assim:
- O nome di Valte.
Bem, o funcionário do cartório nem pensou: pegou o “di Valte” e registrou “Divalte”, e assim ficou. Tão diferente que sempre achei que fosse o único no universo. Só recentemente encontrei um homônimo no Face Book.
Fui levado à pia batismal tendo como padrinhos minha irmã mais velha, Iraci, e seu marido, João Lourenço, um alagoano boa praça. Foi ele quem, anos mais tarde, me disse uma frase inesquecível. Estávamos na cabine de uma caminhonete, a caminho da cidade.
Acho que ele me levava ao médico. A certa altura, ele me disse: “Divalte, você nasceu numa quarta-feira de cinzas”.
Tantos anos passados, ainda me lembro de sua expressão, olhando para mim e falando de um jeito amigo, carinhoso. Mas o que me surpreende nessa história é que essa frase tenha permanecido na minha memória. Pois eu não fazia a menor ideia do que fosse quarta-feira de cinzas!
É curioso como certas passagens da vida, seja uma simples frase, uma cena, ou coisa desse tipo, ficaram na cabeça da gente e de tantas outras nos esqueçemos.
A FAZENDA SANTA HELENA
Minha família vivia, então, numa fazenda cujo nome homenageava uma santa católica, Santa Helena. (Muito mais tarde, descobri que Santa Helena era a mãe de Constantino, o imperador romano que legalizou o cristianismo no Império Romano.)
O último dos filhos de Dona Dolores foi minha irmã mais nova, a Célia. Ela era muito grande e foi preciso recorrer a...
Continuar leituraCoisas de que me lembro
Vim ao mundo às duas horas da madrugada, do dia 14 de fevereiro, dia de São Valentim, no município de Birigui (SP). Deram-me um nome diferenciado, cuja origem me intriga até hoje. Minha mãe dizia que havia visto esse nome num livro. Mas não é provável. A explicação mais plausível é que minha mãe escolheu o nome Valter. Mas quando, no cartório, perguntaram ao meu pai:
- Que nome ia dar ao filho?
Meu pai deve ter respondido algo assim:
- O nome di Valte.
Bem, o funcionário do cartório nem pensou: pegou o “di Valte” e registrou “Divalte”, e assim ficou. Tão diferente que sempre achei que fosse o único no universo. Só recentemente encontrei um homônimo no Face Book.
Fui levado à pia batismal tendo como padrinhos minha irmã mais velha, Iraci, e seu marido, João Lourenço, um alagoano boa praça. Foi ele quem, anos mais tarde, me disse uma frase inesquecível. Estávamos na cabine de uma caminhonete, a caminho da cidade.
Acho que ele me levava ao médico. A certa altura, ele me disse: “Divalte, você nasceu numa quarta-feira de cinzas”.
Tantos anos passados, ainda me lembro de sua expressão, olhando para mim e falando de um jeito amigo, carinhoso. Mas o que me surpreende nessa história é que essa frase tenha permanecido na minha memória. Pois eu não fazia a menor ideia do que fosse quarta-feira de cinzas!
É curioso como certas passagens da vida, seja uma simples frase, uma cena, ou coisa desse tipo, ficaram na cabeça da gente e de tantas outras nos esqueçemos.
A FAZENDA SANTA HELENA
Minha família vivia, então, numa fazenda cujo nome homenageava uma santa católica, Santa Helena. (Muito mais tarde, descobri que Santa Helena era a mãe de Constantino, o imperador romano que legalizou o cristianismo no Império Romano.)
O último dos filhos de Dona Dolores foi minha irmã mais nova, a Célia. Ela era muito grande e foi preciso recorrer a várias parteiras. A dona Morte rondou a casa naqueles dias de aflição. Mas felizmente tudo acabou bem. Quando finalmente a Célia nasceu correu pela casa comentários do tipo “é uma menina”, “ela é bem gordinha”, “pesou cinco quilos”!
Sempre tive curiosidade de saber qual seria minha lembrança mais antiga. Há alguns meses, com esperança de obter uma resposta para essa dúvida, fui com um sobrinho meu na casa de uma tia dele (por parte de pai). Era uma senhora de idade e quem sabe ela poderia me ajudar.
Dito e feito. Falei para ela do acidente com o Carlitos. Tinha acontecido o seguinte: o Carlitos, da família do João Lourenço, meu cunhado, estava um dia brincando com uma bomba, coisa de garoto. Ele colocou a bomba entre as pernas e batia nela com um martelo. Bem aconteceu o inevitável: a bomba explodiu. E perguntei quando isso tinha acontecido. Ela pensou um pouco e disse
- Isso foi um antes de me casar.
Como ela tinha se casado em 1950, o acidente tinha ocorrido em 1949, ou seja, quando eu tinha quatro aninhos. Bingo! Eu tinha descoberto o fato mais antigo de que podia me lembrar!
Para não deixar o assunto no ar, devo dizer que o Carlitos não morreu nessa ocasião. No máximo deve ter ficado com sua virilidade prejudicada. Mas de qualquer maneira o Carlitos teve um fim trágico: morreu afogado ao cair numa represa.
A vida na Santa Helena tinha muitos encantos, principalmente para nós, as crianças. Não era só trepar em árvores, andar pelos pastos, caçar passarinhos, pescar ou tomar banho no riacho. Também se podia ver os vaqueiros lidando com o gado, marcando, castrando e outras coisas do gênero.
Dizia-se que muitos vaqueiros costumavam levar para casa os testículos dos bois castrados para comer, na crença de que isso os deixaria mais potentes.
Meus dois irmãos mais velhos, Milton e Antônio, com idades próximas dos dezoito anos, tomavam parte nas tropelias de vaqueiros. Me lembro do dia em que o Milton chegou em casa com seu cavalo gravemente ferido. Havia tomado uma chifrada de um boi. Era um cavalo muito bonito, todo vermelho, e a imagem daquele ferimento sangrando ainda está viva em minha memória. Mas sei que o cavalo não chegou a morrer.
Também não me esqueci da tulha, da escolinha que, todavia, não cheguei a frequentar, e da ponte bastante alta sobre o riacho. Era próximo dessa ponte que ficava o local onde a gente tomava banho e as mulheres lavavam roupa. Hoje, segundo me contaram, esse riacho, que era bem largo naquele tempo, está reduzido, segundo me disseram, a um mísero filete de água que se pode ultrapassar num salto!
Um dos nossos passatempos favoritos era ir a pé até o rio Tietê que corria nas imediações. No caminho, a gente passava por um enorme cruzeiro. Nunca soube porque ele estava ali, mas me recordo que ele era o ponto de chegada das procissões que se faziam para pedir chuva nas épocas de estiagem prolongada. A minha irmã Toti me disse há poucos dias, que ela mesma chegou a tomar parte nessas procissões, que para ela era uma diversão. Aos pés do cruzeiro, era comum a gente encontrar moedas que pessoas devotas ali haviam deixado no momento de um pedido. No nosso entendimento, não era nenhum pecado usar essas moedas para comprar sorvete nos botequins da beira do Tietê.
A caminho do Tietê, a gente cruzava também um rio bastante caudaloso, o ribeirão Baixotes. Era um rio piscoso. Reza a lenda que meu pai chegou a pescar nele um peixe de 90 quilos. Pois bem, hoje é um rio praticamente morto e está reduzido a isso que você vê na foto.
Quando eu tinha seis anos, minha família saiu da fazenda e se mudou para a cidade, Birigui. Fomos morar perto da casa da minha irmã mais velha, Iraci, casada e que, na ocasião, tinha dois filhos. Lá ficamos pouco tempo, cerca de um ano. Minha memória registra poucas lembranças dessa época. Mas nunca me esqueci da primeira vez que vi uma locomotiva. Era de noite e estávamos próximos da linha do trem. De repente, apareceu no meio da escuridão aquele vulto monstruoso, soltando brasas e fazendo um barulho assustador. Disparei uma corrida que só terminou em casa!
A MUDANÇA PARA O PARANÁ
Meu pai resolveu, então, mudar completamente a história da família. Viajou com meu irmão mais velho para o Paraná. Comprou um terreno em Paranavaí, no norte do estado, construiu uma casa de madeira e voltou para nos buscar. Embarcamos na carroceria de um caminhão, e lá fomos nós, com mala e cuia, para o nosso novo endereço.
Meu pai não foi o único a embarcar nessa aventura. Naquela época, muita gente, principalmente paulistas e mineiros, estava se mudando para o norte paranaense. Ali, companhias colonizadoras haviam adquirido grandes glebas de terras virgens do governo estadual. A terra era, então, partilhada e posta à venda em condições facilitadas de pagamento. Meu pai chegou a adquirir um loto de vinte alqueires, mas pouco tempo depois desistiu do negócio.
Tudo o que os compradores tinham de fazer era derrubar a mata e plantar o cafezal. O processo foi rápido. Em pouco tempo, as densas extensões de mata atlântica que cobriam aquela região do Paraná foram inteiramente devastadas. Me lembro que, nos primeiros tempos, ainda se podia ver a mata a pouca distância de nossa casa e até ouvir, à noite, o ronco das onças. Com o passar do tempo, porém, a mata foi se afastando até desaparecer completamente do nosso horizonte.
Nas imediações de nossa casa, havia várias serrarias. Eram movidas por máquinas a vapor. Eram máquinas enormes, lembrando uma locomotiva do tipo maria-fumaça. As serrarias funcionavam sem parar, serrando as toras despejadas nos pátios das serrarias, trazidas por caminhões especialmente preparados para essa finalidade. Perobas de um metro de diâmetro rapidamente viravam madeira para construção. A maior parte era levada por caminhões ainda maiores para São Paulo ou para o porto de Paranaguá. Enquanto isso, a mata ia sumindo... E as onças também!
Para nós, as crianças, a serraria criava um local de diversão: a gente brincava de escorregar na montanha de serragem. Parecia muito divertido, mas não para os trabalhadores, pois as condições de trabalho nas serrarias não eram nada boas e os acidentes eram frequentes.
A um desses acidentes eu tive o desprazer de assistir. Certo dia, meu pai me mandou a uma serraria para receber uma conta. Era uma serraria pequena, com instalações precárias. Durante algum tempo, fiquei ali parado, olhando o mecanismo em funcionamento, aguardando que o proprietário tivesse a boa vontade de me atender. De repente, com esses olhos que a terra há de comer, vi um operário ser colhido por uma correia de transmissão e arrastado para o meio das engrenagens. Foi uma cena de terror. Não fiquei sabendo se o infeliz sobreviveu à tragédia, mas eu voltei para casa aterrorizado e sem ter recebido a conta.
Numa outra ocasião, o acidente envolveu um daqueles caminhões de transportar toras. O motorista tivera de parar para acertar a carga, que ameaçava cair. Mas no momento em que ele puxava o cabo de aço que prendia as toras, uma delas escapou e uma de suas pontas caiu sobre o pé do motorista. Ameaçado pelas demais toras, que podiam rolar a qualquer momento, o pobre coitado ficou ali caído, gritando por socorro. Eu e outros meninos estávamos a alguns metros de distância, mas nada podíamos fazer.
Veio uma mulher, uma dona de casa que havia deixado a cozinha para tentar ajudar de alguma forma, mas tudo o que ela pôde fazer foi ajoelhar-se, levantar as mãos e suplicar a ajuda da Virgem Maria. Logo outras pessoas chegaram.
O drama durou até que alguém teve a brilhante idéia de improvisar uma alavanca, soltar o pé do motorista e arrastá-lo para fora do perigo. Desta vez, a história teve um final feliz. O motorista escapou, alguém se sentiu feliz por haver salvo uma vida e a dona de casa ficou acreditando que suas preces foram ouvidas lá no céu.
Havia escassez de quase tudo. Me lembro particularmente do problema do leite e do pão. Uma de minhas irmãs mais nova, Cecília, estava doente e meu pai teve de andar léguas para encontrar leite para ela. O pão era trazido por um padeiro que passava pelo bairro, num carrinho puxado por um cavalo. Vendia o que, literalmente, se pode chamar de “o pão que o diabo amassou”, de tão ruim. Para se poder comer, era preciso, antes, tirar os carunchos.
Mas esses \\\"tempos de guerra\\\" logo passaram e a vida foi melhorando. Graças à lavoura cafeeira, a cidade cresceu e se consolidou. Mas, na região, a cafeicultura não iria durar muito tempo. A terra não era tão boa e cerca de uns vinte anos depois deixou de prestar para o café. E ainda havia o flagelo das geadas que periodicamente queimavam os cafezais. Me lembro bem da geada de 1953. Quando nos levantamos naquele dia e olhamos para o mundo, ficamos maravilhados com a brancura do gelo que cobria tudo. Mas para os cafeicultores foi uma tragédia.
O bairro que meu pai escolheu para fazer nossa casa tinha um nome pretensioso e homenageava o inventor do avião: Jardim Santos Dumont. O proprietário havia feito o loteamento, aberto as ruas e até chegou a oferecer, por algum tempo (por bem pouco tempo), luz elétrica, gerada por um motor a diesel. No início, havia poucas casas e, embora ficassem distantes umas das outras, as famílias se conheciam. Havia famílias de japoneses, gaúchos, mineiros, espanhóis, alemães...
A casa tinha um terreno grande, de maneira que minha mãe pôde, como nos tempos da Santa Helena, continuar criando galinhas e porcos, e ter sua horta e o inseparável forno para assar o pão e outras gostosuras. E até um pomar, em que vieram a ter destaque duas belas mangueiras que faziam a nossa alegria. Mas o detalhe lamentável é que na minha família existia a crença de que a gente, após tomar leite no café da manhã, tinha de esperar duas horas antes de avançar nas mangueiras. Acreditava-se piamente que misturar manga com leite era veneno.
Essa crença ficou arraigada em meu espírito por muito tempo. Eu já estava casado quando, certo dia, a empregada me ofereceu um suco de manga com leite e eu, entre constrangido e surpreso, acabei aceitando. Só então descobri que era uma combinação muito gostosa e que não fazia mal nenhum!
Para o abastecimento de água, foi preciso cavar um poço, que avançou por mais de 30 metros terra adentro. A água era puxada na base da manivela, corda e caçamba. Não era fácil! Mas essa profundidade, se por um lado dava grande trabalho, por outro garantia a qualidade da água, que naquele tempo ninguém sabia que tinha de ser tratada.
O BOTECO
Nosso boteco no bairro Santos Dumont, em Paranavaí, havia sido construído por meu irmão mais velho, o Milton, um cara de muitos talentos. Se não estou enganado, deve ter começado a funcionar no início de 1952 e sobreviveu por uns vinte anos, pelo menos.
Era um salão de madeira, de uns 60 m2. Ficava na frente da casa, à qual se comunicava por uma porta localizada no centro da parede dos fundos. Todo o restante dessa parede estava tomado por prateleiras cheias de mercadorias.
Um pouco à frente, deixando um corredor de cerca de um metro, estavam os balcões, e entre eles uma passagem. De um lado dessa passagem, um balcão grande servia para o atendimento geral e para os recebimentos e pagamentos. E, do outro lado, dois balcões menores (na verdade, eram vitrinas), encostados um no outro. Um dos balcões menores era ocupado por doces e pães, e o outro por perfumarias e material de papelaria.
Junto a uma das paredes laterais do salão, ficava a sacaria; na parede oposta, uma mesa com algumas cadeiras, que servia para tudo: bater papo, beber, jogar, tomar umas e outras, etc. A iluminação, à noite, durante a maior parte do tempo, ficou por conta de um lampião a querosene.
Na parede da frente, três portas se abriam para a rua. Do lado de fora, no centro da parede, uma placa com um nome extravagante “Casa Birigüiense”. Mas pouca gente chamava o boteco por esse nome. Talvez, ninguém mesmo. Era simplesmente a “Casa do Seu Garcia”.
Vários dos filhos (e netos) ajudaram Seu Garcia a tocar o boteco, que abria de segunda a segunda. Eu mesmo labutei por uns cinco ou seis anos, praticamente toda a adolescência. Atendia os vendedores, fazia pedidos, vendia, recebia, pagava, anotava o movimento financeiro e essas coisas.
Às vezes, saía para fazer cobranças ou entregas, para ir ao banco, etc. Era muito comum dar uma escapada para participar de uma “pelada” no terreno que ficava ao lado. Essa era a melhor parte, mas em geral durava pouco, porque logo meu pai me chamava.
Se essa era a parte boa, a parte difícil era atender o padeiro, que passava bem cedo, entre cinco e meia e seis horas da madrugada! Quando ele anunciava “padeeeiro”, meu pai lá do seu quarto gritava “Divartêee” (assim mesmo, à moda caipira. Aliás, raramente eu fui chamado pelo meu nome inteiro). E aí já não deitava mais. O dia havia começado.
O boteco era bastante movimentado, principalmente à noitinha e nos finais de semana. Ali apareciam contadores de piadas, violeiros, cantadores, cachaceiros, prostitutas, enfim, gente de todo o tipo, que protagonizavam histórias imortais.
Comecei a frequentar a escola somente aos oito anos, e não aos sete como todo mundo. Nunca soube a razão desse atraso. Mas estou certo que isso não me prejudicou em nada. A escola do nosso bairro ficava bem perto de casa, algo como um quilômetro. Era uma construção de madeira, com duas salas separadas por uma área coberta e um pátio a céu aberto. Tudo cercado por balaústres pontudas. Nessas duas salas eram ministradas aulas até a terceira série. Minha primeira professora tinha o mesmo nome de minha mãe, Dolores.
Foi dela que ganhei o primeiro livro que li na vida, Mowgli, o menino lobo, e foi um prêmio por haver concluído a segunda série em primeiro lugar.
Na terceira série, tive aulas com uma professora a quem chamávamos Lirde (mas, por ser filha de alemães, a grafia devia ser Lürde). Meu exame final teve de ser feito por meio de provas orais, pois estava com o braço direito engessado. Ainda assim passei com nota nove, a segunda melhor da classe.
A primeira ficou com um aluno japonês que competia comigo. No ano seguinte, fui para a cidade para cursar a quarta série no Grupo Escolar. Naquele tempo, após a conclusão do Primário, havia um Exame de Admissão ao Ginásio. Na primeira vez que prestei esse exame, fui reprovado. Pelo resto da vida, fiquei achando que fui vítima de uma injustiça, pois havia passado bem pela quarta-série. Mas na ocasião a ninguém ocorreu pedir uma revisão de prova. Dessa forma, somente aos treze anos pude começar o Ginásio.
Haveria muito que dizer da minha infância no Jardim Santos Dumont, que tinha muita semelhança com a vida na Santa Helena. Afinal, o bairro ficava entre a cidade e a zona rural, e era na zona rural que a gente passava a maior parte do tempo. Fazíamos caminhadas quase diariamente, em diferentes direções, e ficamos conhecendo a região num raio de muitos quilômetros. Pendurado no pescoço, o inseparável estilingue, que em certas ocasiões podia ser uma arma fatal. Nelson, Meu irmão imediatamente mais velho, era o campeão na pontaria. Era comum a gente voltar para casa trazendo rolinhas e inhambus, aves cuja carne era muito apreciada.
Um companheiro inseparável nessas aventuras era o King, um vira-lata branco com manchas pretas, de tamanho médio, que lembrava um pastor alemão. Era muito querido, e por isso, no dia em que o mataram a tiros, sob a desculpa de que estava louco, na minha casa derramamos um rio de lágrimas. Principalmente, porque tínhamos certeza que o cachorro estava bem sadio.
Também nos divertíamos com as bolinhas de gude, o pião, a pipa, as figurinhas de colecionar e tantas outras formas de passar o tempo. Aos domingos, não se podia perder a sessão de cinema da tarde - a matinê -, invariavelmente um bang-bang. Antes do filme, passava o capítulo de um seriado, e a gente sempre tinha de assistir ao capítulo seguinte para saber como o mocinho se salvava ou como ele salvava mocinha. E – detalhe importante – antes de a sessão começar havia a troca de gibis. Os lidos pelos não-lidos. O gibi era praticamente a única leitura, e era preciso fazer um estoque para a semana toda.
As brincadeiras continuavam à noite. Num tempo em que ainda não havia televisão, alguns vizinhos se reuniam para passar o tempo e se entretinham contando casos ou brincando de roda, de passar anel, boca do forno etc. Nas noites frias, ficávamos recolhidos ao casa, em volta de uma lata cheia de brasas, e a mãe nos distraía contando histórias. Em geral, eram passagens da vida dela ou casos que ela ouvira contar. Eram histórias de assombração, de mula sem-cabeça, de lobisomem...
Numa dessas histórias, ela nos contava que certo dia havia ido à roça levar o almoço para os homens, e sentara-se sobre m tronco caído. De repente, ela sentiu que uma cobra lhe subia pelo corpo. E então ela teve suficiente sangue frio para se manter imóvel e esperar que a cobra fosse embora.
Em outra ocasião, em que meu pai saíra para pescar, ela estava em casa sozinha. Altas horas da noite, acordou ouvindo um ruído estranho, como se fosse de uma corrente sendo arrastada pela casa. Ora ia para um lado, ora ia para outro. Morta de medo, ela se encolhia toda na cama. Depois de alguns minutos, o ruído se aproximou da cama e, de repente, ela sentiu que alguém lhe deu um assopro muito forte no ouvido.
Foram momentos inesquecíveis aqueles. Com seus olhinhos brilhantes, cheios de ternura, ela falava com tanto sentimento que a gente se deixava levar pela sedução das palavras e acreditava, por mais absurdas que fossem as histórias. E a gente ia para a cama feliz, com a alma inundada de magia e encantamento.
Além de exímia contadora de histórias, a mãe também gostava de declamar versos e citar frases que ela havia aprendido ao longo da vida. E tanto podia ser em espanhol ou italiano ou com sotaque português de Portugal.
A mãe deixou muita saudade. Hoje, ela deve ser uma daquelas estrelinhas que, à noite, brilham lá no céu.
Recolher