SABORES DA INFÂNCIA
Cleusa Piovesan
Desde pequena que tenho um apetite voraz e adoro guloseimas. A lembrança do gosto de algumas comidas, principalmente, de doces, que saboreei na infância, e fazem-me sentir um sabor na memória e, quando provo alguns alimentos, sinto um resquício do gosto dessas delícias que jamais esqueci.
A mãe e a tia iam para a horta ou plantar mandioca ou pipoca perto da casa. Minha irmã, minha prima e eu ficávamos brincando nos arredores da casa, um casarão de madeira, com porão, que era dividido por minha família e a dos tios. Nessas horas, a gente aprontava algumas travessuras e fazia a maior bagunça na cozinha quando batia a fome.
Havia uma tulha, na qual eram guardados os mantimentos, farinha de trigo, fubá, arroz, tudo moído no moinho, que ficava a uns dois quilômetros da minha casa, e havia um compartimento onde a mãe guardava pães, cucas e bolachas, feitas no forno a lenha, que havia no pátio. A mãe conta que eu invadi até a tulha da comadre dela, um dia em que fomos lá passear, para comer as delícias que ela fazia.
O pomar era o orgulho do pai. O parreiral, para fazer o vinho e o vinagre, com a uva pisada na tina, e guardada em barris de madeira, com uma torneirinha, no porão. As frutas, sempre tivemos à vontade, pois havia muitas bergamoteiras, laranjeiras, ameixeiras, pessegueiros, pereiras, bananeiras e uma plantação de ananás, um tipo de abacaxi, só que mais ácido, que a mãe cozinhava com calda de açúcar. E as plantações de melancia e melão que, quando era época, enchiam as mesas do porão, e vinham os amigos do pai da cidade para saborear e levar para casa.
A mãe também aproveitava as frutas e fazia “chimia” (doce de frutas), de mamão, de uva, pois tínhamos um grande parreiral, de pêssego, de pera, da pereira dentro do potreiro, perto da casa, e de abóbora, que ela também fazia cozinha na calda caramelada. E fazia mel de limão, quando acabava o mel de abelha, até poder...
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SABORES DA INFÂNCIA
Cleusa Piovesan
Desde pequena que tenho um apetite voraz e adoro guloseimas. A lembrança do gosto de algumas comidas, principalmente, de doces, que saboreei na infância, e fazem-me sentir um sabor na memória e, quando provo alguns alimentos, sinto um resquício do gosto dessas delícias que jamais esqueci.
A mãe e a tia iam para a horta ou plantar mandioca ou pipoca perto da casa. Minha irmã, minha prima e eu ficávamos brincando nos arredores da casa, um casarão de madeira, com porão, que era dividido por minha família e a dos tios. Nessas horas, a gente aprontava algumas travessuras e fazia a maior bagunça na cozinha quando batia a fome.
Havia uma tulha, na qual eram guardados os mantimentos, farinha de trigo, fubá, arroz, tudo moído no moinho, que ficava a uns dois quilômetros da minha casa, e havia um compartimento onde a mãe guardava pães, cucas e bolachas, feitas no forno a lenha, que havia no pátio. A mãe conta que eu invadi até a tulha da comadre dela, um dia em que fomos lá passear, para comer as delícias que ela fazia.
O pomar era o orgulho do pai. O parreiral, para fazer o vinho e o vinagre, com a uva pisada na tina, e guardada em barris de madeira, com uma torneirinha, no porão. As frutas, sempre tivemos à vontade, pois havia muitas bergamoteiras, laranjeiras, ameixeiras, pessegueiros, pereiras, bananeiras e uma plantação de ananás, um tipo de abacaxi, só que mais ácido, que a mãe cozinhava com calda de açúcar. E as plantações de melancia e melão que, quando era época, enchiam as mesas do porão, e vinham os amigos do pai da cidade para saborear e levar para casa.
A mãe também aproveitava as frutas e fazia “chimia” (doce de frutas), de mamão, de uva, pois tínhamos um grande parreiral, de pêssego, de pera, da pereira dentro do potreiro, perto da casa, e de abóbora, que ela também fazia cozinha na calda caramelada. E fazia mel de limão, quando acabava o mel de abelha, até poder “melar” os favos, novamente, quando a gente até chupava os favos, escorrendo o mel, até sobrar só cera. Hum, até estou sentindo o gosto!
Ela guardava esses doces em umas latas de alumínio, em que era vendida margarina nos mercadinhos, porque não havia margarina em potes, só por quilo, e só se comprava de vez em quando, era cara e demorava para o pai ir para a cidade fazer compras. Era produzido quase tudo o que consumíamos. Nessas latas a mãe também guardava a banha, quando carneavam porco e faziam banha, torresmo, “morcília” que era como chamavam a morcela de hoje. Sem geladeira, a carne era frita e deixada dentro da banha para conservar e se fazia o salame, pois não havia café da manhã ou janta, ou lanche da tarde sem pão, salame e queijo. E nós também comíamos pão com banha, que parece estranho, mas é muito bom. Que fartura! Bom, com tanta coisa boa para comer, nós meninas, nos fartávamos, enquanto as mães trabalhavam.
Houve uma vez em que um cavalo caiu numa vala e quebrou a perna. O pai e o tio fizeram charque, que guardaram num compartimento do porão, onde eram defumadas as carnes e o salame e onde a mãe punha os queijos para secar. Minha prima e eu, abrimos a tramela com uma vara e subimos em uma cadeira para pegar o charque. Quando a mãe e a tia chegaram do trabalho, nós estávamos sentadas na escada, com o charque espalhado no chão, comendo, faceiras.
A nona Elisa, morava perto, era só atravessar a ponte e passar o potreiro para chegar à casa dela, mais ou menos um quilômetro. Ela fazia um “brodo” de galinha, com massinha caseira, que ela cortava bem fininha, e chamava de “cabelinho de anjo”. Apanhei algumas vezes, porque eu fugia para ir comer na nona, pois ela guardava para mim a sopa com os “ovinhos” da galinha, o fígado e um pé cozidos na sopa. A sopa era servida com queijo ralado, um queijo bem duro que a nona fazia e chegava ser amarelado de velho. Hoje, quando a mãe faz essa sopa nos chamamos de “sopa de unha” porque é quase impossível cortar tão fininho sem cortar as unhas junto.
Lembro-me bem do gosto da “menestra” de feijão da nona Elisa, com macarrão caseiro que ela chamava de “bigoli”, e do pão de milho, que eu comia quentinho, com nata e com melado. Ela também fazia uma carne de gado de panela, que chegava a ficar desfiada, de tanto que cozinhava, no fogão à lenha. Ninguém tinha fogão a gás, então o fogo era aceso de manhãzinha, e ficava aceso, praticamente o dia todo.
A nona Elisa vendeu a casa para uns alemães, que vieram do Rio Grande do Sul, e foi morar na cidade. Esses alemães tinham quatro filhos, que quase não falavam português, mas a gente se entendia na bagunça e fizemos uma amizade que perdura ate hoje, mais de quarenta anos depois. A dona Gelsi fazia polvilho e a gente a ajudava a ralar a mandioca, porque queria comer as roscas de qualhada que ela fazia no forno. Nunca mais eu comi uma rosca de polvilho tão boa. E umas cucas recheadas, com doce de leite, “chimia” ou “quechimia”, que é uma pasta feita de leite coalhado, todas com sabor inigualável!
À noitinha, eu tinha de acender o fogo para a mãe fazer janta, enquanto ela ia à estrebaria tratar as vacas e tirar o leite. Toda noite ela fazia polenta na panela de ferro, colocada sobre o fogo, abrindo as argolas da chapa do fogão à lenha. Para acompanhar havia queijo, salame e, às vezes ela fazia bife ou frango em molho ou “fortaia”, um mexido de ovos com queijo, na frigideira. E sobrava polenta para sapecar na chapa no dia seguinte. Isso me dá água na boca!
Quando íamos à cidade, na casa da vó Júlia e do Vô Ângelo, que tinham uma churrascaria, a gente comia carne assada e pastel. Ela tinha um cilindro e a massa do pastel ficava bem lisinha, não como quando a mãe fazia e espichava com o rolo. Fazia bolhazinhas quando ela fritava. E ela também fazia “ravióli”, um pastel frito, feito de uma massa com ovos, melado, banha, farinha de trigo e raspas de casca de laranja, recheados com batata doce cozida e amassada, misturada com melado e raspas de casca de laranja. Essa receita é tradição de família. Maravilhoooosa!!! A mãe sempre me chama para fazer.
A vó Júlia também fazia suspirinhos, pés de moleque com melado, e uma bolacha de amendoim, que eu nunca mais comi, porque ela ficou velha e esqueceu a receita, mas sinto esse sabor no paladar de minha memória. E os puxa-puxas que a tia Maria fazia, com melado. A gente passava a tarde puxando o melado quente até ele esfriar e ficar duro para cortar em pedacinhos. Depois era só se lambuzar e ficar com o maxilar doendo de tanto mastigar.
A gente também ia, em dias de chuva, à casa da tia Armelinda, um casarão que tinha uma pista de bolão, porque na frente havia um bar, acho que do filho dela. A gente brincava de resvalar na pista, com uns panos de lã embaixo do joelho, para lustrar. Ela fazia mate doce e uns bolinhos chamados “wafles”, bem douradinhos, numa forma gigante de ferro, sobre a chapa do fogão à lenha. Eu chorava porque não queria ir para casa.
E as “rosetas”, que as freiras faziam nas festas da igreja! E a vó conseguiu a receita, que era quase um segredo, ninguém imaginava como eram feitas aquelas “florezinhas” de comer. A roseta é um sequilho feito em uma forminha em forma de estrela, com um cabo longo, feita na funilaria, que a gente põe a massa mole na ponta e solta fritar na gordura bem quente, depois passa em açúcar de confeiteiro com canela. Também aprendi a fazer, claro! Mas, nem é bom começar a comer, porque você não consegue comer uma só!
Quando mudamos para Santa Izabel do Oeste, fomos morar em frente a uma padaria. Que tristeza! Aquele cheirinho de pão assado logo cedo, entrava pela cozinha e a gente não parava de incomodar até a mãe dar umas moedas para a gente ir comprar. E as cuquinhas, em forma de caracol, e as broas, ah, as broas, sinto o gosto do que nunca mais comi, e os sonhos, recheados com doce de leite e os suspiros! À tardinha, a Cleci, dona da padaria, chamava toda a criançada e dava as sobras quebradas, que não podia vender. Ah, é de suspirar de saudade!
Havia os padeiros, que circulavam pela cidade vendendo ou entregando as encomendas dos produtos da padaria, em uma cesta de vime, a pé ou de bicicleta. Foi na bicicleta do Grilo, um dos padeiros, que aprendi a andar, descendo a ladeira, depois de muitos tombos. Eles também vendiam nos portões da escola, na hora do recreio.
Em frente à minha casa morava a Gessi, uma costureira, que fazia uns pães gigantes e cortava o pão quentinho para a gente comer com “chimia”. Ela tinha três filhos com quem nós brincávamos. E à tarde, ela sempre fazia mate doce, com leite e funcho, e estourava pipoca para a criançada e dizia “Quem toma, não come”, porque senão a roda não andava. Era uma festa!
Ao lado de nossa casa veio morar um casal de japoneses, com a neta, que eram pais do farmacêutico que morava na outra esquina. Não lembro o nome deles, só lembro que ela fazia uma “compota” de figo deliciosa, e pamonha, que ela cozinhava sobre o fogão à lenha, em uma lata de alumínio, igual àquelas em que a minha mãe guardava as “chimias” Era a festa da criançada da vizinhança, todo mundo ia lá comer. Foi com eles que aprendi a quebrar garrafas com o fio de barbante amarrado e álcool, e queimar para fazer copos. Estragamos muitas garrafas!
A nona Elisa comprou a casa do farmacêutico e veio morar perto de nós. Isso foi o motivo de muitas das surras que levei, porque eu fugia de casa para ir comer na casa da nona, principalmente, se a mãe fazia alguma comida que eu não gostava. À tardinha, lá pelas 17h30, eu ia lá para tomar chá de funcho, de cidreira, de melissa ou de hortelã, às vezes, Mate Leão, com bolachas ou pão, que a nona costumava fazer. Depois a gente assistia à novela das 18h, na TV em preto e branco, com uma tela azulada, para não prejudicar os olhos, que era uma das poucas que havia em 1978.
Minha memória gustativa faz com que me lembre, não só do sabor das comidas, mas das pessoas queridas com quem convivi, das amizades da infância, de algumas travessuras inocentes e de outras, merecedoras de castigos. São tantos sabores que vivem em minhas lembranças, que me fazem reviver esses pequenos prazeres da criança que eu fui e que não teve as guloseimas industrializadas, porque viveu essa fase da vida, na pré-modernidade, e teve a simplicidade e a beleza da vida no interior para recordar para sempre. Até provei sabores parecidos, porém sem a saudade que me deixa água na boca.
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