A cultura não está apenas nos museus, nos palcos ou nas galerias. A cultura também está presente na roda de conversa na calçada, na oficina comunitária, no cortejo de rua e nos saberes passados entre gerações. Essa dimensão cultural estrutura a vida social, molda identidades e conecta as pessoas com suas histórias e territórios. Além disso, a cultura é também um campo de disputa. O que se valoriza como expressão cultural — e o que se silencia — está ligado a relações de poder.
Como lembra a pesquisadora Isaura Botelho, a cultura pode ser vista sob duas dimensões. A antropológica reconhece modos de vida, práticas, valores e crenças produzidos no cotidiano. Por outro lado, a sociológica mostra como a cultura é um produto social e histórico, atravessado por desigualdades, lutas e disputas por reconhecimento.
A cultura como direito e política pública
A dimensão política da cultura é fundamental para entender a Política Nacional de Cultura Viva (PNCV), criada pela Lei nº 13.018/2014. Diferente das ações que partem apenas do Estado, essa política pública busca reconhecer, fortalecer e articular expressões culturais que já existem nas comunidades. Muitas vezes, essas manifestações culturais são ignoradas ou marginalizadas pelas instituições tradicionais.
O principal instrumento da PNCV são os Pontos de Cultura. São grupos, coletivos e entidades que desenvolvem ações culturais de forma contínua, com forte enraizamento comunitário. Eles atuam com música, teatro, literatura, tradições afro-brasileiras ou indígenas, iniciativas LGBTQIA+, de hip hop e outras formas culturais. Além disso, promovem oficinas, cursos, debates e atividades que unem cultura, educação, cidadania e transformação social.
A desigualdade cultural no Brasil e seus desafios para a cultura popular
Os Pontos de Cultura têm papel decisivo na preservação da memória coletiva cultural, no fortalecimento de identidades locais e na transmissão de saberes tradicionais. Em tempos de homogeneização e exclusão cultural, essas ações são formas de resistência. Assim, evitam o esquecimento de experiências, conhecimentos e modos de vida, que poderiam se perder diante das desigualdades de acesso e da padronização gerada por grandes meios de comunicação.
Como destaca o texto-base da PNCV, ainda existem muitos desafios no acesso a livros, cinemas, teatros, museus e produções digitais. Esses ainda são privilégios de poucos, marcados por barreiras materiais e simbólicas. A arte erudita ainda é muitas vezes considerada “superior”. Em contrapartida, as expressões culturais populares, periféricas ou tradicionais continuam à margem.
Iniciativas culturais que reconhecem a diversidade no Brasil
Desde outubro de 2024, o Museu da Pessoa atua como articulador do Pontão de Cultura Brasil Memória em Rede II, iniciativa realizada em parceria com o Ministério da Cultura (MinC) e outros Pontões. Com abrangência nacional e foco no eixo patrimônio e memória, somos encarregados de mapear e diagnosticar grupos, coletivos e organizações — sejam ou não Pontos de Cultura — que desenvolvam atividades relacionadas à memória. O projeto envolveu 20 Agentes Cultura Viva, jovens de todas as regiões do Brasil. Eles mapearam e documentaram iniciativas culturais de base comunitária em seus territórios.
O resultado foi o mapeamento de mais de 240 coletivos e organizações culturais sem fins lucrativos, localizados nas cinco regiões do país. Essa base de dados oferece um panorama inédito sobre os protagonistas culturais nos territórios, quais práticas desenvolvem, onde atuam e como contribuem para construir uma sociedade mais plural e justa.

📌 Organizações culturais que você precisa conhecer em 2025
Saberes culturais, memória e futuro
Muitos desses coletivos mantêm práticas herdadas de seus ancestrais, como o uso de plantas medicinais, cantos tradicionais, modos de contar histórias e formas coletivas de viver. Esses saberes culturais não são apenas memória. São também estratégias de sobrevivência, formas de ensinar e de construir futuro.
Fortalecer essas práticas culturais significa fortalecer o senso de pertencimento e a identidade local. Desse modo, impede-se o apagamento cultural e garante-se que cada grupo siga existindo e criando à sua maneira.
A cultura em movimento: viva, diversa e transformadora
Essas ações mostram que a cultura viva está em movimento. Ela está viva na memória, na oralidade, nos rituais e nas criações coletivas. Ela pulsa nos territórios. Além disso, a cultura resiste — mesmo diante das adversidades.
Para o Museu da Pessoa, registrar e valorizar essas histórias culturais é parte da missão. Ao lado dos Pontos de Cultura, seguimos construindo uma rede de escuta e reconhecimento da diversidade cultural brasileira com o projeto Brasil Memória em Rede II.
Agora estamos na fase de diagnóstico dos coletivos e organizações culturais participantes do projeto. Essa etapa vem após o mapeamento inicial, quando os agentes culturais responderam a um formulário com informações sobre os grupos aos quais pertencem.
A partir desse mapeamento, iniciamos o diagnóstico por meio de entrevistas de história de vida com pessoas ligadas a esses coletivos. As entrevistas foram conduzidas e editadas pelos próprios agentes culturais, que colocaram em prática as metodologias de registro e escuta aprendidas durante o projeto.
Ao todo, foram realizadas 20 entrevistas, e algumas dessas histórias já estão disponíveis no site do Museu da Pessoa. Em breve, vamos reunir todos os relatos em uma coleção especial. Continue nos acompanhando para conhecer essas memórias em primeira mão!
Sobre a autora
Paola Feltrin é educadora e Agente Cultura Viva no projeto Brasil Memória em Rede II, do Museu da Pessoa. Desde 2019, quando ingressou na Universidade Federal do Paraná (UFPR), descobriu na educação sua verdadeira vocação. Estudar, ensinar e trocar saberes tornou-se essencial de sua trajetória, guiada pelo desejo de transformação social por meio do conhecimento. Atua com sensibilidade, escuta e compromisso, acreditando que a educação tem o poder de cuidar, empoderar e criar novos futuros — para si e para as comunidades ao seu redor.
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Essa ação integra o edital de Seleção Pública MINC – Nº 9, de 31 de agosto de 2023, Cultura Viva – Fomento à Pontões de Cultura – A Política de Base Comunitária Reconstruindo o Brasil.