Projeto Memorial Espaço de Bitita
Depoimento de Maria Lúcia de Souza Vieira
Entrevistada por Jorge Luiz Alonso e Rosângela Parlamento
São Paulo, 04/04/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV723_ Maria Lúcia de Souza Vieira
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Então vamos lá, Maria Lúcia. Qual o seu nome, o local e data de nascimento?
R – Meu nome é Maria Lúcia de Souza Vieira, eu nasci em Teresina, capital do Piauí, no dia 30 de junho de 1961.
P/1 – Legal. Vamos começar pela sua família. Você sabe a origem, assim, da sua família?
R – As mulheres de origem negra, de escravos, trabalhavam boa parte no interior de Pernambuco e outra parte no Piauí, ou seja, eu tenho parentes em Pernambuco, Zona da Mata, no estado do Ceará e no estado do Piauí. E os vamos chamar de branco são de origem europeia, holandeses e portugueses. Então pelo lado das mulheres, de origem negra, os homens de origem europeia.
P/1 – Agora vamos dar um pulinho para a sua infância. O que você queria ser com essa passagem da infância para a fase adulta? Você tinha planos?
R – Tinha. Mas assim, esses planos, eles mudavam conforme a família. Porque assim, o meu pai era extremamente machista, autoritário, onde as mulheres não tinham essa liberdade de estudar, era mais para os homens. As mulheres não podiam brincar de bola, pular a cerca, arame farpado, empinar pipa. E eu sempre fui, assim, muito livre, apanhei muito de palmatória por isso. E para estudar foi uma briga muito grande, então no primeiro momento, eu queria ser livre, depois, já na adolescência, eu fui formatando, vamos dizer assim, a questão profissional, ora advogada, ora engenheira, ora guia turística, que é daí que eu fui para Geografia. A Administração de Empresas foi para me manter, ou seja, salário... A gente tem ideia de que administrador, de que o advogado, de que o engenheiro, ganham muito bem. E eu cheguei a trabalhar na área, porém eu me frustrei. Ficar plantada numa sala o dia inteiro, sem ver se choveu, se ver... Eu trabalhei no Shopping Paulista quando eu cheguei aqui a São Paulo, e eu lembro que um dia eu saí do Shopping Paulista e eu fui chorando até a Brigadeiro Luís Antônio, porque choveu e eu não tinha tido o privilégio de ver a chuva. Porque o shopping abre das dez até as dez, só que para quem trabalha essa parte burocrática, você entra, tipo, seis da manhã, cinco horas da manhã, como eu trabalhava ligada à gerência, tinha que receber mercadoria. E o shopping fecha, as pessoas continuam trabalhando ali dentro, então eu me sentia presa, totalmente prisioneira. Por isso Administração de Empresa, apesar de ter sido primeiro lugar na Universidade Federal do Pará, onde eu me formei, eu vi que não era a minha praia, eu ia ser uma administradora frustrada, eu ia entrar em depressão, e aí eu pulei fora, porque eu gosto muito de viver, gosto da liberdade.
P/1 – E quanto a essa de formação, que você já falou um pouco, você pode falar mais um pouco sobre a sua educação?
R – Olha, de Teresina, quando o meu pai faliu, que ficamos pobre... Meu pai perdeu tudo, ele era um latifundiário, e quando perdeu tudo, nós fomos colocados de lado pelos amigos. Não tem dinheiro, acabou a amizade, acabou aquela coisa do “eu conheço, não vi, não sei quem é”. E o meu pai com vergonha por ser, vamos dizer, ignorado pelos falsos amigos, nós migramos para Belém, foi uma forma de “ninguém nos conhece, a gente começa do zero”. E começamos do zero realmente, passamos todo tipo de necessidade. E lá em Belém, eu fui para a escola técnica, Escola Técnica Federal do Pará, fica na Almirante Barroso, eu fiz Telecomunicações de Empresa, trabalhei muito tempo na área de telecomunicações, e fui fazer vestibular. No primeiro momento, eu fiz para Biblioteconomia, e aí eu achei que eu iria trabalhar em biblioteca para o resto da vida, até me mandarem para o arquivo morto, onde eu peguei obra da época do Segundo Império. A primeira respirada que eu dei, eu fui parar no hospital da universidade, e eu descobri que eu tinha que trocar de curso, porque eu tenho rinite alérgica congênita. Então eu tive uma reação alérgica muito grande. Porque os livros antigos têm muitos fungos, eu tinha que catalogar todos eles. Foi daí que eu troquei, que eu tive que fazer uma prova interna para ir para o bacharelado em Administração. E depois eu fiz a licenciatura plena em Geografia, por quê? Eu sempre gostei de lugares, sempre fui apaixonada, que foi daí que eu fui parar na Espanha. E acabei, depois que as teles privatizaram, prestando concurso para área da licenciatura, que hoje eu estou nela e vou me aposentar nela. Sou uma jovem senhora, daqui a dois anos eu vou estar aposentada, se Deus quiser.
P/2 – Você é professora. Algum professor foi importante para a história da sua vida, te influenciou?
R – Foi. Aliás, eu tive vários professores, na Universidade Federal do Pará e na Escola Técnica Federal do Pará. Na Universidade Federal do Pará, eu tive um professor que o nome dele era Pedro Rocha. Nessa época nós não tínhamos recurso, aliás, até hoje não temos, a área de educação, só Jesus aqui no Brasil. E o que ele falava? “Olha, para vocês aprenderem, nós temos que ir para campo. Para ir para campo, tem um ônibus na universidade, mas não tem gasolina, tem o motorista. Para irmos, vocês vão ter que arrumar dinheiro para a gasolina.” Na época, nem giz os professores tinham na universidade. Então o que a gente fazia? Fazia bolo, fazia pedágio, ia com faixa: Alunos do curso de Geografia que era para poder ir para campo para estudar a questão de terrenos, relevo, vegetação, a margem esquerda, margem direita de um rio, nascente de um rio, a foz de um rio. Ele falou: “Não adianta ficarmos na teoria, nós temos que ver”. Que foi daí que foi assim superinteressante, porque a gente vê que a maioria dos professores de Geografia, dependendo da universidade, que umas eu chamo de universidade boteco, eles não saem da sala de aula. Então essa vivência, ela é fundamental para a sua informação. A importância do rio, porque quase todas as cidades se criaram próximas de água, próximas de rio, apesar de a humanidade não dar essa importância para os rios. Temos aqui o nosso território do lado do Tietê, que está de costas para o Tietê, o Tamanduateí. Mas lá, a gente fazia essas excursões, eles nos levava, a gente conseguia dinheiro para a gasolina, a Universidade Federal do Pará fornecia um ônibus, caindo aos pedaços, mas a gente chegava lá, então nós fomos fazer vários estudos de campo. No início, a gente sofria, porque tem muito carapanã, e eu também tenho alergia à carapanã e mutuca, que a gente ficava lá se batendo. Mas ele deixava, a cada metro ele deixava os alunos e falava: “Você vai analisar este território, você e aquele outro, e aí vocês vão trazer os dados”. E ele voltava lá para a pousada, ou para o hotel. E quando a gente chegava, ele ia dizer o que tínhamos errado, o que tínhamos acertado, vamos voltar de novo. Tanto é que muita coisa de prática você não encontra nos melhores livros didáticos que são escritos aqui no centro sul. Daí a minha luta da questão de saber um pouco mais da Amazônia. Não só da Amazônia, do Nordeste. Porque quase tudo que eu encontro aqui nos livros didáticos, eu refaço esse conteúdo e eu trago dados para mostrar que nem tudo que está no livro didático é o que a gente vê lá, é vivência de lá, é a realidade de lá. Isso eu agradeço ao professor Pedro Rocha, que tomara que ainda esteja vivo.
P/2 – Maria Lúcia, como era a casa onde você vivia em Teresina e a casa para a qual você se mudou no Pará?
R – Olha, no primeiro momento, esse terreno era imenso. Nós tínhamos um terreno que o bairro se chama Itaperu, que fica próximo do aeroporto hoje de Teresina, e as terras que o meu pai tinha ficam numa cidade chamada Alto Longá, próximo de Campo Maior, que era onde tinha as terras maiores. Na casa em Teresina, onde eu vivi parte da minha infância, era uma casa imensa, era uma casa que tinha vários quartos, era uma casa que não tinha, vamos dizer, banheiro dentro. Não tinha saneamento básico. Acredito que hoje já tenha, mas a gente sabe que no Brasil, a questão de saneamento básico é triste. E nós tínhamos, eu sempre falo para os meus alunos, a casinha, que eu uso o termo “você tá fora da casinha, né, meu lindo?”, a casinha no quintal, que é a cisterna, que eles de tempo em tempo limpam aquela cisterna, que eu acho um horror aquilo. Mas tínhamos a cisterna. A casa melhor era a casa das terras em Campo Maior, que era em Alto Longá, que é um distrito subordinado a Campo Maior, a cidade de Campo Maior. Essa casa lá, nós passávamos praticamente os feriados, as férias. O pessoal que tomava conta das terras, seria o encarregado, que cuidava do gado, da criação de cavalo do meu pai, das vacas, e das roças. Ela era maior e ela tinha a casa de farinha, então como nós vivemos mais lá, era mais impor... Para nós foi mais importante, porque era muito grande, tinha pomar, tinha horta, tinha roça, tinha rio que passava dentro dela. Então foi um lugar, assim, que marcou muito, porque nós vivíamos soltos, meio, eu diria, como os índios vivem lá no estado do Pará. Então a casa de Alto, ela foi mais importante na minha infância. As lembranças que eu tenho da minha infância vêm mais das terras que o meu pai tinha, que acabou perdendo. Entendeu? É isso.
P/2 – Tem alguma história dessa época que você descrevia bem livre assim? Uma situação que você viveu assim para contar para a gente.
R – Tem. A casa era cercada de arame farpado e geralmente nós íamos brincar com os meninos, nós éramos seis, seis filhos: três meninas e três meninos. A mais velha é Maria do Rosário, Carlos Alberto, eu, tinha um espaço para o Paulo Henrique, o Amauri Mauá e a Maria Rosângela. As minhas duas irmãs ficavam lá na boneca brincando, tal, bonitinha, de comidinha. E eu ia brincar com os meninos, E nessa, eu não sei por que, a gente sempre acha que a fruta da quinta vizinha é mais gostosa, e as terras do lado eram das freiras, porque eu morava em Itaperu entre dois conventos, e a gente pulava a cerca de arame farpado para ir pegar manga e guabiraba, que eu adorava guabiraba. Até que um dia tinha uma mangueira que estava carregada de manga: “Vamos. Vamos. Vamos”. Eu falei: “Eu vou subir mais rápido”. E trepava que era uma belezura na mangueira. Nisso a gente ouviu os cães que eram do encarregado da quinta. E quando o meu irmão falou: “Os cães estão chegando, o encarregado vai chegar aqui” – porque aí a freira pegava a gente, levava, e a gente ia levar uma surra. E o meu pai e a minha mãe estavam dormindo, aí eu fui tentar me apoiar no galho e o galho quebrou, como a mangueira tinha muitas raízes, eu quebrei esse braço, eu o quebrei em três lugares, então meu irmão falou assim: “Nossa, ficou um ‘S’ seu braço. O que a gente vai fazer?”. Eu falei: “A gente vai correr dos cães”. Mas eu peguei a manga. E a gente correu. De uma parte do arame farpado para o outro é quase um palmo. Eu passei entre uma e outra, que eu fiquei com as costas todas arranhadas. Você conhece arame farpado?
P/2 – Sim.
R – Gente, aí chegamos à casa. O que fazermos para não apanhar? Que a gente apanhava de palmatória. “Olha, a gente vai deitar e o seu braço vai sarar.” Não sarou. Num dado momento, a minha mãe: “Vamos. Que vamos... Vá lavar a louça... Tem que pegar...”. Porque como não tínhamos água encanada, não tínhamos naquela época, não tínhamos saneamento básico, tínhamos que pegar água no poço, nós tínhamos poço. Como puxar água do poço com aquele braço? Quando a minha mãe percebeu, ele estava muito inchado. A minha mãe falou um monte, mas ficou desesperada, me levou ao pronto socorro. Eu fiquei um tempão com o braço engessado, mas até hoje ele é diferente, esse aqui. Então fica uma das aventuras, mas até hoje a fruta do vizinho é melhor do que a nossa.
P/1 – Viu, e avançado um pouco mais agora, indo para a fase da sua juventude. Como foram as suas andanças assim na juventude, sua adolescência? Foram as andanças mais para o Nordeste, ou você já estava no Sul?
R – Já estava no Pará, no Norte.
P/1 – Tá.
R – Estava no Pará. Foi difícil, porque assim, migrar é complicado. Você falar de movimentos migratórios, quando você nunca passou por isso, você tem o conhecimento teórico, aliás, qualquer experiência na sua vida, você tem uma concepção diferente de quem só leu ou ouviu falar. Então assim, passando por todos os problemas financeiros que nós estávamos passando em Teresina, na minha concepção ainda era melhor ficar em Teresina, independentemente de estar pobre ou não, do que sair de Teresina. Porque todo o nosso referencial de cultura, de amigos, e a relação com os nossos parentes, nós perdemos isso. A escola que você fica com saudade, seus colegas, professores. Tá, migramos. Migramos de pau de arara. Aliás, terrível. Porque você viajar de ônibus, confortável, já é difícil, pau de arara é o ó do borogodó, ninguém merece. Mas subimos no pau de arara e fomos para Belém. Não chovia em Teresina. Chegamos próximo de Gurupi, que a gente atravessa o Maranhão inteiro, dá em torno de umas 16 horas de viagem, e muita chuva. Eu achei que era o dilúvio, só tinha lido na Bíblia. Era muita água. Chegamos a Belém, morávamos num bairro que não tinha quase água, chegamos a Belém, fui morar numa área alagada, numa palafita, que a gente tinha que andar da rua em que nós morávamos, até a parte mais alta, asfaltada, com a roupa suspensa e o sapato na mão. A nossa casa ficava em cima de troncos de madeira, área baixa. Porque na realidade, Belém, eu digo que é uma cidade, eles falam que é plana, planície, para mim é um pântano. Choveu, as áreas mais baixas ficam sempre alagadas. Chegamos a Belém, outra cultura, outra moradia, outros vizinhos, outra escola, sem conhecer ninguém. Porque se tivesse alguém da família lá para nos receber, não, nós fomos com a cara e a coragem. Até aceitar essa mudança foram anos. Depois disso, na escola é sempre a outra, de onde ela veio. E nas escolas tem os grupos, então você começa a ser isolada a partir daí. A nossa briga para sermos aceitos, a nossa briga para interagirmos com o grupo foram meses, anos. Então você fica no grupo isolado. Você está sempre isolado. Mas como eu sempre fui uma guerreira, eu acabei tirando isso de letra, mas sempre solitária. Como a ideia maior era estudar e mudar a minha história de vida, eu não fui namoradeira. Hoje eu estou correndo atrás, com 58 anos... (risos). Estou correndo atrás, porque eu falei: “Olha, eu não quero essa vida para mim. Eu não vou morrer assim. Já que eu vim para cá, tem um propósito, eu vou estudar. Estudar muito para mudar a minha história de vida”. Não pensava em voltar mais para Teresina e achava que iria morrer no estado do Pará. Até me formar e descobrir que empregos tem, para um amigo do amigo do amigo do QI, Quem Indica. Ainda tem muito isso no Norte e Nordeste do Brasil. E aqui eu descobri que com concurso temos mais chances. Existe mais senso de justiça em relação a essas colocações. Eu espero que o Pará, o Piauí, não só o Pará e o Piauí, que o Norte e o Nordeste já tenham mudado isso, mas é muito de: tem uns concursos que a gente não entende, que passa e ninguém chama nunca, mas aquela que escreve cachorro com X, ela foi chamada. Aí você fala assim: “Ui. O que é isso?”. Então ainda é muito forte essa coisa de quem está na política, do parente do político. Eu não sei se hoje, século XXI, 2019, essa realidade mudou. Na minha época, eu pensei: “Ou eu saio do Pará e vou tentar alguma coisa em outro lugar, ou eu vou ficar aqui e vou morrer”. Meu sonho hoje, se um dia a minha situação financeira melhor, é trabalhar voluntariamente com a comunidade ribeirinha. É o meu sonho de consumo.
P/1 – Bacana.
P/2 – Deixe-me perguntar uma coisa. Maria Lúcia, se você puder contar, o que aconteceu para o seu pai falir? Você pode contar?
R – Posso. Meu pai, ele deixava praticamente a minha mãe a cargo de tudo. A minha mãe cuidava dos funcionários, a minha mãe cuidava dos empregados, a minha mãe cuidava de seis filhos, a minha mãe era responsável pela ordenha das vacas, que o meu pai foi um dos maiores produtores de leite em Teresina, ele fornecia leite para as freiras, ele fornecia leite para o 25º Batalhão de Engenharia, ele fornecia leite para as empresas que pasteurizavam. No primeiro momento, saía o leiteiro entregando leite com aquela sinetinha e dois botijões do lado. A minha mãe preparava leite para fazer coalhada, a minha mãe separava o leite para fazer manteiga, que a manteiga vem da nata do leite, o doce leite. O que o meu pai fazia? Meu pai pegava os seus amigos, pegava boa grana e ia para os puteiros da vida. Meu pai tinha as amantes. Hoje eu tenho irmãos que estão por aí. A gente sabe que nós temos muitos irmãos, inclusive irmãos que praticamente tinha quase a nossa idade. E esses amigos, eles foram, de certa forma, levando os bens. Teve situação em que a minha mãe recebeu amigos, que o meu pai ia lá para os botecos, e de lá ia para as noitadas da vida, para as casas da luz vermelha, e eles ganhavam, faziam um jogo porrinha, não sei como vocês chamam, que você põe o palitinho, a gente chama porrinha, põe aqui e o outro tem que adivinhar quantos palitinhos tem na mão. É óbvio que a gente acredita que o amigo um estava atrás, um amigo estava na frente do meu pai, e um amigo com certeza falava quantos palitinhos tinha. E eles chegavam lá: “Olha, a gente veio buscar tal cavalo, porque ele perdeu lá no jogo. Nós viemos buscar tal vaca”. Nós éramos pequenos, mas nós não entendíamos por que um amigo ia lá e pegava vaca e pegava o cavalo. Hoje eu acho, que ele ainda está vivo, ele mora em Belém, numa cidade chamada Ananindeua, eu acredito que ele fique remoendo em que momento valia a pena ter tantos amigos, porque hoje ele não tem nenhum. Fora isso, essas dívidas que ele foi acumulando, que de repente chegavam lá: “Olha, ele ficou dois, três dias bebendo, a dívida foi tanto”. Gente, ninguém bebe num boteco sexta, sábado e domingo equivalente a um cavalo. A gente acredita que ele muito confiando, com a confiança depositando nos amigos, ele acabava, porque aí tem aquela coisa do “minha palavra”, “eu dei a minha palavra, então eu não posso desonrar a minha palavra”, e aí ele entregava. Eu acho muita parte do património que ele perdeu, ele perdeu sem ter realmente contraído essas dívidas. Tem aquela coisa da honra: eu vou quitar as minhas dívidas. Mas como você faz dívidas para perder terras, perder cavalo e perder vaca indo para uma noitada de final de semana? E ele nunca questionou. Nunca. Veio aqui pegar, como ele se embebedava, é porque eu estou devendo. E ele foi entregando. Lógico, que se do outro lado perceberam que era fácil, foram arrancando. E lapidaram um patrimônio, que eu fico me perguntando: como alguém perde o patrimônio que ele perdeu. Hoje para ele não morar debaixo da ponte, os meus irmãos se juntaram e compraram um terreno em Ananindeua e meio que o ajudaram a construir um barraquinho lá. Ele vai viver muitos anos para tentar pensar no que ele poderia ter feito de diferente, não que se mantivesse no topo. De certa forma, eu achei bom, porque meu pai era muito autoritário, meu pai era muito putanheiro, e quando você tem demais e não valoriza, você perde esse pé no chão. Entendeu? Às vezes é bom você tomar um tombo para você repensar a sua história de vida. Porque eu fico me perguntando: se a história tivesse sido outra? Acho que eu não seria a pessoa que eu sou hoje. Eu mudei muito a minha forma de pensar, de encarar. Migrar não é legal, mas por todos esses movimentos migratórios que eu tive, eu estou pronta para desembarcar em qualquer lugar, até no Taiti (risos). Entendeu?
P/1 – Bacana.
P/2 – Você gostaria de ir para o Taiti?
R – Olha, Taiti, para África, para Angola. Eu estou prontinha, não sei se eu vou ter idade e vou ter saúde para isso. Deixe-me aposentar, e se o salário vai permitir.
P/1 – Maria Lúcia, nesses seus movimentos migratórios, você acabou tendo, assim, estabelecido algum tipo de relação, casamento? Como foi essa parte da sua vida?
R – Culturalmente... (breve interrupção).
P/2 – É legal falar da cultura também, que você tinha comentado, influência, essas coisas que te marcaram.
P/1 – De Portugal, né?
P/2 – Por enquanto ainda não.
R – Culturalmente, o Pará.
P/2 – É. Por enquanto o Brasil, depois…
P/1 – Tá.
P/2 – É que ele já sabe a história antes.
R – Culturalmente, o meu legado histórico, ele está mais com o Pará. Se você me falar: “Você dança forró?”. Eu posso até dançar, mas o que me levanta da cadeira? O brega, o tecnobrega. O tecnobrega, na hora eu pulo da cadeira. A comida, se você me falar: “Você come buchada?”. Eu posso até comer. Agora: “Você come a maniçoba?”. Opa, estou dentro. Maniçoba, o vatapá, o vatapá do Pará. O caruru, o tacacá, esse, só de pensar, eu fico salivando. Eu vou para Teresina, agora mesmo eu estou indo em julho, estou viajando dia cinco de julho, que eu vou levar o meu filho para os meus parentes conhecerem, porque eles não conhecem, e eu vou comer. Eu vou comer o doce de buriti, eu vou comer o baião de dois, mas em relação ao legado cultural histórico do Piauí, com o legado cultural histórico do Pará, gente, eu digo que eu sou papi, mas o Pará me ganhou, assim, 100%. Não que eu deixei de amar a minha terra, as minhas origens, mas o Pará me ganhou facinho, facinho, entendeu?
P/2 – E os amores?
R – E os amores. Olha, o meu primeiro namorado, ele ainda está no Pará, na Escola Técnica Federal do Pará, foi o primeiro namorado, mas eu era bobinha, não tinha negócio de sexo. Que a nossa orientação era: aprender a cozinhar, aprender a costurar, aprender a limpar uma casa. Um horror. Deus me livre de ensinar isso para uma filha minha. Graças a Deus, isso aí nem pensar. Ensino o meu filho a lavar, ensino o meu filho a passar, ensinei os dois, mas para terem vidas independentes. Mas nós éramos educadas para casar. Éramos educadas para casar e não fazia sexo. E mesmo naquela época, o pessoal já era louco por sexo. Na minha concepção, eu tinha que chegar ao altar virgem, olha que tola (risos). E ele acabou arrumando uma assim bem dada, e me deixou. Acabei dando uns petelecos nela. Ele ainda está lá, já se casou umas três, quatro vezes, está lá. Somos amigos. Mas o segundo namorado também foi de lá, então assim, em relação ao relacionamento, devido a essa concepção de religião, que é igreja católica, de que você tenha um comportamento assim, assado, você fica meio que presa. Como eu tenho que me comportar com a libido, como mulher, o que a sociedade espera, que a gente fala que isso não pesa, mas pesa, o que ela faz. Eu sempre ouvia: quando uma mulher cai, ela não se levanta, se ela se deita na lama, ela vai ficar sempre com respingo. O homem não, o homem faz isso, toma um banho, pronto, vai embora, mas a gente fica lá no chão. E eu não tinha, assim, essa liberdade de agir como as outras agiam, de sair, de dormir, nem pensar, tanto é que eu já fui fazer isso tarde demais. Eu espero recuperar esse tempo perdido (risos). Estou atrás. Mas assim, eu fui muito tranquila e fui muito questionada, porque também tem a questão da religião: se você fizer antes do casamento, você está condenada. Eu morria de medo de ir para o inferno. Só Jesus sabe (risos). Eu estou pedindo perdão até hoje, que eu já andei aprontando. Acho que Deus perdoa. Mas eu já vim aprontar tarde demais. Fui uma criança levada no sentido de brincar. Fui uma adolescente levada no sentido assim, de peitar. Mas em relação à libido e ao sexo, eu fui sempre muito reservada, e até hoje. “Ah, porque vou sair, encontrei alguém. Ah, gostei, vamos para o motel?” Não vamos. Não vamos. Eu sou do tipo que tem que pegar na mão, tem que paquerar, todo aquele processo. E os homens não querem mais perder tempo, então eu estou aqui na geladeira (risos).
P/2 – E os filhos?
R – Ah, os filhos. Eu criei uma menina linda, chamada Carla Gisele, fofa, está casada, me deu uma neta. E sempre, meu sonho é aquilo: arrumar um marido, me casar e ter um monte de filho. Eu nasci para parir. Mas o que aconteceu? Tardiamente, como eu precisava estruturar minha vida financeira, eu também tinha muito medo de acontecer comigo o que aconteceu com a minha mãe, dar conta de seis... Porque o meu pai, num primeiro momento: “Ah, eu vou beber, eu vou curtir, porque eu tenho dinheiro”. Perdeu tudo? “Ah, eu vou continuar bebendo porque agora eu não tenho nada.” Oh, moço, cria vergonha na sua cara. Você coloca seis filhos no mundo e deixa só para uma tomar conta? E a minha mãe sempre foi uma guerreira. Eu pensava assim: gente, como eu vou botar um filho no mundo sem ter estrutura? Eu vou trabalhar. Quando eu perceber, esse é o momento, eu vou ter esse filho. Lógico, que eu achei que era o momento, eu tive um filho com um português, que foi um porco, e eu acabei criando sozinha o meu filho. Tive meu filho dois dias depois que completei 40 anos, que é uma bênção, que é o Gil Eduardo.
P/2 – O que significou ser mãe para você?
R – Tudo. Tudo. Eu só não tive mais o segundo, ou segunda, terceira e a quarta, porque num primeiro momento: “Ah, eu amo” “Eu também te amo. Ai, nossa, você é a mulher da minha vida”. Esse é o sonho máximo, você encontrar aquele companheiro, aquele parceiro. Então é a fome com a vontade comer, beleza. Cadê esse companheiro quando você precisa dele? O companheiro ficou: “Olha, estou viajando para a Espanha. Olha, anda cá pá, eu estou indo para a Alemanha. Olhando a cá pá...” “Como assim? Vai o quê? Amigo, tem uma criança aqui que precisa de você como pai, como mantenedor financeiramente, porque filhos não pedem para nascer. Nasceu? Ele precisa de fralda, ele precisa de leite, ele precisa de carinho, ele precisa de educação”. Então eu vi que a criatura meio que ficou assim: “Anda cá pá, cuida aí porque eu estou aqui a verificar umas coisas, depois venha a Portugal e a gente continua” “Não. Não é continua. Eu não tive filho sozinho, tivemos filho juntos, vamos educá-lo juntos, vamos criá-lo juntos. Para eu ter um filho com um homem e ele ser homem só na hora de ajudar a procriar, tchau, meu amigo, vá com Deus, Roberta Miranda para você. Eu vou ficar aqui cuidando sozinha”. Ele já tinha escolhido o nome da menina, Maria Eduarda. Eu falei: “Então tu vais ter que arrumar uma portuguesa, porque com certeza não vai ser com a Maria Lúcia. Eu vou criar o meu filho sozinha”. Que é o que eu faço até hoje. Ele veio algumas vezes, registrou o meu filho. Manda dinheiro quando o Ministério Público dá uma cutucada nele. Então faça-me o favor. Mas se eu tivesse conhecido uma pessoa legal, dez, ah, eu teria parido Gil Eduardo, a Maria Eduarda. A maternidade para mim foi tudo de bom. Morro de vontade de adotar. Quando eu vejo assim a situação de garotas no interior do Pará, quando eu vejo a situação de garotas no Nordeste, as meninas da Síria que eu te falei, agora do Iêmen, por conta da guerra, que são vendidas. Nossa, isso me dói, me parte o coração. E, assim, me dá vontade de pegar um avião, pegar um monte e cuidar. Tanto é que eu sempre falo: gente, se um dia cair, chover na minha horta, eu vou pegar uma escola barco. Porque lá a gente sai pegando filho de ribeirinho. Mas a escola do sonho. Não pude ter três, quatro, cinco, seis filhos, tudo bem, vou cuidar do filho dos outros. Mas na próxima geração, eu tenho certeza que eu vou conhecer um Alonso da vida (risos).
P/2 – (risos).
R – E aí eu terei vários filhos, porque é muito bom ser mãe. Gente, olha, falam: “Ah, você vai ficar à noite acordada. Ah, vai ter cólicas”. Vai. Tem cólicas, você pega na mão, você leva para a escola, você amamenta. Eu amamentei mais de um ano, tenho fotos com ele amamentando, que é show de bola. Ah, ele vai ter piolho? Vai ter piolho. Você cuida do piolho, você cuida da asma. Para mim não foi um tempo que eu deixei de ter para mim. Essa doação, para mim foi tudo. Hoje eu vejo o meu filho com 17 anos, vai fazer 18 anos, e ela, Carla Gisele, eu falo: “Gente, por que eu não tive mais?”. Porque é uma doação que é uma coisa que você não deu ao outro, você deu para si, de tão bom que é a maternidade, e a paternidade, independe se você pariu ou não. Mas todo esse processo de: olha, faz o beta HCG, descobriu que está grávida, maravilha. A minha médica falava que era psicológico: “Na sua idade?” (risos). O psicológico nasceu depois de nove meses. Não era psicológico. Que ela falou que tem várias mulheres que botam, que quero, quero. Ela falou: “Ah, Maria Lúcia, na sua idade?”. Ele mesmo, o Eduardo, meu companheiro: “Anda cá pá, que estás a falar? Eu tenho mais de 50 anos, tu estás com essa idade. Isto é coisa de adolescente”. Porque eu fui para Portugal, comprei só uma passagem, voltamos os dois. Ele veio lindinho aqui no útero. Nessa época eu trabalhava na Telesp e foi uma correria. Até ele perguntar para mim se aquela coisa já tinha chegado. Mas que coisa? Tinha me esquecido da menstruação. Eu falei: “Gente, está atrasado”. Porque os espanhóis estavam botando a gente louca. Eu trabalhava no setor técnico, que eu tinha que instalar LP de dados. Eu trabalhava aqui na Sete de Abril, e era LP de dados, LP de rádio. Eu trabalhava junto com o pessoal da Embratel. Gente... E tinha dia que tinha linha telefônica que ia para o telefônico público, o telefone da sua casa ia para... Lembra-se dessa loucura? Quando chegaram os espanhóis, que era Telefonica, Telefônica? Eu era da Telesp. Imagina que eu vou lembrar se a menstruação veio ou não veio. E quando eu fui para a minha médica: “Ah, Maria Lúcia, na sua idade, olha, você pode ter certeza que é psicológico. Você fez algum tratamento?”. Eu falei: “Não. Que nem Adão e Eva, eu fui lá e pá pum” (risos). E aí, gente, quando eu descobri que que eu estava prenha, meu Deus do céu, foi tudo de bom. Eu teria vários outros Gil Eduardo. Tudo de bom. Olha, vocês têm que ter filho. Já falei para vocês (risos).
P/1 – Maria Lúcia, você falou um pouco dos seus sonhos, e dessa questão do barco, da escola, você não fugiu da educação. Você tem mais algum? E dessa questão da geógrafa preocupada com a situação no mundo, do Iêmen, da guerra da Síria. Você tem alguns planos?
R – Olha, eu sempre brinco aqui na escola por conta das minhocas, que tem um minhocário ali que é um dilema. Eu percebo que... Voltando para Teresina, nós nunca tínhamos ido para... Lá a gente chama de quitanda. Nunca tínhamos ido a uma quitanda, porque vinha tudo das terras do meu pai, do quiabo ao arroz. Então você pegar a manga no pé, a guabiraba, você pegar cajá, você pegar a macaxeira, a mandioca, você ralar e fazer a farinha, gente, isso não tem preço. Aí você perde tudo, você sai do natural e você migra. Quando chega lá, nós temos que comprar. Primeiro, cadê dinheiro? Mas tudo bem, vai lá e compra na cadernetinha. Meu pai foi trabalhar com seixo, que são essas pedrinhas que servem para construção civil, de um único caminhão que sobrou. Porque ele tinha caminhão lá em Teresina, e um deles foi esse que a gente foi de pau de arara para o Belém do Pará. E lá é a taberna. É a taberna que tínhamos que comprar. Gente, comprar meio quilo de arroz, comprar meio quilo de farinha, pelo amor de Deus, ninguém merece, para quem tinha uma fartura enorme lá no Piauí. E tudo vinha de supermercado ou das tabernas. Com o tempo, a gente percebeu que os sabores não eram os mesmos. Aqui mesmo, quando eu compro uma manga, eu falo: “Jesus, nunca vai ter o mesmo gosto da manga que tem no Pará, da manga que tinha em Teresina”. Eu acredito que eles tiram verde, põem para amadurecer muito rápido. Enfim, não é a mesma coisa. A quantidade de agrotóxico. O morango que a gente come... Eu tenho... Eu moro num apartamento de 40 e poucos metros quadrados, eu tenho lá uma caixinha de minhoca, eu tenho um minhocariozinho, que eu faço lá o meu húmus, eu tenho o meu pezinho de morango pendurado lá na parede, eu tenho o meu orégano, eu tenho o meu salsão, eu tenho isso. Mas voltando para a sua pergunta, um dos meus sonhos é a questão da horta orgânica, da roça sustentável. Eu acho que a produção em massa que o agronegócio faz e o lucro que eles visam e colocam em primeiro lugar, ele deixa de lado a nossa saúde, ele deixa de lado a nossa vida no sentido... Em todos os aspectos, o que nós estamos comendo, a quantidade de veneno que nós estamos colocando no nosso organismo, colocando no organismo de nossas crianças. Então um dos outros sonhos: ter essa escola nesse barco e trabalhar a questão dessas comunidades que acham que a cidade é o paraíso, que tem tudo, que é maravilhoso, que lá, eles trabalhando no pouco pedaço de terra que eles têm, plantando uma melancia saudável, plantando um feijão saudável, plantando uma fruta saudável e comendo aquilo que eles plantam, eu acho que nós teríamos menos consumo de remédio. Aliás, o meu sonho é que toda indústria farmacêutica falisse, no sentido de não teremos mais doentes. Porque nós estamos morrendo pela boca, eu penso assim. Entendeu? Ultimamente, quase tudo, até o hidratante do meu cabelo eu estou fazendo em casa, e eu descobri que está melhor, porque eu ia a uma loja aqui, que eu não vou falar o nome, que eu comprava creme de 150, de 80, de 200, e o meu cabelo, terminava de lavar, lavava, colocava um quilo de creme, o bicho ficava assim, só palha. Eu vinha com ele amarrado, lembra? Eu falei: “Gente, na minha época, na minha infância, ninguém comprava creme. Como o meu cabelo era?”. E eu estava ficando careca, criatura. Careca. Meu cabelo, olha, eu passava em casa, eu ia varrer, era só pelo chão. Era pior do que as árvores no outono, caindo, caindo. Falei: “Meu Deus, eu vou ficar careca”. Banheiro, cozinha. Ia para cozinha com um pano na cabeça para não cair cabelo. Eu falei: “Não, eu vou voltar as minhas origens, meu hidratante”. Está aqui, gente. E meu cabelo é afro, mas os cachinhos estão definidos. Eu descobri que a indústria de cosméticos é enganosa. Eu comprei creme que era “deita letão”, “cai não sei o quê mais lá”, aí caiu o meu cabelo. Mas o afro que arma muito, porque ele é um afro, mas ele é fino. Então eu acabava de lavar, botava o creme, chegava aqui, o bicho estava assim, parecia que eu tinha visto uma alma. Eu falei: “Não, eu vou voltar as minhas origens”. Eu passei a fazer o meu óleo em casa, o meu óleo do rosto em casa. E estou aí, 58 anos, está aqui, não vou ficar careta, porque Deus é maravilhoso. Porque eu estou começando a me lembrar de tudo que a minha avó fazia. “Ah, minha filha, você está com dor de barriga? Pega ali. Vá lá à laranjeira, pegue uma folha de laranja.” Pronto. Ou então, nós não tínhamos forro na casa, era ripa. Por aqui a gente não vê mais. Ou é esse tipo de forro, ou é forro de gesso, ou é forro de madeira. O que eu fazia? Descascava a laranja, porque do lado tinha o pomar, descascava a laranja, tirava a casca inteirinha, sabe? E aí jogava: pá. E aquilo ficava pendurado. Ah, está com dor de barriga. Sacode com cabo de vassoura, cai a casca de laranja, prepara o chá, aquele de fusão, põe a água, lava as cascas, põe dentro, abafa, daqui a pouco você toma. Não adoça, toma só uma dosinha. Está estressada? Ali, pega ali, minha filha, vá lá à canela, pega a folha de canela, venha tomar um chá de canela, fica calminha. Agora tudo é, que nem o meu médico do Hospital do Servidor: “Ah, Maria Lúcia, você está muito estressada. Eu vou colocar aqui, passar uns remédios”. Eu falei: “Remédio? Tarja preta? Nem passe. Nem passe, que eu vou rasgar a receita. Deixa que eu arrumo um jeito para ficar calminha”. Gente, eu estou tomando chá. Chá. Você fica calma, você relaxa. Aí toma o tarja preta para ficar calminha, arrebenta o fígado. Arrebenta o estômago. Nós estamos nos envenenando. Nós estamos morrendo. E não era, porque você vai a uma comunidade indígena, não tem farmácia. Eles morrem porque a gente está levando doença para eles. Não tem farmácia, é tudo de lá, é orgânico. Então eu estou voltando as minhas origens, orgânica. Esse é o meu sonho: roça orgânica, pomar orgânico, muito verde, pouca poluição.
P/2 – Como você ingressou na educação, Maria Lúcia?
R – Então, eu trabalhava na Telesp, eu era da educação, tanto do particular, quanto da rede estadual. E eu descobri que como técnica de telecomunicações eu ia ganhar mais. Porque assim, temos sonhos, tem profissão que nos agrada mais, mas temos contas a pagar, e aí temos que correr atrás de um salário melhor. E o Estado, infelizmente, o estado de São Paulo, Jesus, faliu faz tempo. E eu resolvi prestar concurso para a Telesp. Na época era a Telesp, que era o do Sistema Telebrás. Prestei na Telesp e prestei na Embratel, eu passei nos dois, a Telesp me chamou primeiro. E eu achei que eu iria me aposentar na Telesp, ganhava um salário bom, tinha o 14º, o 13º, o 14º e o 15º, que era PL, Participação nos Lucros. Mas veio um presidente chamado Fernando Henrique Cardoso, esse cidadão resolveu privatizar uma das empresas, que no meu ponto de vista, não deveria ter sido privatizada nunca, falando que dava prejuízo e tal, não sei o quê mais lá. Bom, quando foi privatizada, eu estava grávida e chegaram os espanhóis, pegaram todos os setores e terceirizaram, ou seja, picaram a empresa inteira em pedacinhos e, olha, jogou para lá, para lá, para cá. E o meu setor foi um dos primeiros que foi terceirizado. Mas como eu era uma boa técnica, eu era a única mulher do setor, eu sou abusada mesmo, porque majoritariamente são homens nessa área, telecomunicações, eletrônica, mecânica, são homens, e lá na Telesp só tinha eu de mulher, Sete de Abril, era do DG, Distribuidor Geral. Aí eles terceirizaram, então todos os direitos que nós tínhamos como funcionários da Telesp, nós íamos deixar de ter, mas íamos continuar trabalhando fazendo o mesmo trabalho. Eu falei: “Gente, isso é regredir. Isso é um trabalho escravo. Vamos dizer oficializado, normalizado, reconhecido e aceito pelo governo, mas eu não aceito”. Falaram: “Não, Maria Lúcia, você só vai perder isso, perder aquilo, perder aquilo, mas você vai ter um emprego”. Eu falei: “Não, gente, eu posso até rodar bolsinha” – usei esse termo – “mas aqui eu não vou ficar. Eu me nego. Para mim, isso é regredir. Se vocês quiserem, paciência”. Eles falaram: “Vocês, a gente vai mandar embora no papel, mas vai ficar todo mundo no mesmo setor. E vai usar outro uniforme, que agora são essas “Tele Isso”, “Tele Aquilo” que prestam serviço”. Eu falei: “Não. Eu vou direto no departamento de recursos humanos”. Linda fui. E até lembro que teve um gerente espanhol que perguntou: “Qué vas a hacer?”. Eu falei: “Me voy por la calle. Me voy por la calle” (risos). E fui assim. Gente, voy. Como? Com uma criança pequena, um bebê. Eu falei: “Bom, seja lá o que Deus quiser”. Eu passei numa banca de revista, tem uma colega, a Severina, que trabalha lá, falei: “Dê-me o jornal do concurso”. Eles falaram que iam me indenizar, bonitinho. Ligam até hoje perguntando se eu não mudei de ideia. Não mudei nunca. Não vou mudar. Para ganhar um terço do que eu ganhava, sem nenhum direito, muito obrigada. Trabalho escravo, para mim, tem na marra, não eu assinando embaixo que eu quero ser escrava. Eu fui, peguei o jornal do concurso e tinha um concurso para a prefeitura, para o TRE e para o Estado. Eu falei: “Opa, vamos prestar todos”. Eu passei em todos. O TRE ficaram faltando 17, aí, como eles falam? Caduca. Sei lá. Aí vai outro concurso, não me chamaram. O Estado me chamou em janeiro, eu tomei posse, a prefeitura me chamou em março. Eu tomei posse dia 30 de março. E aí estou até hoje. Por que educação? Porque apesar de eu estar... Na prefeitura, entrei ganhando uns seiscentos reais. Graças a Deus que a Erundina, que seja abençoada, ela fez um plano de carreira e ela deu um pouquinho de dignidade para os professores. Porque, veja bem, eu entrei ganhando mil e cem no Estado, e 300 reais na prefeitura. Hoje eu ganho mil e 700 no Estado, que eu tenho 17 anos, e eu ganho cinco mil e pouco na prefeitura. Gente, pelo amor de Deus, será que eu estou louca? E a gente vê o governador falar que está tudo muito bem, obrigada. Faça-me o favor. Mas eu falei: “Vou para a educação. Na minha idade, 40 anos, como eu vou conciliar com esse bebê?”. Então a prioridade foi o Gil, então eu precisava estar como educadora para acompanhar também esse processo de criação dele, tendo em vista que estava só, o pai estava na Europa, lindo, maravilhoso, foi um varão, responsabilidade zero. E eu acabei ficando, porque os meus horários batiam de segunda a sexta com a minha criança, dava para eu deixá-lo na escola, dava para eu pegá-lo. E também no período de férias, que as escolinhas fecham, eu também estou. Lembrando que eu sempre gostei, tanto é que quando eu vim para cá, eu fui trabalhar na área de administração de empresas. Falei: “Não é a minha praia”. Fiz Geografia por quê? Não muito para dar aula. Fiz Geografia porque eu adorava estudar lugares, tanto é que quando eu peguei meu primeiro salário, eu fui conhecer Toledo, na Espanha, Barcelona, que a capital da Catalunha, porque eu via as imagens, eu ficava assim: “Gente, isso é muito lindo, eu preciso conhecer”. E eu fui atrás do Turismo, me falaram: “Não é com o Turismo que você vai chegar aí”. Falei: “Então eu vou para a Geografia”. Então deu para casar a fome com a vontade de comer: eu conheço os lugares, eu estudo sobre eles, e agora eu repasso esse conhecimento sobre isso. E não me arrependi. Só me arrependo de até agora não ter podido voltar. Porque eu só saí de Belém pela questão do salário, porque eu dei aula para alunos em comunidades extremamente carentes. Aquele aluno que, assim, para eles, o professor é autoridade máxima. Gente, é um negócio assim, aquele que a mãe traz bolo de fubá. Não pelo bolo, mas assim, pelo carinho, pelo respeito que ainda tem pelo professor. Ela traz a galinha, você fala: “Gente, o que eu vou fazer com uma galinha?. Mas é muito lindo, porque é uma forma muito... Não é pelo presente, é pelo afeto que você vê que eles ainda têm pelo professor. Coisa que a mídia joga pedra e muito, infelizmente.
P/2 – Como é trabalhar aqui no infante? Você tem histórias interessantes aqui do Espaço de Bitita?
R – Tenho. No primeiro momento, eu vim para o Infante porque eu morava aqui na Pedro Vicente. Tem o Metrô Armênia e tem o caso do meu filho, ele estudava aqui, que ele já se formou, agora faz faculdade, aqui no Colégio da Polícia Militar, no Panelão. Então para mim era muito prático, ia ao Panelão, deixava o meu filho, fica na Cruzeiro do Sul, vinha para cá. Porque eu ingressei na prefeitura no Edu Chaves, depois eu fui para Voluntários da Pátria, depois eu voltei para Vila Guilherme, para Oliva Irene, depois eu fui para São Miguel, lá para o rumo da Vila Cisper. E eu trabalhava numa escola que o governo, PSDB, também fechou, que foi o Prudente de Moraes, que foi doada para a Pinacoteca. Sutileza do governo, maravilha, fechando escola. Como fechou essa escola, eu vim para cá porque ficava prático. Eu tinha aqui o Infante e, ali próximo da rota, eu tinha a Escola Prudente de Moraes, que é colada na Pinacoteca. Que foi doado o terreno da escola para a Pinacoteca. E dava para eu vir andando. Dava para fazer tudo isso andando e estar sempre perto do meu miúdo, que era a minha prioridade estar sempre colada nele. E num primeiro momento, não só por essa facilidade, mas também porque eu morava aqui e eu conhecia muita gente daqui. E praticamente era como se eu estivesse em casa. Lógico que quando eu cheguei aqui, a comunidade na época era muito distante da escola. Hoje, essa comunidade tem se aproximado mais, acho que por conta dos projetos. Mas ela era muito arredia. A gente sofria muito com entrada, com saques. Hoje deu uma maneirada nisso, a coisa está melhor. Tanto é que eu consegui comprar apartamento longe daqui, que eu estou quase em Diadema. Eu levo uma hora e meia, duas horas para chegar aqui, vou para o Estado, porque como o governo cedeu, fechou a minha escola, que era a Prudente de Moraes, para não ficar ardida, que a gente fala ardida no fogo do inferno, que é quando você fica sem escola, eu fui para uma escola chamada Silva Jardim, em frente ao Metrô Tucuruvi. Como daqui para lá dão uns 20 minutos de carro, não tem problema com acúmulo. Eu sempre me pergunto: “Gente, porque eu não exonero o Estado?”. Porque eu amo aquela escola. Porque trabalhar todas as tardes para ganhar mil e poucos reais, ninguém merece. Não paga as suas contas. Lá a gente tem uma comunidade de fora, é estrangeira. Aqui a comunidade é do entorno, é um diferencial. Lá eu tenho alunos de Guarulhos, lá eu tenho aluno do Jova Rural, lá eu tenho aluno do Jardim Elba, do Jaçanã, é um aluno migrante que eu falo, mas é muito legal, porque eles têm um carinho pela escola muito grande, 40 alunos em sala de aula. Então são dois mundos, são escolas públicas, mas cada uma com a sua identidade e com o seu compromisso em relação à educação, tanto por parte dos pais, quantos dos professores, quanto do próprio aluno. E aqui não. Aqui, eu praticamente estava no meu quintal. E eu fui ficando, fui ficando e foi mudando. Nós temos o Infante de oito, nove anos, que era o de tomar porrada mesmo, e o Infante que está com uma nova cara, que a ideia é fazer com que a comunidade entenda que essa escola não é da Maria Lúcia, não é da professora Rosângela, essa escola é deles, que eles têm que valorizar, que eles têm que preservar e que eles têm que amar, que está no lugar deles, no território deles, está no quintal deles. Então essa movimentação e essas, vamos dizer assim, etapas distintas, acabaram me fazendo ficar aqui. Eu estou indo para mais de dez anos aqui. Tanto é que não pedi remoção para onde estou agora, porque você cria um vínculo. Não é acomodação, você cria um vínculo. Porque a maioria das,.. Eu acho que dificilmente uma escola, no caso assim de uma escola com a Infante, ela fica todo dia com a mesma cara. Aqui, se você vier uma semana, você vai ver que todo dia é uma coisa diferente, é uma história diferente. E isso é um desafiador. Às vezes eu fico estressada, nossa, ela me conhece, eu fico louca da vida, eu fico virada no Jiraya. Eu uso o termo “eu vou amolar o pau” e tal. Mas isso que faz a diferença. É a questão de não cair na rotina, cada dia é um dia. Quando cai na rotina, perde a graça. Aí, mulher, é melhor você arrumar a mala e migrar, ir para outro lugar, porque não dá para você ficar mais aqui.
P/3 – Aqui não tem tédio.
P/2 – Maria Lúcia, você falou que no começo era mais difícil, sei lá de que jeito seria. Descreva um pouco mais e depois o que mudou. Se você puder contar alguma história.
R – Invasão. Aqui nós tivemos caso de roubarem a merenda, de a gente chegar na segunda-feira, aqui o corredor estar o buraco, de a gente ver o teto, de eles pularem, entrarem, pegarem computador, pegarem máquina, pegarem... Ou levavam, e o que ficava, vai, detonavam. Ir lá, arrombar o cadeado, pegar toda a merenda das crianças, levar embora, chegar na segunda-feira, o pessoal ir à delegacia de polícia, fazer um boletim de ocorrência. E aí não tem aula. Por que não tem aula? Porque não tem comida para as crianças. No dia seguinte, quem levou trazia de volta dentro do saco de lixo. Está lembrada disso? Trouxe a merenda de volta, porque com certeza era pessoa que um filho, ou ele mesmo estudava, ou um parente. Como as crianças voltaram, voltaram porque não vai ter comida, no dia seguinte o cidadão, simpático, que estava com fome, trouxe toda a comida que levou de volta dentro do saco de lixo. Por orientação da DRE, a escola teve que descartar. Porque como você vai pegar uma comida de volta, pegar essa comida e preparar para as crianças? Não tinha como, porque você não sabe por onde essa comida andou. Entendeu? É um dos fatos. Outro, nós estamos em território do Tietê. Tudo isso aqui é área do Tietê. Essa rua Nestor Pereira, ela é chamada de Rua da Piscina, não sei se você sabe. Já teve casos de perder carro ali na federal, você deixar o carro e a água subir. Teve dia que nós chegamos aqui, tinha tanta água, mas tanta água, que parecia uma piscina, de não termos, assim, como entrar. Levanta as calças e pega rodo. Tanto é que se você for ali para a sala dos professores, tem tipo uma calhazinha, que ali puxava a água. No fundo da escola tem uma espécie de cisterna, não sei se você já foi, porque isso aqui fica tudo submerso.
P/2 – Ainda? Ainda fica?
R – Ainda. Mesmo com a cisterna, quando cai uma chuvinha legal, isso aqui... A minha sala, agora que a prefeitura mandou umas telhas, e ultimamente eu não dou aula no gapó, mas ficava gapó, verdadeiro gapó, ou seja, a gente entrava com as crianças tudo cheio d’água, tira as crianças, pega rodo e tira a água. A questão da ocupação dessa área do Tietê nos deixa vulneráveis. Porque isso aqui era só vegetação de área de rio, sapo, grilo, e ele foi ocupado. Ali onde está a Portuguesa era tudo território de rio. Do outro lado era tudo território de rio, onde hoje tem o Center Norte. Aliás, eles faziam piquenique ali, que era o que a gente chama de coroa de rio. Depois, como canalizaram o rio, eles resolveram aterrar. Aterrou com o quê? Com muito lixo. Se você for lá ao Center Norte, você vai ver os tubos para liberar o gás metano. Você já viu? Então, dentro do shopping tem e do lado de fora, quando você vai para aquele shopping de frente, onde tem móveis, Lar Center, tem a tubulação que libera o gás metano. Por quê? O gás metano é altamente inflamável, ali é uma verdadeira bomba, porque todo esse lixo ali, que foi colocado para ser aterrado, deu origem ao gás metano. Isso é obra do ser humano. Foi ocupado de forma irresponsável, desordenada, e quem está por aqui hoje paga o pato. Como eu morava aqui na Pedro Vicente, eu cansei de chegar a minha casa, na Pedro Vicente, com água no joelho. Morava no quarto andar, a água entrava até o meio da escada. Pedro Vicente, Cruzeiro do Sul, se um dia cair uma chuva legal, você pode trazer bote. Panelão, eu entrava com o meu filho no Panelão de carro, porque se ele viesse a pé, a água no meio da canela. A Avenida do Estado, a João Pacheco, a Luís Pacheco, tudo é território. Rio Tietê de um lado e Rio Tamanduateí do outro. O homem ocupou, não tem problema, a natureza reivindica. De que forma que ela reivindica? Desse jeito. Então essa escola, ela literalmente foi aterro. E as autoridades sabem, a gente sofre desde que essa escola foi construída aqui com esse problema. E, olha, é pedido para ser transferido tudo, direto, o Cláudio já pediu, tem projeto para construir, e a gente tomando porrada. Sofre professor, sofre o aluno. Deu uma chuvinha também aqui, que tem outro pormenor, de vez em quando pega toda a fiação lá na esquina, e a gente chega aqui, não tem luz (risos). Tem isso também.
P/2 – Maria Lúcia, o que fez mudar de a comunidade antes invadir, você falou: “Agora mudou”? O que você acha que fez mudar?
R – O Cadu, ele tem feito...
P/2 – Quem é Cadu?
R – O Carlos Eduardo, que é o nosso coordenador. Quando ele chegou aqui, ele criou uma reunião de território. Então essa reunião de território, ela é feita acho que uma vez por mês. Vem o representante aqui do IF, vem o representante de lá da vilinha, vem representante dos moradores do bairro, vem representante de igreja, vem o pessoal aqui da Cásper Líbero, vem o pessoal da saúde.
P/3 – Dos equipamentos aqui de acolhimento.
R – Isso. Para todos os equipamentos do território é feita uma reunião, uma vez aqui no Infante Dom Henrique, outra vez no IF e por aí vai. Nessa reunião foram levantadas necessidades para o território, uma delas é lixo, que eles jogam. Tem dia que se você sair daqui da escola até a esquina, na Rua Araguaia, tem lixo de um lado e do outro. Que nós vamos ter aqui o Abrigo Maria Maria, não sei se você conhece, vamos ter que é para as mulheres que estão em situação de risco, vamos ter aqui o abrigo de idosos, e vamos ter, lá mais na frente, para os homens, que eles abriram outro. Então o que acontece? Essas pessoas, elas têm necessidade, todas essas instituições, elas têm algumas necessidades e também têm ideias. E a ideia é: o que fazer para melhorar o território? Então isso aproximou mais. Outra, a questão de chamar sempre o pessoal do território, do lugar, para a gente encontrar junto soluções para esses problemas, no caso do lixo, a violência, a questão do acesso à droga, como melhorar de vida fazendo curso no IF, a Kantuta, porque tem um problema sério com os alunos, que os nossos chama de bolívar, ou boliviano, mas não são, eles têm traços étnicos dos pais, que são bolivianos, mas eles são brasileiros, porque eles nasceram aqui. É que nem eu, sou brasileira, se eu for para os Estados Unidos, ou para a Inglaterra, e tiver um filho lá, que não vou ter mais, porque já passou da idade, o meu filho tem a nacionalidade britânica, mas etnicamente ele vai parecer comigo, olha. Então os nossos sempre chamam o Bolívar, Bolívar, Bolívar, então tinha muito problema de violência, de agressão, xenofobia mesmo. E aí foi feito um contato com o pessoal da feira, com os pais, para melhorar. Daí foram feitos vários projetos para amenizar esses problemas. E o que a gente percebe? Para alguns, que passavam, mas não enxergavam a escola... Porque quando você não enxerga? É quando você não dá pela presença dela, só que ela está aqui, ela tem vida. Não é um prédio. Não é só um muro. O que está por trás desse muro? Por trás desse muro tem crianças, tem professores, tem pessoas com sonhos, tem toda uma quantidade de seres que têm uma história de vida. Como valorizar? Porque também não é só pegar o livro, abrir, copiar. O que tem aí dentro? O que pode ser aproveitado? Quem está aí dentro? Eu me importo? Se está na minha rua, por que não? O lixo está lá fora, por que eu abro as pernas, passo pelo lixo e não dou pela presença dele? Esse lixo está aí, é problema meu também. A escola está aí, é problema meu também. Quando nós pararmos para ver que o que está do nosso lado não é problema do outro, talvez nós tenhamos um mundo melhor. Então essas pequenas intervenções fizeram com que muitos parassem, porque a nossa escola era agredida, ela era muito invadida, e isso tem melhorado bastante, graças a Deus. O meu carro que o diga. Meu carro, quebraram a antena, meu carro, furaram os pneus, meu carro... Nossa, tinha dia que eu chegava lá, falava: “Meu Deus do céu, que hora eu vou embora daqui?”. Os quatro pneus tudo rasgado.
P/2 – E isso parou?
R – Parou. Teve professora aqui que quebraram o vidro. Pura maldade. Porque o nosso portão tinha motor, não tem, carregaram o motor (risos). Botaram o motor, deram o controle para os professores e pronto. A gente ficou com o controle, porque eles carregaram o motor. Então era muito vandalizada. Graças a Deus nós estamos assim, a escola agora faz parte da comunidade, não como deve ser, deve ser melhor, mas a gente já está caminhando para isso.
P/2 – Maria Lúcia, você poderia contar alguma história para a gente de aluno, de aluna, que você teve aqui e que teve um futuro, por exemplo, numa escola federal, que brilhou de alguma forma.
R – Olha, eu tenho vários. Tenho os que se deixaram ficar na beira da estrada, acharam que não tinham capacidade. Todos eles têm, não sou eu que vou apontar e falar: “Você tem ou você não tem”. Cada um tem a sua capacidade, basta você descobrir que ela existe aí dentro e correr atrás. Mas eu tenho alunos e tive alunos daqui, que agora não são mais meus, são ex, que eu me sinto assim, honrada de ter sido professora deles pela história de vida. Eu tive alunos que eram mães de pessoas que limpam casa dos outros durante o dia inteiro, hoje estão numa universidade, na USP, saíram daqui e foram para a federal, e aluno que tinham feito a prova da Etec não passou e não quis nem vir para a formatura. E depois ele fez a prova aqui do IF e passou. Então hoje ele já está na USP. Isso para mim é um motivo de orgulho muito grande, porque tem aluno que você fala: “Você consegue. Você chega lá” “Ah, professora, eu acho que eu não chego. A minha mãe é diarista, o meu pai morreu, o meu pai usa droga” “Tá. O seu pai. A história de vida da sua mãe. Você tem a sua história de vida. Você tem o seu caminho. Você vai chegar”. Então tem o caso do Caio. O caso do Caio, que é um xodó, o Caio é um caladão, ele saiu o ano passado, na formatura eles me convidaram para ser paraninfa, e eu lembro que quando chamaram o Caio, eu me curvei para ele, porque eu já era fã dele, e a gente ainda não sabia o resultado, a gente até falou para a Solia: “Solia, quando sair o resultado, você fala”. Mas como eu já sabia do potencial e da garra dele, que até teve uma festa aqui de máscara, que eles vieram vestidos de mulher, o Caio me chamou e falou assim: “Pro, posso ficar na sua sala trancado, estudando?”. Falei: “Pode”. Ficou ele e mais uns dois. Falei: “Pode”. E no dia da formatura, quando me deram lá o que simboliza o diploma, eu me curvei para ele, porque ele ficou quietinho, caladinho, estudando muito. Quando saiu o resultado em janeiro, que a Solia colocou que ele tinha ido para a federal, gente, eu amei. É um menino de origem humilde, é um menino batalhador, mas ele ficava sempre: “Professora, será?”. Tipo assim: “Será que eu consigo? Isso é muito para mim”. Porque a gente tem essa falsa ideia de achar que aquilo é para o outro: eu não mereço aquilo. Merecemos sim. Conseguiremos sim. Vamos vencer sim. Eu, se eu estivesse no Pará: ah, coitada de mim, eu vim do Piauí, sou migrante. Eu vou esperar a morte chegar? Eu não teria chegado aqui. Então tem o Caio, tem a Aline... A Aline, uma aluna nossa boliviana, ela teve um problema, eu tenho a irmã dela que é minha aluna, que ela ficou um tempão sem vir aqui, porque estava sofrendo com problema de extorsão, um negócio muito chato, que fazem muito com os bolivianos que vivem aqui no Brasil e com os filhos dos bolivianos. E viajou com a gente para a Bolívia, nós fomos para a Bolívia dentro de um projeto, fui eu, foi o Cláudio, foi a coordenadora, foram vários professores e a Aline também foi junto. E ela sempre confidenciava, tanto é que eu nunca tinha visto uma chola. Eu vim a conhecer uma chola, cholita, lá em La Paz. Eu falava assim: “Aline, que lindas”. Elas com aquelas roupas, ela: “Ah, professora, é uma chola. Olha, professora, se um dia eu voltar para a Bolívia, eu vou ser uma chola. Foi quando eu vim a saber sobre o que era uma chola, que elas eram discriminadas, meio que segregadas, e agora com o novo governo, elas têm acesso. Achei isso maravilha, tudo de bom. Mas é uma menina também que deu a volta por cima em relação ao preconceito, em relação à questão da extorsão, voltou a frequentar a nossa escola, também já está fazendo curso superior. Tenho três alunas e agora vem a quarta: uma quase não abria a boca para falar, foi também para a Bolívia com a gente, passou muito mal, todo lugar que a gente ia, a menina desmaiava. E essa aluna, ela não passou num primeiro momento no IF, e aí ela foi para uma escola vizinha, nem vou falar o nome, porque só jesus. E quando chegou lá, ela sofreu muito, a irmã da Érica, a aí mão falou, a mãe me chamou e falou: “Professora, ela vai ficar um ano em casa”. Eu falei: “Pelo amor de Deus, não faça isso. Mande para a escola”. Ela falou: “Professora, eu não tenho condição naquela escola. Ela vai ficar dentro de casa estudando, porque ano que vem ela vai entrar no IF. Eu falei: “Olha, se precisar de alguma coisa, você me fala, que eu levo o livro”. Esse aluno, o primeiro, que eu falei que está na USP, todos os livros eu peguei daqui, dei para ele, ele levou para a casa para estudar. Foi o Vinícius. Eu sei que essa aluna ficou e entrou, estão as duas. Agora a Érica está no oitavo ano, e a Érica já me falou. A Érica, ela ficava no fundo da sala, ela mal abria a boca para dizer “estou”. Hoje ela vem, ela dá beijinho, ela já fala, ela já ri. E qual o propósito dela, objetivo? “Professora, eu também vou entrar lá.” Então quando você vê isso, ouve isso de um aluno, você fala: “É aqui que eu tenho que estar”. Porque existe um diferencial, que você pode acrescentar, ou pode diminuir. Então esses alunos, para mim, são na realidade a contestação, ou a comprovação de que vale a pena. E muitos deles conseguem direcionar a própria vida. Você dá até um toquezinho: você vai, você consegue. Então a irmã dela, eu falava assim: “Gente, como que com tanta timidez ela vai?”. Ela falou para mim: “Professora, se é para eu ficar naquela escola, eu vou ficar em casa, eu vou estudar e entrar nessa”. Eu pensei: mas um ano fora da escola? A mãe dela falou: “Não, professora, não tem condição”. Gente, pois ela entrou. Hoje, quando eu vou à federal, eu vejo as duas no corredor, lindas. E a terceira está indo. Já teve caso de aluna, Teófila... A Teófila é filha de uma boliviana, e a mãe chegava: “Maestra, por Dios, que tengo que hacer?”. Teve um dia que eu estava tão irritada, porque a Teófila estava com umas amizades assim não muito boas, não buenas, aí eu falei: “Madrecita de Dios, Teófila para La Paz. Tiene que vivir en La Paz” “Voy a enviarle para La Paz?”. Falei: “Sí, porque a Teófila no le gusta estudiar. La Paz”. E ela: “Não, professora, pelo amor de Deus, La Paz não”. Não sei porque não queria ir para La Paz, que era para viver com o pai. Acho que o pai dava... Porque os bolivianos, olha, mete o corretivo. Gente, rodou, rodou, falei, falei, eu já não aguentava mais falar com a mãe. Que eu falo muito com mãe. Que nem hoje lá com os pais: “Falo muito, mãe. Seja firme com Teófila, que ela andou com namoradinho assim não muito no bom caminho”. A Teófila falou: “Não, eu vou mudar”. Eu falei: “Ou você muda, ou você muda. Você tem dois caminhos para você mudar: ou você muda para o seu bem, ou você muda para La Paz” “Não, professora, para La Paz não. Vou ficar”. Um belo dia estou eu fazendo um lanche aqui na federal, quem me abraça? Teófila. Essa eu não chorei, porque eu falei: “Não, gente, deixe-me ir para o banheiro, respirar fundo”. Porque eu fiquei tão irritada, que eu falei para a mãe: “Pode mandar para La Paz. Pode mandar para La Paz”. E ela falou: “Não, professora, eu preciso de uma chance. Eu vou mudar”. Mas assim, estava rebelde, peitava, chamava palavrão, parecia esses meninos rebeldes. Resumindo: está fazendo Edificações. Então são histórias que a priori, tipo: esse não vai dar em nada, ou é Fundação Casa, ou é presídio. Tivemos alunos que foram assassinados meus, tivemos alunos que estão presos meus. Mas o que eu sempre falo para eles: “A escolha é sua. Você está aqui para melhorar como pessoa, para melhorar a sua situação social, sua situação econômica”. Porque aí eu apresento: o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. A desigualdade social no Brasil, ela é criminosa. Para mim é um crime. Como você consegue encontrar pessoas que o lixo é tão caro que me deixa constrangida quando eu pego o meu salário do Estado. E você pega outra pessoa, tá aqui na rua, eu sempre mostro a rua para eles, pega a senha, se você passar aqui a partir das duas horas da tarde, eles ficam do lado de cá e do lado de lá, não sei se você já viu. Se ele não conseguir a senha para entrar no Maria Maria para dormir, ele fica dormindo na calçada. O máximo que acontece é ele entrar para tomar um banho e fazer um lanche. É esse abrigo aqui e o abrigo lá da esquina, que é Pedro Vicente com a Cruzeiro do Sul. Gente, isso é muito triste, porque nós estamos falando de seres humanos. E a gente fala de cidadania, cidade, cidadão. Que cidade é essa? Que governo é esse que deixa isso acontecer? A pobreza no Brasil, eu não acredito que ela esteja diminuindo. Se você pegar seu carro e você sair, a quantidade de barraca... E aí não é: ah, ele está aí porque ele é usuário de droga. Não, ele está aí porque ele não conseguiu pagar o aluguel dele, porque ele está com o filho dele. Eu vejo que tem até um sofá agora, vocês já viram?
P/1 – Muito.
R – E o que mais me deixa impressionada é que não é só na Cruzeiro do Sul, não é só na Nestor Pereira, é São Paulo inteiro, é Brasil inteiro.
P/2 – Mas, Maria Lúcia, você falou que frente a essa realidade, você dizia para os alunos que você estava falando. Você começou a falar dos alunos, depois contou da situação, inclusive daqui da região, no Brasil, da desigualdade. Voltando para os alunos, para fechar esse...
R – Então, eu percebo que como eles estão vendo que através da educação, essa possibilidade de mudança, essa possibilidade de ascensão, ela vem, alguns estão tendo outro olhar pela escola, outro olhar para a própria história de vida: olha, ele conseguiu, eu também posso conseguir. Eu vejo pela federal, eles nunca tinham entrado na federal. Hoje vão os nonos... Os oitavos e os nonos, por causa do Projeto Escola sem Fronteira. E você ouve deles: “Ah, professora, eu quero estudar aí. Ah, eu vou estudar aí”. Então isso já é um ganho, porque quando você não tem claro o que eu quero para o amanhã, você acaba se perdendo. Dentro dessa escolha, eles não têm maturidade para fazer a escolha certa, muitas vezes a escolha da história de vida deles é feita pelos outros. Quem vai permear? O crime, o tráfico. Isso é muito triste, porque a gente tem perdido muita criança no Brasil exatamente porque o governo meio que “o pai vai conduzir”. Não, o pai, o vizinho, a escola e as autoridades. Quando tem esse projeto e quando tem essa participação, a gente não perde as nossas crianças. Para mim, isso é fundamental.
P/2 – Você disse dos bolivianos aqui na escola. É uma participação grande deles aqui?
R – Nossa, muito. Eu diria que é Torre de Babel. Ontem a Muni, que chegou de Bangladesh, eu peguei a Ikrã, que é de Marrocos, que a Ikrã fala francês e árabe, a Muni fala bengalês, não fala árabe. E o inglês de Muni, eu não sei ainda que inglês é aquele. Porque tinha hora que eu tinha que mostrar, de eles serem so so, eu tinha que mostrar imagens para Muni tentar se comunicar, porque eu estava pegando uma lição de Muni Então os bolivianos são majoritários, tanto é que está no meu projeto. Eu dei ênfase porque no Pari, por conta da costura, que a maioria dos pais trabalha em oficinas de costura, eles acabam vindo para a nossa escola e para as escolas vizinhas. No primeiro momento era difícil essa interação e socialização dessas crianças, que são tímidas, fechadas. E a gente vê que a postura do pai é muito rígida, eles sofriam calados. E os nossos, que achavam que tinham a postura superior, por ser brasileiro, não os viam como “meu colega de sala”, “meu colega de escola”, “meu colega de bairro”. Não. É “o outro”, então eu tenho que ter uma postura hostil. Não. Hoje mudou. Essa interação, esse entrosamento, essa aceitação do meu colega, dessa criança, esse ambiente é para todos.
P/2 – E como mudou? Você acha que mudou de que jeito?
R – Mudou tanto pelo projeto, quanto a postura de todos os professores exatamente em observar esse... Porque eles aqui, eles viviam em grupos, tipo gueto. Eles ficavam só entre eles, os grupinhos fechados, meio que acuados, assustados, e os nossos indo para cima. E aí teve o Projeto Escola Apropriada, com o projeto também, a maioria dos professores que entrou na escola tem, vamos dizer, uma política de trabalhar essa questão dos movimentos migratórios e dos grupos, não como quem é brasileiro, quem é de Marrocos, quem é de Bangladesh, quem é de Angola. Não. Todos são alunos, todos são pessoas, independentemente de onde vêm, somos seres humanos, somos cidadãos. Isso vai mudando também a concepção do aluno, porque ele não chega: “Ah, professora foi o Bolívar”. Tudo que acontecia aqui, a gente sabia que eram os nossos “brasileiros”, porque os alunos que eles falam Bolívar são brasileiros. Eles são nascidos no Brasil, só que os pais são bolivianos. Mas cara de boliviano, ele é boliviano. Tudo eram os bolivianos. Os bolivianos, os bolivianos. Eu não fiz nada, professora. A gente via, que pela cara da criança, ele mal abria a boca. Tem boliviano que mal levanta o dedo para dizer “presente, professora”. Não, foi ele, professora, eu não tenho nada a ver com isso. E isso ainda tem? Tem. Mas não como era antes. Isso tem mudado muito. Eu acredito que não dá para falar: esse lugar é de A, de B, de C, para mim o planeta não tinha que ter muros, não tinha que ter muralhas. O planeta é de todo mundo. Não tem que ter fronteiras. Tudo bem, o território eu posso cercar, eu posso colocar aqui e dizer: esse território é meu. Bobinho do outro que vai acreditar. Que eu acho que quando a gente nasce, não tinha que ter nada de ninguém, eu acho que o planeta é para todos. Eu posso ter minha nacionalidade. Você está aqui, eu tenho que respeitar da mesma forma. Nós teríamos, nós temos, a gente está lutando para ter uma escola melhor, um território melhor, quem sabe uma cidade melhor, um estado melhor, um país melhor e um mundo melhor. Mas dentro da globalização, sei não, hein?
P/2 – A gente está... Vai dar o sinal, vocês querem perguntar? Teria muitas perguntas.
P/1 – Teríamos.
P/2 – Vocês querem fazer alguma última?
P/3 – Como você se sentiu contando a sua história?
R – Olha, eu me sinto muito bem. Eu me sinto muito bem, porque eu acho assim, que várias histórias deveriam ser contadas, porque você teve um tipo de vida, talvez alguma coisa da sua vida eu passei e eu não percebi. Quando você coloca, eu venho e falo: “Nossa, aconteceu comigo”. Ela agiu assim, eu agi diferente. Eu poderia ter isso por esse caminho, eu poderia ter feito outra escolha. Talvez a escolha que ela fez tenha sido melhor que a minha. Porque muitas vezes mesmo, a minha idade, 58 anos, eu não sei de tudo, eu ainda estou aprendendo. Eu acho que a gente nunca domina tudo, nós sempre estamos no processo de aprendizagem. A experiência que ela tem talvez seja válida para mim, ou não. Entendeu? Então eu acho interessante sim contar, ouvir histórias, porque muda, muda a sua concepção de vida. Eu lembro que teve lugar que eu fui tão bem recebida na Europa, e teve lugar que eu falei assim: “Gente...”. Lisboa mesmo, teve um policial que revirou a minha mala inteira, eu fiquei olhando para a cara dele, eu falei: “Vai ficar assim?”. Ele falou: “Então arrume”. Eu falei: “Gente, era só perguntar”. Revirou minhas calcinhas, que coisa desagradável. Procurando o quê? Mas tudo bem, é brasileira, o que será que ela traz aí? E já teve, por exemplo, na Espanha, que sempre falam que já teve brasileiro que foi devolvido, que o tratamento é diferente. Em Barcelona, eu fui muito bem recebida. Em Barcelona, eu fui tratada como uma lady. Pretendo voltar a Barcelona. Não sei se meu salário de professora vai permitir, sabe? Mas é interessante você ter essas experiências e contar, passar para frente. Porque muitas vezes acontece, vai ficar dentro de mim, vai morrer comigo. Mas será que aquilo que aconteceu comigo, se eu colocar para fora, vai fazer diferença na vida de outra pessoa? Porque é engraçado que eu conto as minhas histórias de vida, eu conto que eu passei fome, eu conto o quanto eu sofri preconceito por ser nordestina, pelo sotaque. Eu conto. E aí eu ouço... Porque tem aluno aqui que tem vergonha de falar que a mãe é da Bahia. E eles me perguntam: “E você é de onde?”. Eu falo: “De Pa Pi” “Como assim Pa Pi?” “Paiuí, Pará”. E eu vou permeando, eu acabo contando um pouco da minha história de vida e eu vejo que eles começam a mudar. Porque tem gente que tem vergonha da sua própria história de vida. Eu acho que não é para ter vergonha, ela foi válida. Se você tirou experiências boas, foi válida, porque você pode não repetir esse erro, melhorar mais, ou repassar isso para alguém, e mudar essa concepção.
P/2 – Fechamos. Muito bom
P/1 – Fechamos.
P/2 – Parabéns.
P/3 – Muito legal.
P/1 – Muito bom.
FINAL DA ENTREVISTA
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