Ponto de Cultura
Depoimento de Toyomi Takayanagi
Entrevistada por Thiago Majolo
São Paulo, 17/12/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV220
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 — Toyomi, a gente vai começar. Eu quero que você fale primeiro seu nome completo, o local e data de nascimento.
R — Meu nome é Toyomi Takayanagi. Nasci em São Paulo, sou paulistana da gema (risos), nasci em 19 de maio de 1947.
P/1 — Fale um pouco dos seus pais. O nome deles, o que eles faziam...
R — Meu pai, Jingo Takayanagi, já falecido em 1984. Minha mãe, Kazue Takayanagi, agora com 85 anos. Eles vieram do Japão, imigrantes; meu pai veio com 16 anos e a minha mãe com seis anos, então ela diz que é mais brasileira do que outra coisa. Está há 79 anos no Brasil.
P/1 — E qual era a profissão deles?
R — Meu pai era chefe de redação de um jornal japonês, o Jornal Paulista - atualmente acho que nem existe mais - e minha mãe, prendas domésticas.
P/1 — E os avós? Você os conheceu?
R — Conheci minha avó paterna. Ela faleceu quando eu tinha 13 anos. Eu sou uma das que mais fala japonês entre meus familiares, porque convivi muito com a minha avó e ela só falava japonês. Ela pouco entendia de português - quer dizer, entendia, mas não falava português. Até os 13 anos, eu falava praticamente mais japonês do que português - em casa, pelo menos.
P/1 — Ela vivia na casa de vocês?
R — Isso, porque meu pai era o filho mais velho e pela tradição oriental - que hoje já mudou um pouquinho -, o filho primogênito ficava com os pais, cuidava dos pais. Se bem que eu tenho mais três outros tios. Eram em quatro irmãos - digo eram, porque agora só tem um tio vivo. Minha avó ficava um pouquinho na casa de cada um, mas ela ficava mais na casa da gente.
P/1 — Ela cozinhava comida japonesa?
R — Fazia, ela gostava de cozinhar. Tenho muito da tradição, porque na minha infância acompanhei muito e minha avó fazia questão...
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Depoimento de Toyomi Takayanagi
Entrevistada por Thiago Majolo
São Paulo, 17/12/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV220
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 — Toyomi, a gente vai começar. Eu quero que você fale primeiro seu nome completo, o local e data de nascimento.
R — Meu nome é Toyomi Takayanagi. Nasci em São Paulo, sou paulistana da gema (risos), nasci em 19 de maio de 1947.
P/1 — Fale um pouco dos seus pais. O nome deles, o que eles faziam...
R — Meu pai, Jingo Takayanagi, já falecido em 1984. Minha mãe, Kazue Takayanagi, agora com 85 anos. Eles vieram do Japão, imigrantes; meu pai veio com 16 anos e a minha mãe com seis anos, então ela diz que é mais brasileira do que outra coisa. Está há 79 anos no Brasil.
P/1 — E qual era a profissão deles?
R — Meu pai era chefe de redação de um jornal japonês, o Jornal Paulista - atualmente acho que nem existe mais - e minha mãe, prendas domésticas.
P/1 — E os avós? Você os conheceu?
R — Conheci minha avó paterna. Ela faleceu quando eu tinha 13 anos. Eu sou uma das que mais fala japonês entre meus familiares, porque convivi muito com a minha avó e ela só falava japonês. Ela pouco entendia de português - quer dizer, entendia, mas não falava português. Até os 13 anos, eu falava praticamente mais japonês do que português - em casa, pelo menos.
P/1 — Ela vivia na casa de vocês?
R — Isso, porque meu pai era o filho mais velho e pela tradição oriental - que hoje já mudou um pouquinho -, o filho primogênito ficava com os pais, cuidava dos pais. Se bem que eu tenho mais três outros tios. Eram em quatro irmãos - digo eram, porque agora só tem um tio vivo. Minha avó ficava um pouquinho na casa de cada um, mas ela ficava mais na casa da gente.
P/1 — Ela cozinhava comida japonesa?
R — Fazia, ela gostava de cozinhar. Tenho muito da tradição, porque na minha infância acompanhei muito e minha avó fazia questão que fosse mantido isso. Acho importante, porque são as nossas raízes. Entender o por quê, às vezes, da sua postura. Não que vá contra ou de choque com a tradição ocidental, mas tem coisas que vêm muito da raiz oriental, então vieram da minha avó. Até hoje procuro falar em japonês com a minha mãe, embora ela responda em português pra mim. Ela fala: “Ah, eu esqueço e falo em português”. Mas eu falo: “Mãe, eu preciso treinar”, porque isso de língua, vocabulário… Eu acho muito importante manter essas raízes.
P/1 — Você conhece a história dos seus pais? Como eles se conheceram? Foi no Japão ou foi aqui?
R — Eles se conheceram aqui, em São Paulo. A minha mãe ficou órfã muito cedo. Ela foi trabalhar no Rio; tem um padrinho dela, um senhor gaúcho, que ajudou muito a minha mãe. Ela trabalhava na casa deste senhor e ele tinha um jornal no Rio de Janeiro. Depois ela veio para São Paulo. Minha mãe ficou órfã praticamente com 14 anos. Ela é filha única e conseguiu sobreviver, por isso acho realmente que ela foi uma guerreira.
Conheceu o meu pai em São Paulo. Sei que se casaram aqui em São Paulo, em 1945 - foi a época da guerra. Tiveram que se casar no Consulado e foram morar no Bosque da Saúde. Depois a gente veio morar aqui, na região de Mirandópolis - agora eu moro na Vila Mariana. Logo depois de casados, recém-casados, meu pai tinha uma frutaria na [Rua] Santa Efigênia. De vez em quando, até passo na região, pra conhecer. Minha mãe não se lembra do local, mas eles moravam lá. Alugaram um quartinho na Santa Efigênia e tinham uma frutaria, na frente de um bar. Hoje em dia não tem mais isso. É diferente, a época é outra. Minha mãe diz que me deixava dentro de uma caixinha de laranja; ela fala pra mim: “acho que é por isso que você não cresceu muito, porque você ficava dentro da caixinha de laranja enquanto eles trabalhavam” (risos). Depois meu pai entrou no Jornal Paulista, foi ser chefe de redação; nos mudamos pra [Rua] Santana do Paraíso.
Somos uma família de três irmãos: sou a mais velha, tenho a minha irmã casada, que tem dois filhos e meu irmão, que resolveu seguir uma parte, vamos dizer assim, mais religiosa. Faz parte dos Arautos do Evangelho, pregam a religião católica. Agora já são reconhecidos pelo Vaticano e ele viaja muitas vezes para a Itália. Ele esteve no mês passado na Itália. Visita o Vaticano, foi para Fátima, então é do lado mais religioso da família. É o que a gente costuma dizer: “ele reza para a família toda”. (risos)
P/1 — Quando você nasceu, seus pais moravam em que bairro? Eu perdi um pouco o fio da meada. Quando você nasceu, estavam morando em que lugar?
R — Eles moravam… Logo que eu nasci, eles foram morar lá para o lado da [Rua] Santa Efigênia. Eles tinham a frutaria na frente do bar, depois alugaram uma casa na região [do Bosque] da Saúde.
P/1 — Você estava com quantos anos quando vocês mudaram para a Saúde?
R — Quando fomos para a Saúde, eu era muito bebezinho. Depois nos mudamos para [a Rua] Santana do Paraíso. Alugamos uma casa numa rua pequena, em que hoje passa a [Avenida] 23 de Maio - antes tinha um córrego lá embaixo.
P/1 — Isso foi com que idade, mais ou menos?
R — Na [Rua] Santana do Paraíso, lembro que eu fui bebezinho pra lá e morei até os 13 anos. Aí [foi] quando eu mudei para o bairro de Mirandópolis.
P/1 — Então sua infância foi inteira na [Rua] Santana do Paraíso?
R — Na Santana do Paraíso. Eu estudei na Escola Estadual Rodrigues Alves, na Paulista, que tem até hoje. Nós íamos a pé de lá.
P/1 — Vou voltar pro bairro, mas antes de chegar no bairro quero fazer uma pergunta: a ligação da sua avó com a sua mãe, essa educação… Você vê a diferença da educação que sua avó deu para a sua mãe, sendo japonesa, morando lá no Japão, e depois, da sua mãe pra você? Como foi essa transformação de educação, mudando de país, de continente, mudando tanta coisa... Como era essa diferença de cultura?
R — Minha mãe foi criada por uma madrasta, que veio com ela do Japão para o Brasil. Vieram o meu avô, a madrasta da minha mãe e minha mãe pequena. Eles foram para o cafezal. Deve ter sido uma vida muito difícil pra eles, porque num país que não conheciam a língua, não tinham noção da alimentação, não conheciam nada... Ela fala sempre que eles trouxeram muita coisa de lá: roupa, até kori, que era um, como se diz hoje… Como se fosse um bauzinho japonês, sabe? Eles trouxeram tudo isso, então trocavam com o senhor da fazenda, em troca de alimento. Tiveram uma vida muito curta como imigrantes no cafezal porque conseguiam trocar isso. Conseguiam mantimentos, então as despesas deles devem ter sido menores. Dizem que ficavam um tempo, até pagar a viagem, a alimentação, porque tinham que adquirir tudo numa vendinha da região, então ficavam devendo tudo. Deviam ganhar muito pouco, mas em dois anos meu avô conseguiu sair de lá; pagou as dívidas e saiu. Meu avô era uma pessoa muito, vamos dizer, versátil. No Japão, por exemplo, eles vieram da região de Beppu, uma região que tem águas quentes, águas termais. Ele cortava cabelo, então [quando] chegou aqui no Brasil trabalhava de barbeiro, de marceneiro e com isso ganhava o dinheiro dele. É como eles se mantinham, porque não tinha uma profissão definida. Minha mãe fala que ele chegou até a vender limonada em época de carnaval na Avenida São João; tinha os famosos corsos que eles faziam de carnaval de rua. Meu avô enchia um barril de limonada e saía vendendo na época de carnaval, então minha mãe fala: “nossa, mas que vida dura que a gente teve.” Se fosse hoje, não sobreviveriam. Ela fala: “Eu o ajudava a empurrar o barril pra vender, punha gelo na limonada e vendia os copinhos no carnaval, na Avenida São João, e foi com isso que a gente sobreviveu”. Se fosse hoje… Eu até comparo com esses catadores de papelão, só que eles tinham um teto pra viver. Não seria, vamos dizer, morar embaixo de ponte, como seria hoje. Eles conseguiam se manter, alugar um quarto e ter um abrigo, ter alimentação.
P/1 — Esse cafezal era no interior de São Paulo?
R — Interior de São Paulo. A minha mãe fala que era em Minas. Ela não se lembra muito bem onde era, ela fala: “Eu não lembro. Eu sei que fomos para Minas e depois viemos para São Paulo”. Eu pergunto: “Que região será que era?”, porque tenho uma prima que é mineira, mora em Belo Horizonte. Até meu primo lá de Minas fala que deve ser sul de Minas, que é onde tem muita imigração, mas ela não se lembra pra dizer que região foi. A gente não tem, por exemplo, um documento pra dizer pra onde ela foi. Eles iam todos pra Santos e de lá as famílias eram distribuídas. Muita gente não tem o documento.
P/1 — Eu queria voltar pra sua infância agora. No bairro onde você passou a infância inteira eram você e seus dois irmãos? Era um homem e uma mulher, como era?
R — Isso. A minha irmã e meu irmão, que é o caçulinha. Minha irmã, Kiyomi, o meu irmão, Roberto Kasuo. Minha irmã tem um ano e oito meses de diferença comigo, e meu irmão é quatro anos mais novo.
P/1 — Conte um pouco do bairro. Você consegue descrever? Você falou que tinha um córrego, descreva um pouco esse bairro pra gente.
R — A rua que nós morávamos era a Santana do Paraíso; era uma rua sem saída, praticamente, que dava no córrego que é a [Avenida] 23 de Maio hoje. Meus irmãos [eram] muito danadinhos, eles falavam: “vamos desbravar o sertão” e saíam no meio do mato. Andavam lá, pegavam mamona, essas frutinhas - eu presumo que seja amora. Traziam amora, só que a minha mãe falava: “Não pode comer isso, porque a gente não sabe se é venenoso ou não”. Eu já era um pouquinho mais medrosa, ficava mais em casa, ajudava minha mãe. Como era [uma] vila, a gente se conhecia muito, então tinha a madrinha do meu irmão na frente, a madrinha da minha irmã - nossa vizinha, dona Laura -, a dona Abadia, uma senhora síria que morava em frente à madrinha do meu irmão, e a dona Florinda, minha madrinha, que era a mais espuletinha de todas. Organizava os aniversários, então a gente chamava a criançada da rua toda. Fazia um achocolatado, um bolo, um sanduichinho e fazia fila. Todo mundo se divertia ali. Não tinha nada desse negócio de decorar salão. A gente brincava na rua mesmo, [por]que era uma rua sem saída, então só transitava quem morava ali. Não eram tantas pessoas que tinham carro como atualmente, então era uma vida muito tranquila e todo mundo se conhecia. Um vivia na casa do outro, a gente praticamente não trancava as portas; dormia, às vezes, até de porta destrancada, era muito interessante. [Em] Festa Junina, uma levava pipoca, outra batata doce, outro fazia o quentão, a gente fazia uma fogueira no meio da rua - porque era paralelepípedo, então não tinha problema. Não era asfalto de hoje, não ia derreter. Era um pessoal muito unido. Foi uma época muito boa, tenho saudades. Até hoje encontro pessoas da minha infância e a gente lembra com saudade disso.
P/1 — E esse córrego? Pescavam no córrego ou não?
R — Não. A gente só pegava aquele girino, aqueles filhotinhos de sapinho. Os meus irmãos traziam na garrafinha e deixavam na aguinha. Colhiam a água de lá, pegavam o girino e ficavam... Mas não tinha peixinhos, essas coisas assim.
P/1 — A tradição na família japonesa é muito forte, mas ao mesmo tempo vocês conseguiram seguir bastante a tradição brasileira, por exemplo, a Festa Junina. Misturou muito isso...
R — É, misturou muito. Minha avó, por exemplo, acompanhava bem isso. Embora dentro de casa eu falasse muito japonês com ela, comesse comida japonesa, ela era bem liberal. O que ela estranhava era assim: vinham as vizinhas conversar com a minha mãe, aí sentavam na mesa. Ela abominava isso. O pessoal chegava e encostava - acho que a casa devia ser muito pequena, então elas encostavam na mesa, apoiavam a perna. Minha avó falava: “Ai, já sentou na mesa. Onde já se viu fazer isso? Que comportamento estranho”. Essas coisas ele estranhava um pouquinho (risos). Mas nada atritante, conflitante, que tivesse que criar algum mal-estar. Minha avó também era uma pessoa muito avançada para o tempo dela. Por que eu falo avançada? Ela faleceu com 68 anos, foi logo que eu mudei aqui para Mirandópolis. Mas ela era uma pessoa que cavalgava, nadava, andava de bicicleta. Minha mãe falava: “Sua avó sempre foi muito avançadinha”. No Japão, ela criava cavalo de corrida e tinha vaca leiteira, então era de uma família relativamente boa no Japão. Depois resolveu vir para o Brasil, porque os primos diziam que aqui tinham uma vida muito boa. Aquela história: “Ah, tem muito ouro, tem muita riqueza. Vem pra cá, daqui a pouco a gente vai ficar rico e voltar pro Japão”. Essa era a ideia que eles tinham, quando vinham pra cá. Depois que a minha mãe chegou aqui, ela descobriu que o ouro que eles falavam, da riqueza toda, era o café. Eles falavam: “o ouro do Brasil, a riqueza do Brasil”. Quando eles chegaram, eles viram que não era assim. Viram que tinham que trabalhar muito duro aqui. Mas sobreviveram, graças a Deus.
P/1 — Eu queria que você contasse um pouco: por você ser a mais velha, atribui um cargo pra ajudar mais a sua mãe?
R — É, eu sempre ajudei muito.
P/1 — Mas era por este motivo, ou você acha que não?
R — Acho que não. Por eu ser a mais velha mesmo, porque o que eles cobram muito, os orientais, é o filho mais velho. O filho mais velho fica com os pais, é responsável pela casa. Acho que eu mesma acabei assumindo isso. Você acaba assumindo, não que isso fosse cobrado. Por exemplo, meu irmão começou fazer a faculdade de Direito. Na época, ele entrou no que era a “Tradição, Família e Propriedade”. Não sei, deve existir até hoje, só que depois ele mudou, resolveu seguir para o lado mais religioso e acabou saindo de casa. Quando ele saiu de casa foi muito complicado, porque era o único varão, quer dizer… Na família oriental, isso era muito forte. Na ocasião, cobrei da minha mãe. Eu falei: “Mãe, a senhora tem mais duas filhas, não pode se prender ao único filho. Ele quer seguir esse caminho, é a opção dele”. É o que a gente fala até hoje pra ele, pelo menos está feliz com o que faz. Ele quis ser missionário, aí minha mãe falou: “Ai, missionário”... Ele quis ser padre, aí “Ai, vai ser padre...” De qualquer forma, ele saiu de casa e seguiu por esse lado, vamos dizer, mais religioso.
P/1 — Quais eram os serviços domésticos? Era cozinhar, limpar casa...
R — Eu ajudava a limpar a casa, a cozinhar. Minha mãe fala: “Com dez anos, ela já ajudava em casa”. Ajudava na limpeza, cozinhava, mas minha irmã também ajudava. A gente brincava muito na rua, na época, mas tinha essa responsabilidade de cuidar da casa, ajudar, porque minha mãe também... Éramos seis em casa, três adultos e três crianças, e só com a renda do meu pai devia ser bem difícil manter tudo, embora estudássemos em escola pública. Minha mãe pegava roupa da fábrica, costurava, então ela tinha também o compromisso de entregar o tanto que pegava pra costurar; tinha um prazo. Tínhamos que cozinhar. Várias vezes a gente deve ter deixado queimar o arroz, a comida não devia estar muito boa, mas era o que a gente acabava comendo (risos).
P/1 — Quais eram as comidas mais típicas na sua casa?
R — A gente misturava de tudo. Meu pai, por exemplo, gostava muito de macarronada, feijoada, rabada, comida muito brasileira. Mas a minha avó, por exemplo, gostava sempre de um cozido. Por ter mais idade também, não comia tanta fritura, aí a gente acabava fazendo sempre o cozido japonês, o macarrão à moda japonesa. Minha avó fazia em casa o macarrão - até hoje eu gosto de fazer macarrão em casa. Meus tios falam: “Você vai fazer macarrão?”, mas tem que fazer muito, porque a família vai aumentando e fazer só um pouquinho não adianta.
Minha avó sempre fazia em casa e a gente fala [que é] o macarrão japonês à moda dos Takayanagi, porque se você for ao restaurante, existe o macarrão japonês com shoyu, mas a minha avó, por exemplo, põe berinjela. A turma fala: “Eu nunca vi isso”. A gente põe muita coisa: põe cenoura, berinjela, umas coisas que o pessoal estranha um pouco. A família fala “o macarrão dos Takayanagi”, quer dizer, já existe um prato típico da família, que era da minha avó e foi passando de geração. Tem algumas coisinhas: nabo, que a gente faz com missô… Meus primos falam: “Ah, só a tia”, no caso a minha mãe, que morou muito tempo com a minha avó. “O que a tia faz é o mais parecido com o da minha avó”, então tem algumas coisinhas que a minha mãe fala que aprendeu com a minha avó. Ela foi uma sogra muito boa pra minha mãe. Minha mãe fala: “Sogra sempre cobra muito da gente, né?” Mas minha avó ajudava, cuidava da gente, nós éramos três... uma escadinha praticamente. Minha avó cuidou muito da gente, lembro muito da minha avó. E ela fazia… Hoje em dia, acho que no Japão nem fazem mais isso. Ela fazia umas bolsinhas com azuki - que é o feijão que eles fazem doce japonês -, ela fazia umas bolsinhas que era para a gente brincar, como se fosse o que os malabaristas fazem. Você joga três saquinhos, joga um e pega o outro. Coisinhas assim, esses joguinhos, ela ensinou pra gente. Tem coisas assim que marcaram muito a gente; hoje vejo que a geração nova é diferente. É uma tecnologia que… As coisas mais manuais, mais simples, as pessoas não conhecem. As crianças não conhecem isso.
P/1 — Você falou de uma brincadeira. Conte outras brincadeiras que vocês tinham nessa época.
R — Na época a gente fazia coisas muito simples. Amarelinha ou coisas assim - mais a minha mãe, esse negócio de amarelinha. Músicas em japonês, a minha avó ensinava pra gente. Depois aprendi a fazer crochê e tricô, muito nova. Até hoje gosto de fazer tricô e crochê e o pessoal acha engraçado, mas é uma coisa que eu aprendi. Desde, acho que seis, sete anos, eu já fazia tricô e crochê. Minha avó ensinou e a minha mãe também fazia. Na época, a gente não tinha dinheiro pra comprar lã; a gente fazia com barbantinho, para prender os pontos. Tinha uma vizinha, uma senhora, Dona Maria, que a gente falava “é a nonna” [vovó, em italiano]. A mãe do marceneiro, vizinho nosso, que também fazia muito bem tricô e crochê. Ela ficava me corrigindo, porque minha mãe ensinava um determinado jeito de segurar a agulha de tricô e ela falava: “Não, tem que apoiar a agulha de tricô no braço e fazer”. Eu achava muito difícil aquilo; quando estava perto da nonna, fazia do jeitinho que ela queria. Quando eu estava em casa, fazia do meu jeito, que eu achava mais fácil. Tem coisa que na infância… Acho que devido à proximidade, a falta de brinquedos mais sofisticados, que hoje em dia as crianças têm acesso… A gente não tinha, então, tinha muito calor humano. Brincava de amarelinha, na época tinha o bambolê, a gente brincava de bambolê na rua… Sabe aquele negócio de ‘mãe da rua’? Ficava cada um de um lado, atravessa a rua... Porque não passava muito carro lá, então ficava um de cada lado. Queimada, eram coisas muito simples, porque eu lembro que a gente nem tinha muito brinquedo. A madrinha, no Natal, dava uma boneca; o outro ganhava um carrinho, mas não eram coisas que você ia ficar brincando todo dia, toda hora, então a gente fazia muita coisa de rua. Pique… Tinha um poste em frente à madrinha do meu irmão; ela ficava muito brava, porque a gente vivia batendo neste poste. Fazia muito barulho e era metal. Hoje em dia, acho que é mais de concreto; na época, acho que era ferro ou alguma coisa assim, então a gente vivia batendo naquele poste. Malhava Judas, batia no poste, a madrinha ficava muito brava. A gente levava cada bronca dela, mas de qualquer forma a gente ia lá provocar a madrinha, não tinha o que fazer. (risos)
P/1 — E a sua relação com os irmãos, como era?
R — Ah, sempre muito boa a nossa relação. A gente sempre se deu muito bem, porque a gente tinha que cuidar um do outro, porque a minha mãe estava sempre ocupada. Minha avó levava a gente pra passear, às vezes, lá pela região. Eu sei que a gente sempre se deu muito bem. A gente brincava dentro de casa de tico-tico, hoje em dia acho que nem se faz mais isso. A gente tinha um triciclo, brincava na rua. Era um triciclo para os três, então tinha que se dar muito bem, porque tinha que dividir tudo. Se ia brincar de amarelinha... Meu irmão, às vezes, coitado, até dormia na calçada, porque a gente ficava brincando e esquecia dele. Ele, quatro anos mais novo, ficava cansadinho. A gente olhava e falava: “Cadê o Roberto?” A gente olhava e ele estava dormindo. Minha vizinha falava: “Dona Kazue, o Roberto está dormindo na calçada”(risos). Minha mãe vinha buscar o coitadinho. Ele era pequenininho, não estava nem aí. Onde ele encostava, dormia e a gente esquecia dele. A gente ficava brincando e a minha mãe falava: “Cuida do seu irmão?” A gente brincava e largava o coitadinho ali. Enfim, a gente teve uma infância boa. Hoje em dia o pessoal fica muito em frente do computador. É diferente a relação que o pessoal tem.
P/1 — E livros na sua casa? Tinha muito livro? Existia essa cultura de ler?
R — A gente sempre leu muito. No começo eram gibizinhos, depois livros. Minha mãe sempre incentivou a gente a ler muito, porque meu pai e minha mãe diziam: “Se você não estudar, vai ter uma vida muito difícil. Tem que estudar”. Acho que todo imigrante pregou isso; foi uma doutrina, eles doutrinaram os filhos a estudar, pra conseguirem ser alguém na vida. Então falavam: “Não, senão vocês não vão conseguir sobreviver, a vida vai ficando cada vez mais difícil”. E é verdade, realmente a concorrência é muito grande, então a gente sempre estudou muito, tanto é que desde os 11 anos eu uso óculos. Precisei usar óculos, porque sempre li muito. Meus irmãos, graças a Deus, não precisaram usar óculos, mas também leram bastante. A gente sempre foi muito estudioso e minha mãe sempre acompanhou muito a gente. Ela ajudava a gente fazer a lição. Minha mãe veio com seis anos, ela lembra de ter ido ao jardim da infância no Japão, então ela lê alguma coisa em japonês. Ela fala; os kanjis [ideogramas] mais difíceis, ela não lembra. Ela fala: “Como não lê sempre, também esquece”. Quando veio para o Brasil, ela foi para o primário. Na escola japonesa foi também o primário, mas depois ela não continuou. Ela falou: “Eu não continuei porque era muito preguiçosa, então quero que vocês estudem, porque tem que estudar”. Eles sempre incentivaram e a minha mãe sempre acompanhou a gente.
P/1 — Quais os primeiros livros que você lembra? Ou algum livro marcante que: “nossa, esse livro eu adorava ler”...
R — Para mim, o que marcou muito, que eu adorava… Como se chama? É que agora mudaram os livros, mas naquele tempo [era] “Caminho Suave’. Foi o primeiro. No primeiro ano, o “Caminho Suave”, que você virava de cabeça pra baixo, que tinha letrinha de A a Z, com desenhinho. Foi uma coisa que marcou muito. Gente, ainda existe isso? Não sei se reeditaram, mas parece que ainda existe. Outro dia alguém me falou alguma coisa de “Caminho Suave”. É que hoje em dia as crianças não podem se prender muito, ficar muito limitadas a só um livrinho; eles têm acesso a outros livros. Então tem o “Caminho Suave”, lembro que adorava ler “A Bela Adormecida”, livrinhos assim. “Os Três Porquinhos”, coisinha bem infantil. Até bem pouco tempo atrás eu ainda tinha… Acabei doando, porque na mudança eu tinha muito livro, saíram caixas. Tinha um professor que morava em frente à minha casa no bairro de Mirandópolis, que falou: “Nós estamos montando uma Biblioteca, a gente aceita tudo”. Eu falei: “Mas tem livro de primário”. “Não, pode mandar tudo. O pessoal em fase de alfabetização… É bom para eles terem acesso a outros livros, diferentes dos atuais”. Talvez até facilite um pouco, porque era livrinho com desenhinho. Zabumba, tinha uma Zabumba com a letra Z, Zebra, coisinhas assim. Hoje em dia não tenho visto mais os livros, não tenho acompanhado. Esses livros bem basiquinhos, às vezes até gosto de folhear ainda, sabe? Acho bonitinho.
P/1 — Toyomi, a outra parte… Tem o livro e tem o aprendizado que se dá oralmente. Os seus pais ou sua avó eram de contar histórias, sentar e contar uma história? Ou então falar: “lá no Japão era assim”...
R — A minha avó sempre contou muito pra gente essas historinhas, até porque tem essas musiquinhas em japonês, tem as fábulas em japonês. Minha avó contava e era interessante porque ela falava tudo em japonês. Com isso, meu vocabulário ia aumentando. Até os 13 anos, eu falava muito bem japonês. Só não lia e não escrevia porque [o curso de japonês] era escola paga, então era difícil mandar os três para uma escola paga. Era só em casa. Tanto é que eu falo japonês, vamos dizer assim, o doméstico, mas não leio e nem escrevo. Ninguém se conforma com isso. Eles falam: “Como que você fala uma língua e não lê e não escreve?” Eu falei: “Como o português. A gente vai aprendendo de ouvir, a entonação, a gente aprende. O pessoal não canta inglês sem saber inglês?” Tem coisas que você aprende assim.
Minha avó sempre contou muita coisa, como o Momotaro-san, que é o menininho que saiu do pêssego, e coisas assim. É interessante, porque tem uma fase que você corre muito... Estuda, vestibular, acaba esquecendo, mas às vezes você para, começa a ver uma coisa e fala: “Ah, é mesmo!” Outro dia veio uma prima minha com a netinha dela de sete, oito anos e falou: “Vó, como é essa música? E aquela?” Elas começaram a cantar as músicas e a gente começa a se lembrar, porque cantava muita musiquinha em japonês. Tem a musiquinha dos pombinhos, essa do Momotaro-san… Coisinhas assim, que eu falo: “Gente, é verdade!” Você acaba voltando à infância. Tenho lembranças muito boas. Acho que, pelo fato de a gente não ter muito brinquedo, a gente tinha muito contato humano. Você conversava muito, porque não tinha nem televisão. A gente ia ver televisão no vizinho, na casa da madrinha da minha irmã ou do meu irmão. Se eles não convidassem, a gente não ia, então ficava dentro de casa conversando, lendo. Ou, por exemplo: um estava estudando, quem não estava estudando vinha xeretar o que a gente estava fazendo e acabava aprendendo junto. A gente falava: “Essa aqui é a letra a, b...” A gente acabava dando aulinha pra eles, então entravam na escola meio alfabetizados.
P/1 — A primeira escola, você se lembra de como era? Lembro que você estudou também na Rodrigues Alves...
R — Eu estudei no Rodrigues Alves.
P/1 — Sua primeira escola foi essa?
R — Foi a primeira escola que eu fui. A minha professora do primeiro ano, eu tinha paixão por ela. A dona Stela Christi Barella. Eu me lembro que ela não era uma professora muito nova, mas extremamente carinhosa, uma pessoa que dava aula por sacerdócio. Era um sacerdócio pra ela, dar aula. Ela cuidava muito bem da gente e eu, como sempre fui muito miúda, era a primeira da fila. Sentava na primeira carteira, então ela sempre me deu muita atenção. Acho que por isso me apeguei muito a ela. Eu fiz até o quarto ano e consegui me formar lá. Quando eu mudei, meus irmãos estudaram na São Judas, no Almirante Barroso e eu consegui me formar na Rodrigues Alves. Quando a gente ia pra escola, na época tinha a Sears, onde é o Shopping Paulista hoje. A gente passava, quando tinha um dinheirinho comprava um amendoinzinho, alguma coisinha ali. Até hoje a gente passa em frente do Shopping Paulista e fala: “Lembra aquele cheirinho que tinha aqui, daquele amendoinzinho que eles faziam?” Era super saboroso. A gente não tinha tanta condição assim, então quando comprava era uma festa.
P/1 — Mas o amendoim da Sears é famoso.
R — Não é? Muito bom.
P/1 — Inigualável, o cheiro dele. Quem viveu...
R — É verdade. A gente morava do lado. Quem morava na região, se você for ver, tinha a fábrica [de chocolates] da Sönksen. Logicamente, a gente não tinha condições de ficar comprando lá, mas era a fábrica, então a gente sentia o cheirinho. A gente passou a infância lembrando desse cheirinho da Sönksen. Outro dia, uma pessoa me falou: “Sabe que me ligou uma pessoa aqui e me falou da Sönksen?” Eu falei: “Não acredito.” Era tipo da Kopenhagen, sabe, a atual? Nem sei depois o que aconteceu com a família - porque devia ser uma empresa familiar. Era um cheirinho característico da região.
P/1 — A escola era um lugar que você gostava de ir?
R — Eu adorava ir lá. Minha mãe ia nos buscar, na época, quando eu ainda estudava sozinha. Depois minha irmã entrou e a gente acabava voltando [juntas]. Uns vizinhos iam também, então as mães se revezavam pra levar as crianças e buscar. Às vezes eu ia até de bonde - na época do bonde, hoje em dia o pessoal nem sabe o que é bonde, né? Era uma relação diferente, porque eu morava numa vila que era uma rua sem saída, então passava o bonde lá em cima, onde é hoje a avenida, do outro lado era a [Rua] Castro Alves e hoje até tem ainda um cercadinho, que é mais alto. Quando você vai pela [Rua] Vergueiro, lá perto do Santo Agostinho, aquele hospital público que tem na esquina na Castro Alves, o bonde passava lá em cima. Quando a gente estava atrasado, ele parava, tocava “tim-tim-tim” e a gente subia correndo a rua; ele nos esperava e depois deixava a gente lá na Paulista, na Rodrigues Alves. Às vezes, quando o bonde estava cheio, eles passavam a gente por cima e falavam: “Ah, o mosquitinho vai descer”. Pegava de colo em colo e era gozado porque o motorneiro - acho que era motorneiro que a gente falava -, que conduzia o bonde, e o cobrador eram sempre as mesmas pessoas, então [eram] muito amigos. Eles já sabiam aonde a gente ia, então a gente ia sozinho pra escola, com oito, nove anos. Hoje em dia os pais levam de carro, questão de segurança também. Tinha o guarda, que nos atravessava; quando o bonde chegava, ele já estava esperando. Ele falava: “Cadê o mosquitinho?” O pessoal me descia, minha irmã e eu, e a gente atravessava lá, então a minha mãe ficava tranquila. A gente já tinha o bonde certo para ir e o bonde certo para voltar. É muito interessante. Depois de alguns anos, quando estava fazendo admissão na João Mendes, eu encontrei este motorneiro e ele me reconheceu. Aquela curvinha, que tem a padaria na João Mendes, acho que existe até hoje. O bonde fazia a curvinha, subia a Liberdade e um dia, passando lá, eu vi um bonde e fui lá olhar. Não é que era a mesma pessoa? Ele olhou pra mim e falou: “Mosquitinho” (risos). Eu falei: “Gente, eu não acredito”. Depois nunca mais o vi. Minha mãe falou: “Ah, vai ver até já fizeram a passagem dele.”
Tem coisas que são muito marcantes. Hoje em dia é tão diferente! Os ônibus mal param para você poder entrar, não é? A gente acaba sentindo falta disso. Mas a gente continua a pregar isso. Esse contato, esse relacionamento humano é muito importante, em todos os níveis. Você tem que procurar incentivar, porque hoje em dia o pessoal se isola cada vez mais. Não precisa nem pegar o telefone para falar com os outros, tem vários meios. Você entra no e-mail, tem Messenger, tem coisas que você… Às vezes, você nem sabe com quem está falando.
P/1 — Toyomi, você falou agora uma coisa que me deixou curioso. Você falou que sua mãe comentou da passagem dele. Sua mãe tinha alguma religião, que seguia?
R — Minha mãe, na realidade, é católica, batizada. Meu pai já é de uma linha budista, mas budista pra não dizer que é ateu. Minha mãe é católica, mas não praticante. Somos batizados, fizemos primeira comunhão, mas também não sou praticante; digo que sou cristã. Eu falo pra minha mãe: “Pra seguir uma religião, a gente não tem que estar ali, comungando, fazendo confissões, frequentando algum ritual; isso é de cada um, de cada pessoa”. Minha mãe nunca foi muito de ir para igreja, mas ela fazia questão, acho que até pelo social, [de] batizar, fazer primeira comunhão, porque no primário a gente tinha todo um preparo. A gente falava: “Nossa, vai ter aquela roupa de noivinha”, faz roupinha de primeira comunhão e coisas assim.
Meu pai era mais ateu do que qualquer outra coisa, mas a minha avó, por exemplo, era da linha budista, até pela própria origem. Tanto é que [no falecimento] da minha avó e do meu pai, a gente fez missa no ritual budista. É como a minha mãe sempre fala [para] esse pessoal que vende livros na porta: “Esse livro é de Cristo.” A minha mãe fala: “Sou budista”, pra não ter que comprar (risos). A minha mãe fala assim: “Eu acho que Deus é um só”. As pessoas falam: “Exatamente, Deus é um só”. “Existem vários caminhos, o budismo, o catolicismo, a umbanda, o kardecista, mas existe só um ser lá em cima que é Deus, um ser supremo que é o pai de todos, que foi o criador do mundo”. As pessoas dizem: “Exatamente, eu também acho”. “Então não preciso comprar o seu livro, porque a linha que eu sigo, o budismo, vai acabar ali. Você vai me desculpar, já tenho muito livro para ler” (risos). “Acho que não tenho que comprar. Espero que você tenha sucesso; sei que você está querendo divulgar a religião, mas já tenho a minha, então respeito a sua e espero que você respeite a minha”.
P/1 — Toyomi, quero chegar agora nos seus 13 anos, em que você muda de casa. Conta um pouco sobre essa mudança, como foi.
R — Nós mudamos para Mirandópolis, na rua dos Miosótis; eu me mudei para lá com treze anos. Foi a casa própria. Foi a casa que meu pai comprou, só que a gente achou estranhíssimo; uma casa com três quartos, foi um progresso, [ficamos] felizes da vida. Só que morávamos na Rua Santana do Paraíso, que passava ônibus, bonde lá em cima, aquele barulho, aí fomos morar numa rua extremamente residencial. Passava pouco carro, atrás da nossa casa tinha um terreno baldio - tinha um proprietário, mas não tinham construído, então a noite tinha grilo e sapinho cantando, rã, fazia barulhinho. Logo que nos mudamos, aonde minha mãe ia, nós íamos atrás. Minha mãe subia, iam os três atrás. Minha mãe descia, eram os três atrás, porque aquele barulhinho à noite, o grilo cantando… “Gente, tem uma bicharada aí atrás”. A gente morria de medo. Minha mãe falava: “Não tem dentro de casa, é fora”, mas não adiantava. Se falar pra minha mãe isso, ela vai dar risada e vai se lembrar, porque ela fala: “Se eu subia, os três subiam, se eu descia, os três desciam”. A gente não largava a minha mãe na hora que escurecia. Tinha pouco movimento na rua; quando nos mudamos, ainda era [de] barro a rua. No dia que nos mudamos - nunca me esqueço, 21 de dezembro -, o caminhão encostou, pra ver como era a região... Era um barranco, o caminhão encostou e não precisou fazer nada. Só abaixou um pouquinho a caçambinha; não deu nem para abaixar, porque estava na altura. Era só tirar “daqui” e já era a calçada da casa. Deu a maior chuva, o maior barro, a minha mãe falou: “Gente, onde viemos parar?” Logo que nos mudamos, a sorte é que fizemos amizade com um sapateiro, que ficava bem na Praça da Árvore. Quando a gente saía, a gente levava um sapato novo, limpinho, numa sacolinha e outro velho, para andar no barrinho. Quando chegava lá, a gente deixava o sapato sujo no sapateiro e falava: “Daqui a pouco eu pego. Na volta eu vou pegar”. Ele ficava com um monte de sacolinha, porque acho que todo mundo fazia isso. A gente ia com o sapato limpinho para aula, ia fazer as compras e, na volta, a gente trocava de sapato.
Tinha poço na outra casa; logo depois que meu pai comprou [a casa], teve água canalizada. O dono falou pra ele que vendeu a casa muito barato, porque logo depois que meu pai fechou o negócio, veio água canalizada, asfaltaram, o progresso chegou na região. Pra gente foi muito bom, porque como estávamos acostumados a ficar brincando muito na rua... Meus irmãos aproveitaram mais, porque eu já tinha 13 anos, então continuava ajudando minha mãe. Minha irmã, embora um ano mais nova do que eu, chegou até a andar de carrinho de rolimã na rua. Estragava roupa, ia de vestido brincar de carrinho de rolimã. Meu irmão jogava bola na rua, bolinha de gude, essas coisas. Era uma ladeirinha, então andavam muito de carrinho de rolimã; devia estar no auge do carrinho de rolimã, aquelas rodinhas... Eles lixavam a madeirinha e cada um fazia o seu carrinho. Eu sempre fui um pouquinho mais medrosa e nunca andei de carrinho de rolimã, porque era muita velocidade, porque [tinha] a ladeirinha e não tinha breque. Gastavam sapato, tênis; acabavam com tudo, porque era o “breque” do carrinho (risos). Minha mãe falava: “Meu Deus, desse jeito a gente não vai dar conta de ficar comprando sapato ou tênis pra vocês”. Minha irmã e meu irmão acabavam demais com os calçados.
Eu já era pré-adolescente, já não brincava muito com essas coisas. Ficava mais dentro de casa lendo, estudando, ajudando minha mãe, que também continuava costurando as coisas da fábrica. Tinha a minha avó também, então ela cobrava um pouco mais de mim. “Imagina, parece uma moleca de rua, fica na rua o dia inteiro...” Enfim, a gente aproveitou bastante, os meus irmãos também aproveitaram muito. Tinha um terreno também, a região embaixo, que hoje já tem prédio, tem condomínio - aterraram e fizeram um condomínio -, mas a minha irmã e o meu irmão também saíam atrás de mamona, amora… Viviam fazendo as excursões deles, os desbravamentos (risos).
P/1 — E você, já entrando na adolescência, quais eram as diversões, as coisas que se faziam nessa época em São Paulo? O que você aproveitou de São Paulo quando era adolescente?
R — Nessa época me lembro que a gente ia muito - eu gostava muito de ir em biblioteca. Pra mim era muito interessante, porque sempre gostei muito de ler. Meus irmãos gostavam mais de ficar brincando na rua, mas a gente ia muito ao cinema. Minha mãe levava a gente ao cinema. Não me lembro de ter ido ao teatro - não existia muito teatro para criança na época. Minha mãe incentivava sempre a gente a ler muito, assistir filmes e nesta época, a gente pôde comprar uma televisão também. Acho que não devia ter muito programa cultural como tem agora. A gente via aquele filme do Gordo e Magro, coisas assim. Mazzaropi, eu lembro muito - a gente não perdia a série do filme dele no cinema e era o que a gente conseguia manter. Éramos três crianças e minha mãe; minha avó não nos acompanhava, ficava em casa lendo, sempre. Pensando bem, a minha avó lia bastante e meu pai também. Ele trabalhava em jornal, então era obrigado a cultivar a leitura. Precisava saber, ter um certo nível de cultura, precisava ter várias informações e é o que eles procuravam passar pra gente. Com a televisão, a gente acabava vendo jornal, a notícia do dia e acompanhava. A televisão realmente era uma coisa interessante na época, porque a gente não tinha, então foi uma novidade.
Com casa própria, televisão, a gente comprou um toca-disco - [era] eletrola que o pessoal falava na época. Aos poucos, a gente foi adquirindo isso. A gente comprava disco, começou a época de bailinhos. A gente ia muito em bailes, gostava de dançar. Acho que isso já era de sangue, porque meu pai, por exemplo, gostava de tango e dançava muito bem. Agora [é] que fui aprender tango; acho que, na época, a gente não valorizava tanto isso.
Minha mãe levava a gente nos bailes de Carnaval: fantasiava, a gente colocava a fantasia. Meu pai também - mesmo depois de a gente nascido, minha mãe ficava com a gente e o meu pai ia para os bailes de Carnaval, até por questão da própria profissão. Trabalhava em jornal, então tinha que fazer, vamos dizer, uma ‘mídia’. Recebia convites dos hotéis japoneses, dos restaurantes que promoviam alguma coisa e acabava indo sozinho, porque a minha mãe não o acompanhava. Ela falava: “Não, tem as crianças”. Para deixar com a minha avó... Ela não queria abusar. Ela falava: “Não, é um abuso”. Se fosse a mãe dela seria diferente, mas era a sogra, então ela sempre respeitou muito isso. É uma hierarquia, existe esse respeito.
P/1 — E esse começo de sair com os amigos sozinhos, ou então mais bailes?
R — A gente ia muito para bailes, porque a gente gostava de dançar. Nós íamos acampar também, nas férias. Tínhamos um grupo de amigos de bailinhos, a gente acabava acampando. Então a gente ia para Ilhabela, Bertioga. Na época devia ser um matagal ainda, mas a gente ia acampar. Eu não sei, alguém acho que roubava uma Kombi, a gente colocava tudo lá dentro e ia acampar, então, qualquer feriadinho… Devia ser mais barato também, a gente podia manter, então a gente ia acampar ou ia para bailinhos, cinema e ainda tinha tempo para estudar (risos).
P/1 — Você se lembra nessa época, ou até um pouquinho antes, na infância... Você tinha aquele sonho, “quando eu crescer, quero ser isso”? Mesmo que fosse uma coisa maluca - sei lá, astronauta -, mas tinha alguma coisa desse tipo?
R — Meu referencial muito forte foi essa professora do primeiro ano, então acho que o meu sonho era ser professora. Só que, depois que você vai crescendo, vai vendo que não é fácil ser professora. Se bem que eu acabei fazendo História, então o pessoal: “Você vai fazer o quê? Vai seguir para o magistério?” Eu falei: “Vou tentar”.
P/1 — Então vou tentar organizar, pra gente entender: na adolescência você escolhe fazer História, é isso?
R — Não. Na adolescência tinha uma vizinha minha, uma amiga de infância da minha mãe que acabou sendo nossa vizinha, a Dona Iná, e ela trabalhava como Secretária. Na época era Ultragaz - acho que devia ter até outro nome. Hoje eu digo Ultragaz, porque acho que é o nome da empresa. A filha dela, que era um ano ou dois anos mais velha do que eu, a Maria Helena, estudou comigo o primário e depois foi fazer Secretariado numa escola alemã que tinha no Paraíso. Eu falei: “Acho que vou fazer Secretariado”. Só que minha mãe falou: “Mas lá é escola alemã, é paga...” A gente não tinha condições de pagar, aí acabei fazendo Secretariado na Álvares Penteado. Eu falei: “Vou ser secretária”. A Dona Iná, eu a achava... Ela estava sempre bonita, muito arrumadinha, perfumadinha, então eu falava: “Ela é secretária”. Ela foi uma referência pra mim.
P/1 — Então você escolhe isso com que idade, mais ou menos?
R — Eu saí do ginásio e fui fazer Secretariado. Quer dizer, saí da oitava série e fui fazer Secretariado na [Escola de Comércio] Álvares Penteado. Eu fui com uns 15, 16 anos. Falei: “Eu vou poder trabalhar e ajudar o meu pai”, porque a gente via que era muito difícil, só meu pai trabalhando para manter a família. Falei: “Vou ajudar o meu pai, vou fazer Secretariado”. Depois consegui trabalhar no Banco América do Sul - hoje acho que nem existe mais, deve ter sido comprado por algum outro banco. Com 17 anos fui trabalhar no Banco América do Sul e fazer Secretariado. Eu me formei com 19 anos, saí da Álvares Penteado e já estava empregada no banco.
P/1 — Foram dois anos de Secretariado?
R — Não, foram três anos. Com 18 fui trabalhar no banco. Com 19 saí [do curso] e continuei trabalhando no banco América do Sul. Fui pensar no que eu ia fazer, porque quiseram me oferecer alguma coisa no banco: “Você pretende seguir carreira bancária?” Eu falei: “Não”. Eu queria tudo, menos ser bancária. “Não, gente. É uma vida muito sacrificada” (risos). “Vou fazer faculdade.” Fui fazer cursinho no Objetivo; na época, era acho que na Rua Tomás Gonzaga, na Liberdade. Era o Di Genio, o proprietário. Eu trabalhava no Banco América do Sul e fiz o cursinho no Objetivo. Tinha uns professores muito bons; o Heródoto Barbeiro dava História Antiga e hoje ele está na CBN. Ele foi meu referencial. Eu falei: “Não, eu vou fazer História”. Fiz História na PUC e quando me formei, eu falei: “Eu vou sair do banco”. Em 1974 resolvi que ia sair do banco. Eles falaram: “Não, você não quer trabalhar...” Ofereceram-me uma carreira no banco, mas eu falei: “Não, mulher em banco japonês não dá certo”. Não tinha nenhuma mulher que tivesse feito carreira ali, só os homens subiam. As mulheres acabavam não tendo promoção. Eu falei: “Não, eu não vou ficar no banco, vou fazer uma faculdade”.
Na hora que saí, eles falaram: “Você vai seguir o magistério?” Eu falei: “Ou sigo o magistério ou vou procurar emprego de secretária”. Aí me ofereceram uma aula por dia na Estrada do M´Boi Mirim, das seis a sete da noite. Cinco aulas, segunda a sexta. Eu dava aula das seis às seis e 45 na Estrada do M´ Boi Mirim, só que da minha casa levava duas horas pra ir e duas horas pra voltar e a escola ficava numa estradinha que não tinha luz. No dia em que fui lá conhecer, vi que não tinha fiação. Eu perguntei: “Qual a iluminação que vocês têm aqui?” “Não, quando tem lua cheia a gente vê o caminhozinho, quando não tem lua...” “Na lua nova?” “Fica meio escuro, mas tudo bem, a gente se acostuma”. Eu falei: “Gente, não tem condições de dar aula num lugar desses”. Quer dizer, eu ia pagar para dar aula. Aí eu falei: “Não, vou ter que procurar emprego de secretária”.
Foi quando comecei a batalhar. Consegui o meu primeiro emprego como secretária correspondente de intercâmbio comercial Nomura; depois saí e fui trabalhar no Metrô, fiquei quatro meses. Com a mudança de gestão no Metrô, muda tudo. Um amigo meu do Metrô me falou: “Toyomi, parece que estão procurando uma secretária na Votorantim”. Eu não conhecia a empresa. “Secretária do que, em que departamento?” “Não sei, vai lá e vê o que é”. Fui lá na Votorantim, na Praça Ramos; me falaram que estavam precisando de secretária para o Departamento Jurídico e davam preferência para quem faz Direito. Eu falei: “Mas eu posso tentar a vaga?” “Bom, você pode tentar. Quer fazer o teste? O máximo que você vai ouvir é um não”. Eu falei: “Exatamente: o máximo que eu posso ouvir é um não. Quer dizer, ‘você não é a pessoa adequada, não tem o perfil para trabalhar no nosso departamento’”. A Lídia Putini Lopes, que era a Secretária do doutor Estelita, fez a entrevista. Na época, eu tinha [curso de] taquigrafia; [ela] ditou uma carta, escrevi uma cartinha, datilografei - era máquina elétrica na época, acho que IBM - eu fiz tudo. Na verdade, era para ser secretária do chefe do Departamento Jurídico - o doutor Romeu Estelita, na época, que era o chefe do Departamento Jurídico, tinha sido promovido para Diretor Jurídico, então iam criar um cargo de Chefe do Departamento Jurídico e era para ser secretária do doutor Donaldo Armelin. A Lídia me entrevistou e falou: “Já tem uma candidata, funcionária também. Você não é a única, mas vai participar de um processo de seleção”. “Tudo bem”. A gente teve uma empatia muito grande. Ela falou pra mim: “Eu acho que vou escolher você, mas o pior é que tem uma funcionária aqui, seria uma promoção para ela vir para cá”. Eu falei: “Não quero criar problema pra ninguém”. Ela chamou o doutor Donaldo e falou: “Olha, doutor Donaldo, o teste dela, a redação dela. Eu ditei uma carta, ela fez uma tradução, taquigrafia...”. “Mas ela faz Direito?” “Não”. “Eu dou preferência para quem faz Direito”. Eu falei: “Tudo bem. O senhor fique à vontade”. Ela falou: “Doutor Donaldo, acho que ela é a secretária para o senhor.” Eu fui embora. Depois de uns dias, me ligaram: “Você traz tais e tais documentos. Você foi aprovada”. Acabei vindo para a Votorantim. Ela perguntou pra mim na entrevista: “Você conhecia a Votorantim?” Eu falei: “Desculpa, nunca ouvi falar”. Realmente, dependendo da área que você está, você acaba não... quer dizer, atualmente você acaba conhecendo ou sabendo de outras empresas, porque você lê noticiário e acompanha mais, mas na época, eu não sei… Eu estava no Metrô, o foco era diferente. Ela me falou: “Aqui é a Votorantim, uma das maiores empresas do Brasil”. Eu falei: “Nossa, que responsabilidade!” “Pois é, a família Ermírio de Moraes. Você vai trabalhar com o doutor Donaldo Armelin”. O doutor Donaldo Merlin era professor de Processo Civil; me lembro que na ocasião ela me falou: “Toyomi, você não acredita. Eu tive que escrever o seu nome e deixar na mesa do doutor Donaldo”. Lógico, eu estava em experiência de três meses. Eu falei: “Por que?” “Porque ele não consegue aprender o seu nome. Eu escrevi o seu nome e deixei no centro da mesa dele. Quando você entrar lá, você olha: tem um papelzinho com o seu nome, não estranha. Cada vez que ele for falar com você, vai olhar o papelzinho, porque ele disse que está muito difícil gravar o seu nome. Ele até me perguntou se não tinha ninguém com um nome mais fácil”. Eu falei: “Bom, eu não posso fazer nada, é o registro que eu tenho”.
Tive uma empatia muito grande com o doutor Donaldo Armelin. Era um profissional extremamente competente; era da banca examinadora de pós-graduação de uma faculdade do Paraná e professor de Processo Civil. Eu me lembro que ele dava aula, na época, em Guarulhos e queria que eu fizesse Direito; ele falava que eu tinha jeito para ser advogada. Eu falava: “Doutor Donaldo, tudo, menos isso. É muita lei, muita coisa. Muito complicado interpretar aquilo”. Ele falou: “Por isso mesmo. Acho que você consegue, eu vou te dar apoio”. “Eu vou até Guarulhos?” “Não, mas eu dou aula lá. A gente vê, consegue uma bolsa”. Na época eu não tinha carro, era tudo muito difícil. Eu falei: “Eu não vou trabalhar o dia inteiro e depois ir até Guarulhos.” Deveria ter isso, sabe? Quem sabe a rota teria sido diferente, mas acho que nada é por acaso. E ele sempre falou pra mim: “Acho que você tem todo o jeito”.
Consegui passar os três meses e no fim a gente teve uma empatia tão grande que… A gente datilografava muito na época: os processos, os recursos, coisas assim. Às vezes, ele falava pra mim: “Toyomi, hoje eu tenho o processo tal, estou indo para o Fórum”. A gente já pegava a pastinha, datilografava rapidinho - pra ter uma ideia, era máquina elétrica, então, se errasse, era tudo cópia carbonada. Acho que seis, sete vias, era uma coisa monstruosa. Pensando agora, na época [era] normal. Se a gente errasse, eu lembro que tinha uma giletinha para apagar o carboninho e depois datilografava. A gente fazia tão bem feitinho que depois nem parecia que tinha corrigido. Esses dias ainda, eu [estava] pensando nisso e falei: “Gente, a gente era boa, não? Como a gente fazia direitinho o trabalho.” Devia ser muito bom, porque eles gostavam. Às vezes eles ditavam, falavam: “Toyomi, eu tenho Fórum a uma hora”. Aí, papel na máquina, a gente “tchu, tchu, tchu”. Carbonava, punha na máquina, ele ditava, “tchu, tchu, tchu”, tirava de lá, eles assinavam e levavam embora. Eu falava: “Não, deixa eu ler, doutor Donaldo, pra ver se tem algum erro”. “Não, não tem erro, eu sei”. Eles confiavam tanto que acabavam de ditar e no final levavam embora. Nunca soube se tinha erro ou não, porque eu não recebia de volta a papelada (risos). A gente devia ser muito boa nisso, porque como ele era da banca de tese, até nos indicava, a Lídia e a mim, para a gente datilografar os trabalhos. Nós datilografamos muitos trabalhos, no final de semana a gente fazia isso. Era o nosso extra, sabe? A gente trabalhava o final de semana todo, sábado e domingo direto, datilografando teses que o doutor Donaldo indicava dos alunos, do pessoal. Aprendi muito com a Lídia e ela que me ensinou todo esse joguinho: “Você faz assim, assado”. Às vezes, no meio da tese, já estava tudo montado e eles queriam mudar uma palavra. A gente falava: “Bom, mudar tal palavra tudo bem”. A gente corrigia, porque chegou uma época que tinha o corretor da máquina, depois a gente mudava, colocava uma palavra maior num espacinho pequeno. Agora eu fico pensando: hoje a gente consegue fazer porque é computador, é diferente, mas naquela época a gente segurava aquele negócio de segurar o carrinho e digitar, quer dizer, datilografar. “Não, aqui tem espaço para quatro palavrinhas”. Tinha que pôr seis ali, segurava o carrinho, apertava um pouquinho e fazia. Ninguém dizia que a gente tinha corrigido aquilo. As secretárias, datilógrafas do Departamento Jurídico eram referencial no prédio, porque devia ser um pessoal muito gabaritado; eu me lembro das meninas, das datilógrafas da Secretaria do Jurídico, a Dona Creuza e a Cristina, muito boas também. A Lídia atendia o doutor Estelita, eu o doutor Donaldo e as duas atendiam acho que quatro, cinco advogados. Era muita coisa: petição, recurso, tudo era datilografado, então era direto isso. Agora, com o computador, acho que facilitou bastante. Eu fico pensando: “Nossa, realmente a gente não tem saudade daquelas máquinas elétricas, porque hoje em dia a gente muda a letra, muda a cor, faz tudo tranquilo, é diferente”. Esse avanço tecnológico ajudou bastante o pessoal.
P/1 — Já que a gente entrou na Votorantim, eu queria perguntar duas coisas: uma anterior que é, você falou do curso de Secretariado, agora você falou um pouquinho do que você fazia na Votorantim, mas como era o curso? O que vocês aprendiam, era voltado a que naquela época? Quais eram as aulas? Conte, só pra gente entender um pouco daquela época.
R — O curso de Secretariado era um curso técnico, voltado realmente para quem queria trabalhar. Tínhamos aula de Português, Inglês, Datilografia, Taquigrafia, Estatística - nós tínhamos um professor muito bom de Estatística -, Sociologia, Arquivo, então era realmente para você poder trabalhar. Era bem a parte prática. A Álvares Penteado era uma escola muito cotada e muitas meninas saíram de lá para trabalharem como taquígrafas, na época tinha muito isso. Hoje tem até a maquininha, mas, naquela época, era tudo à mão. E nós tínhamos taquigrafia até em inglês. Era realmente uma escola voltada para quem fosse trabalhar.
P/1 — A outra pergunta é: você não conhecia a Votorantim, mas, assim que entrou lá, queria que você conseguisse descrever um pouco… A primeira sensação, os primeiros dias, o prédio, a descoberta deste lugar novo. Como foi isso?
R — Aquele prédio que fica na Praça Ramos é muito imponente. Primeiro, pela localização dele, logo atrás do Teatro Municipal. Você entrando, é um prédio suntuoso, porque é todo em mármore. A escadaria é em mármore, com vitrais. É um prédio muito bonito. Fiquei deslumbrada. Digo no bom sentido, não de você achar que conseguiu um emprego de outro mundo, mas eu realmente fiquei super feliz de poder trabalhar numa empresa desse porte. Eu jamais tinha pensado em trabalhar, ou, pelo menos, tinha como meta... Talvez eu fosse menos pretensiosa - eu só queria trabalhar. Eu precisava trabalhar e ganhar alguma coisa, pra poder ajudar a família. Quando eu consegui entrar e tive noção do que era a Votorantim, nossa… O meu pai tinha o maior orgulho. Ele falava pra todo mundo: “A minha filha está trabalhando na Votorantim. Trabalha com a família Ermírio de Moraes”. Era o maior orgulho dele. Minha mãe fala isso pra mim até hoje: “Acho que você não saiu de lá, de tanto que o seu pai falou”. É verdade, uma coisa que marcou muito. Meu pai tinha muito orgulho da filha trabalhar na Votorantim, porque é uma empresa muito séria e isso já vem desde os avós, uma coisa que a gente já sabe. A gente, que está dentro, vê o dia-a-dia, tem contato com eles, a gente sabe disso. É uma empresa séria, muito íntegra e é um pessoal muito humilde. Isso é uma coisa marcante em todo mundo que chega ali ou que tem algum contato com a empresa. A gente vê isso; os consultores que vem trabalhar com a gente, a primeira coisa que eles dizem [é]: “Como as pessoas são simples. Que humildade”. É uma coisa marcante. Às vezes dizem pra mim: “A gente vai em outras empresas e não tem essa percepção. Na Votorantim, isso é gritante”. Essa humildade, a transparência, a integridade. A família sendo assim, a gente se sente na obrigação de ser assim. Não tem como fugir disso.
É o que eu costumo dizer: “A Votorantim é: ‘ama-me ou deixa-me’”. Você chega lá - os três meses [de experiência], o pessoal faz lá adaptação, integração. Ou você se adequa, sente, tem empatia com aquilo tudo que lhe é mostrado, que lhe é cobrado ou você não se sente bem ali e vai embora. É uma empresa familiar, então, se eu for dizer pra você: “Eu sei como funcionam as outras empresas”, não sei, porque eu estou há 33 anos lá. Eu acabei de fazer 33 anos, no dia 23 de Novembro (risos). Outro dia, uma pessoa da família perguntou: “Há quantos anos você está na Votorantim, Toyomi?” Eu falei: “Ontem fiz 33 anos. Muitos funcionários aqui não tinham nem nascido”. O pessoal às vezes me pergunta: “Já faz um tempo que você trabalha aqui, né?” “Mais ou menos” (risos). Para alguns jovens chega a ser demérito: “Não, isso é acomodação”. Porque os jovens hoje em dia… A rotatividade é muito grande, eles também têm muitas opções. A gama de opções é muito grande. Cada área em que eles atuam, que eles se especializam, dá essas opções. No meu caso, acho que foi realmente amor, é paixão minha. Acho que eu tinha que fazer isso. Nessa encarnação eu tinha que trabalhar na Votorantim e ficar lá. Porque, realmente, as pessoas diziam: “Ah não, eu fui em tal empresa, uma multinacional...” Quem trabalha em multinacional sempre disse pra mim: “Na multinacional você é um número”. Da matriz, eles dizem: “Vamos cortar tanto da verba que a gente tem. Temos que cortar tanto”. Eles não querem saber se é o Roberto, se é a Joana, se é a Maria. Na Votorantim, a gente sente que isso é diferente, a gente não é um número ali. É uma pessoa, que está ajudando a dar suporte. A gente até se sente importante, sabe? Não é demagogia isso, mas a gente sente que é valorizado. Você sente que está fazendo alguma coisa, você não é mais um lá dentro, tanto é que se você conversar com outros funcionários ali, principalmente os mais antigos, acho que todos nós, a gente se sente uma família. A gente tem um vínculo muito grande. Às vezes, quando a gente se encontra… Outro dia mesmo, vieram uns diretores da Beneficência [Hospital Beneficência Portuguesa] que são ex-funcionários da CBA, da S.A. Indústrias Votorantim e agora estão dando suporte para o doutor Rubens. Eles vieram: “Nossa, Toyomi, nós continuamos aqui”. “Pois é, continuamos”(risos). Eu não sinto que passou tanto tempo assim, porque fui da Praça Ramos para Alameda Santos, da Alameda Santos para a [Rua] Amauri, então não fiquei fazendo só uma coisa. Não fiquei trabalhando só com uma pessoa.
P/1 — Eu queria que você contasse um pouco esse trajeto: o que foi mudando na sua vida profissional, por que você mudou? Conte um pouco, pra gente entender como foi isso.
R — Eu fiquei na Praça Ramos por 16 anos. Eu trabalhei com o doutor Donaldo Armelin, depois fui trabalhar com o doutor Romeu Estelita, Diretor Jurídico. Na época eu fazia substituição das secretárias dos acionistas; da dona Sandra, com o doutor José Neto e da Valéria, do doutor Antônio e do doutor Ermírio. Depois, o doutor José Roberto Ermírio de Moraes assumiu também um cargo na empresa e precisava de uma secretária; me convidaram para trabalhar com o doutor José Roberto e eu fiquei com ele mais ou menos de 1987 até 1993, 1994. Em 1992, o doutor José Roberto mudou para a Votorantim Celulose e Papel; ele assumiu a área de papel e foi para a Alameda Santos. Eu fui com ele para lá. Na Alameda Santos, fiquei praticamente de 1992 até 2002 - dez anos. Depois, o doutor José Roberto mudou para a Rua Amauri e eu fiquei com o Diretor Financeiro, na Alameda Santos. Fui trabalhar com o senhor Miro Motta, depois ele saiu e assumiu o Valdir Roque, que veio da Monsanto. Fiquei com o Valdir Roque mais ou menos de 1994 até 2002; em 2002, eu fui para a Rua Amauri, trabalhar no Family Office - eles criaram este espaço no segundo andar da Rua Amauri, que seria o espaço onde a família faria as reuniões, teria as palestras; a quarta geração ocupa o espaço. É um espaço realmente reservado à família. Fica no mesmo prédio da empresa, da Votorantim Participações e da Votorantim Industrial, por questão administrativa, mas, na realidade, é um espaço só da família. Eu fico no segundo andar e a empresa é do décimo ao décimo-sexto, na Rua Amauri. Fui para lá em 2002 e estou lá até hoje.
P/1 — Queria que você contasse um pouco o que muda no seu trabalho, na sua rotina, em cada uma destas etapas. A primeira parte você contou um pouco - o que você estava fazendo, esse começo, das cartas, esse medo de errar... Conte um pouco daí pra frente: como foi essa rotina, como foi mudando isso na sua vida.
R — Quando fomos para a Votorantim Celulose e Papel… A área de papel é uma área extremamente competitiva, então o que acontece? É tudo muito rápido. Nós tínhamos muito trabalho. Na época, eu trabalhava com o doutor José Roberto. Foi a época da fusão, quando a Votorantim comprou a Papel Simão. Teve muita mudança. Tinha o pessoal que já trabalhava na Votorantim Celulose e Papel, funcionários da Votorantim, que acabaram sendo dispensados, porque veio o pessoal da Papel Simão, que era um pessoal mais especializado na área, então acabou ficando. Depois era uma empresa só, um objetivo só, mas a rotina mudou muito da Praça Ramos para lá.
O doutor José Roberto, enquanto estava na Praça Ramos, cuidava de várias áreas. Tinha atuação na área de papel, na área até da metalurgia, porque todos atuavam em todas as áreas, mas quando fomos para a área de papel, é uma área muito ágil, muda muito rápido, então era muito complicado. Eu digo complicado porque era muita gente nova. Para mim, o papel era um assunto totalmente novo: os contatos, os fornecedores eram outros e eles estavam em fase de expansão das fábricas, então a gente trabalhou muito naquela época. Era um grupo novo, o pessoal da Papel Simão; aprendi muito com eles. Na época, veio a ngela, que trabalhava com o doutor Fernando de RH, depois veio a Edneia, que trabalhava com o senhor Raul Calfat, que era o presidente da Papel Simão, depois veio para a VCP [Votorantim Celulose e Papel] e agora é o Diretor Geral da Votorantim Industrial. Mudou muito o foco, porque era centrado na área de papel. Tinha a parte internacional, porque era exportação. Foi um desafio, mas foi muito enriquecedor, porque a gente sempre aprende muito. Esses desafios que a gente tem pela frente sempre nos ajudam a crescer muito. Como profissional, como ser humano, porque você aprende muito com o relacionamento com pessoas novas que vêm. O pessoal que vinha da Papel Simão era especialista na área, então a Edneia, por exemplo, me ajudou muito. Tinham os fornecedores, que acabaram sendo os contatos e eu não conhecia esse pessoal. Acabei conhecendo e depois fui trabalhar com o Diretor Financeiro. A área financeira também é uma área muito corrida, uma área totalmente diferente e também muito ágil, muda muito. Passei a ter contatos com os bancos, também uma clientela nova, consultores diferentes. Trabalhando na área financeira, eu tinha muito contato com o pessoal do Jurídico; tinha que trocar informações para um passar documento para o outro. A gente dependia muito um do outro. E tinha um pessoal muito bom também na área jurídica, a doutora Marina - na época ela era gerente; depois ela saiu, o Boris assumiu. Quando saí da Alameda Santos e fui para a Rua Amauri, eles começaram a centralizar, porque já era Diretoria Corporativa, então teve gente que trabalhava no Jurídico que acabou indo para a Votorantim Novos Negócios ou veio para a Votorantim Participações - quer dizer, acho que são Votorantim Industrial, que é o corporativo. Teve gente do Financeiro que veio, trainees, estagiários que conseguiram se efetivar, estão agora na Rua Amauri. Agora existe o projeto Movimenta, então onde precisa de alguém… Eles pegam um funcionário, por exemplo, do Financeiro, da VCP; precisa de alguém da área industrial, aí são transferidos para a Rua Amauri, então a gente acaba encontrando muita gente que estava na Alameda Santos. Como eu fico no Family Office, não tenho tanto contato com a empresa. Algumas pessoas, em algum momento a gente tem algum contato, mas não é tanto como antes esse vínculo, quando eu trabalhava, por exemplo, no Financeiro. Tenho contato com a empresa na medida em que eu preciso de alguma documentação, alguma informação. Sempre tem algum contato nas Unidades, até o pessoal da VCP, da época que eu ficava na Praça Ramos; algumas pessoas continuam ainda na empresa, nas unidades e a gente acaba formando um círculo.
P/1 — Queria perguntar: nesse momento todo que você passou, você lembra algum momento que foi para você talvez o mais difícil? O maior desafio dentro da empresa, por algum motivo pessoal ou algum motivo da empresa, que você falou: “Nossa, esse momento foi muito difícil, marcante”.
R — Pra mim foi a época em que eu fazia as substituições das secretárias dos acionistas, porque eu trabalhava, por exemplo, com o diretor jurídico, aí fui ter contato com os acionistas. Fiquei apavorada. Eu falei: “Gente, e agora?” Até o doutor Estelita, na época, me falou: “É só você continuar trabalhando normalmente, como você sempre fez”. É um desafio isso, é muita responsabilidade. Você começa a pensar, pesa o nome da empresa: “Gente, é uma Votorantim”. O que eu fizer aqui dentro, vai ser um desastre, então tem que tomar muito cuidado.
Fui fazer as substituições das secretárias dos acionistas, aí você vê que a humildade te deixa à vontade. A simplicidade, a tranquilidade com que o doutor José e o doutor Antonio me tratavam me deixaram muito à vontade. Você fala: “É só continuar trabalhando direito. É só eu fazer do jeito que eu sei”. E foi o que aconteceu.
P/1 — Você agora está no Family Office. Para você acaba sendo uma honra, porque é um lugar de muita confiança, um lugar da família...
R — Extremamente. Eu acho que é um cargo de extrema confiança.
P/1 — Eu queria que você contasse um pouco do sentimento, quando te convidaram para ir pra lá.
R — Quando fui trabalhar no Family Office me senti muito honrada, porque realmente é um cargo de extrema confiança. A princípio fiquei meio apreensiva, mas a gente que tem que trabalhar, você sabe que se procurar fazer o melhor que sabe - embora eu sempre diga isso: “o seu melhor pode não ser suficiente para eles”... Mas eles têm a certeza de que sempre procuro fazer o melhor para eles. Sempre respeitando e procurando atender a necessidade deles, porque ser secretária, pra mim, acho que é como se fosse um sacerdócio; você faz por amor e não por obrigação. Se for pra falar: “Não, eu faço isso para ganhar dinheiro”, acho que tem coisa que você não consegue fazer. É o que eu sempre digo para quem vai abraçar uma profissão. Às vezes, as meninas vêm me perguntar: “Você é secretária há tanto tempo, o que você me diz?” Eu digo: “Olha, ou você gosta de fazer isso ou você não faz”. Embora qualquer profissão seja assim. Pra fazer bem feito alguma coisa, você tem que gostar daquilo, tem que se identificar com aquilo. De uma certa forma, ser secretária é servir, eu acho muito importante isso. E não é servir sendo submisso, sabe? Acho que é servir, adequar-se às necessidades do seu cliente, não importa quem seja o seu cliente. É sempre o cliente. Seja alguém da família, seja um colega de trabalho, eu acho que a gente tem que prestar muita atenção nisso. É dar a atenção necessária, a atenção que a pessoa precisa naquele momento, fazer da melhor forma possível. Não importa o que você esteja fazendo e o nível hierárquico da pessoa que você está atendendo; você tem que pensar que está atendendo um parceiro seu, um ser humano como você. Uma pessoa que tem sentimentos, uma pessoa que gosta, quer ser respeitada, então sempre coloquei isso como meta: atender, respeitar as pessoas da mesma forma que você quer ser atendido. Eu sempre reclamo muito isso. Às vezes, as pessoas falam pra mim: “Você vai naquela loja e reclama”. Eu falo: “As pessoas que estão para atender… Quando você pega uma profissão, você aceita um emprego... Não importa se de gari, de porteiro, de diretor, você sabe o que vai fazer e o quanto vai ganhar. Se você aceitou, acho que tem que fazer aquilo da melhor forma possível. Se você é um gari, tem que ser o melhor gari possível; se você é o porteiro, é o melhor possível. Se você é secretária, você tem que fazer da melhor forma possível”. Pode ser que eu não peque pela excelência, mas sempre procurei fazer o melhor possível. Tenho certeza que eles têm noção disso. Eles têm consciência de que sempre fiz o melhor que pude oferecer. Cada um tem as suas limitações, eu tenho as minhas. Tem coisa que você supera, tem coisa que você não consegue superar. Às vezes, eu brinco: “Esse meu porte avantajado, realmente, não me permite carregar mesas” (risos). Eu até tento carregar uma mesinha, uma cadeira. Pode ser que eu não consiga carregar uma mesa grande, mas vou carregar a pequenininha, vou fazer o meu melhor.
P/1 — Tem uma coisa que você falou agora que acho importante. Nesse cargo de secretariado, nesse nível executivo, normalmente a pessoa se envolve muito com o outro a ponto de ser muito íntimo, conhecer muito, conhecer às vezes até mais do que a mulher da pessoa, porque conhece muita coisa do dia-a-dia. Então tem uma relação além da profissional, muito humana. Eu queria que você contasse um pouco dessas relações, ou alguma história, algumas coisas que te marcaram nessa relação humana com as pessoas com quem você trabalhou ou trabalha ainda.
R — Acho que secretária tem que ver muito esse lado humano, tem que partir daí. Não é um concorrente que está lá. Você tem que ver que é um parceiro, um ser humano que você está atendendo. Se você está lá para ajudar é porque a pessoa não tem condições de fazer tudo sozinha ou, em algum momento, vai precisar que você vá atrás de alguma informação. Eu costumo dizer, é como se fosse com um padre, que você se confessa. Tem coisas que eles falam: “Olha, é segredo de confessionário, eu não posso abrir, não posso falar, mesmo que seja num julgamento, num processo...” Realmente, acho que eles não abrem, não falam, porque, realmente, as pessoas falaram em confiança; é o caso da secretária.
A única coisa que às vezes me incomoda um pouco é quando falam [de] uma secretária executiva. As pessoas falam: “É muito brava, é muito mandona”. Eu costumo dizer o seguinte: “Você não é brava, não é mandona porque quer magoar as pessoas”. Eu devo até ter magoado algumas pessoas, mas não por dizer: “Vou ser uma pessoa ruim”. Não é isso. Às vezes você tem que ter uma postura mais firme, tem que ser incisiva com a pessoa, porque a pessoa tem que fazer aquilo naquela hora e tem gente que não aceita. Eu falo: “Gente, isso tem que ser feito agora”. E não importa, não tem que saber por que, pra quem e no que vai resultar aquilo, é só pra pessoa fazer. Às vezes, o pessoal fala: “É difícil”. A gente evita falar isso, porque às vezes a pessoas se magoam. Mas tem gente que é muito assim: “Por que isso, pra que ele quer isso agora? Por que tem que fazer isso agora?” Eu falo: “Desculpa, mas tem que ser para agora, é já”. Então as pessoas falam: “Como ela é mandona”. Eu acho que não é questão de ser mandona. Você tem uma responsabilidade, a pessoa pede determinadas coisas, os executivos são super sobrecarregados.
Tem coisas que você fala: “Eu não acredito que vou ter que fazer isso”, mas você faz e é verdade. As pessoas falam: “Vocês são muito servis”. Não é questão de ser servil ou não. Eu não me vejo como uma serviçal e se for o caso, eu não me importo. Você tem que atingir uma determinada meta; para atingir aquela meta, não tem como pular etapas, você tem que passar por todas as etapas. Eu já saí para banco, para fazer compras, já voltei carregada de mercado, porque tive que fazer comprinha disso e aquilo para alguma reunião. Eu realmente não me importo. Tem gente que fala: “Um absurdo você fazer isso, uma secretária executiva”. Eu falo: “Mas por isso mesmo que eu faço”. Você sabe das necessidades, então tem que fazer. Precisa comprar um papel especial para fazer uma determinada carta; você tem que ir numa Kalunga e comprar o papel. Você sabe quem vai assinar a carta e pra quem vai a carta, então você sabe o tipo de papel e porque comprar aquilo. Se você fala para uma pessoa: “Eu preciso de um papel vergê bege e um envelope igualzinho, do mesmo tom. Tenho que fazer uma carta agora”, as pessoas vão dizer: “Por que tem que ser papel vergê e por que tem que ser bege?” Eu falo: “Por favor, dá para fazer o que eu estou pedindo?” Aí as pessoas falam: “Nossa, como ela é grosseira, né? Como ela é mandona! Tem que ser o papel vergê bege que ela quer”. Não é uma questão de ser mandona. A gente tem que fazer com que a pessoa se convença e faça o serviço. Não adianta você chegar e dizer: “Olha, meu benzinho, dá para você fazer isso agora, por favor?” A pessoa não sai do lugar. Se você chegar e disser: “Por favor, dá para ir agora?” A pessoa já viu que mudou o tom. O executivo é exatamente isso. Tem gente que fala: “Acho que não precisa usar esse tom, mudar o tom de voz”. Eu falo: “Acho que é a mesma coisa quando alguém está fazendo um discurso e quer chamar a atenção de alguma coisa. Ele levanta o tom de voz, vai falar mais grosso. Ou vai falar numa linha reta e todo mundo vai dormir ou vai chamar a atenção para alguma coisa, então eleva o tom de voz”. Não é gritar, não é isso, mas você eleva o tom de voz, fala um pouco mais firme. Aí tem gente que fala: “Nossa, magoei”. Mas é o seu postural e você tem que ser muito firme, se não a gente não consegue.
Às vezes eu falo um pouco mais duro e depois falo: “Nossa, coitadinho, não precisava falar assim”. Mas vejo que se eu falo um pouco mais mole, a pessoa não vai fazer. E o pessoal fala: “Você é brava, né?” E eu falo: “Eu sou brava quando preciso ser brava”. Se eu pudesse ficar abraçando e beijando todo mundo o dia inteiro, eu prefiro fazer isso, acho que é muito melhor. Só que se eu ficar fazendo isso o dia inteiro, eu não vou conseguir o que preciso. Não é nem o que eu quero, é o que eu preciso.
Você é funcionário da empresa. Presta serviço para alguém, para um executivo. Você não está fazendo a sua vontade. Não sou brava porque eu quero, não fico nervosa porque eu quero. Lógico, eu prefiro ficar rindo o dia inteiro, concorda? Prefiro ficar jogando beijinho, abraçando todo mundo o dia inteiro; muito melhor, não vou me estressar. Mas tem hora que estressa. Ou é muito serviço, ou você tem que acompanhar, você pede para alguém fazer alguma coisa e tem que acompanhar. Isso não cabe na minha cabeça porque, pra mim, se alguém pediu alguma coisa, é serviço feito. Não precisa me cobrar, porque eu já vou levar aquilo pronto. Se me der a farinha, a manteiga e o leite eu já vou fazer a panqueca, não precisa ficar falando: “Toyomi, você sabe quanto de leite tem que pôr, você sabe quanto de farinha?” Se a pessoa pediu para eu fazer, é porque ela tem certeza que vou fazer aquilo, então parto do princípio de que as pessoas vão ser assim, mas nem sempre é assim. Quando você vê que não é assim, então já fico de olho. Aí a pessoa fala: “Você fica no meu pé”. “Não é que eu fico no seu pé. Eu acho que você tem que prestar mais atenção nas coisas. Tem que ter mais cuidado”. E é onde eles acham que a gente é brava.
P/1 — Depois de tantos anos, não só profissionalmente, mas pessoalmente também, qual é hoje o seu sonho?
R — Sonho? Sonho a gente sempre tem, espero ter uma aposentadoria tranquila, espero já ter trabalhado bastante. Sempre quis ter um negócio próprio, mas não sei se é uma época boa para isso. Como dizem as minhas amigas: “Acho que agora você tem que se aposentar, você tem que fazer alguma coisa tranquila, light, e aproveitar tudo o que conseguiu até agora”. Mas não, eu ainda vou ser voluntária. Isso eu tenho como meta e é um sonho meu, realmente. Eu não consegui fazer isso até agora por falta de tempo. Eu ajudo de outras formas, monetariamente… Fisicamente, às vezes, não consigo, porque pra ser voluntária tem que ir no horário comercial. [Em] muitos lugares é assim, então eu não consigo. Mas ainda vou fazer esse trabalho de voluntariado. Tenho isso como meta e ainda vou conseguir fazer isso.
P/1 — Está bom, Toyomi. Eu queria agradecer a presença, a entrevista, obrigada pelo seu depoimento.
R — Imagina, sou eu quem agradeço. Espero não ter atrapalhado. Não sei, a confusão foi tanta. Eu falo uma coisa, volto, falo outra. (risos)
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