Programa Conte Sua História
Entrevista de Lucila Mara Sbrana Sciotti
Entrevista por Rosana Miziara
São Paulo, 27/10/2023
Entrevista nº: PCSH_HV1393
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Ane Alves
0:11
P1 - Bom dia!
R - Bom dia!
P1 - Tudo bom? Quero te agradecer em nome do Museu da Pessoa a compartilhar sua história conosco para o nosso acervo, eu aproveito para agradecer aqui a unidade Senac Lapa, ao Ulisses ________ por ter organizado essa entrevista, a gente já fez
reviews desse momento, desse projeto que contou história do Senac pelos 50 anos e acho que agora sua entrevista também virá enriquecer isso. Então, super obrigada! Vamos começar!
R - É! Sciotti no italiano, Sciotti no aportuguesado.
P1 - Lucila eu vou começar fazendo uma pergunta super facíl. Qual o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Sou Lucila Mara Sbrana Sciotti, nasci Lucila Mara Sbrana, virei Lucila Mara Sbrana Sciotti depois de casada. Então, Sciotti é um sobrenome de casada. Eu nasci em 1º de maio de 1959, em Sorocaba, estado de São Paulo.
1:25
P1 - Lucila, e seus pais são de Sorocaba?
R - Não! Meu pai nasceu em Jaú e minha mãe nasceu numa cidade bem pequena, que se chama Sarapuí. Na época o pai dela tinha uma farmácia lá e a família materna do meu pai era de Jaú, então durante um tempo os pais dele estavam lá e ele nasceu lá. Mas os dois estiveram a vida, a maior parte da vida em Sorocaba, se conheceram em Sorocaba.
1:53
P1 - Você sabe como eles se conheceram?
R - Se conheceram num baile. Sempre perguntava para minha mãe. “Mas como é que foi?” “Ah…” Eles meio que se paqueravam num baile, nos bailes que tinham e tal. Até que um dia meu pai se ofereceu para acompanhar minha mãe até em casa, começaram a conversar e tal. E aí, acabaram namorando, se casando.
2:19
P1 - Vamos começar um pouco pela família do seu pai. Qual o nome dele?
R - Meu pai se chamava, ele falecido, Hélio Rubens Sbrana. Hélio Rubens, é sol...
Continuar leituraPrograma Conte Sua História
Entrevista de Lucila Mara Sbrana Sciotti
Entrevista por Rosana Miziara
São Paulo, 27/10/2023
Entrevista nº: PCSH_HV1393
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Ane Alves
0:11
P1 - Bom dia!
R - Bom dia!
P1 - Tudo bom? Quero te agradecer em nome do Museu da Pessoa a compartilhar sua história conosco para o nosso acervo, eu aproveito para agradecer aqui a unidade Senac Lapa, ao Ulisses ________ por ter organizado essa entrevista, a gente já fez
reviews desse momento, desse projeto que contou história do Senac pelos 50 anos e acho que agora sua entrevista também virá enriquecer isso. Então, super obrigada! Vamos começar!
R - É! Sciotti no italiano, Sciotti no aportuguesado.
P1 - Lucila eu vou começar fazendo uma pergunta super facíl. Qual o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Sou Lucila Mara Sbrana Sciotti, nasci Lucila Mara Sbrana, virei Lucila Mara Sbrana Sciotti depois de casada. Então, Sciotti é um sobrenome de casada. Eu nasci em 1º de maio de 1959, em Sorocaba, estado de São Paulo.
1:25
P1 - Lucila, e seus pais são de Sorocaba?
R - Não! Meu pai nasceu em Jaú e minha mãe nasceu numa cidade bem pequena, que se chama Sarapuí. Na época o pai dela tinha uma farmácia lá e a família materna do meu pai era de Jaú, então durante um tempo os pais dele estavam lá e ele nasceu lá. Mas os dois estiveram a vida, a maior parte da vida em Sorocaba, se conheceram em Sorocaba.
1:53
P1 - Você sabe como eles se conheceram?
R - Se conheceram num baile. Sempre perguntava para minha mãe. “Mas como é que foi?” “Ah…” Eles meio que se paqueravam num baile, nos bailes que tinham e tal. Até que um dia meu pai se ofereceu para acompanhar minha mãe até em casa, começaram a conversar e tal. E aí, acabaram namorando, se casando.
2:19
P1 - Vamos começar um pouco pela família do seu pai. Qual o nome dele?
R - Meu pai se chamava, ele falecido, Hélio Rubens Sbrana. Hélio Rubens, é sol vermelho, então isso para mim sempre foi uma coisa muito bonita, a família dele é toda cheia de nomes com significado. Uma família tanto do lado do pai, quanto do lado da mãe, uma família de ascendência italiana. E com muitas histórias, assim, principalmente do lado paterno, pessoas engajadas, pessoas que tiveram lutas políticas, histórias que alguns lados da família até abafavam, que aí você vai descobrindo. E eu acho uma história fantástica e maravilhosa. Então, é interessante observar que o pai do meu pai era uma pessoa de pouca escolaridade, bem pouca. Meu avô se chamava Polinice Sbrana. É um nome grego, a família toda dele tinha, os irmãos tinham nomes a partir das tragédias Gregas. Mas ele era um cara muito inteligente, ele fundou o primeiro grupo de teatro de Sorocaba, fundou o clube de filatelia, era poeta, boêmio, era um cara bem interessante assim. Fora da caixinha, vamos dizer assim, para uma época.
3:55
P1 - E a sua avó?
R - A minha avó, a família dela que era de Jaú, dessa minha avó, a mãe do meu pai, se chamava Dina Bertoldi Sbrana. Ela era de uma família de posses, vamos dizer assim, de Jaú. É uma família que o pai dela imigrou para o Brasil, não por uma necessidade, ele veio porque ele quis, ele tinha recursos financeiros, então ele tinha uma fazenda de café, ele tinha fábrica de carroça, olaria e tal. Depois tudo acabou, muito filho, aquela história de que o avô rico, filho nobre, neto pobre. Mais ou menos isso que aconteceu. Mas ele era, esse meu bisavô, Atílio Bertoldi, era muito querido por todos os netos, então a imagem era de uma pessoa muito amável, muito amorosa.
P1 - Você o conheceu?
R - Não o conheci! Não o conheci! Só a minha avó mesmo, os pais dela eu não conheci. A minha avó paterna conheci, o meu avô paterno, mas também não conheci os pais dele, já tinham falecido quando eu nasci.
5:22
P1 - E que lembranças você tem? Alguma história que tenha te marcado com esse seu avô?
R - O meu avô com seus 60 e poucos, ou tantos anos, se não me engano ele faleceu por volta de 66, 67, então eu devia ter uns 7 anos, por aí, 68, por aí. Eu me lembro de quando ele faleceu, mas não lembro o ano exatamente. Eu me lembro dele andando em casa de pijama, aqueles pijaminhas azuizinhos, listradinhos, eu lembro dele assim. Eu lembro dele ser aquele avô que a minha mãe falava: “Não, não pode levar as meninas!” Na época era só eu e a minha irmã, meu irmão não tinha nascido ainda. “Não pode dar sorvete para as meninas!” Ele saia com a gente e dava sorvete e falava: “Não fale para a sua mãe.” Então, ele era esse avô também muito amoroso, eu me lembro de sentar no colo dele e ele falar que eu era a morena dos olhos tristes. Eu acho que eu nunca fui triste, mas eu acho que eu tinha um olhar melancólico, eu reconheço isso nas fotos de infância. Era um olhar mais melancólico. Então, ele falava que eu era a namorada dele, era a morena dos olhos tristes. Mas isso não me entristecia não, eu gostava daquilo, eu achava bonito.
6:40
P1 - E a sua avó?
R - A minha avó, eu acho que era uma pessoa menos amorosa, assim, era simpática, era sorridente, mas ela menos afetiva que meu avô, então eu tenho mais recordações, principalmente pequena, na época em que os dois eram vivos, eu tenho mais recordações de afetividade dele do que dela. Mas ela foi uma boa avó também, ela faleceu eu já era adulta, já tinha filhos. Mas foi uma relação diferente, foi uma relação bem diferente.
7:16
P1 - Como era a relação do seu pai com os seus avós?
R - Olha, eu acho que a minha avó foi uma mãe italiana mais dominadora, embora ela não fosse italiana de nascimento, era filha de italianos, então uma cultura bem presente, essa cultura italiana, acho que ela foi sempre aquela mãe que quis ditar as coisas, então isso causava, eu acho que, alguns atritos, alguns momentos mais complexos assim, era uma pessoa mais impositiva, nesse sentido, sobre a sua vontade em relação aos filhos. Mas eu acho que tinha uma relação de carinho, era uma relação de carinho, ela frequentava muito a minha casa, passava férias na minha casa, então a gente sempre… a gente passava férias na casa dela, então na época de férias escolares, quando a gente já não morava mais em Sorocaba, nós passávamos as férias na casa da minha avó, então todos os primos se reuniam, era muito gostoso. Essas memórias são muito boas, eu não tenho memórias ruins, apesar de… Essa história ela foi vindo, conforme a gente vai crescendo a gente vai sabendo de histórias de família, de coisas que… de conflitos, de diferenças de pensamento. A gente vai compreendendo o ser humano também nas suas imperfeições.
8:41
P1 - Como é que era essa casa? Vocês ficavam lá, os primos se reuniam na casa dela?
R - No caso, eu e meus irmãos e meus pais, porque os outros primos moravam em Sorocaba. Mas era o Natal lá, o Ano Novo lá, então na minha memória era uma casa enorme, se eu voltar lá hoje talvez eu não reconheça essa casa como uma casa enorme, mas era uma casa grande, que tinha um quintal cheio de árvores frutíferas, então tinha pera, tinha maçã, tinha uva, tinha figo, tinha abacate, eu me lembro de todas essas frutas lá, manga. Então, era um quintal grande, na minha memória infantil era um imenso pomar, que não deve ser tão imenso mais assim, mas a casa ainda existe.
9:27
P1 - E como eram as festas que tinham lá? Natal você citou que acontecia lá.
R - Principalmente Natal. Principalmente a nossa ida para lá, de ficar um tempo lá era nas férias escolares de final de ano, eventualmente em alguma outra situação, mas era mais… férias de julho também, mas principalmente o final do ano, o Natal era uma coisa muito esperada, a reunião dos primos, aquela coisa da árvore, dos presentes, era tudo… as comidas de Natal, então era um Natal bem tradicional, com pernil, o pernil era sempre uma coisa presente, a castanha portuguesa, o panetone que a minha avó fazia, as massas que ela fazia. Então, tinha muita essa coisa de uma mesa farta, de uma inspiração mais europeia de comida também, mas era muito bom, era gostoso.
10:25
P1 - E quais as brincadeira que vocês tinham? Você e seus irmãos, primos, do que vocês brincavam?
R - A gente ficava no quintal, a gente ficava muito naquele quintal, todas as férias a gente tentava fazer uma piscina no quintal, cavava, cavava, cavava, enchia de água, voltava nas outras férias, fazia outra piscina. E ficava ali brincando, eu acho que eu sou de uma geração, eu tenho 64 anos, eu sou de uma geração que viveu… a infância era isso, era rua, era o quintal, então as brincadeiras se davam a partir dessas coisas, não existia ter um monte de brinquedos, a gente brincava entre a gente, construía, tentava construir uma casa, era isso. Subia em árvore, uma vez eu subi nessa mangueira do quintal da casa da minha avó e comi tanta manga que eu tive um problema sério, eu tive 18 furúnculos no corpo, de tanta manga que eu comi, eu passei o dia lá comendo manga. Então, era isso, era uma… subir em árvore, assim. A preocupação dos pais com segurança, com… era outra, era normal uma criança subir numa árvore, era normal uma criança ficar na terra, era isso, a gente tinha essas brincadeiras mais tradicionais da época mesmo e brincar ali assim, eram primos que tinham quatro primos, eu, minha irmã e mais dois primos mais ou menos na mesma idade e mais três menores, ficavam esses dois grupos, os maiores ali juntos, os menores também, meio que formando dois grupos que, às vezes, interagiam, às vezes, não, dependia da brincadeira.
12:26
P1 - E você convivia mais com a família do seu pai ou da sua mãe?
R - Um pouco mais com a família do meu pai, um pouco menos, embora a família da minha mãe também fosse de Sorocaba, mas essas festas a gente acabava passando mais com a família do meu pai. Mas a gente estava sempre em contato com a família da minha mãe também, que era uma família menor.
12:46
P1 - O nome da sua mãe?
R - Minha mãe se chama Terezinha Cortez Sbrana.
P1 - Ela é viva ainda?
R - Ela é viva. Meu pai falecido, mas a minha mãe é viva.
P1 - Você conheceu os seus avós maternos?
R - Não conheci o meu avô materno, porque ele faleceu quando a minha mãe tinha quatro anos. Ele era italiano e ele se casou com uma mulher negra, que era a mãe da minha mãe, então ele era enfermeiro e depois quando a minha avó ficou viúva, ela também, ela veio para São Paulo, morava em Sorocaba, estudou e também trabalhou como enfermeira, quando enviuvou. Foi uma história assim, minha mãe mesmo conviveu muito pouco com o pai, tem poucas lembranças, por ele ter falecido tão jovem, ele tinha 39 anos. Mas eu fui recuperando tanto do lado paterno, quanto do lado materno, depois de um tempo eu fui recuperando memórias, histórias, eu fui ‘cavocando’ coisas e achando muita coisa. Então do meu avô materno, que se chamava Giuseppe Angelo Cortez, na verdade o sobrenome é Cortoze, depois que a gente vai descobrindo, porque tudo era aportuguesado, tudo ficava diferente. Então ele era um enfermeiro e a história que eu sei dele é que ele era um anarquista e era um enfermeiro que trabalhava na Santa Casa de Sorocaba e era tão considerado que os médicos muitas vezes deixavam as coisas na mão dele para ele resolver, inclusive cirurgias. E as histórias, algumas histórias que eu resgatei, ele era um cara que atendia muitas pessoas que não podiam pagar, que não tinham condições, ele subversivamente atendia essas pessoas. Então quando ele faleceu teve uma certa comoção assim, bem grande, em relação às pessoas que o conheciam e tal. Eu vou fazer uma ligação que eu acho muito interessante, que eu também fui descobrir depois. Que o meu avô era anarquista, eu descobri muito tempo depois, assim, indo atrás de um primo da minha mãe que ela nunca mais tinha visto, eu localizei esse primo, a gente foi visitá-lo e aí ele trouxe mais histórias do meu avô materno. E aí, ele morava em Sorocaba e algumas pessoas da família do meu avô paterno também eram anarquistas, então tanto da família Sbrana, quanto da família Cortez, tinham pessoas politicamente bastante ativas. E na minha, digamos assim, imaginação, eu fico pensando que, provavelmente, eles se conheceram, muito provavelmente, sem saber que um dia teriam os mesmos netos. Porque era um grupo que se reunia num determinado local em Sorocaba, até de onde é hoje o Senac de Sorocaba. São muitas relações loucas assim. Por que eu acho isso? Não é da minha cabeça, é porque eu vi um artigo que uma pessoa me mandou sobre as famílias de anarquistas de Sorocaba e tava lá família Corteze e família Sbrana. E aí, eu mostrei para minha mãe e ela falou assim: “Nossa, esse aqui…” Agora eu não lembro sobrenome. “Eu lembro dele, porque eu brincava com as filhas dele. O nome delas era tal e tal.” E era mesmo. Então, assim, é uma suposição minha, uma imaginação que pode ter acontecido de verdade. Só que o meu avô faleceu, o materno, muito cedo.
17:04
P1 - Nessa infância sua, se falava de política na sua casa?
R - Meu pai sim! Meu pai sempre foi um cara de posições, eu vou dizer, progressista. Então, ele sempre se colocou, ele sempre deu essa noção pra gente, ele falava da ditadura. Eu morava em Santos, nessa época. Nessa época da ditadura militar, Santos era uma cidade muito politizada, por toda questão do porto, das categorias profissionais de lá, então era uma cidade bem interessante desse ponto de vista. E meu pai comentava as coisas com a gente.
17:44
P1 - O que ele comentava?
R - Primeiro, nessa época, eu lembro de ouvir ele falar com a minha mãe: “Cuidado para sair, para não sair e tal.” E depois, conforme eu ficando adolescente e a gente vai… essa conversa é assim, era uma conversa bem natural, assim, eu não sei nem te explicar, porque não é que a gente marcava para conversar disso, mas eu acho que isso surgir de forma natural pelas coisas que ele lia, a minha mãe sempre foi uma uma leitora também, então a gente sempre teve jornal diário assinado em casa. Eu me lembro, desde a época que eu morava, eu nasci em Sorocaba, com cinco anos eu mudei para Santos, por conta do trabalho do meu pai. Então, eu me lembro, em Sorocaba, de pegar o suplemento Folhinha de São Paulo, que já existia e pegar aquilo para olhar, eram as historinhas do Horácio, do personagem do Maurício de Souza, que vinham. Então, aquilo fez parte inclusive da minha alfabetização, do meu interesse pela leitura, ter o jornal diário em casa. Então, essas coisas, elas eram… não sei, surgiam naturalmente mesmo. A família do meu pai, eu tinha uma tia, irmã dele que já faleceu, que era uma pessoa muito arrojada pra época dela, então as conversas que eles tinham também faziam parte desse ambiente que eu acho que a gente teve acesso.
19:28
P1- Mas você tinha uma noção, mais velha, que vivia uma ditadura militar?
R - Conversando com o meu pai, com a minha mãe, sim!
P1 - O que que era uma ditadura para você naquela época?
R - Pra mim, ditadura era aquela imposição de um regime totalitário, que matou muita gente.
P1 - Mas você sabia disso na época?
R - Na época propriamente, eu era pequena, não tinha essa consciência. Eu fui ter essa consciência, digamos, a partir dos meus 14 anos, mais, 13 anos, quando a gente ainda estava na ditadura. E depois, na minha entrada na faculdade, foi final da ditadura, mas onde a gente ainda tinha esses resquícios, teve a invasão da PUC, eu me lembro muito bem disso. Eu fui nos Diretas Já, eu estava grávida, eu fui de barrigão, isso foi em janeiro, eu tive uma filha em maio, então eu fui lá na movimentação pelas Diretas Já. Então, isso pra mim era uma coisa natural, olhar o mundo de forma política, olhar o mundo como uma cidadã que queria entender esse mundo e atuar nesse mundo. Eu sempre me vi assim, não foi uma coisa que… foi uma coisa meio natural mesmo.
20:52
P1 - Voltando um pouquinho. Na sua infância, que dizer, você foi logo com quatro anos para Santos?
R - Cinco, eu acho que com cinco para seis.
P1 - Você morou quanto tempo em Santos?
R - Eu morei duas vezes em Santos, eu fui nessa época para Santos e morei até o final de 1970, aí o meu pai foi transferido para Curitiba, e ficamos em Curitiba de dezembro de 1970, até mais ou menos fevereiro de 1974, quando a gente voltou para Santos. Aí, voltamos para Santos e eu fiquei em Santos até terminar a faculdade, terminei a faculdade em 1982, em 1983 eu arrumei um trabalho em São Paulo, vim para São Paulo, depois eu e meu marido resolvemos morar juntos, depois casamos e eu fiquei. Então, a cidade que eu mais morei, atualmente, foi São Paulo mesmo, mas eu tive passagem, Sorocaba, Santos duas vezes e Curitiba. Eu acho que isso foi muito legal, morar em várias cidades.
21:50
P1 - Que lembrança você tem de Sorocaba? Você era pequena.
R - Mas eu sempre fui muito, voltei muito, assim. Uma lembrança feliz de Infância, com encontros familiares, com a ida na casa dos tios, tanto tio, meu tio paterno, quanto meu tio materno, era gostoso ir à casa da família, rever, brincar. Enfim, era um espaço amoroso, gostoso, de boas recordações. Depois de adulta a minha leitura foi se transformando um pouco, porque eu acho que eu me distanciei um pouco do ponto de vista, de visão de mundo, da visão da maior parte dos meus parentes, talvez. Acho que tem uma visão mais de interior, um pouco mais conservadora e eu não sou essa pessoa, então isso acabou até, de alguma forma, distanciando um pouco de alguns primos e tal, por essa questão. Mas eu continuo tendo contato familiar e tudo mais.
22:58
P1 - E quando você mudou para Santos, como era Santos naquela época?
R - Maravilhosa! Uma cidade… Eu fui morar em apartamento, eu nunca tinha morado em apartamento. Mas Santos era uma cidade onde as crianças brincavam na rua, a gente brincava na rua, fim de semana ia pra praia. Fim de semana ia para praia porque o pai trabalhava, a mãe ficava com as crianças, o dia de ir para a praia era sábado, era domingo. Mas a gente passava o dia brincando, brincando na rua, podia brincar na rua à vontade, saía toda criançada do prédio pra brincar na rua, pular corda. Você perguntou o que que fazia. Jogava queimada na rua, pulava corda, jogava bola, ficava sentada no muro do prédio fazendo nada, era assim, era uma…
23:48
P1 - Que lugar de Santos você morou?
R - Na Rua Pedro Américo, número, se não me engano, 148, não me lembro agora o número.
P1 - Fica aonde?
R - Fica no bairro Campo Grande, em frente tinha uma loja da Kibon, tipo uma distribuidora da Kibon. Então, também era muito legal porque os sorvete que não davam certo, não é que não davam certo, não passavam no controle de qualidade, ficava meio amassado, chegava uma hora do dia, eles chamavam a criançada e davam os picolés naquela época. Então, era muito legal! Uma coisa muito marcante da Infância em Santos, muito marcante, eram as festas de Cosme e Damião, então eu tive um prazer de viver as festas, quando as pessoas arrumavam mesas de doces nas suas casas e você ia de casa em casa festejar Cosme e Damião. E era uma coisa linda, ninguém tinha medo de entrar na casa do outro e comer um doce, era uma coisa muito legal, muito legal, uma tradição que eu acho que tá mais ligado a Umbanda, provavelmente, as tradições da religiosidade de origem africana, mas não só, mas muito. E Santos tinha isso, Santos tinha isso muito forte. Eu sinto pena das crianças não terem isso, era maravilhoso. E Cosme e Damião são protetores das crianças. E a gente não tinha nenhum envolvimento com a cultura, com a religiosidade da Umbanda, tinha assim, sabia, não tinha nenhum problema com relação a isso. Mas era uma coisa de todos desfrutarem, é bem interessante.
25:49
P1 - E tinha alguma ligação religiosa na sua família?
R - A minha família, meu pai se dizia ateu, mas de família católica, a minha família, a família da minha mãe era católica, mas a mãe dela, que era negra, também tinha uma ligação com a religiosidade afro. Mas eu fui batizada, crismada, fiz a primeira comunhão, ia na missa com a minha avó.
P1 - Com a sua avó negra?
R - É! Ela ia na missa todo domingo.
26:21
P1 - E tinha alguma questão que você sentia de alguma maneira preconceito, alguma diferença…
R - Com a minha avó?
P1 - É!
R - Total, total! Senti isso a vida inteira, só que eu não tinha consciência. Sinto muito não ter tido consciência nessa época, talvez eu tivesse agido com ela de outra forma.
P1 - Algum fato?
R - Vários! As pessoas perguntavam se ela era nossa empregada. Só isso já é…
P1 - Alguma situação que você estava com ela?
R - Sim! Não, eu não estava com ela, mas me perguntaram. Mas era visível, dentro da família mesmo. Eu nunca vi ser destratada, mas é perceptível, o racismo é estrutural e naquela época era pior. E era pior porque não se falava dele, não se falava dele. Então, eu imagino hoje o quanto essa minha avó sofreu, ficando viúva aos 39 anos, ela tinha mais ou menos a mesma idade do meu avô, com dois filhos, um filho adolescente e a minha mãe pequena, ela tinha perdido uma filha. A minha mãe me disse que a família do meu avô não queria que ele se casasse com ela. Então, eu também na minha imaginação e na minha ilusão, eu fico imaginando que ele gostava dela e eu acho isso bom, que tenha sido uma relação de amor, porque para ele ir contra a família, ele tinha um irmão, uma irmã e a mãe. O pai dele já tinha morrido, do meu avô materno. Mas segundo a minha mãe, principalmente o irmão dele, que também era enfermeiro, trabalhava na Santa Casa de Campinas, era contra esse casamento, então minha mãe disse que não gostava muito desse tio não. Mas então, a minha avó foi uma mulher muito fibra, muita fibra, discretíssima, fez a vida dela, adorava Getúlio Vargas, ela e as irmãs, porque elas tiveram uma assistência, se aposentaram, ela tinha aposentadoria dela, ela tinha uma casa própria, então ela fez a vida dela apesar de. E numa época muito mais difícil do que a época de hoje, para uma mulher negra.
28:54
P1 - Como que é a imagem dela?
R - Fisicamente?
P1 - É!
R - Ela era uma pessoa não muito alta, mais baixinha assim, eu acho que ela tinha menos… 1,60m no máximo, 1,58m, magra, o cabelo dela era um cabelo bem ondulado, comprido, ela tinha o cabelo comprido, mas ela vivia, ela fazia uma trança e um coquezinho, ela ficava com esse penteado 100% do tempo. E eu me lembro muito dela, porque ela morou muitos anos com a gente, ela morou muitos anos com a gente. E eu me lembro dela à noite, escovando, escovando o cabelo antes de dormir, essa é uma imagem bem forte dela. Ela era uma pessoa mais reservada, eu acho que a vida fez isso com ela também, mas muito disposta a ajudar sempre, uma pessoa que esteve na vida a serviço do outro.
29:52
P1 - E ela nunca colocou essa situação de preconceito em relação a ela?
R - Essa conversa não existia, essa conversa ela não tinha espaço para existir. Hoje tem! Não existia esse espaço, porque a sociedade dizia que preto era feio, que preta era feia, era isso que se falava, as mulheres não conseguiam dizer que achava um homem negro bonito, o preto era feio, é uma coisa ultrajante, é uma coisa chocante, mas era assim. Era assim até pouco tempo atrás e eu me lembro muito bem disso, não só de pequena, de adolescente. Eu namorei um rapaz negro, uma época, e eu me lembro dos olhares das pessoas, dos comentários. E não existia… existia o reconhecimento da beleza da mulher negra pela sua sensualidade, que foi muito explorada. E o homem negro era um homem feio.
30:59
P1 - Que comentários faziam com você?
R - Eu acho que eu não me lembro exatamente de alguma palavra, mas assim, são olhares, são perguntas, “Ah, o que que ele faz? O que ele estudou?” É esse tipo de coisa, que quando eu relembro… Hoje, eu tenho uma consciência que na época não tinha mesmo, eu tinha 15 anos quando eu namorei esse rapaz, que tinha 24 na época.
P1 - Em Santos?
R - Em Santos! Ele era irmão de uma amiga minha. Eu achava ele lindo, ele era muito bonito, ele tinha todo biotipo negro, mas ele tinha olhos verdes, então era uma coisa assim, assim, que me encantava muito, tenho uma foto 3x4 dele guardada até hoje. E é isso, eu acho que foi uma época assim, que eu não tinha essa consciência, mas a memória me faz olhar e entender tudo o que se passava.
32:11
P1 - Com quantos anos você entrou na escola?
R - Eu fiz… Quando eu morava em Sorocaba, um tipo de jardim de infância, que era na casa de uma pessoa, que fazia Jardim da Infância, chamava Aquário Dourado, Dona Deia, depois fui morar em Santos, eu tenho foto disso, eu e minha irmã, minha irmã é um ano mais velha que eu. Mas foi uma coisa assim, que não era nem muito usual, na época, depois com seis para sete anos, eu entrei no primeiro ano, como era o regular e fui estudar numa escola pública, da qual eu só tenho boas memórias. Então, eu me lembro do uniforme que eu usava, eu me lembro da biblioteca da escola, a gente toda semana pegava livro pra ler, me lembro muito bem, me lembro dos livros, do tamanho do livro, era um livro grande assim, a maioria dos livros. Eu me lembro que era uma escola pequena, na minha cabeça ela era grande, eu voltei nela depois, falei: “Gente, jura que era isso aqui?” Aquele lugar que eu passava a hora da do intervalo lá e parecia tudo tão grande, a cantina onde a gente recebia uma merenda que eu detestava, era a única coisa ruim da escola, era o que serviam de alimentação, que eu não gostava não, era uma farinha láctea, eu achava aquilo um horror, café com leite, café com leite eu tomava. Mas era uma escola que tinha espaço para receber, eu não me lembro qual era a regularidade, mas recebia médico e dentista, tinha uma equipe odontológica completa lá, então os pais não precisavam se preocupar com isso. Isso era uma escola pública, um grupo escolar, que tinha primeira a quarta série. Minha mãe mora ainda perto dessa escola, passou muito na frente, ali.
34:10
P1 - Qual é o nome da escola?
R - Grupo escolar Barão do Rio Branco, grupo escolar Municipal Barão…
P1 - Ficava perto da sua casa?
R - Ficava. Quer ver, um, dois, três, quatro, uns cinco quarteirões.
P1 - E seus irmãos?... Você tem uma irmã?
R - Uma irmã mais velha um ano e um irmão seis anos mais novo.
P1 - E a sua irmã estudava nessa escola?
R - Estudava também, íamos juntas.
P1 - Como vocês iam?
R - A pé.
P1 - A pé? Sua mãe ia com vocês?
R - Minha avó levava. E depois, quando eu estava, eu acho que, no quarto ano, eu ia sozinha e a minha mãe me dava dinheiro, era perto, mas ela me dava dinheiro para pegar… tinha bonde em Santos nessa época, um bonde que passava na esquina da escola, tipo como se eu andasse dois pontos no bonde. E eu ia a pé e parava num bar da esquina e tomava um litro de tipo uma Tubaína de laranja. E até o dia que eu comecei a ter muita dor de garganta, minha mãe descobriu que eu fazia isso. Mas era isso.
35:24
P1 - E como é que foi esse período da escola?
R - Muito bom! Eu adorava a escola. Eu gostava de tudo, eu gostava de estudar, sempre gostei. A minha irmã é um ano mais velha e ela era uma aluna exemplar, então meio que eu me sentia na obrigação de continuar sendo uma aluna exemplar. Ela sempre foi um pouquinho melhor que eu, mas eu era uma ótima aluna também, tirava 9, 10, aquelas coisas. Na minha casa o estudo era uma coisa hiper valorizada. E meu pai tinha esse discurso: “É o que a gente vai deixar para vocês, estudo! É o que vai ficar de herança para vocês!” Mas eu gostava muito de estudar, eu sempre gostei, nunca foi um sacrifício não. A escola era um lugar que a gente levava a sério. Eu gostava de participar das festas, então quando as professoras perguntavam: “Quem quer participar…” Eu já levantava a mão. Nem tinha terminado a frase, se era teatro de fantoche, se era para recitar. Eu adorava! Eu sempre participava.
36:23
P1 - E tinha alguma professora, professor, que te marcou?
R - Acho que as professoras… Lembro! Dona Alice, no primeiro ano e outras… Dona Regina, do segundo ano, não tá me lembrando da do terceiro ano, que era mais senhora, aquela senhora de cabelo roxinho, usava aquela rinsagem roxinha. E a do quarto ano, a Dona Miriam, todas. Era um tipo de relação que se tinha com o professor, o professor era uma autoridade, a professora. A professora estava sempre com um saltinho, bem vestida, o cabelinho arrumado. Era uma outra realidade. Mas eram… foram boas relações, nenhuma delas assim, me trouxe nenhum tipo de circunstância ruim. Eu acho que estudar em escola pública foi excelente, primeiro porque eu tive a sorte de estar numa escola pública que eu acho que tinha qualidade, segundo de conviver com todo tipo de gente, com todo tipo de pessoa, de classes sociais e tudo mais.
37:32
P1 - Na sua casa, [trecho inaudível] seu pai ou sua mãe?
R - Ah, o meu pai, meu pai. Mas minha mãe era uma pessoa firmeza também, não era uma pessoa submissa, mas era a típica família classe média, que o pai trabalhava o dia inteiro e a mãe ficava em casa com os filhos, cozinhava e fazia roupa para os filhos e tudo mais. Mas os meus pais sempre tiveram uma relação de troca, minha mãe nunca foi uma pessoa exatamente submissa no sentido de se anular, é uma pessoa que sempre leu muito, assim, então… Mas era isso, era essa conformação mesmo, mais condizente com a época mesmo, as mulheres paravam com a sua vida para cuidar da família.
38:27
P1 - E o seu pai fazia o quê?
R - O meu pai se formou em Engenharia, ele trabalhou na COSIPA, por isso a gente foi para Santos, ele trabalhava lá na COSIPA, Companhia Siderúrgica Paulista, nem sei como chama a COSIPA hoje, se ainda tem. Mas era uma das empresas fortes de Cubatão, na área de siderurgia. E depois ele prestou um concurso para trabalhar na Receita Federal, e foi aí que a gente mudou para Curitiba. Ele se aposentou nessa frente aí, de funcionalismo.
39:10
P1 - Como era Cubatão naquela época?
R - Cubatão, dessa época de criança eu não tenho muita memória, eu tenho memória de Cubatão da segunda vez que eu fui para Santos, aí adolescente e na faculdade, péssimo, era a cidade mais poluída do mundo, horrível, teve esse título, o pior lugar do mundo foi Cubatão. Então, muito triste isso. Hoje não é mais, né? Então teve uma reversão aí.
39:37
P1 - Com quantos anos você mudou de Santos para Curitiba?
R - Com 11, 1970, eu tinha 11 anos.
P1 - E como foi pra você mudar de Santos para Curitiba?
R - Assim, a gente foi para um lugar muito diferente, que tinha frio e a gente não tinha nem roupa de frio, a gente mudou em dezembro e tava um frio imenso. Mas a gente conseguiu se adaptar bem a cidade, Curitiba… Eu peguei uma transição de Curitiba, quando a gente mudou, foi quando o Jaime Lerner entrou pela primeira vez na prefeitura e ele fez uma mudança urbanística muito forte na cidade. Então, eu me lembro da Curitiba quando eu cheguei, que tinha uma rodoviária que parecia uma rodoviária de uma cidade interiorana, do interior. E de Curitiba depois, como ficou com todas as transformações que o Jaime Lerner promoveu, da urbanização da cidade. Então eu peguei um período expansivo interessante da cidade. E lá, durante um ano eu morei num apartamento, aí depois a gente foi para uma casa e nessa casa a gente morava num bairro que tinha muitos adolescentes nas outras casas, ali na vizinhança e a gente fez grandes amizades que perduram até hoje. A minha irmã casou com um amigo nosso dessa época e a gente mantém relações com a cidade, minha irmã mora em Curitiba, foi para lá, casou e foi para lá. Mas a gente tem outras amizades, ainda dessa época, que se mantiveram. Então, foi um adolescência muito legal também. Muito legal conhecer outra cultura, de estar numa outra cidade. E quando eu mudei, eu fui estudar numa escola que era considerada a melhor escola pública de Curitiba, que se chama Colégio Estadual do Paraná, imenso. Então, para mim assim, eu tive referência de escola pública, que eu acho que tudo que as escolas públicas deveriam ser. Então o Colégio Estadual do Paraná, ele era um colégio que ocupava um quarteirão inteiro, ele era um prédio de três andares, dois prédios de três andares, ele tinha quadra coberta, descoberta, piscina semiolímpica, era incrível a estrutura. Incrível!
P1 - Escola estadual com piscina?
R - Escola estadual com piscina, com quadra coberta, com quadra de atletismo, com quadra descoberta, era incrível mesmo. Então, eu estudei lá, esse tempo que eu fiquei lá e foi bem interessante.
42:36
P1 -Nessa mudança, no começo você teve algum tipo de resistência, quando seu pai falou que vocês iam mudar?
R - Eu não tinha muito não! Minha irmã teve mais, ela não queria mudar, não queria muito. Eu não tinha muita noção não, tinha muita noção não. Eu só ouvia falar, a gente vai ter que mudar, e mudou! Assim, acho que na minha cabeça…
P1 - Qual foi a primeira impressão que você teve quando viu Curitiba?
R - Bonita, no sentido… eu lembro da rodoviária interiorana, mas depois mudou. Mas a cidade em si, eu achei bonita, porque eu me lembro da primeira vez, quando a gente nem tinha mudado ainda e meu pai já estava trabalhando lá, ele levou a família para conhecer antes de mudar, então nós ficamos num pequeno hotel lá na cidade e aí a gente foi passear de carro pelos lugares bonitos da cidade. Então, fomos nos bairros onde tinha as casas mais bonitas, eram casas modernosas, era um bairro relativamente novo. E eu fiz uma coisa que nunca tinha feito na vida, ir numa lanchonete que tinha, que era um drive thru, que nem existia em Santos. Então, umas coisas assim, eu achei bonita.
43:51
P1 - Você ficou quanto tempo lá?
R - Mudei… de dezembro de 1970, a fevereiro de 1974. Não foi muito tempo, mas foi intenso. Eu saí quando estava para completar 15 anos.
44:04
P1 - E aí, seu pai voltou para Santos?
R - Para Santos.
P1 - Por quê?
R - Porque Curitiba é uma cidade difícil em relação a frio, meu pai, quando a gente morava em Sorocaba, ele teve um acidente de carro, ele teve várias fraturas, inclusive da bacia e ele sentia muitas dores no frio de Curitiba, aí ele quis voltar, quis sair de um lugar tão frio.
P1 - Mas ele conseguiu ser transferido pelo próprio trabalho?
R - Sim, sim, foi transferido para Santos.
P1 - Da Receita?
R - Da Receita, sim!
44:32
P1 - E aí, vocês voltaram para qual lugar de Santos?
R - Nós voltamos… a gente morava perto do José Menino, ali.
P1 - Era de vocês a casa?
R - Não, não era, era uma casa alugada, era um apartamento. Não, não, era em outro bairro, em outro bairro. Era um lugar que eu adorava, perto do Orquidário de Santos, super gostoso, super gostoso.
P1 - E você reencontrou os seus amigos?
R - Alguns!
P1 - Como é que foi?
R - Alguns, porque eu voltei para a mesma escola, que eu tinha estudado. Que na verdade quando eu mudei, eu estava no primeiro ano do ginásio, fiz o primeiro ano, aí fui para Curitiba e aí fiz segunda, terceira e quarta série e voltei pra Santos no colegial, que seria o colegial, ensino médio hoje. Então algumas pessoas estavam na mesma classe que eu, então eu retomei algumas amizades, fiz outras. Mas sim, eu tive a sorte de encontrar alguns que eu já conhecia.
45:37
P1 - E o que mudou na sua vida dessa passagem da oitava série para o primeiro colegial?
R - O que mudou?
P1 - Sair do ensino fundamental e ir para o médio?
R - Ah, eu acho que eu me tornei menos CDF, que eu sempre fui muito CDF, muito querendo… Mas, assim, e também começa uma fase da adolescência, de namoro, fui muito namoradeira. E Santos é uma cidade que eu acho que traz um ar mais de liberdade também. Era gostoso, essa adolescência em Santos, adolescência começou de um jeito em Curitiba, fui pra Santos. E praia, praia, sábado e domingo chega às 10:00 e fica até às 4:00 na praia, coisa maravilhosa, sem filtro solar, sem nada, no máximo um óleo Johnson e só. Então, sem boné, sem nada, era uma delícia!
26:35
P1 - Além da praia que outros lugares você frenquentava em Santos na adolescência?
R - Domingueiras, ia dançar nas domingueiras, com uma amiga que eu tenho contato até hoje, ela se chama Nadir. E quando eu tava com 15 para 16 anos, eu comecei a fazer parte de um grupo, que era um grupo de adolescentes que se autogeria, era um grupo que chamava Movimento de Ação Secundarista, que tinha sido criado, meio por um pessoal mais conservador, mas que Monsenhor, na época, Monsenhor Pestana, ele ajudou a formar aquele grupo de adolescentes, pra fazerem ação social. Só que esse grupo se desvinculou desse Monsenhor e da própria questão e ele foi fazendo uma autogestão. Então, esse grupo se reunia todo domingo numa sala de aula… Isso é impensável hoje. Numa sala de aula de uma escola particular, que cedia essa sala e a gente tinha estatuto próprio registrado, diretoria, isso e aquilo. E assim, a gente fazia jornalzinho mimeografado e a gente saía aos domingos recolhendo roupa e jornal. E nas férias a gente ia sem pai, sem adulto, a gente ia para algum lugar, eu só fiz essa viagem uma vez, carente dentro do Estado, levar isso e ajudar com noções de higiene. Enfim, esse jornal a gente vendia pra arrecadar dinheiro. A gente chegou a percorrer as ruas de Santos em cima de um carro de bombeiro, indo nas casas pedindo jornal e roupa. E os bombeiros emprestavam. E o exército emprestava o caminhão para os adolescentes viajarem. Não é uma coisa impensável hoje? Foi uma experiência incrível. A viagem, a única que meu pai me deixou participar, precisou ir um monte de gente convencer meu pai de que ia ser tudo certo, que era seguro. Porque você vai… um bando de adolescente sozinho, né. Era uma ONG, uma ONG formada por adolescentes autônomos. E eu fui pra para região do Vale do Ribeira, uma região que ainda hoje é uma das regiões mais pobres do Estado de São Paulo e lá era uma região, naquela época, isso deve ter sido 1977, que eu fui, era bem, bem pobre mesmo. E foi interessante porque numa preparação pra viagem, os mais velhos davam uma certa preparação pros mais novos. Uma das pessoas que tinha feito parte ativamente do MAS, ela veio, vamos tentar dar algumas noções de alfabetização para as pessoas. Furado, porque a gente não tinha preparação. Algumas coisas eram uma intenção…
P1 - Como era o nome do movimento?
R - Movimento de Ação Secundarista, MAS. Mas foi a primeira vez que eu ouvi falar de Paulo Freire, porque essa moça, Sidônia é o nome dela, ela veio tentar colocar pra gente alguns pressupostos da alfabetização de adultos a partir de Paulo Freire. Eu não entendi nada, eu só entendi que aquele nome era importante, eu falei assim: “O que que é isso aí?!” Depois ao longo da vida eu fui entendendo, até me tornar uma discípula de carteirinha de Paulo Freire.
50:31
P1 - Nessa época que você estava no MAS de Santos, tinha alguma outra ação parecida em algum outro lugar?
R - De Santos. Não sei, talvez tenha tido, mas assim, era de Santos, era uma coisa, eu acho que até teve, mas eu não sei se outros lugares teve um progresso, em Santos existiu durante anos e anos.
P1 - Nessa época… Qual foi a sua primeira paixão?
R - Minha primeira paixão foi aos 13 anos em Curitiba, tive meu namoradinho, que é meu amigo até hoje, meu marido conhece, ele é casado, ele já se hospedou na minha casa, com os filhos, ele se chama Sérgio. Então, foi meu primeiro namorado, lá em Curitiba, então comecei a namorar cedo. Depois de Santos eu continuei a namorar vários.
51:18
P1 - E nesse período aí do MAS, você pensava assim, aquela coisa quando é criança, quando eu crescer eu quero ser tal?
R - Não! Eu não tinha muita noção do que eu queria ser, mas eu assim, em alguns momentos eu achava que eu tinha alguma habilidade para trabalhar com comunicação, em outras vezes eu achava que eu me daria bem como advogada, em algum tempo eu pensei em fazer medicina, porque eu tenho epilepsia e foi um pouco por causa disso. Até que eu decidi fazer arquitetura, um pouco influenciada também pelo meu pai, que era engenheiro. Então, foi meio isso, eu achava assim, que eu tinha, que podia ser várias coisas, eu não…
P1 - E quando chegou o momento de decidir?
R - Eu decidi pela arquitetura talvez pelo lado mais artístico, porque eu achava que eu tinha uma facilidade para desenho, para coisas geométricas, eu adorava geometria e construção no período de escola, assim, era uma das matérias que eu mais gostava, adorava usar esquadro, compasso, adorava, adorava.
52:31
P1 - Aí você fez cursinho?
R - Fiz um ano de cursinho. Terminei…
P1 - Mas tinha alguma expectativa dos seus pais por alguma coisa?
R - Não, os filhos todos escolheram o que quiseram. Não, a expectativa deles era: estude. A minha mãe dizia assim: “Nunca dependam de homem nenhum, tenham as suas profissões.” Era a fala dela pra mim e para minha irmã. “Sejam independentes.” Minha irmã foi fazer odontologia, eu fui para arquitetura, meu irmão fez outras faculdades. Então, não teve nenhuma, nenhuma, nenhum direcionamento assim, deles não.
P1 - E como é que foi o cursinho?
R - Eu fiz um ano de cursinho, foi uma delícia.
P1 - Que cursinho você fez?
R - O curso chamava, Decisão, em Santos. E foi um momento de abertura política para mim, na minha cabeça, porque os professores do cursinho eram muito diferentes dos professores da escola, eu comecei a sacar coisas e sacar o momento político, que era o final da ditadura ali, ainda tava na ditadura, mas já caminhando pra movimentos, anistia, tudo isso. Então, eu ouvia as histórias, os professores eram muito politizados, então isso já foi uma coisa bem marcante, bem marcante mesmo. E eu passei até contato no cursinho com algumas pessoas, adolescentes, colegas, que tinham também essa visão mais politizada e isso foi bem importante.
54:10
P1 - E aí, você prestou para arquitetura?
R - Arquitetura, entrei lá em Santos, não era uma… não tinha essa perspectiva de fazer faculdade fora, porque os meus pais não tinham nem grana pra isso, era uma vida média, uma vida média, uma vida sem nenhuma privação, mas era uma vida normal, de uma família classe média.
54:38
P1 - Até então você não tinha trabalhado, não tinha precisado trabalhar?
R - Não tinha precisado trabalhar porque pra minha mãe era uma questão de honra, ela falava: “Meus filhos não vão ser balconistas.” Ela tinha essas coisas, sabe? “Não, vocês vão estudar. Enquanto vocês não precisarem trabalhar, podem só estudar, é isso que eu quero. Quero que vocês estudem, quero que vocês se formem.” Ela tinha muito isso assim, muito forte. Então…
P1 - Que faculdade você fez?
R - Fiz Arquitetura e Urbanismo em Santos.
P1 - Não, na época qual era a faculdade?
R - A de Arquitetura e Urbanismo de Santos. Hoje ela é da… Católica de Santos. Universidade Católica, era a única faculdade de Santos de arquitetura, era uma referência, todos os professores eram… Acho que sim, eu não sei como é que está, pra falar a verdade eu não acompanho muito. Mas naquela época, as faculdades de arquitetura, as melhores eram a FAU, obviamente e a de Santos. E os professores de Santos, assim, 90% vinham da FAU e dava aula lá, então também foi um ambiente de muita, muita expansão sobre visão política, visão de mundo, convivência com diferente, foi muito legal! Era uma faculdade de cinco anos, a gente estudava da uma da tarde às sete horas da noite, então era intenso. E o prédio da faculdade não tinha porta e se a gente queria ficar madrugada inteira fazendo trabalho, a gente ficava. Então, era uma coisa que só tinha lá, só lá era assim, do que eu conhecia. Essa liberdade, então tinha consumo de droga, tinha gente careta, tinha tudo. Tinha gente artista, o Bellotto estudava lá. Teve outros caras ali artistas, que foram lá, que fizeram show lá. Então, era uma faculdade… Porque na época assim, não tinha faculdade de design, faculdade disso e daquilo, eram poucas, ou você ia para artes plásticas, ou para arquitetura, se você queria uma coisa um pouco fora das tradicionais, engenharia, medicina, direito, ou alguma coisa mais para filosofia, psicologia. Então era uma alta concentração de gente esquisita.
57:05
P1 - E teve um professor que te marcou, ou matéria que você gostava mais?
R - Matéria, urbanismo, eu acho que urbanismo, foi a matéria que mais me influenciou, que eu gostava, pensar a cidade, gostava muito.
P1 - E teve um professora marcante?
R - Não teve um, eu acho que todos foram. A matéria em si pra mim foi marcante, a matéria em si. Acho que todos os professores contribuíram muito.
P1 - O que ela contribui para o seu pensamento da cidade?
R - Olha, quando eu me formei no TCC, eu acabei fazendo um trabalho com uma colega de classe, o que não era usual, fazer em dupla. Mas nós, até por sugestão dela, ela veio me procurar: “Você não quer fazer comigo?” Porque eu fui procurada, ela me contando, por um vereador de Guarujá, que está procurando estudante que faça um projeto de urbanização de uma favela, você topa? Eu falei: “Topo!” Durante um ano, isso foi 1982, durante um ano a gente passou todos os finais de semana indo pra favela Maré Mansa, em Guarujá, que era uma favela do lado da Praia de Pernambuco, que a prefeitura queria tirar as pessoas de lá, obviamente colocar num lugar bem distante, como é a prática da cidade, a expulsão. E a gente foi trabalhando com a comunidade, então a gente fez um trabalho que não se fazia na época, que era novo, de um… como a gente dizia à época, planejamento participativo, a gente passou seis meses ouvindo as pessoas, junto com a associação de moradores, indo em reuniões nas ruas e conversando sobre como as pessoas gostariam que fosse aquele lugar. E aí, a gente acabou fazendo um projeto de implantação respeitando os contornos da favela, das ruas, tentando entender como aquilo poderia ser urbanizado. E na apresentação deste trabalho, foi a primeira vez que pessoas moradoras de favela entraram na faculdade de arquitetura, porque eles foram ver a nossa apresentação de trabalho. Então, foi bem marcante isso, foi bem marcante. E aí, no ano seguinte, entrou um prefeito novo que tinha assumido o compromisso, se ele fosse eleito ele faria esse projeto. Eu cheguei a trabalhar alguns meses na Prefeitura do Guarujá, mas depois engravidei e saí.
59:35
P1 - Ele te contou como foi esse trabalho, você chegou…
R - A mim e a minha amiga. E ela ficou lá, ela fez uma carreira no serviço público, em prefeituras, em várias frentes. Mas esse projeto foi feito, eu nunca mais voltei lá, eu tenho conversado muito com essa minha amiga, da gente voltar com outro olhar, ver o que foi a Maré Mansa e o que virou aquilo. Mas foi muito marcante isso, foi muito marcante essa relação.
P1 - Você engravidou?
R - Eu já estava morando em São Paulo.
1:00:08
P1 - Vamos voltar. Como é que foi o processo de você sair da faculdade?
R - Me formei, me formei em dezembro, em janeiro, não, em fevereiro, por aí, um mestre de obras da favela, falou assim: “Eu tenho um conhecido que está procurando arquiteto em São Paulo.” Lá fui eu e essa minha amiga, viemos pra São Paulo, por conta de uma indicação dessa pessoa.
P1 - Você vinha sempre para São Paulo?
R - Nada! Não tinha nenhuma relação com São Paulo, nenhuma. Já namorava o meu marido. E aí, a gente acabou arrumando um trabalho aqui, e aí começou a pensar, vamos morar aqui. Aí, eu acabei optando morar com o meu marido, ainda sem casar, a gente foi morar junto.
P1 - Ele queria vir para São Paulo também?
R - Ele estava no último ano da faculdade.
P1 - De arquitetura também?
R - De arquitetura, fazia a mesma faculdade, mas ele ainda estava estudando.
1:01:09
P1 - Qual o nome dele?
R - José Augusto Sciotti.
P1 - Aí vocês decidiram vir?
R - Eu estava trabalhando em São Paulo. “Vamos morar juntos?” “Vamos morar juntos!” Tudo sem o menor planejamento, tudo na grande paixão que a gente tinha, era uma coisa, uma química, explodia. Então, vamos morar juntos? Vamos morar juntos! A família ficou meio assim. Vamos morar juntos, ponto. Não teve muita pergunta. Mãe, o que você acha? Pai, que você acha? Eu não dava muita margem para isso e quando eles reclamavam eu falava: “Eu aprendi com vocês!” Olha a bocuda. “Vocês me fizeram ser assim.”
1:01:46
P1 - E você veio trabalhar em que aqui, aonde?
R - Embu! Numa pequena construtora. Evidentemente não deu certo. Em junho eu perdi o emprego porque a construtora fechou. E com o compromisso de ter uma casa alugada e tal. Daí um mês depois fiquei grávida. Mas aí, foi isso, lá a gente fazia os orçamentos e alguns projetos para essa pequena construtora, que até tinha uns trabalhos legais, tinha umas casas sendo feitas em Campos de Jordão, mas era uma coisa muito simples, não deu certo. Essa minha amiga voltou para o Guarujá, eu fiquei em São Paulo.
P1 - E o seu marido continuou trabalhando aqui?
R - Estagiário! Trabalhava, trabalhava.
P1 - Como vocês se sustentavam?
R - Olha, a vida era diferente, eu acho que as coisas eram diferentes, eu acho que as pessoas tinham menos necessidades, a gente não precisava custear internet, celular. Não sei, a gente se virou, a gente se virou e a gente tinha disposição para se virar. Durante o tempo que eu fiquei desempregada, porque logo em seguida a gente foi chamada para fazer o projeto da Maré Mansa, então eu ia de São Paulo para o Guarujá pra trabalhar, eu ia. Eu cheguei a fazer uma pesquisa de margarina, eu entrei no Instituto de Pesquisa, que ia fazer uma pesquisada, era distribuir margarina e voltar pra saber o que as pessoas tinham achado. Pra mim assim, não tinha tempo ruim. Também fiz, uma época fiz censo, trabalhei no censo.
1:03:28
P1 - E a sua filha nasceu você tinha quantos anos?
R - Vinte cinco, vinte cinco anos.
P1 - E o que que mudou na sua vida?
R - Tudo, tudo!
P1 - Como que é o nome dela?
R - Carolina, a mais velha, Carolina Sbrana Sciotti, ela nasceu em 15 de maio de 1984. Quando eu fiquei grávida, eu decidi que eu queria ter filho como as ‘índias’, de cócoras, tava na moda, parto leboyer, partos naturais, estava vindo uma volta disso naquela época. E eu falei: “É isso que eu quero! Eu quero ter tudo natural, eu quero ter…” Aí, foi um fuzuê na família, porque todo mundo achava que eu era louca, mas eu turrona, eu me mantive. Tinha um médico, óbvio, me acompanhado, homeopata. E eu tive a Carol numa clínica homeopata, de cócoras, sem anestesia, depois de horas e horas, uma noite inteira de trabalho de parto. Quando ela nasceu o meu pai jogou no bicho, o horário dela de nascimento, ganhou duas vezes. E ela era um bebê lindo, era um bebê grande, 4,200 kg, 54cm, então parecia um neném de 2 meses, maravilhoso. Eu me lembro de ver aquele neném deitado do meu lado e pensar, agora eu sou responsável por tudo que acontecer com essa pessoa, esse foi o sentimento, de responsabilidade. A vida muda a partir desse momento que você não está mais sozinha e tudo que você fizer vai implicar para aquela pessoa. Eu acho que a mulher tem isso imediatamente, o homem não, eu acho que é diferente, o tempo é diferente, porque a mulher já vai… a partir da gestação ela já tem as mudanças. Mas foi isso, foi uma divisão, uma divisão entre antes e depois mesmo, quem eu era, o que eu podia fazer e o que eu não podia, porque eu tinha um bebê.
1:05:38
P1 - E aí, você voltou pra casa, como que começou a ser sua rotina? Você não tava mais naquele trabalho?
R - Tava, tava! Eu tive três meses de licença, daí eu tentei voltar, mas ficou muito difícil. Eu ia para Santos, deixava a Carol na casa da minha mãe, ia para o Guarujá, voltava. Fiquei um tempo, era muito cansativo e aí eu saí. Fazia alguns trabalhos junto com meu marido, ele tinha se formado, montou um escritório com os amigos e eu fazia uma outra coisa também. E daí eu engravidei de novo, logo, da minha segunda filha.
P1 - Como é o nome dela?
R - Marina, Marina Sbrana Sciotti.
P1 - Quanto tempo depois você engravidou?
R - Elas têm um ano e quatro meses de diferença. E aí quando a Mari nasceu, eu dava aula de desenho. E aí, depois que ela nasceu, aí a gente, a família do meu marido tinha uma escola de música e a gente acabou montando uma escola vizinha, mas separada do ponto administrativo, vamos dizer assim, de desenho, ilustração. E aí, eu fui ser dona de um negócio. Eu, ele e uma outra pessoa. Então, eu tive essa escola por cinco anos. E aí, isso me possibilitou ter as filhas e ter um trabalho também. E depois eu fiquei grávida de novo, perdi um bebê com cinco meses e meio de gravidez. Depois eu engravidei de novo, fiquei grávida de gêmeos, era um casal, perdi os dois bebês com cinco meses e meio de gravidez, foi um período bem difícil, bem difícil. Mas eu pensava assim, eu não vou acabar a minha história maternal assim, saindo de um hospital com os braços vazios, eu queria ter mais um filho e engravidei de novo e tive o meu terceiro filho, o sexto na verdade, o Gustavo. Então de 1983 a 1990 eu tive cinco vezes grávida, sendo que uma das vezes foi uma gravidez gemelar e essa gravidez gemelar foram dois partos, porque a menina nasceu de parto normal e o menino nasceu de cesárea, no mesmo parto, na mesma circunstância ali. Então, foram histórias difíceis, bem difícil de lidar. Quando faleceu, no caso dos gêmeos, as meninas já tinham um pouco de noção, a Carol e a Mari, do que estava acontecendo.
1:08:49
P1 - Mas os gêmeos, quantos tempo eles viveram?
R - Não viveram. Não, não nasceram e morreram, o primeiro nasceu e morreu. Não viveram fora do hospital, a menina viveu 17 dias e o menino 52 dias, foi muito sofrimento. E aí, depois que a menina morreu, a Cecília e o menino se chamava Guilherme. E o primeiro que eu perdi se chamava Marcelo. As minhas filhas estavam com a minha mãe e eu falei pra minha mãe: “Traz elas pra cá, eu preciso delas!” Se não eu ia morrer junto. E aí eu levei as meninas ao hospital para verem o irmãozinho, tão pequeno, para elas entenderem, porque na cabecinha delas ia chegar dois bebês e de repente não tinha nada, não tinha nada. E uma mãe que só chorava. E levei elas ao hospital. E quando o Guilherme faleceu, eu levei as duas no enterro, eu pensei muito sobre isso, falei assim, elas vão ter que fazer parte disso, elas vão ter que entender, porque elas vão precisar entender o que está acontecendo comigo. Então, eu imagino que muita gente tenha me criticado, mas eu acho que eu tomei a melhor decisão. Foram no velório, no enterro. Durante um mês elas pegavam caixinha de sapato e brincavam com boneco e falavam assim: “O meu tá na incubadora. E o seu?” “O meu eu vou enterrar.” Criança é uma coisa maravilhosa porque eles… De alguma forma deve ter sido muito dolorida, é óbvio, eu até acho que possa ter sido traumático, mas na minha compreensão isso faz parte da vida e teve que fazer parte da vida delas. E depois veio um outro bebê, que foi o Gustavo, Gustavo Sbrana Sciotti, que nasceu em 1990. Então, eu acho que isso deu uma outra dinâmica familiar também.
1:10:42
P1 - Quando você foi ter essa última gravidez você tava com medo?
R - Eu não contei para ninguém até que a barriga começou a aparecer, porque as pessoas falavam assim para mim… Como eu ficava grávida muitas vezes: “Você é louca? Vai ter outro? Você é louca?” E se alguém falasse para mim, você é louca, eu acho que eu era capaz de dar um soco na cara da pessoa. Porque não, eu não era louca, eu não tinha problema nenhum, talvez eu tivesse tido quinze filhos, e daí? E daí? Eu gostava de estar grávida, eu agradecia a Deus ter toda aquela fertilidade em mim, para mim não era um problema. Era um problema para os outros. Então, eu lembro que na época minha mãe até ficou magoada de eu demorar para contar, mas eu me preservei, isso foi bom! Porque, como quando eu contei eu já tava mais ou menos de quatro meses e meio, aí ficou todo mundo assim, sabe? Ninguém fez nenhum comentário que me atingisse, vamos dizer assim.
1:11:38
P1 - E como seu marido ficava?
R - No susto, mas ele sabia que a gente estava naquela condição. Eu não podia tomar anticoncepcional, por causa dos remédios da epilepsia, então tudo falhava, camisinha falhava, diafragma falhava. Não era por falta. E também a gente era muito amoroso, digamos assim. Então, assim, era um casal que tinha uma vida sexual muito plena também. Então, acontecia, ué! Fazer o quê?
P1 - Mas você tinha alguma… Como se manifestava a epilepsia em você? Como começou? R - Com oito anos eu tive uma convulsão. Aí, eu comecei a fazer um tratamento, fui no hospital, meu pai me levou no hospital, fiz eletro. E não tive nada até 21 anos, quando eu tive uma outra convulsão, porque eu tive uma situação muito traumatizante pra mim, que foi um acidente com uma amiga minha, que perdeu um olho e eu ficava com ela no hospital, eu acabei tendo um estresse muito grande. Mas fora isso eu não tenho crise, eu tenho a epilepsia em si, tomo remédio, faço acompanhamento, mas eu faço tudo, não tenho nenhuma restrição. Não bebo, essa é a restrição.
1:12:47
P1 - Mas aí o seu marido era ponta firme?
R - Ele ia fazer o quê? Tô grávida! Estamos casados. Aí, quando eu tive o Gustavo, eu falava assim para ele: “Olha, eu não me importo de ter mais filhos, eu gosto disso em mim! Eu gosto! Se você não quer ter filho, eu vou respeitar, faça você alguma coisa, se opera, faz… Eu não vou me importar de engravidar de novo.” “Não, pelo amor de Deus!” Até que o dia eu achei que estava grávida, achei mesmo. Eu falei pra ele, “Eu estou grávida de novo!” Esse homem ficou louco, acendeu vela, rezou pra São Jorge, pra não sei mais quem. E aí, era um alarme falso. Aí, ele decidiu fazer vasectomia. E ele era muito jovem, tinha 30 anos e eu 31. E aí, os médicos tinham uma certa restrição de fazer. Eu falei pra ele: “Você não vai comigo no ginecologista? Eu vou com você nesse médico, eu que vou contar a história pra ele.” Eu fui lá e contei a história de quantas vezes eu fiquei grávida e porque a gente queria… Ele queria fazer vasectomia! Porque ele não queria mais ter filhos. E eu respeitava isso nele: “Se você não quer ter eu tô com você, eu já tenho três filhos, tá ótimo! Mas não venha pedir que eu…” Pra mim era uma coisa impensável eu cortar esse vínculo sagrado dentro de mim, que era a possibilidade de gerar. “Eu não tô cortando esse vínculo, to respeitando o que você quer.” E assim, ele fez vasectomia e vivemos felizes para sempre. Não estive mais grávida. Estamos casados até hoje.
1:14:42
P1 -E aí, como os três filhos, foi nesse período que fechou a escola? Ou você que parou de…
R - Não! Fechou a escola em dezembro de 1990. Foi um pouco em função…
P1 - Onde era a escola?
R - Em São Paulo, no Campo Belo, onde a gente morava também. Foi também em função do Plano Collor, a gente precisava investir na escola, não tinha mais dinheiro, aí a gente fechou. E aí, eu pensava muito que um dos dois tinha… Meu marido tinha um escritório dele também de arquitetura. Que um dos dois tinha que ter um emprego fixo. E aí, meu marido dizia assim: “Eu não quero! Eu não quero ter patrão, eu quero ter o meu escritório!” Eu falava, gente, mas com três filhos, não vai dar certo esse negócio. Porque você fica numa oscilação quando você é autônomo, muito complexa. E aí, eu resolvi então, que eu ia ser a pessoa que ia ter… Eu não tinha problema nenhum com isso. Que ia procurar um emprego. E aí, eu acabei, em 1992, tendo uma oportunidade de trabalhar como gerente da Associação dos Designers Gráficos. E fui para esse trabalho, foi muito legal. E esse trabalho, nesse lugar, eu conheci uma pessoa que me falou do Senac e eu fui prestar um processo seletivo no Senac e fiquei.
1:16:07
P1 - Quem que era essa pessoa?
R - Francesco Venosa. Era um designer, é um designer, que fazia parte da Associação dos Designers Gráficos e trabalhava na época no Senac, depois ele saiu. Ele falava para mim: “Não, acho que você vai se dar super bem no Senac, tem uma vaga lá, você não quer prestar.” Aí quando eu vi que o salário era bem mais alto do que eu tinha, eu fui por isso.
P1 - E qual vaga que era?
R - Técnico. Era para ser parte da equipe técnica, para trabalhar no Centro de Comunicação e Artes, coordenando as áreas de artes gráficas, artes plásticas, ilustração, essa parte de design. Então, eu tinha formação, eu tinha conhecimento, eu tinha experiência, um pouco de experiência, que eu tinha tido uma escola cinco anos, eu tinha muitos contatos da Associação dos Designers Gráficos, os melhores designers estavam lá e eu tinha contato direto com eles. Então, eu fui sem saber muito bem o que era para fazer. Fui com a cara e com a coragem.
P1 - Era concurso?
R - Não, não era um concurso, Senac não tem concurso, é um processo seletivo, você vai lá, faz uma redação, conversa com pessoas e eles escolhem. Leva seu currículo. E foi esse o processo. Eles me ligaram e falaram: “Olha, você foi aprovada.” Falei: “Caraca, eu virei a tia Léia.” Porque a tia Léia que era essa minha tia, que eu falei que era uma mulher fora dessa época, era uma mulher que nunca casou, teve uma carreira muito interessante no Sesi. Então, para mim quando falou do Senac, de eu trabalhar com o Senac, na hora relacionei com a vida da minha tia no Sesi, falei: “Virei a tia Léia.” E fui trabalhar e fui aprendendo e fui…
1:17:55
P1 - Em que unidade?
R - Centro de Comunicação e Artes que era no quarto andar do prédio da Vila Nova. Hoje esse centro é aqui na Lapa, mas naquela época era no quarto andar da sede, lá da Vila Nova.
P1 - Você lembra do seu primeiro dia de trabalho?
R - Dos primeiros eu lembro. Eu tava sentada na mesa, um dia passou o gerente e ele falou: “O que que você tá fazendo?” Eu respondi: “Nada.” Ninguém me explicou o que fazer. “Nada?” Eu falei: É! Ninguém veio falar comigo. Eu fui um pouco petulante até na resposta, mas era a resposta verdadeira. Aí comecei um processo… que é claro, você tem que ser orientado, né? Você não chega num lugar, sente e vai falando: “Me dê isso! Faça aquilo!” Não é assim! Eu falei nada, não to fazendo nada. E aí, comecei a ter mais envolvimento com algumas pessoas e as coisas foram fluindo.
P1 - Quem que eram as pessoas que você conhecia?
R - Carvall! Fernando Carvall, é um ilustrador, um amigo maravilhoso, ele dava aula lá, dava aula dentro dessas áreas que eu coordenava. Eu tinha que acompanhar, arrumar o professor, fazer a programação e tal das aulas. E aí, um dia o Carvall falou assim: “Eu tenho uma ideia, vamos fazer um projeto?” Eu sempre fui uma pessoa animada. Eu falei: “Hã!” “Tenho uma ideia assim, assim, assim, de fazer uma grande exposição de artes gráficas, de ilustração. E aí, eu tenho contato com o Zé Hélio Alves Pinto, a gente podia falar com ele.” A gente começou, a gente montou um projeto para um evento com várias exposições, que se chamava Comunicação Gráfica e Violência, isso foi em 1994. E a gente convidou. Aí, a gente convidou o Zélio para ser curador, o Zélio Alves Pinto, que é irmão do Ziraldo, para ser curador desse evento. Ele fez contato com um monte de designer, de ilustradores, aliás, do mundo inteiro, esses caras fizeram trabalhos específicos para essa mostra. Milton Glaser foi um grande… morreu. Designer, fez um trabalho. Milton Glaser foi o designer que criou a maçã de Nova York. E tinha outros nomes internacionais, Sabato da Argentina. Olha, foi…
P1 - Do Brasil quem tava?
R - Ah, tava o Zélio, vários, vários, eu não vou me lembrar dos nomes, a gente fez várias exposições, mas tinha, tinha… da época as principais pessoas estavam ali presentes. E essa exposição… Esse evento foi bem marcante, que eram duas pessoas novas dentro daquela unidade, eu e o Carvall, que era professor. E, de repente, a gente fez um negócio que se transformou num evento muito importante, porque esses trabalhos dos… que incluía os ilustradores internacionais, essa mostra foi no MASP, a gente fez uma mostra no Metrô com a Anistia Internacional, duas mostras no Senac. Eram cinco mostras espalhadas em São Paulo, a principal foi essa no MASP, foi feito um catálogo e tal. Então, foi uma coisa muito interessante. Então, aquilo marcou a minha carreira, marcou a minha atuação, digamos assim. E uma outra coisa que marcou a minha atuação no Senac, foi uma forma que facilitou eu conhecer algumas pessoas, quando eu estava na associação dos designers, a ADG. A ADG fez um concurso interno para cartazes sobre a AIDS. E eu fui como representante da ADG, junto com esse cara da ADG, que a gente que trabalhava no Senac, que foi a ponte, buscar apoio do Senac para fazer essa exposição. E essa exposição também foi feita, ela foi para o Brasil todo, o Senac patrocinou a confecção desses cartazes sobre a AIDS. Então, foram coisas que foram se…
1:22:16
P1 - O Senac naquela época patrocinava essas ações?
R - Ainda faz! Ainda faz esse tipo de coisa, o Senac, é um apoio institucional que é dado para vários eventos, para várias coisas assim.
P1 - E você tinha essa liberdade, assim que você entrou, para fazer, desenvolver esse trabalho, tinha alguém que você se reportava?
R - Tinha o meu gerente, mas ele tava aberto a me ouvir, na verdade todo mundo tem. Eu acho que é isso, você meio que dá as caras, né. E se sentir confortável para fazer uma proposta que… tem proposta que vai para o sim e tem proposta que vai pro não. E tudo bem também. Nesse caso desse evento, era uma proposta muito bem feita, com nomes…
P1 - Quem era o seu gerente na época?
R - Juan Pablo Garulo Rico, era o nome dele. Ele não tá mais no Senac, ele se aposentou faz tempo já.
P1 - Quanto tempo você ficou nessa função?
R - Nessa função eu fiquei de junho de 1993, até 1995, não me lembro exatamente o mês, quando eu fui convidada para sair dessa área e ir para a área de comunicação, para a área de comunicação institucional. Então, aceitei esse convite interno e fui para outra área. E nessa outra área eu coordenava as ações de propaganda de todo Senac no estado. Então, eu acompanhava as campanhas, a produção de folheteria, tudo isso das unidades.
1:23:48
P1 - Por que que veio esse convite? O que você acha?
R - Esse convite veio porque uma das pessoas que acompanhou o trabalho que eu fiz na ADG com AIDS, trabalhava lá e ela achava que eu ia contribuir. E tinha uma vaga lá e aí, no final fui conversar com a gerente, na época, e fiquei.
P1 - Quem foi essa pessoa?
R - A pessoa que fez a ponte foi o Edson Ubirajara Toledo, infelizmente falecido. Um grande amigo, um grande amigo. E a gerente na época era a Maria Pillar Tuar Farrer, minha amiga até hoje, já se aposentou, minha amiga até hoje, grande inspiração como chefe.
P1 - Na verdade isso foi… você cresceu já?
R - Sim! Foi um passo à frente. Sim, sim, foi!
P1 - E tinha essa possibilidade de crescer aqui? Fazer carreira, sempre teve?
R - Eu não, eu entrei no Senac, nem visualizava muito isso, mas foi um crescimento, eu saí de uma área, para uma área que tinha um status maior e também teve um crescimento, pequeno crescimento financeiro. E lá, ficar na comunicação, eu acho que deu muita visibilidade pra mim, porque era uma área mais institucional, lidava com tudo, com toda a instituição. E aí, quando eu tava lá, eu fui, eu recebi o convite pra… eu fui sondada pela gerência de pessoal, se eu aceitaria o convite, para assumir, isso foi em 1998, uma área nova, que estava sendo desvinculada da área de Moda, que seria uma área de Design de Interiores, um centro de educação em Design de Interiores. Então, aí eu virei gerente, em 1998.
1:25:42
P1 - Vamos voltar um pouquinho. Quando você entrou como que era o Senac, o ambiente de trabalho, a cultura do Senac?
R - Sempre foi um ambiente muito bom, sempre foi um ambiente de recursos disponíveis, de muito respeito, aquilo que é o direito de cada pessoa que trabalha, então isso me encantou muito dentro do Senac, ver todos aqueles recursos. Eu pensava: “Gente, quanto dinheiro!” Porque eu não tinha noção do quanto grandes projetos custavam, então eu passei a ter noção de recursos maiores para as coisas grandes, de equipamentos. E o Senac sempre à frente disso, eu entrei em uma época que o Senac investiu muito em ser referência nas áreas que ele atuava, Então, teve um investimento muito forte. Inclusive, eu entrei numa época em que eles buscavam trazer pessoas de fora mesmo, pra dar uma oxigenada com outras experiências e tal. Foi nessa leva que eu entrei também. Então, foi muito bom! Eu fui me encantando assim.
P1 - E como você gerenciava? Está trabalhando agora em período integral… e os filhos?
R - Era uma vida difícil! Eu tinha uma empregada que morava comigo. Era uma coisa que me sentia muito mal, mas não tinha saída, eu não tinha minha mãe aqui, a minha sogra não era uma pessoa disponível, porque tinha a vida dela. Então, eu saía de casa e ia trabalhar de ônibus, não tinha carro e voltava à noite pra casa. E era isso! Era aquela vida de mulher que tem três, quatro, cinco períodos. Durante o fim de semana fazia tudo que tinha que fazer e tal.
1:27:38
P1 - O papel que o Senac desenvolvia naquela época, qual que era enquanto instituição?
R - Eu acho que é praticamente o mesmo que ele desenvolveu hoje. Claro, tem uma diferença aí de 30 anos em áreas novas que o Senac foi fazer, mas quando eu entrei a proposta do Senac já era uma proposta bem robusta, vamos dizer assim, de uma instituição com alta qualidade naquilo que fazia e vislumbrando aí um futuro de uma instituição referência no país. Então, eu entrei nesse contexto, eu vi o Senac se desenvolver nesse contexto. Então, que é o contexto do trabalho do Salgado, do diretor regional. Ele impôs esse ritmo ao Senac.
P1 - Que é o que?
R - Que é essa ideia de uma instituição com um ar um pouco mais assistencialista e partir para uma instituição arrojada, tecnicamente arrojada, arrojada nas suas propostas, no seu conteúdo, disposta a ir para novas áreas. Eu acho que ele fez isso muito bem.
1:28:46
P1 - E você foi vendo essa mudança?
R - Fui participando dessa mudança.
P1 - Quais você acha que foram as principais mudanças de quando você entrou até hoje?
R - No Senac?
P1 - É!
R - Acho que teve uma que foi bem significativa, que foi a entrada na educação superior, final dos anos 1990, início dos anos 2000. Nessa época, eu era gerente da faculdade de Moda, gerente da área de moda, que significava que eu era diretora da faculdade de moda. Eu assumi isso em 1999.
P1 - Quando você saiu do…
R - Quando eu… Em 1998 eu assumi design de interiores, em abril de 1999 eu fui convidada para assumir a área de moda. A área de moda tinha educação superior.
P1 - Na faculdade…
R - Já tinha! E aí foi que eu além de estar naquele movimento do Senac, de expansão do ensino superior, eu também sentia necessidade de me preparar mais, porque aí eu pensei, eu já não era mais a tia Léia, eu era o Noêmio. O Noêmio era o diretor da faculdade que eu só criticava quando eu era estudante de arquitetura. Eu falava, “Gente, eu virei o Noêmio, o que é isso agora?” Eu tinha virado a tia Léia, depois eu virei o Noêmio. E aí, assim, a minha posição foi: as pessoas vão ter que me olhar com respeito que deve ter uma diretora de faculdade. Aí, eu fui fazer mestrado, porque eu achava que eu tinha que me colocar mesmo como alguém que fosse olhada pelos pares, como alguém que entende o que estava fazendo. E porque eu também nunca fui uma pessoa a reboque, eu sempre tive um papel ativo nas frentes que eu fui assumindo, então eu entendia que eu tinha que me aprofundar academicamente, já que eu era diretora de faculdade, eu tava naquele posto. E eu escolhi fazer um mestrado em educação.
1:30:50
P1 - E onde você foi fazer?
R - Na PUC. Fiz mestrado na PUC, depois fiz doutorado e esse ano eu terminei o pós-doutorado.
P1 - E o mestrado você fez com quem? Quem foi seu orientador?
R - Orientadora Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida. Foi muito legal, foi um período muito onde você abre muito a extensão para conceitos, para compreender conceitos, para relacionar conceitos, acho que isso me ajudou demais.
P1 - Quem eram os pensadores, os autores que você se aprofundou?
R - Primeiro começa por Paulo Freire, que foi o que eu acho que foi o que mais me impactou, eu acho que esse foi o mais importante para mim. E outros pensadores, pensadores principalmente europeus, que vinham assim, do pensamento de tecnologia na educação, currículo. Porque eu fiz o mestrado no Programa de Educação e Currículo da PUC, então tinha muito esse viés. Mas o Paulo Freire tinha sido desse programa, ele trabalhou lá, ele foi desse programa. Então, tinha sempre uma base freiriana bem presente. Então, pra mim foi o que ficou mais, mesmo. Foi eu começar a ler Paulo Freire, que eu já tinha ouvido falar com 16 anos, que era uma coisa importante. E desde então, eu leio e releio, eu leio e releio, Paulo Freire, porque eu acho que é para mim e, no fundo, eu acho que deveria ser para todos os educadores, a principal referência. Primeiro por ser brasileiro e ele partir de uma realidade brasileira. A gente é muito eurocentrado, a gente é muito ensinado a olhar principalmente o de fora e isso me irrita, porque eu acho que a gente tem muita coisa aqui. E Paulo Freire foi esse cara respeitado internacionalmente, venerado internacionalmente. E aqui hoje se fala muita bobagem, com o bolsonarismo, com esse conservadorismo, que ele é comunista. É tudo uma bobajada sem fim. As pessoas que falam isso provavelmente nunca nem leram Paulo Freire.
1:33:21
P1 - E qual foi o tema da sua dissertação?
R - A dissertação eu fiz uma análise de alguns ambientes educacionais que utilizavam total ou parcialmente, educação a distância. E eu fui pesquisar justamente o que que os valores que… como é que se davam as relações nesses ambientes de educação a distância. Então, eu fiz análise de quatro situações, dois cursos que eu fiz, dos quais eu participei como aluna. E dois momentos que eram cursos que eu participei como monitora, durante o período que eu estava lá fazendo o mestrado. Então, foi uma análise disso, sobretudo sobre as relações humanas nesses ambientes.
1:34:33
P1 - E como é que você trouxe isso… de que maneira você incorpora esse seu aprendizado pra virar diretora do curso… aí era moda?
R - Era a faculdade de moda. Eu acho que assim, eu acho que não é uma coisa tão imediata, eu acho que é um somar de coisas, é um somar. Porque tudo aquilo que eu tive na arquitetura eu levei para moda, porque eu tive uma fundamentação estética muito forte. Então, eu não me senti caindo de paraquedas na área de moda, porque eu tinha uma formação estética muito forte, isso tem a ver com a moda, a construção da roupa tem a ver, é uma construção, então eu me sentia à vontade por esse lado e fui me sentindo à vontade também com o que fosse uma coisa mais conceitual também, a medida que eu fui me preparando. Então, foi um movimento assim, de ir e vir. Mas pra mim o mais importante era entender objetivo educacional das coisas, era o objetivo educacional, o mais importante de tudo. Então, nesse objetivo educacional eu fui desenvolvendo o meu próprio discurso sobre a educação e também entendendo o meu papel como gestão. Eu fui elaborando, eu fui elaborando nessa época muito como eu via a gestão de pessoas, porque virar uma gestora de um grupo grande de pessoas, de dezenas, até mesmo centenas de pessoas, foi muito impactante para mim. Que chefe eu ia ser? E aí eu fui lembrando de todos os chefes que eu já tinha tido, do que eu gostava neles, do que eu não gostava. E eu fui buscando entender esse meu papel, comecei a fazer parte de grupos que discutiam a gestão. Em 2016, eu publiquei um livro que se chama, Horizontes para Lideranças. A partir dessa minha vivência mesmo como gestora.
1:36:24
P1 - Mas aí, você fez esse mestrado e você foi fazer algum curso de gestão?
R - Propriamente um curso de Gestão, não. Propriamente, não! Mas eu lia muito, sempre li muito, publicações da área, tinha contato com pessoas que tinham conhecimento mais conceitual, participava de eventos. Isso eu sempre fui fazendo no paralelo, as duas coisas, gestão e educação.
1:36:50
P1 - E esse livro que você escreveu, como que é o nome mesmo?
R - Horizontes para Liderança.
P1 - E você pode falar um pouco dele?
R - Posso! Eu acho que foi uma grande libertação na minha vida, foi uma coisa bem legal! Porque eu sempre pensei muito nesse papel e aí… Eu fui aos poucos, depois que eu me tornei Superintendente, em 2006, no Senac. As pessoas foram me chamando pra falar nas unidades, para falar em eventos, as pessoas do próprio Senac. E aí, pouco a pouco, eu comecei a me tornar alguém que falava para públicos maiores. E aí, a área de atendimento corporativo do Senac, é uma área na minha coordenação também. E aí, um dia o gestor dessa área falou: “Ah você… eu posso te colocar nos eventos que a gente vai para falar também?” Falei: “Pode!” E comecei a ir, a fazer abordagens mais, digamos humanistas, porque as abordagens da liderança sempre foram muito, cinco passos para ser um líder de sucesso. E isso pra mim sempre foi uma coisa horrorosa. E eu abordava o ponto de vista das relações e do bem estar das pessoas que estavam trabalhando. Fui começando devagar, até que um dia ele falou: “Tem uma palestra no TJ, você topa ir lá falar sobre liderança?” Eu sou meio… eu falo topo sem pensar, e aí eu tenho que falar tudo que eu vou fazer lá e tenho que me preparar, mas eu já falei que topava, sabe assim? Eu aceito e depois vou falar: “Meu Deus, o que que eu fiz?” É sempre assim! Aí fui lá pro TJ, Tribunal de Justiça. Tribunal de Justiça, uma coisa hierarquizada, machista, serviço público. Eu fui lá falar sobre relações. E falei o que pensava, estruturei lá uma apresentação. No final da apresentação eram duzentas pessoas levantando a mão, colocando as situações que elas viviam e querendo a minha opinião. Eu falava: “Meu Deus do céu!” É um outro universo que eu nunca trabalhei diretamente, universo do serviço público, eu sei que… Eu tinha uma amiga inclusive que trabalhava ali no TJ e tal, estava lá na apresentação. Então, as relações, lá é a relação ainda mais ligada ao judiciário, são relações complexas, de muito poder envolvido, hierarquia, uma coisa dura. E eu fui falar que a minha visão era justamente outra. Aí, quando a gente saiu dessa apresentação, o Maurício, o Maurício Pedro, que era o gestor da área de atendimento corporativo do Senac, falou: “Por que você não faz um livro, hein! Dessa sua apresentação? Foi tão legal!” Falei: “Ah, pode ser!” E ele ficou literalmente me enchendo. “Faz, faz!” Falei: “Tá bom! Vou fazer!” E comecei aos poucos… a partir daquela, daqueles, sei lá, dez slides, comecei a escrever. Aos poucos fui escrevendo, escrevendo, deixava na gaveta, depois pegava, escrevia um pouco. Até que quando tinha um pouco mais de corpo, eu levei pra editora do Senac, para avaliação, gostaram do conteúdo. É um livro curto, tem cento e poucas páginas. E aí, eu lancei o livro! Lancei o livro em 2016. E eu falo que foi uma libertação, porque eu me coloquei integralmente como eu penso a gestão. Eu sempre tive a preocupação das pessoas estarem bem trabalhando comigo, se eu fosse alguém que pusesse um sofrimento alguém, seria a pior coisa da minha vida, esse alguém. Então, eu procurei ser um outro alguém, num ambiente colaborativo. Claro, que a vida não é um mar de rosas, mas a proposta era essa, ambiente colaborativo, leve, eu acho que eu consegui isso sempre. Ambiente onde as pessoas não tivessem medo de falar comigo, nunca! Eu não queria ter essa relação do chefe que alguém tem temor, Deus me livre! Deus me livre!
1:41:26
P1 - Quando você escreve esse livro, você tá ainda como diretora de moda ou você já tinha…
R - Não, tava como superintendente. Já tava como superintendente. Tinha terminado o doutorado, terminei em 2010, o doutorado.
P1 - Aí do mestrado você foi direto para o doutorado, não?
R - Quatro anos depois eu entrei no doutorado. Quatro? Acho que foi isso.
P1 - Mas aí no doutorado você já tinha sido convidada para Superintendente?
R - Foi no mesmo ano, mesmo ano que eu fui convidada para ser superintendente, eu tinha começado o doutorado naquele ano.
P1 - Deixa só eu resgatar então pra fazer uma cronologia. Bom, você entrou, começou aquela mostra de design, aí logo depois você foi pra comunicação. Vamos falar um pouco das comunicações visuais. O que que estava acontecendo em termos de comunicação naquela época? Como é que era a comunicação do Senac naquela época?
R - Era um pouco de dispersa, a gente tinha… queria mudar a linguagem, então, às vezes, as unidades faziam por conta própria algumas coisas que a gente achava que era inadequada, que já era uma linguagem ultrapassada, então a função era orientar as unidades, no meu caso, dentro da propaganda, a ter uma linguagem menos caseira, mais profissionalizada. A tinha uma agência que trabalhava com a gente também. Mas meu papel era supervisionar e orientar as unidades, também percorria as unidades falando sobre isso. Então, teve muito isso assim. Acho que foi um pulo, um processo que o Senac avançou naquela época.
P1 - E tem alguma campanha, alguma coisa que tenha te marcado mais nesse período?
R - Não, nesse período não, nesse período não. Acho que o que me marcou mais nesse período, foram os 50 anos de Senac, talvez. Que foi nessa época.
P1 - Como foi os 50 anos.
R - Teve todo… Teve o contato com o Museu da Pessoa, teve brindes, eventos, anúncios, coisas que colocavam… Esses 50 anos do Senac foi uma coisa marcante.
1:43:42
P1 - Nesse momento você tinha alguma coisa assim, quero crescer aqui nessa instituição e chegar em tal lugar?
R - Nunca tive! Nunca tive, de verdade mesmo. Eu entrei lá, quando eu entrei lá na comunicação em pouco tempo eu passei a ser a que substituia a gerente, então eu entendi que eu tinha uma possibilidade, mas eu não almejava um lugar. Quando veio esse convite para eu ser gerente, eu me lembro muito da Pilar, que era minha chefe, falar: “Eu acho que tem tudo a ver com você. Vai! Você vai fazer uma carreira.” Foi uma coisa que… Era uma época minha que eu pensava até em sair do Senac, porque eu pensava, talvez eu deva ter uma outra experiência fora daqui, mas aí surgiu essa oportunidade. E aí eu comecei uma vida executiva propriamente dita, foi a partir daí.
P1 - Mas aí, o que que acontece? Você foi fazer o mestrado, quando você foi pra Moda, era um curso que tava abrindo?
R - Já tava!
P1 - Já tava?
R - Já existia.
P1 - Existia esse, tinha a Anhembi. O Senac foi o primeiro?
R - Não! Já tinha a Santa Marcelina, depois que veio a Anhembi.
P1 - E aí você foi para esse cenário, você também teve que estudar o que seria um curso de Moda?
R - Sim, eu fui fazer até uma pós lato sensu, fui fazer uns cursos de extensão. Eu fazia tudo, eu ia enchendo o meu repertório até exageradamente. Eu estudava inglês, estudava francês, eu fazia curso aqui, fazia…
P1 - E o Senac financiava?
R - Financiava. O Senac é uma maravilha nesse ponto, eu acho que quem… é uma instituição que pode dar muitas oportunidades para quem tiver disposto a dar de si também, porque essas oportunidades você tem que dar o seu tempo, não é dentro do horário de trabalho propriamente dito. No caso de um mestrado sim, de um doutorado, você tem algumas matérias a cumprir e a gente tinha esse incentivo, mas outros cursos que eu fiz eu fiz fora. Eu fiz o primeiro curso de pós-graduação lato sensu, quando eu estava trabalhando na comunicação, que eu percebi o quanto seria importante, o quanto faria diferença na minha vida uma pós-graduação. E quando eu soube que o Senac financiava 80% do valor, eu fui fazer.
P1 - Qual que é a sua primeira?
R - Comunicação Empresarial na ESPM. Eu fui fazer essa pós. Depois eu fiz uma pós lato sensu em Gestão Educacional, mas era um programa do Senac para funcionários do Senac, pra gente poder… quem não era de formação em Pedagogia, poder assinar formalmente, reconhecidamente como alguém com capacidade pra isso.
1:46:48
P1 - Aí depois você vai pra PUC fazer o mestrado?
R - Depois eu vou para o mestrado, depois doutorado.
P1 - E aí, na faculdade de moda, quais foram os seus maiores desafios?
R - Eu acho que o maior desafio mesmo foi dentro da faculdade, porque a faculdade era uma coisa muito nova, então tinha algumas matérias, vamos dizer, mais conceituais, que veio o pessoal da PUC dá e tinha o pessoal das matérias práticas, que não era… eram todos ótimos, mas não tinha essa vivência de Universidade. Então, eu senti essa dificuldade… Foi um grande trabalho fazer essa integração, porque o povo da PUC vinha de salto alto e achava que eles eram mais importantes que o povo da prática, então foi um desafio.
P1 - Quais eram as disciplinas que tinham no curso?
R - Tinha, por exemplo, no estilo, tinha essa parte de estilo, de modelagem, de criatividade, mas você tinha também… Isso era em função de um currículo estabelecido pelo MEC, então você tinha…. Não havia… foi criado desagregado, não existia essa coisa integrada mesmo, foi um aprendizado integrar, porque quando você faz um curso superior, aí você tem que ter um número de professores com mestrado, com doutorado, essas pessoas estão na academia, a academia, muitas vezes, está totalmente distante da prática. E o Senac é um outro universo, o Senac mesmo na parte acadêmica, ele valoriza o saber prático. E tem que ser assim numa formação profissional. E deveria ser assim em todas as faculdades, em todas as frentes de formação profissional, porque uma faculdade é uma frente de formação profissional, no Brasil é! Talvez nos Estados Unidos tenha uma outra estrutura, por exemplo, onde a pessoa circula, vai fazer filosofia e depois decide que vai ser advogado, estuda mais um ano em outro lugar. Aqui é diferente! Aqui é uma formação profissional.
1:48:59
P1 - Tem uma discussão dentro do Senac sobre Economia Criativa?
R - Tem, tem! Há muito anos!
P1 - Quando começa essa discussão aqui?
R - Começou nas áreas mais criativas, mas já há muitos anos isso, não sei nem te dizer quando, já há bastante tempo tem essa discussão, sobre Economia Criativa. Quando isso começou a ser discutido, vamos dizer, na nossa sociedade, isso já foi incorporado como discussão no Senac também.
P1 - Ele é um centro de referência nisso.
R - Eu acho que é o centro, não diria que é um centro de referência, mas a gente lida com isso como um conceito a ser falado, a ser tratado, a Economia Criativa. Que a gente trabalha em áreas diretamente ligadas a isso, moda, comunicação de todas as formas, tecnologia.
1:49:53
P1 - Aí da faculdade de moda você já é convidada… depois da de moda você vai pra onde?
R - Eu fui… Quando inaugurou o Centro Universitário em Santo Amaro… O Senac tinha as faculdades isoladas, aí juntou tudo no centro universitário em Santo Amaro. Então, eu fui para lá com a diretora da faculdade, que aí o que era a faculdade saiu da unidade da Lapa e foi para lá, todos. Então eu fiquei como diretora da faculdade de Moda lá no início de 2004. E aí, houve uma mudança estrutural no Senac e foram criadas novas frentes, então em 2005 eu fui convidada para ser gerente de desenvolvimento, eram quatro gerências de desenvolvimento e eu fui convidada para ser uma das gerentes de desenvolvimento, que era o trabalho de coordenar o desenvolvimento de conteúdos das áreas de Moda, Comunicação, de várias áreas. Foram quatro agrupamentos de áreas, eu fui a gerente de uma desses agrupamentos durante o período.
P1 - Quais eram os agrupamentos?
R - Comunicação e Artes, Fotografia, Vídeo, Moda, Beleza, Idiomas, então teve essa configuração aí.
1:51:28
P1 - E como era esse relacionamento entre as outras áreas?
R - Era bom! Eram todos novos naquela função, naquela nova estrutura, então a gente tinha… Eu era a única mulher, os outros três eram homens.
P1 - Quem eram os outros três?
R - Era o Sidney Latorre, que hoje é reitor do Centro Universitário. O Cláudio Souza, que já se aposentou. O Rolantes Otelo, que já se aposentou e eu. Então, a gente tinha muita conversa, porque a gente foi formando juntos o que era a base daquela nova estrutura institucional, era uma estrutura nova.
P1 - E qual era o desafio dessa nova base?
R - Antes as unidades que eram chamadas de especializadas, que eram as unidades que ofereciam só um tipo de área, como era a que eu tinha na Moda, elas eram responsáveis por desenvolver os produtos dessa área para toda a rede. E aí, quando se criou a gerência de desenvolvimento, esse desenvolvimento passou a ser centralizado na gerência e as unidades passaram a ser unidades federativas normais, não tinham mais a função do desenvolvimento, isso pra gerência de desenvolvimento, num outro patamar.
P1 - E o que significou essa nova mudança? O que muda de uma coisa pra outra?
R - Muda a centralidade de um poder, digamos assim, que é o desenvolvimento das áreas, que estava nessas unidades, que passaram a não ter mais. Muda a configuração de quem fazia o relacionamento e quem faz das áreas. Então, foi uma mudança grande, foi uma mudança grande.
P1 - Foi um momento de reflexão do Senac?
R - Foi, foi! Já há muitos anos, isso foi em 2005, então estamos ainda nessa estrutura.
1:53:31
P1 - E aí você tá nessa função? Você ficou quanto tempo?
R - Aí, eu fiquei nessa função pouco tempo, porque eu entrei em 2005 e em 2006 eu fui convidada para ser superintendente.
P1 - Quem te convidou?
R - A diretoria.
P1 - Não teve uma pessoa?
R - Tem uma pessoa que me sondou, que falou para mim assim, que era meu chefe na época, Luiz Carlos Dourado. Falou assim: “Eu vou te fazer uma pergunta que não é uma promessa. Eu gostaria de saber só se você toparia a empreitada, mas eu só vou te perguntar isso, eu não sei o que vai acontecer. Você aceitaria ser superintendente?” Eu olhei, quase caí da cadeira. Mas como eu sempre respondo… eu disse que aceitaria. Porque eu também não sabia o que ia acontecer. Ele falou: “Tá bom! Então, é isso aí, é uma coisa só entre nós dois, não é uma promessa.” “Tá bom!”
P1 - Superintendente era de operações?
R - Seria para ser superintendente de operações. Porque é um superintendente tava se…
Porque tinha um superintendente que ia se aposentar. Bom, ficou tudo isso, tava tudo certo, não falei para ninguém, continuei meu trabalho. E aí, teve uma reunião gerencial. Então nessa reunião gerencial, na hora do cafezinho, entre uma pauta e outra, era uma reunião no hotel de Águas de São Pedro, onde costuma ser as reuniões gerenciais do Senac. Veio o Salgado, o diretor regional, falou pra mim: “Então, eu queria te fazer um convite.” Assim, foi assim. “O Clailton está se aposentando, eu gostaria de saber se você aceitaria ser superintendente de operações?” Eu falei: “Muito obrigada! Eu aceito!” E assim foi. “Então, tá bom! Eu vou anunciar você aqui hoje, depois a gente conversa.” E assim foi feito. As pessoas não esperavam o meu nome, de jeito nenhum, eu era um perfil totalmente fora do perfil da diretoria, um perfil masculino, um perfil de pessoas com formação mais numa área administrativa, então foi uma grande surpresa, pra todos e para mim também, é claro! Apesar de ter tido a pergunta anterior.
P1 - Isso foi em que ano?
R - 2006. Eu assumi oficialmente a superintendência, no dia primeiro de maio de 2006. Primeiro de maio é meu aniversário, foi bem significativo. E to lá até hoje, são 17 anos de diretoria. Estamos lá os mesmos há 17 anos. E tem sido um aprendizado incrível, uma oportunidade incrível.
P1 - Quais foram as principais mudanças, assim, se você tiver que estabelecer uma cronologia desses 17 anos? Quando você entrou, como é que tava? E quais foram os desafios até chegar hoje?
R - Eu acho que houve uma busca minha de valorização do trabalho da rede de unidades, que eu acho que vem sendo feito e teve uma série de melhorias, que a gente foi conquistando. Mas aí, em determinado momento eu me detive muito sobre a questão educacional, sobre as práticas educacionais, que eu acho que o mais importante de tudo que a gente faz é o que acontece em sala de aula. Então, alguns projetos foram muito bem sucedidos e entraram de cabeça nisso e acho que isso foi a grande transformação. Se eu falasse, vou sair amanhã do Senac, qual o seu legado? Meu legado foi esse, colocar a educação no centro da discussão de tudo, sempre. E dá muita consciência sobre o nosso papel educacional.
1:57:48
P1 - E quais são as outras superintendências?
R - Superintendência administrativa, que pega a parte de estrutura mesmo, gerência de pessoal, compras, infraestrutura tecnológica e a superintendência de desenvolvimento e universitária, que pega as gerências de desenvolvimento, de onde eu era e toda a gestão da área universitária, que não está comigo. Eu tenho cerca de 60 unidades educacionais da rede.
P1 - A universidade não?
R - Os três campus, não! Mas em algumas unidades que eu trabalho tem oferta de cursos superiores.
P1 - São quantas unidades?
R - Sessenta. Sessenta escolas no estado. Só o estado de São Paulo, a gente tá falando só do Estado de São Paulo, quando eu falo do Senac. As administrações são independentes nos estados.
P1 - Ah tá! E como o Sesc?
R - Exatamente! É tudo independente. A gente está falando do estado de São Paulo.
1:58:55
P1 - Como é essa relação do sistema S? O Sesi, o Sesc e o Senac?
R - Sistema S é um negócio que inventaram, que na verdade não é um sistema, porque são instituições autônomas, que tem a sua similaridades pela forma como elas foram criadas, mas tem administrações diferentes. Então, digamos assim, Sesc e Senac são irmãos, são entidades irmãs, estão ligadas ao comércio. Sesi e Senai estão ligados à indústria. Sebrae está ligado a outra coisa. Senar, Senat, outras frentes…
P1 - Vocês fazem atividades conjuntas com o SESC?
R - Sim, sim, nós temos atividades conjuntas, mas não é no cotidiano, mas tem atividades conjuntas. Mas cada um tem o seu o seu objetivo final. O Senac é fazer educação profissional, do Sesc está ligada ao lazer e cultura, então são frentes que se complementam, naturalmente, mas que são trabalhadas separadamente.
P1 - Mas o sistema S, quando você diz isso, por exemplo, você é superintendente, aí tem um diretor.
R - Tem diretor regional do Senac São Paulo, o Salgado, aquele que fez…
P1 - Aí você se reporta diretamente a ele?
R - É o meu chefe. É o chefe dos superintendentes. E o cargo máximo executivo do Senac.
P1 - Daí quando você fala que você traz educação para esse centro dos cursos. Enfim, como isso é negociado dentro? Isso é uma questão que você traz e a instituição está aberta?
R - Está aberta. Eu acho que é uma questão que eu enfatizo, principalmente. Porque eu sempre fiz tudo a partir dos que estavam nos documentos do Senac. Já existiam documentos que apontavam para um outro lado e eu ia olhar e falava: “Mas nós não estamos fazendo isso que está escrito no documento.” Então, a gente tem que fazer o que está escrito no documento. Eu nunca fiz alguma coisa que era uma coisa da minha cabeça, não! Eu tô absolutamente olhando para aquilo que são os nossos documentos institucionais e lá diz: “O Senac trabalha com metodologia de projetos, o Senac trabalha com autonomia na aprendizagem”. É verdade isso? Eu fui checar se isso é verdade. O que que tá faltando, então? Por que não ocorre? Foi isso que eu fui fazer. Então, eu não fui… não subverti nada. Eu na verdade concretizei algo que já estava pré-definido, digamos assim. Então, eu acho que foi aceito por isso. E porque teve, vem tendo resultado positivo, acho que isso é uma coisa importante.
2:01:39
P1 - E como ficou a relação da sua família, o seu trabalho? O seu marido vendo você nesse…
R - Eu acho que eles sempre curtiram muito, se sentiram orgulhosos. A gente brinca, o Senac é uma mãe, todos na minha casa fizeram curso no Senac, eu fiz! Fiz curso de inglês, fiz curso de espanhol, outras coisas. Meu marido fez, meus três filhos fizeram curso no SENAC, então o Senac é carinhosamente chamado assim, o Senac é uma mãe. Porque o Senac me deu estrutura, o Senac me deu convênio médico para a família, o Senac me deu salário fixo, férias, décimo terceiro. Tudo isso para uma família, porque eu não entrei no Senac superintendente, eu entrei em outro contexto, a vida não era fácil. Mas a vida foi sendo estruturada com o meu trabalho e o do meu marido. Ele continuou com o escritório dele, que ele tem até hoje, mas o Senac possibilitou um lugar concreto, certo. Sabia que tinha aquele dinheiro todo mês, sabia o que não ia faltar, então foi um campo e um campo de muita… um campo muito afetivo na minha vida, as pessoas do Senac também passaram a fazer parte da minha vida, frequentar a minha casa, teve isso também. Então, tenho amigos que frequentam a minha casa, que são do Senac.
2:03:13
P1 - Como é a relação da superintendência? Você tem sessenta unidades?
R - Sessenta.
P1 - Sessenta unidades. Como é a dinâmica da relação com essas entidades? Como que ela funciona na prática em si?
R - Trabalham comigo outras quatro pessoas, tem um gerente do atendimento cooperativo, essa parte do atendimento a empresas, essa pessoa cuida dessas relações. E tem outros três gerentes de operações. Então, essas pessoas fazem o contato direto, diário com as 60 unidades. Mas eu procuro estar muito presente, então eu vou muito para as unidades, não fui durante a pandemia, mas antes da pandemia eu passei dois, três anos, que eu ia mensalmente a alguma unidade, até mais de uma vez por mês. Então, eu tive essa proximidade bastante. Acho que hoje eu tenho menos, menos, digamos, tem um cansaço mais físico, que não é fácil, 60 unidades se você for durante um ano uma vez por semana em uma unidade, não tem semana no ano que dê conta de ir em todas. Então, é um processo, vou indo, vou indo, mas procuro estar presente.
2:04:30
P1 - Essa é uma cultura do Senac de estar próximo, entre áreas, ou tem uma centralidade maior. Isso é uma característica sua ou do Senac?
R - Eu acho que é uma característica minha, eu acho que eu me coloquei esse papel, nesse papel, essa proximidade desse jeito, acho que foi da minha personalidade mesmo, da minha intencionalidade de estar próximo, entender. E isso proporcionou que eu pudesse agir, que eu pudesse ver e conversar e entender onde a gente poderia melhorar.
2:05:10
P1 - Pensando nesses 30 anos seu aqui no Senac, quais foram os momentos que mais te impactaram? Ou que foram mais impactantes para a história do Senac? Pra você pessoalmente.
R - Bom, pra mim pessoalmente, primeiro a entrada em si, que foi um universo novo e depois eu acho que cada uma dessas mudanças de status, elas me fizeram assumir, principalmente a responsabilidade sobre o que estava acontecendo. Então, quando eu virei uma gerente, uma gestora e entrei numa carreira executiva, isso me fez pensar muito. Depois, quando eu virei diretora de uma faculdade, isso me fez pensar muito. E aí quando eu me tornei superintendente, então foi um soco no estômago assim, de sensações diversas, porque é um cargo de muita responsabilidade e eu precisava entender quem eu era nesse universo. Eu sou a primeira mulher na diretoria do Senac, continua sendo a primeira mulher na diretoria do Senac. Então, embora eu não quisesse nunca ter isso do ponto de vista de uma vaidade, eu também sabia o quanto isso era representativo. E as mulheres falam isso para mim: “É tão bom ver você lá, ver que tem uma mulher lá.” Então, isso também me deu essa cobrança interna, vamos dizer assim. Quem eu estou sendo nesse lugar? Eu sempre tive muita cobrança comigo mesma, sobre quem eu tô sendo no lugar que eu estou. Eu brinco com meus amigos, no dia que eu for besta me belisca, eu não quero ser uma pessoa besta, eu não quero ser uma pessoa que não tem noção do que que tá fazendo e do que pode fazer. Eu não quero ser uma pessoa que não tem noção do país em que eu estou, do que eu posso promover onde eu estou, de quem eu posso ajudar onde eu estou. Então, eu sempre fui acompanhada de uma auto responsabilização muito grande, conforme eu fui caminhando assim.
2:07:22
P1 - E pra história do Senac, dentro da história do Senac, quais você acha que foram os momentos de inflexão?
R - Acho que a entrada na educação superior do Senac, ela veio precedida de alguns anos em que o Senac evoluiu demais do ponto de vista técnico, tecnológico e de se enxergar como uma instituição de ponta, isso culminou com essa entrada na educação superior, que foi bem importante, bem importante. E mais recentemente a entrada do Senac no ensino médio. O Senac passou a ofertar a partir de 2019 ensino médio técnico integrado, ensino médio integrado ao técnico. Meu neto é aluno do Senac, inclusive, orgulhosamente, meu neto é aluno do Senac, meu neto mais velho. Então, acho que foram marcos. No meio disso muita coisa vai acontecendo, muita coisa, mas são marcos porque representam novos públicos que a gente passa a atender e uma expansão da nossa capacidade de impactar a vida das pessoas. Um outro marco do Senac muito importante foi de 2008 para 2009, quando houve um acerto com o Governo Federal, para que a gente passasse a ter um programa de gratuidade forte, então a gente já a partir de então, a gente foi só aumentando a oferta de programas gratuitos e a gente já impactou, sei lá, um milhão e trezentas mil pessoas, que foram bolsistas, que vem sendo bolsista. Isso é um impacto real na vida do país. Não é… a gente tá transformando o país? O país todo não, mas uma parte dele sim, eu acho que sim, a gente traz um ensino de qualidade, um ambiente de qualidade. Você entra em uma unidade do Senac, essa daqui, você vê… É isso que a gente oferta em qualquer lugar, essa qualidade de relação, de relação com conhecimento, é uma biblioteca que qualquer um pode entrar. Tem conflito, tem problema? Tem, tem em qualquer lugar. A gente é um microcosmo da sociedade, a sociedade é um espaço de conflito, a família é, os amigos são, as outras escolas, os ambientes educacionais de trabalho são. Mas a gente tem uma característica, eu acho de ser uma ilha de excelência, uma possibilidade de ser, porque a gente tem cabeças que se propõe a fazer da melhor forma possível, isso a gente tem. Eu falo com orgulho do Senac. Eu acho que eu não poderia ter feito carreira num lugar melhor. E eu me lembro muito quando eu entrei no Senac, meus amigos arquitetos me olhavam com pena: “Ah é, você vai trabalhar no Senac, como seu…” Sem comentários! Sem comentários! Assim, primeiro revela todo preconceito com a educação técnica, todo preconceito. E assim, eu continuo sendo aquela arquiteta, eu só sou um monte de coisas a mais, eu sou a mais, aquilo não me diminuiu, ao contrário. Então, é interessante ver os preconceitos estabelecidos, pela própria sociedade. E, às vezes, como as pessoas enxergam o Senac e a educação profissional, ainda com um viés de inferiorização. Elas estão muito enganadas. E aí eu faço… eu falo isso com prazer, porque eu sei do que eu tô falando, eu vivo isso no dia a dia.
2:11:21
P1 - Você acha que já houve um avanço de entender o papel do técnico no país? Que o Senac vem conseguindo crédito?
R - Para quem entra no Senac, sim. Eu acho que as políticas públicas, elas deixam a desejar na educação de forma geral, porque quando se coloca a perspectiva do ensino técnico é para tapar um buraco que foi deixado pela educação básica e já me coloquei várias vezes publicamente sobre isso. Não adianta ter uma formação básica de fundamental e médio, ruim e daí falar, esse aluno, esse cara aí, essa menina que fez a escola pública e não consegue fazer conta em matemática e interpretação de texto, agora vai fazer uma educação profissional para ter um lugar ao sol. Não dá! Não é esse o salto que o país precisa ter. O país precisa ter uma educação básica, pública, de qualidade. E investir no ensino técnico também, porque quando a gente compara os países europeus, por exemplo, 70% dos alunos do ensino médio vão para o ensino técnico, na Alemanha é assim, em outros países também é assim. Então tem uma subversão aí de valores que vem de um processo histórico, no meu entendimento, que começou com a escravização, porque o trabalho é uma coisa inferior, o trabalho quem faz a pobre, o trabalho que faz é negro. No nosso país foi assim, a gente foi formado assim. Então, isso permeia a visão de trabalho da sociedade. Então, é muito complexo isso. Até os anos 1950, quem fazia um curso técnico, não podia continuar a estudar na faculdade. O que que é isso senão revelador de uma divisão de classes, de uma elite que não quer… que quer continuar sendo uma elite. Isso formou o nosso país. Então, o nosso país precisa rever isso, precisa rever. Precisa rever essa extrema valorização da educação superior em detrimento, não pode ser em detrimento de uma educação inferior. Porque é um pouco isso que tá, talvez no ideário aí mais comum, ou as pessoas não entendem muito. Mas pra mim, hoje eu tenho essa clareza, essa quase certeza, a gente precisa de outro tipo de investimento no país que é em relação a educação básica. É isso que vai mudar esse país.
2:14:25
P1 - Lucila, nesse período que ficou, desde que você está como superintendente e no país, trocas de governo, um governo mais progressista durante 10 anos, outros não e outros mais ou menos, enfim, não nominando. Qual é o relacionamento do Senac, o Senac é chamado, por exemplo, pelo Ministério da Educação?
R - Não, o Ministério não, o Ministério pode se aproximar, mas não exatamente com as representações estaduais. Tem um departamento nacional do Senac, que tem sede no Rio, esse sim é chamado para certas instâncias, têm a CNC, que é a Confederação Nacional do Comércio, que também se envolve. Agora, como parceiros, nós nos envolvemos institucionalmente, independente de governo. Se nós somos chamados para reuniões, para parcerias, nós estamos ali de instituição para instituição.
P1 - E acontece isso?
R - Acontece! E não nos compete julgar, a gente julga a coisa em si, se nos interessa, se temos condições de atender, se não temos. É isso!
P1 - Mas existe….
R - Existe! De prefeituras, de todas essas, todos esses lugares onde tem Senac no estado, as prefeituras procuram para ações locais. O governo do estado nos procura para ações, o governo federal se envolve através das representações mais nacionais, como são a CNC e o departamento nacional de Senac, para participar. Por exemplo, quando teve o Pronatec no governo Lula, nós participamos nacionalmente.
2:16:05
P1 - Isso que eu ia perguntar, porque tem esse relacionamento, digamos assim, não de balcão, mas pra apoiar um evento e pra alguma outra coisa, mas no sentido de influenciar política pública?
R - Aí, influenciar política pública, eu acho que tem, a gente tem alguns representantes, pessoas ligadas ao Senac, provavelmente Sesc, Senai e tudo, em algumas frentes. Não é uma coisa assim, tão… Mas, em questões pontuais, nós somos chamados a conversar, trocar ideias sim.
P1 - Você participou de algum momento desses?
R - Não, diretamente não! Eu participo de algumas reuniões, já tive reuniões com prefeitos muitas vezes, mas mais nesse papel de superintendente de operações, mas com prefeituras que tinham interesse em ter Senac, então esse papel eu fiz muito, em épocas de expansão do Senac, a gente definir pra gente onde a gente iria. Já tive reuniões com o prefeito da capital, com secretários de estado, já fizemos ações conjuntas, diretamente, eu participando diretamente sim, participando de determinadas políticas públicas, então, por exemplo, nós tivemos quando a Secretaria de Assistência Social do Haddad, quem era a secretária era a Luciana Temer, a gente teve vários trabalhos comuns, vários trabalhos comuns. Então, foram trabalhos muito interessantes. Eram propostas interessantes e a gente tinha condições de estar na parceria, então a gente faz uma análise técnica. As convicções pessoais nesse momento são deixadas de lado em função de uma ação institucional. Eu to no Senac, eu vou sair um dia, vai entrar outra pessoa, saíram várias, entraram outras. A instituição tem o seu propósito, a gente cumpre esse propósito, da instituição. E a gente avalia o quanto a gente pode participar ou não. E a gente é bem sincero, quando a gente tem braço a gente vai, quando a gente não tem braço a gente não vai. É mais ou menos isso.
2:18:16
P1 - O Senac… como vocês avaliam, tem essa mensuração da avaliação de impacto na vida das pessoas? Eu não to falando institucionalmente, mas da experiência que você teve, alguns…
R - A gente vê pai de aluno falando. Não, a gente vê pai e mãe de aluno falando: “Nossa, o meu filho depois que entrou aqui, ele não gostava de estudar, agora ele gosta” A gente ouve muito isso, realmente ouve muito isso. Agora, no ensino médio, os pais dão muito retorno, mesmo no ensino técnico, eu acho que a gente teve várias experiências interessantes. A gente busca ter uma metodologia educacional que realmente envolva o aluno, que não seja uma coisa conteudista exclusivamente, mas que esteja focado na compreensão do seu papel como profissional e do como fazer e como isso se relaciona com a sociedade. Então, a gente trabalha muito em função de projetos. E isso é visível, quando a gente vê depoimentos de alunos, depoimentos de professores, de pais de alunos. A gente teve… tem muitos casos, são milhares e milhares de pessoas.
P1 - Tem um específico?
R - Que eu possa lembrar agora, não! Eu não me lembro de um específico. Tô lembrando de um caso recente que a gente teve, de um aluno que foi num evento nosso sobre educação, um evento que a gente… um fórum de educação que a gente faz todo ano. De um aluno que foi contar a sua história ali, ele é aluno do Senac de Campinas, ele participou de um… tipo um concurso que a gente faz pra empreendedorismo, pra incentivar os alunos a criarem projetos. E ele criou um aplicativo que mapeava salões de beleza especializado em cabelos afro, por exemplo. Então é esse tipo de ação, que esse aluno, ele começa a se empoderar também do ponto de vista social. E a entender o seu papel nisso. Então, a gente tem muitos alunos que acabam percebendo uma capacidade, um talento. Talvez, em outros ambientes, eles não consigam, eles não têm a oportunidade de perceber seus próprios talentos. A gente procura estimular muito isso.
2:20:55
P1 - Olhando assim, a sua trajetória de vida dentro do Senac, tem alguma coisa que você faria diferente?
R - Tem hora que eu penso que sim, tem horas que eu penso que não, porque eu acho que se eu tivesse feito diferente, eu não teria tido oportunidade de ter as experiências que eu tive. Que foram muito legais. Então, assim, me sinto uma pessoa extremamente realizada. Talvez sim, pequenas coisas em relacionamentos, palavras que a gente se arrepende de ter dito, abraços que não foram dados. Mas do ponto de vista mais de profissional mesmo, eu acho que não. Pessoal também não! Eu me sinto uma pessoa realizada, entre os erros e acertos, a gente vai aprendendo que a gente não é perfeita, que a gente tenta ser, mas a gente nunca vai ser, então sempre vai ser alguém que vai achar alguma coisa equivocada naquilo que você fez, por mais que você tenha a melhor das intenções, pode ser seu filho, seu marido, seu colega, seu chefe, sua mãe. A gente vai estar sujeito a isso. Mas eu acho que a gente tem que dar a cara para bater, porque se você não vai, você fica. Eu prefiro ir, sempre preferir ir, apesar dos riscos, apesar de deixar alguma… quando você vai, você deixa alguma coisa. Então, eu fui ter uma carreira, os meus filhos tiveram que saber se virar, eu fui ter uma carreira, em algum momento isso pode ter tido um estranhamento do meu marido também, que sempre me incentivou muito, mas é difícil, não é fácil! Então, assim, são coisas que a gente vai… alguma coisa você deixa, alguma coisa você ganha. Então, eu prefiro achar que eu fiz o que eu tinha que fazer porque se tivesse mudado alguma coisa a história seria outra e eu não sei se ela teria sido melhor. Ela teria sido diferente em algum ponto, diferente. Eu acho que é sempre tempo da gente se rever, tem dia que a gente tá melhor, tem época que a gente tá mais nervosa, porque não existe uma separação do pessoal e profissional. É outra coisa que me irrita, falar: “Ah, não! Você deixa a sua vida pessoal fora, aqui você é profissional.” Não existe! Existe um uno ser que é você, eu, ela, acabou com tudo. Você num determinado papel, você está mais focada numa coisa, mas você não deixa de ser aquela pessoa, você é uno. Então, eu acho que é isso! A vida é isso. A vida é isso! E você sabendo lidar. E ao final das contas, eu me arrependo de alguma coisa? Não posso, não posso! Foi tão legal que eu não posso, não posso me arrepender mesmo de tudo aquilo que foi dolorido, porque a dor não foi a coisa que me constituiu na vida, a perda dos meus bebês não me constituiu. Me constitui muito mais ter cinco netos hoje, ter tido um prolongamento de vida. Também acho que é um pouco da personalidade, eu brinco com uma metáfora minha pra vida, eu tenho uma prima que sempre fala para mim isso: “Nossa, eu agora todo dia eu acordo e lembro de você.” Porque a vida para mim é assim, é como se eu morasse numa fazenda, se eu não levantar e não tirar o leite da vaca, não vai ter leite, se eu não plantar, não vai ter o que comer, se eu não colher a fruta, ela vai apodrecer. Então, a vida é morar numa fazenda. Acorde na hora que tem que acordar e faça o que você tem que fazer hoje. Arregaça a manga e vai! Pronto! Faça sua vida na sua fazenda. E meio isso.
2:25:03
P1 - Como é seu cotidiano fora do Senac? Que dizer, o que você gosta de fazer?
R - Bom, tô casada há 40 anos com o mesmo marido. A gente se dá bem! Como qualquer casal, tivemos nossas crises, mas hoje a gente olha um pro outro e fala: E eu e tu, tu mais eu! Vamos continuar juntos que agora somos só nós dois.” Tive três filhos, os três formaram suas famílias, algumas… um filho meu separou, a minha outra filha separou também, uma… Enfim, aí tiveram filhos, tenho netos, cinco netos, o Teo, o Gaspar, o Martin, a Serena e a Maitê, perdi uma netinha o ano passado, faz um ano, a Celeste, minha filha perdeu um bebê, minha filha do meio, com nove meses. Foi muito triste para mim ver minha filha ter uma história parecida com a que eu tive, coisas da vida. E os meus filhos são muito parecidos e muito diferentes ao mesmo tempo. A minha filha mais velha, ela tem uma pousada no Ceará, durante um tempo ela morou lá, ela já morou na Argentina, já morou no litoral, ela é muito… ela vai pra vida sem medo. Então, eu acabei, por conta disso, tenho uma casa no Ceará, que é pra onde eu vou sempre, numa praia que se chama Praia de Redonda, foi um outro aprendizado, é uma comunidade de pescadores onde eu aprendi muitas coisas, é um lugar que teve reforma agrária. Então, são coisas assim que as pessoas do Sul maravilha não conseguem entender. Não conseguem, se elas não vivenciaram. Aqui a gente vive um lugar extremamente urbano e com uma infraestrutura privilegiada e a gente não consegue alcançar o que talvez seja a vida do brasilzão. Eu tive esse privilégio de poder conviver com isso. Então, esse é o lado da minha vida nos últimos 10 anos, de amor pelo Ceará, principalmente por essa comunidade, que é muito intenso, é muito intenso. Então, isso é uma das coisas que eu gosto de fazer. Eu gosto de estar com a família, eu gosto de reunir meus filhos em casa, eu gosto de estar com os meus netos, eu sou aquela avó mesmo, quando eu tive meu primeiro neto, eu quis morrer, porque eu falei: “Ele é meu também!” Foi uma coisa, é um amor, é uma loucura, eu me entrego, sou vovó, sou vovó, vou fazer a comida que o netinho gosta, vou dar o dinheirinho por baixo do pano pro meu neto mais velho. Sabe aqueles memes da avó? Eu sou a avó, me entreguei, adoro esse papel, eu adoro, adoro, adoro, adoro. Sou muito maternal, acho que fui o que pude ser e sou o que posso ser com os meus filhos também. Mas com os netos é outra relação. E gosto de viajar, tive muitas oportunidades de viagem pelo Senac, viagens internacionais. Então, conheci muitos países também por conta disso. E fui apresentar trabalhos em congressos também pelo Senac, foi uma vivência muito bacana. Tem poucos e bons amigos, amigos de décadas, de décadas. Tenho duas amigas em especial, uma chama Marina, outra chama Sueli, que a gente tem uma amizade aí de praticamente 40 anos e a gente tem um compromisso de fazer café nos fins de semana, sempre que a gente pode. Às vezes, somos só nós três, às vezes, vem as filhas, que são amigas, nossas filhas entre si, às vezes, vem as filhas com a família, às vezes, vem algum amigo da filha, mas se não tem ninguém, somos nós, no que a gente chama de Chá das Fofas. Então, a gente faz uma terapia, porque cada hora é uma que tem um problema familiar, com marido, com filho, com a vida, com a mãe doente, com um ser querido que se foi. E a gente faz terapia e a gente dá risada e a gente toma café e come bolo. Então, é uma relação muito legal, muito legal também, que a gente preserva. Eu acho que isso faz a gente suportar certas coisas. E eu falo que o meu trabalho me salvou, o meu trabalho me salvou de ser alguém que fosse oprimida pela vida familiar. Eu tive o meu respiro, assim como o meu marido teve o dele, ele tem os amigos dele, que eu sei quem são, mas é a turma dele. Eu também tenho meu trabalho, eu tenho uma vida independente, eu acho que isso eu devo à fala da minha mãe, que dizia lá atrás pra mim e pra minha irmã: “Sejam independentes!” Nós seguimos a risca. Eu acho que foi a melhor coisa que ela podia ter dito para duas filhas mulheres. “Sejam independentes!” A gente foi e fez! E pronto! Que não significa que a gente não é feliz nas famílias que nós formamos. E que a gente inclusive repita um papel de mulher dentro da família ainda. Mas a gente teve o respiro que a geração da minha mãe não teve, numa realização profissional.
2:30:49
P1 - Lucila, como é que você vê o futuro do Senac? Como é que você imagina o Senac, ou o que você prospecta nele?
R - Ah, eu vejo muita coisa boa, porque eu acho que assim, enquanto a gente for, puder ser essa instituição que tem os recursos que a gente tem, a gente traz uma coisa muito diferenciada. E quanto mais pessoas puderem usufruir disso, melhor para todos. Porque eu acho que quem passa pelo Senac, passa por uma experiência transformadora, no mínimo passa por um lugar onde você tem coisas boas e você sente o gosto de estar num ambiente respeitoso, aprende com isso, tem acesso. Então, eu acho que tem conhecimento. Então, eu acho que esse é o nosso papel, é continuar sendo esse ambiente. Eu acho que a gente pode continuar por muitos anos sendo esse ambiente mesmo.
2:31:50
P1 - Lucila, encerrando, deve ter milhares de coisas que eu não toquei no assunto, porque não caberia aqui, ou a gente pode também gravar em um outro momento, se você achar que é o caso. Mas tem alguma coisa que agora te ocorre deixar registrado nessa história do Senac, na sua vida pessoal, que você acha que tem que deixar registrado?
R - Eu acho que a gente precisa ter sonhos. Eu acho que o Senac é um ambiente que proporciona sonhos, eu acho que eu aprendi a sonhar e a entender o que era utopia, na minha família, pesquisando a história da minha família, pesquisando quem foi a mãe da minha avó negra e conseguir chegar até a minha tataravó escrava, eu consegui achar ela, eu consegui saber quem ela era, eu fui atrás. Eu consegui saber a história da família paterna, daqueles que foram buscar uma sociedade melhor, por isso eles eram anarquistas, por isso eu tive um tio avô que foi preso e acabou se suicidando, porque deve ter sido torturado e etc. São pessoas que foram buscar vidas melhores. O meu avô materno, a mesma coisa. Então, eu me sinto feliz de fazer parte de alguma forma dessas pessoas que procuraram olhar o mundo com um compromisso. E eu acho que o meu pai foi isso, a minha mãe também foi isso. E eu sempre tive isso dentro de mim, então fazer parte daquele grupo de jovens, foi parte dessa tomada de consciência e de preparação. O MAS. Fazer a urbanização da favela, foi parte disso. Trabalhar no Senac me consolidou como… um espaço onde eu pude de alguma forma ter uma voz também nesse sentido, da gente se colocar à serviço da sociedade, o Senac está a serviço da sociedade. Então, eu acho que a gente precisa ter esse espaço de sonho e de uma utopia, de uma coisa melhor. E aprender a lidar dentro disso com todas as diversas mentalidades, mas achar um caminho comum para que isso se efetive. Eu acho que isso é o que todo mundo devia olhar pra si e falar: “O que que eu tô fazendo no mundo? Pra onde que eu vou?” Eu acho que é isso.
2:34:25
P1 - Lucila, o que que você achou de contar a sua história e ter a sua história nessa entrevista e ter a sua história guardada no Museu da Pessoa?
R - Olha, falar pra mim é fácil, mas ter uma história guardada, eu fiquei pensando, por que que eu aceitei isso? Me deu até um certo medo, eu vou falar tudo isso e alguém vai poder usar minha imagem? Em tempos de inteligência artificial. Eu corro risco? Não corro? Ao mesmo tempo, assim, eu posso ajudar alguém a pensar em alguma coisa, contribuir? Foi um misto de emoções que eu tive, de verdade, foi um misto entre pensar assim, por que eu tô falando? Por que eu vou falar? Por que… Mas eu acho que todas as pessoas e isso eu sempre achei legal no Museu da Pessoa, todas as histórias que a gente… que puderem ser contadas, elas têm ensinamentos, elas tem coisas para a gente pensar. E como você falou, a gente vai achar similaridade. Nossa, essa pessoa passou por isso, mas eu passei por aquilo, olha, são dores parecidas, ou são alegrias parecidas, ou enfim. Então, eu acho que a história de vida é a coisa mais rica que tem num agrupamento de pessoas, eu falo muito isso no Senac, eu sempre falei, cada pessoa que chega num lugar ali, numa unidade que a gente tem, não existe história igual, nem gêmeos tem história igual, porque cada um tem uma cabeça. Então, é muito importante a gente falar dessa história e a gente buscar histórias e resgate num país que muitas vezes não tem memória. Essa minha vivência no Ceará, me deu oportunidade de ter contato com histórias que são assim, maravilhosas. A minha filha faz um resgate da história dessa comunidade, ela resgata fotos lá e tá buscando. Agora eu fui pra lá e eu fui na prefeitura também, buscar, para ajuda-lá. Então, assim, são histórias, são modos de viver, de fazer, de comer, de produzir artesanato, que se a gente não registrar, que a gente não contar, daqui há 10 anos não tem mais. Eu acho que o Museu da Pessoa faz isso, resgata histórias, víveres, que são muito importantes. Então, eu acho legal contribuir, mas me deu um certo frio na barriga. Por que que eu tô fazendo isso? Não pode ser por orgulho! Não pode ser por vaidade! Fiquei pensando muito nisso.
2:37:17
P1 - Lucila, vamos falar um pouco dessa sua busca pelas origens. Que momento você falou: tenho que ir atrás das minhas origens?
R - Eu sempre gostei muito de ter fotos, recordações, objetos. Então, conforme eu fui crescendo e alguns parentes foram morrendo, eu ia lá e ficava com um bule, uma xícara, uma roupa. Isso foi sempre uma coisa assim… eu comecei a gostar de guardar essas referências. Então, a minha casa acabou sendo meio que um museu. Tio do meu marido que não tem nada a ver comigo, eu falava: “Não, isso aqui um dia vai ser dos meus filhos. Eu vou dizer: isso foi do tio tal, isso foi da tia tal.” E eu tenho um tio, do lado paterno, que ele foi fazendo a árvore genealógica da família, dos dois lados, do pai e da mãe do meu pai e isso sempre me interessou muito. E do lado da minha mãe, as referências eram menores, porque não tinha mais ninguém vivo pra contar história, o pai da minha mãe faleceu ela era criança, tinha quatro anos e aí o irmão dele faleceu há muito tempo, a mãe dele faleceu quando a minha mãe era jovem, a avó dela, então não ficou ninguém pra contar a história daquela família. O que eu sabia era de orelhada, assim, de uma outra coisa. E a família da mãe da minha mãe, a mãe da minha mãe era uma mulher negra, que tinha casado com um italiano e eu sabia que a mãe dela tinha sido escravizada, era filha de uma escravizada, mas que o pai dela era uma mistura ali de português com espanhol, com ‘índio’, com tudo que você imaginasse. Então, pra mim a coisa começou quando… um dia eu tinha que ir na na unidade de Itu, no Senac, daí eu lembrei que tinha uma tia, uma tia, uma prima da minha mãe em Itu, que ela nunca mais tinha visto. E eu, do nada, resolvi procurar na lista telefônica o nome dessa pessoa, dessa prima da minha mãe. Eu achei! No dia que eu ia pra Itu, eu liguei para ela e perguntei se eu podia dar um oi para ela. Ela nunca tinha me visto na vida e há décadas não tinha mais contato com a minha mãe. Aí fui lá, ela me recebeu simpaticamente, me deu uma uma cópia xerox de uma foto da minha bisavó com quatro dos seus seis filhos, a minha avó não estava naquela foto. E me deu uma cópia da certidão de casamento dessa minha avó, que era negra. Eu não tenho o rosto do marido dela, mas essa minha bisavó negra, teve um filho com cada cara do mesmo pai, então eu imagino a mistura que não era. Porque nenhum era negro como ela, bem negra, os outros eram mais pardos, digamos assim e um deles era loiro de olhos azuis e tinha dois metros de altura. Então, aquilo sempre me intrigou. Aquela foto era fantástica, todos muito arrumados, com sapato bonito, as mulheres com uma correntinha, uma coisa arrumada. Então, eu sempre admirei muito aquela foto, mas como é que eu ia achar alguma coisa? A história negra não foi contada, a história negra foi apagada, ninguém sabe, porque falaram que a gente descendia de escravos. E ainda bem que hoje isso muda, nós descendemos de pessoas, reis, rainhas, inclusive, príncipes e princesas, que foram raptados e escravizados. É muito diferente do que dizer que a gente foi, que a gente descende de escravos. E quando eu fui conversar com essa prima da minha mãe, o nome dela é Vitória Pires, eu acho que ela morreu, eu nunca mais a localizei, o telefone não atende, eu tentei depois outros contatos. E aí, ela comentou comigo, que alguns jornais de Itu continham muito da história antiga, porque foram digitalizados na USP. Aí, aquilo me deixou absolutamente enlouquecida, enlouquecida. E aí, eu nunca tinha pensado nisso e é uma informação importantíssima, porque Itu foi uma cidade muito importante, tinha dois jornais na cidade. E na medida que esses jornais foram digitalizados, quanta gente pode recuperar dados familiares, porque eram noticiados os nascimento de escravos, mortes de escravos, de escravizados, de gente comum, de gente rica, do dono da fazenda, era noticiado quanto cada um pagava de impostos. E eu comecei a olhar pela data de casamento que eu tinha da minha bisavó e pela presumida idade com a qual a minha tataravó tinha tido filhos, eu comecei a jogar nomes e fui entrando em cada edição de jornal por muito. E aí, começaram a surgir informações, eu jogava o nome de quem era o dono da minha tataravó, o fazendeiro, aparecia uma coisa. E um dia eu achei, eu sabia que o nome dela era Carlota Rodrigues. E eu achei um quadradinho assim, num jornal, que estava escrito, que estava informando o falecimento de Carlota Rodrigues, escrava de fulano, fulano que era o mesmo nome que eu tinha. Eu falei: “É ela, eu achei ela!” Em 1884, se eu não me engano. Eu falei: “É ela, eu achei ela! Eu achei a minha tataravó.” Eu posso ter certeza absoluta, não! Mas eu posso ter um índice alto, porque é o mesmo nome, é o mesmo homem e as datas batem, mais ou menos quando ela deve ter nascido. E depois eu tive a certeza que era ela, porque… E aí eu fui.. Precisa ter tempo pra isso. Então, eu descobri isso, aí eu peguei o nome da minha bisavó e comecei a olhar os jornais um pouco mais recentes, aí eu achei o marido dela, o pai do marido dela, que eu não tenho o menor registro da feição dele, quem era, não tenho como saber. Tenho dela. Mas aí, ela se casou com um homem muito mais velho, a minha bisavó, ficou viúva e ela tinha um sítio, tinha uma produção de café e ela pagava impostos. Então, ela era uma cidadã, que apesar de ter sido escravizada, fez todos os filhos estudarem, numa época em que as pessoas eram analfabetas, ainda mais descendentes de escravizados. Então, a minha avó negra, ela escrevia, lia e escrevia, as minhas tias também, todo mundo. Meu tio era maquinista, o meu tio avô. Então, essa mulher que se chamava Brasilicia, essa mulher foi incrível, ela ficou viúva, soube se impor numa sociedade de alguma forma, com tudo aquilo que ela deve ter sofrido. Então, eu reconstitui um pouco dessa história e isso me aproximou muito da minha mãe, porque a minha mãe não pode ter orgulho na vida dela dessa história e ela passou a ter. E ela falava assim para mim. “Tá vendo, eu sabia, eu sabia que eles nunca foram pobres de marré, marré de si. Porque sempre teve uma dignidade neles, tá vendo!” Ela era produtora de café, estava até lá no jornal o nome dela. E aí, mais recentemente, é achar agulha no palheiro, eu tenho certeza que aquela notícia é da minha da minha tataravó, porque eu achei depois, mais recentemente, deve fazer um ano, eu achei uma outra notícia também, assim, depois de muita pesquisa.
P1 - Quantos anos você tinha quando você começou, quando você foi pra Itu?
R - Sei lá! Foi 2008, 2009, foi por aí. Aí eu achei uma outra notícia, que era do meus tataravós, que eram sogros da minha bisavó, que casou com esse homem que eu não sei quem é, mas eu achei uma notícia dos pais dele. E a minha mãe dizia assim: “Tem uma portuguesa nessa história, tem uma portuguesa.” E eu peguei o nome dessa bendita portuguesa e achei um documento que dizia que ela morou no Congo, porque tinha uma colônia portuguesa lá. Então, eu tenho muito ainda a descobrir e eu ainda pretendo descobrir um pouco mais. Mas eu consegui de alguma forma mapear, que sim, a portuguesa existia, existia a Ana Joaquina de Oliveira, eu achei a Ana Joaquina de Oliveira, eu achei o Anastácio e o Inácio, que era pai e filho, o Anastácio era o marido, era o pai da minha avó e o Inácio era o pai dele. Eu achei essa família, eu consegui achar o endereço deles em Itu. Eu fui até lá, não existe mais a casa, mas eu tive a petulância de ir até lá e olhar. É uma delegacia hoje. Era aqui nessa casa que eles habitavam. Então, assim, pra mim foi muito importante, porque me deu um orgulho muito grande dessas mulheres fortes que sofreram demais e que se não tivesse tido cada uma delas, eu não tava aqui, eu não existiria. Então, eu tenho uma devoção a elas, a todas elas. Principalmente as que sofreram mais, principalmente as que foram mais maltratadas, eu tenho essa devoção. E foi também numa busca de um parente, que a minha mãe dizia. “Meu primo Geraldo, os parentes do lado do meu pai, nunca mais vi!” Eu jogava o nome na internet, na internet não aparecia nada. Um dia eu fui de novo na lista telefônica, jogava um nome, jogava um outro, que eu não sabia o nome certo das pessoas, eu punha o sobrenomes. Aí, eu joguei lá, Geraldo Cortez, apareceu uma coisa, um escritório lá de protética. E eu tinha ouvido falar alguma coisa que tinha um trabalho a ver com isso. Mas era o endereço de um lugar que não estava mais funcionando. Eu mandei uma carta para esse lugar, eu falei, alguém vai recolher cartas se tiver nesse lugar. Escrevi de próprio punho: “Prezado Geraldo, eu sou filha de Terezinha, eu não quero nada!” Essa aí vai procurar uma herança, não tem herança. “Não quero nada, eu só tô fazendo um contato, porque minha mãe sempre falou de você.” Mandei pelo correio essa carta, dando meu telefone. Meses depois toca o telefone na minha casa. “Queria falar com a Lucila.” “Pois não?” “É o Geraldo.” Quase morri, eu quase morri! “Eu sou primo da sua mãe. Eu fui lá na casa, tinha essa carta e eu resolvi te ligar.” E aí, eu fiquei em êxtase. Conversei, falei: “Ah, Geraldo, minha mãe vai ficar feliz, não sei mais o quê.” Ele era, acho que assim, uns 10 anos pelo menos mais novo que a minha mãe. Ele faleceu já. Tudo que eu vou visitar depois morre, gente! Não quero fazer essa relação não, mas eu falo, nossa, eu não vou nem contar quem eu vou visitar. Aí ele ligou pra minha mãe, eles conversaram. E aí, eu falei: “Mãe, vamos visitar?” Eu e meu marido, eu falei para ele. “Guto, você topa levar a gente pra Itu?” Eu não conhecia ninguém. Eu falei: “Olha, a gente vai fazer o seguinte, a gente fala que a gente vai só tomar um cafezinho, porque eu não sei como é a mulher dele, como é a família dele. Aí chega um monte de gente que nunca viu você e chega na sua casa.” Eu combinei, falei: “Olha, é uma coisa muito rápida, nós vamos pra Sorocaba e de lá a gente vai passar aí só para vocês se verem, é um cafezinho e a gente vai embora. Tá bom?” “Ah, tá bom e tal.” Levei, comprei bombons muito deliciosos. Fui eu, meu marido que me acompanha nas minhas ideias, mas ele não faz nada disso, eu pesquiso da família dele também, essa é outra história, que a mãe dele é descendente de árabes e eu descobri um monte de coisas pra ele. E aí, eu, ele, a minha mãe e o meu neto, o Teo, eu levei o Teo junto nessa, o meu netinho, que hoje tem 16 anos já. E lá fomos procurar a casa do Geraldo, bater na porta, foi uma emoção muito grande, porque o Geraldo era apaixonado pela minha mãe, quando ele era adolescente. Ele falava assim para mim e para o meu marido. “Essa mulher era linda, ela era a mulher mais linda que já existiu, eu era apaixonado por ela.” E a mulher dele ouvindo. Mas tudo bem, era tudo véio já, 80 anos. “Mas ela era uma mulher muito linda, eu admirava muito a Terezinha, não sei mais o quê.” E aí, ele foi quem me contou as histórias do meu avô paterno. Foi ele que me falou: “Você sabia que o seu avô era anarquista e que ele era muito ativo na comunidade de Sorocaba.” E aí, eu também fui pesquisar isso e acabei achando o nome das duas famílias, Cortez e Sbrana, num artigo que o Rodrigo me mandou, contei a história pra ele, que é o gerente de Sorocaba. Sobre as famílias anarquistas de Sorocaba. Então, tudo se relaciona assim. Então, se a gente não resgata… Uma coisa que eu quero fazer, é fazer, sei lá, um vídeo, um álbum, tudo, que eu quero ter tempo pra fazer pros meus netos, pra deixar. Eu imprimo tudo, eu faço um monte de coisa, mas talvez seja mais fácil… É exatamente o que eu ia falar, tô deixando aqui esse relato de uma história que é comprovável, de uma história que eu tenho documentos. Achei batismo de pessoas, porque os escravizados tinham que ser batizados, então na igreja tem muita coisa, então as pessoas que querem buscar, elas precisam saber onde elas vão buscar, começa nas igrejas, começa nos registros de batismo. Se o lugar tinha um jornal e se alguma coisa foi digitalizada. Foi o que aconteceu comigo, você consegue achar um caminho. E o meu caminho, por fim, é um dia eu ir na África e descobrir de onde eles vieram. Não sei se eu vou conseguir, mas eu fiz eu um teste de DNA, pra achar o lugar, tal, esses testes que tem hoje e fiz para minha mãe. E foi muito interessante, a região ali do Congo, Angola, era uma coisa só, era um reino só. Então, aparece mesmo uma possibilidade maior de lá e lá tanto de negros, quanto dos brancos, dessa Ana Joaquina de Oliveira, que era mulher branca e talvez o marido dela também. E é tão interessante que a minha mãe, minha avó dizia, minha mãe dizia, da parte da minha avó materna, a mãe dela era de ascendência africana e o pai, era misturado, espanhol, português e ‘índio’. E no exame da minha mãe deu que ela tinha algum componente de indígena brasileiro. E no meu já não aparece isso e no dela apareceu. Então, essas histórias são histórias verdadeiras, só que como era uma época que não tinha registro, não tinha foto. Hoje a gente registra cada dia da vida, cada dia você tem uma foto linda sua, que você põe no facebook. Então, assim, pra mim isso foi muito importante, resgatar essa história, conhecer essas histórias, conhecer as histórias de pessoas que eu acho que eu me relaciono com elas, eu. Eu me relaciono com a minha tataravó Carlota, eu me relaciono com a minha bisavó Brasilícia, eu me relaciono com a minha avó Margarida, eu relaciono as minhas filhas com elas, porque as minhas filhas têm orgulho dessa linhagem de mulheres. Eu me relaciono com a minha bisavó italiana, pobre, que teve um monte de filho e que teve um filho que se matou, só porque lutava por um mundo melhor. São mulheres muito importantes. E são histórias que, às vezes, as famílias, elas querem fingir, porque você falar que teve alguém que se matou era muito feio, porque falar numa cidade conservadora, cabecinha, que é Sorocaba e que é interior paulista, que tinha um parente, ou no meu caso, vários, anarquistas, era uma coisa que não podia falar. Ainda mais depois que teve a ditadura e tal. Eu tenho orgulho! Por que essas pessoas optaram por isso? Porque a vida era cruel, porque uma pessoa… o meu pai começou a trabalhar aos dez anos, com sete anos uma pessoa tava na fábrica e ficava até oito horas da noite, que vida é essa? Tinha que ser anarquista, tinha que ser comunista. Então, quando a gente não conhece o contexto histórico e fica comprando palavrinhas superficiais, que são as palavras de hoje, a gente está cometendo um crime com essas pessoas que lutaram. Uma crise póstuma com essas pessoas. Esse meu tio avô, só para finalizar a história das raízes. Esse meu tio avô se chamava Abílio Sbrana, que foi preso e acabou… eu não sei a circunstância do suicídio, se foi na cadeia, não sei! Mas pra você ver, essa linhagem da família do meu pai, meu pai se chamava, vermelho, Hélio Rubens, ele tem um primo, filho desse meu tio avô Abílio, que se chamava Líbero Hélio, a irmã dele se chamava Isola Líbera. É tudo nome de gente que tinha muita utopia de liberdade no mundo, muita vontade de um mundo igual. Eu acho isso bonito e forte. E eu conheci esse primo do meu pai, Líbero Hélio, só que eu não sabia muito bem a história por trás, só fui saber essa história depois. O ano passado, o meu único tio vivo, irmão do meu pai, fez 90 anos e fez uma festa e eu fui nessa festa e quem tava lá? Libero Hélio, já velhinho. E eu sabia que o Abílio Sbrana, tinha sido pai dele. E eu encontrei esse Abílio Sbrana num livro sobre os trabalhadores revolucionários do Brasil, sobre a história dos trabalhadores… tá lá a foto dele preso no DOPS. E aí eu perguntei para uma das filhas dele: “Será que eu podia falar sobre esse assunto com o seu pai? Sobre o pai dele?” Aí elas falaram: “Ele vai adorar!” Aí eu sentei do lado dele e falei: “Líbero, eu queria te falar uma coisa, eu queria te contar que eu tenho orgulho do seu pai, de quem ele foi.” Ele ficou tão feliz, ele ficou tão feliz! Eu falei: “Eu sei a história dele, eu me identifico com esse lado.” Ele falou assim: “As pessoas não entendem assim.” “Eu sei!” “Eu não posso nem falar atualmente que meu pai era comunista, ou que era anarquista, porque as pessoas são tão burras que elas não entendem o que estava por trás dessas lutas, as injustiças.” Eu falei: “Eu sei! Mas eu quero te dizer aqui, que eu tenho orgulho dessa história e que eu passo essa história adiante para os meus filhos.” E fiquei conversando com ele, eu fiquei muito feliz nesse momento, de eu poder dizer para ele, que eu reconhecia o pai dele, que ele mal conheceu, porque morreu quando ele era pequeno e essa história era uma história abafada numa família que devia ter orgulho de pessoas que lutaram. E quantas histórias não são assim? Quantas histórias não são assim? Então, é isso! Vamos atrás das histórias.
[Fim da Entrevista]
Recolher