Projeto: VLI – Estação de Memória: Porto & Pesca
Entrevista de Marly Vicente da Silva
Entrevistada pro Ane Alves e Fernanda Boer
Cubatão, 08/08/2025
Entrevista nº: VLI_HV004
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrito por Arielle Oliveira Paro
Revisada por Ane Alves
P1 - Dona Marly, para iniciar, a senhora pode se apresentar, por favor, dizendo o seu nome completo, seu local de nascimento e a data.
R - Eu sou Marly Vicente da Silva, pernambucana de nascimento, cubatense de coração. Nasci em Recife aos 14 de agosto de 1955.
P/1 - Dona Marly, e a senhora sabe por que te batizaram, colocaram o nome de Marly?
R - Olha, minha família, como todo bom pernambucano, tem uma coisa diferente com os nomes. Então, os meninos iniciavam com a letra J e as meninas com a letra M. Então, minha mãe teve só 18 filhos. Então, todas as meninas eram Marli, Marlene, Marilene, Madalena, Maria José, tal, aquela coisa. E os meninos eram Josias, José, Jessé, Joel, Josué. Então, tinha essa coisa assim. Então, no finalzinho, destoou porque o caçula saiu do Jota, foi pro B, que era Benício, porque era meu pai. Então, foi Benício Júnior.
P/1 - E o dia do seu nascimento? Alguém contou pra senhora como foi?
R - Sim. Minha mãe fala que eu sempre fui, desde o nascimento, muito adiantada do meu tempo. Porque ela não esperava entrar em trabalho de parto naquele momento e entrou em trabalho de parto e meu pai foi buscar a parteira e não deu tempo. Eu nasci sozinha. Quando meu pai chegou com a parteira eu já tinha nascido. Eu nasci de parto espontâneo. Aí, só deu tempo… E ela preocupada de não se afogar nas coisas do parto. Mas eu já nasci ali, gritou estou aqui. Ela falou que eu não nasci, eu estreei. Então, meu nascimento foi um acontecimento que marcou minha mãe.
P/1 - E qual o nome dos seus pais?
R - Benício e Benedita.
P/1 - E nesses 18 filhos, a senhora está onde nessa escadinha?
R - Estou no meio. Estou no meio das meninas. Estou no meado. No meio das...
Continuar leituraProjeto: VLI – Estação de Memória: Porto & Pesca
Entrevista de Marly Vicente da Silva
Entrevistada pro Ane Alves e Fernanda Boer
Cubatão, 08/08/2025
Entrevista nº: VLI_HV004
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrito por Arielle Oliveira Paro
Revisada por Ane Alves
P1 - Dona Marly, para iniciar, a senhora pode se apresentar, por favor, dizendo o seu nome completo, seu local de nascimento e a data.
R - Eu sou Marly Vicente da Silva, pernambucana de nascimento, cubatense de coração. Nasci em Recife aos 14 de agosto de 1955.
P/1 - Dona Marly, e a senhora sabe por que te batizaram, colocaram o nome de Marly?
R - Olha, minha família, como todo bom pernambucano, tem uma coisa diferente com os nomes. Então, os meninos iniciavam com a letra J e as meninas com a letra M. Então, minha mãe teve só 18 filhos. Então, todas as meninas eram Marli, Marlene, Marilene, Madalena, Maria José, tal, aquela coisa. E os meninos eram Josias, José, Jessé, Joel, Josué. Então, tinha essa coisa assim. Então, no finalzinho, destoou porque o caçula saiu do Jota, foi pro B, que era Benício, porque era meu pai. Então, foi Benício Júnior.
P/1 - E o dia do seu nascimento? Alguém contou pra senhora como foi?
R - Sim. Minha mãe fala que eu sempre fui, desde o nascimento, muito adiantada do meu tempo. Porque ela não esperava entrar em trabalho de parto naquele momento e entrou em trabalho de parto e meu pai foi buscar a parteira e não deu tempo. Eu nasci sozinha. Quando meu pai chegou com a parteira eu já tinha nascido. Eu nasci de parto espontâneo. Aí, só deu tempo… E ela preocupada de não se afogar nas coisas do parto. Mas eu já nasci ali, gritou estou aqui. Ela falou que eu não nasci, eu estreei. Então, meu nascimento foi um acontecimento que marcou minha mãe.
P/1 - E qual o nome dos seus pais?
R - Benício e Benedita.
P/1 - E nesses 18 filhos, a senhora está onde nessa escadinha?
R - Estou no meio. Estou no meio das meninas. Estou no meado. No meio das meninas eu sou a terceira. Não, peraí, peraí. Minto, minto, minto. É, sou a terceira. Teve duas primeiras, porque eu sou a terceira.
P/1 - E quando a senhora pensa, assim, na primeira memória da senhora, o que vem na cabeça?
R - Na primeira memória da infância? Ah, uma coisa que me remete muito é os momentos de reunião que tinha com a família. Porque meu pai, ele sempre foi um homem adiantado. Minha mãe falava que era eu, mas era meu pai. Meu pai, ele sempre foi um homem além do tempo dele, então a gente tinha momentos na hora da janta, na hora da ceia, terminava a ceia, todo mundo sentar e contar como é que foi o dia, se reunir e conversar. Meu pai conversava muito com a gente. E uma coisa que marcou muito é que a gente já fazia interpretação de texto há 50 anos. Que 50 anos, tenho 70 anos. Meu Deus. Mais de 60 anos atrás. Na época do Repórter Esso, não era Jornal Nacional, era Repórter Esso. A gente tinha que... Ele dividia a turma. Então, tinha uma equipe que ia ficar assistindo o jornal e contar para ele as notícias do dia. E outra equipe lia o editorial do jornal escrito para fazer a interpretação de texto e contar também, e escrever a interpretação do que a gente entendeu naquela notícia que estava. Então, eu aprendi muito cedo a entender o que acontece no Brasil e no mundo, muito pequena. Muito pequena, porque a gente se informava. E meus irmãos até hoje falam que meu pai era um e o pai deles era outro, porque eu sempre fui muito ligada ao meu pai. Eu via meu pai com os olhos diferentes dos meus outros irmãos, porque nordestino ele tem aquela coisa do machismo, da ignorância do Nordeste. E meu pai era meu ídolo. Era o homem mais inteligente que eu já conheci, era meu pai.
P/1 - E o que o seu pai fazia? Qual era a profissão dele?
R - Nossa, meu pai era polivalente. Ele era mecânico. Ele trabalhou muitos anos numa fábrica de fósforos chamada Fiat Lux, no Nordeste. Mas ele tinha oficina, ele consertava carro, consertava moto, consertava tudo. Assim, tudo que era motor ele montava e desmontava. E tinha uma bicicletaria. No final da vida dele, quando ele se aposentou, porque ele trabalhava e acho que na época não tinha filtro nas fábricas, então ele teve um problema muito sério respiratório que ele adquiriu neste trabalho. Então os pulmões dele sedimentou, por causa da pólvora, essa coisa toda. Então, ele tinha asma. Ele se aposentou e montou uma oficina de bicicleta.
P/1 - E a sua mãe?
R - A minha mãe também era muito guerreira. Na verdade, a minha mãe era que... Eu não sei qual dos dois que era mais inteligente, se era meu pai ou a minha mãe, porque a minha mãe era guerreira. Eu tenho muito dos dois, Graças a Deus eu consegui filtrar a essência do meu pai e da minha mãe. A minha mãe, ela era uma guerreira, lutadora, ela fazia milagres. Ela alimentava a gente, um ovo ela dava pra todo mundo comer, às vezes, na dificuldade, ela inventava umas farofas e uns pirão de ovo, umas coisas assim, e fazia aquele panelão. E como não dava pra botar nos pratos pra dividir pra cada um, ela botava na boca da gente. “Hoje a comida, vocês vão comer assim.” Daí fazia uma festa na hora da comida. Então, a gente achava bom, a gente gostava quando tinha. Eu, pelo menos, eu gostava muito quando era o dia que ela ia botar a comida na boca da gente, porque era uma festa pra gente. E ela dividia. Quando era mingau, ela fazia a gente beber como se a gente fosse beber. Que lá tem um costume de... O mingau, que a gente chama de papa, era dado no dedo, assim, não era na colher. Enrolava o dedo assim e botava na boca da gente. Então, era uma coisa bem diferente. Pra gente, pra mim, era um momento de festa. E as farofas, ela fazia de tudo ela fazia farofa. Era farofa de jerimum, farofa não sei de que, farofa de água e sal. “Hoje é farofa de água e sal.” A farofa, hoje o bacalhau, vem só o cheiro do bacalhau. Então, ela fazia farofa de bacalhau, mas o bacalhau só tinha água só. Então, era muito engraçado esses momentos que… Pra ela, devia ser bem angustiante, porque era muita criança. Mas a gente não percebia a dificuldade que a gente enfrentava, que meus pais enfrentavam para alimentar aquele monte de filho. Então, a gente cresceu tendo esses momentos de dificuldade, mas também teve momentos de muita alegria. Meu pai plantou um pé de coqueiro no quintal, era um coqueiro anão, e ele fez uma espécie de pracinha embaixo desse coqueiro, e ali a gente se reunia pra ele contar histórias. E a gente adorava, às vezes, a gente queria fazer outras coisas, queria brincar, mas era a hora da história. E quando ele também queria chamar a atenção da gente, ele ficava horas dando exemplos das coisas, que a gente preferia que ele batesse.
P/1 - A Senhora lembra de alguma história que ele contava?
R - Lembro muito, muita história.
P/1 - Conta um pedacinho pra gente.
R - Meu pai, ele era meio que repentista, sabe? Ele escrevia cordel, então era meio artista. Então essa veia artística minha vem muito dessas histórias dele. Uma das coisas que ele me falava, porque quando eu fiquei mocinha eu já queria namorar. Aí, eu perguntava, se pode. Ele dizia: pode. Você pode tudo que você quiser. Agora, não esqueça que nem tudo que você pode lhe convém. Então, ele ensinava muito a gente ter responsabilidade nas escolhas. Se você escolheu, você vai assumir a sua escolha. Uma das coisas que me marcou nessas conversas, quando eu quis namorar, aí ele começou a me explicar como é que era o sexo. E a minha mãe quase infartou. “Você não pode falar essas coisas.” “Mas pai, por quê eu não posso beijar, não posso ter sexo? Não pode?” “Não, você pode, mas você tem que entender.” Aí, eu queria saber como é que era, qual era o prazer que a gente tinha em determinada situação. Aí, ele dizia assim: pensa num doce, um doce bem doce, é mais doce do que esse doce que você tá pensando. Mas se você comer muito doce, você vai ter diabetes, você vai ter não sei o quê, vai ter não sei o quê. As consequências. Então, pense nas consequências. Então, não pode. “Droga!” Ele fez eu repetir pra ele trocentas vezes, que até hoje eu me pergunto, por que ele ficava fazendo eu repetir? Que eu nunca ia experimentar. “Me prometa que você nunca vai experimentar.” “Tá bom, pai, eu prometo.” “Não, prometa de novo. De novo, e de novo, e de novo.” Um dia eu perguntei pra ele por que ele insistia tanto de eu prometer. Aí, ele dizia: porque eu não consegui convencer ele ainda. Quando eu conseguisse convencer ele, ele parava de mandar eu prometer. Ele mandou eu parar. Eu parei de prometer. E até hoje eu vejo assim. Isso serve pra mim e pros meus filhos também. Muito do que eu aprendi, eu passei pros meus filhos. De não usar, de não experimentar. Porque ele dizia que é bom. Porque ruim é as consequências dela. “Então, não experimente, porque você é muito intensa, se você gostar, você não vai conseguir voltar.” É uma viagem que nem sempre a pessoa consegue fazer o caminho de volta. E eu tive e tenho até hoje a oportunidade de estar com pessoas que usam drogas, drogas por perto, mas nunca experimentei. Nem nunca tive curiosidade de experimentar. Às vezes, eu tô com os meninos por aqui, algumas pessoas, e já teve ocasião de... Teve uma vez que eu fiquei sem conseguir dormir à noite. Eu não conseguia dormir, então eu estava tarde da noite na rua. Aí, um dos meninos falou: vamos fazer uma viagem ali. Ele falou: sobe aqui na moto. Aí, eu subi na moto dos meninos, os meninos ficaram andando de moto comigo pra cima e pra baixo. E eu me diverti. E muita gente achava que eu estava drogada, porque eu estava me divertindo com a molecada de moto de madrugada. Uma velha pendurada numa moto, você imagina. Mas assim, são coisas que eu tive oportunidade de experimentar, mas eu já sabia, era como se eu já soubesse qual era o efeito da droga. Então, eu já vivia aquele momento, aquela euforia que a droga dá, sem precisar me drogar. Então, nunca precisei, nem nunca experimentei. Então, entre os ensinamentos que meu pai me ensinou, ele foi, assim, mais do que meu herói. Foi meu mentor, foi... Até hoje… Porque eu sinto… Quando ele foi embora, antes dele ir embora, eu perguntava pra ele, assim, quando ele não estivesse mais perto de mim, como é que eu ia fazer. Porque todas as dúvidas que eu tinha, eu perguntava pra ele, ele tinha resposta pra tudo, ele nunca me deixou sem resposta. Tudo que eu perguntasse, ele me respondia. Aí, ele dizia: eu não vou morrer, vou pra outro lugar, mas você pode continuar me perguntando, que eu vou responder. A resposta você vai sentir dentro de você. E até hoje eu pergunto algumas coisas e eu tenho a resposta. Então, meu pai está sempre presente na minha vida.
P/1 - E avós? A senhora teve contato com os avós paternos ou maternos?
R - Não. Eu tive muito pouco contato com meus avós. Muito pouco. Assim, as lembranças que eu tenho… É que meus avós moravam longe, então, era difícil. E a minha mãe contava umas histórias. Que a minha avó, a mãe da minha mãe, quando ela foi embora, quando ela partiu, quando ela morreu, a minha mãe era menina, era jovenzinha e era a mais velha dos filhos. Então, tinha outros filhos menores. E ela assumiu. Então, ela teve que assumir a responsabilidade de cuidar dos irmãos. Aí, meu avô casou de novo. E a experiência dela com a madrasta não foi muito legal. A madrasta não era uma madrasta muito legal. Ela contava muitas histórias meio que traumatizantes da madrasta. E tem umas histórias bem escabrosas, sabe? Umas histórias que a minha mãe não gostava muito de falar. Mas eu sempre fui muito curiosa e eu queria saber. “Conta mãe, conta, bota pra fora aí isso que está lhe machucando, diga?” E ela contava. E realmente…
P/1 - Quer contar alguma pra gente?
R - Olha, tem algumas pesadas, mas tem uma bem leve que a gente vê até hoje nos dias atuais. Que meu pai quando conheceu minha mãe, minha mãe tinha acho que 18 anos, mas era criada na igreja. A minha mãe, ela é descendente de índio. E meu avô, descendente de português. Na descendência deles, na ancestralidade deles. Isso por parte de mãe. Por parte de pai, o meu avô, por parte de pai, era escravo, era descendente de escravos. E a mãe dele, de português. Então, teve aquela mistura toda e nasceu essa beldade que está aqui. Enfim, nessa confusão toda, a minha mãe, acho que os hormônios começaram a entrar em ebulição aos 18 anos, querendo namorar, Conheceu o meu pai. Meu pai, muito esperto, ele era fotógrafo já naquela época, lá em 1900 e antigamente, no Nordeste. E ele viajava nas feiras, aquelas feiras que se fazem no Nordeste. Tira foto. É um acontecimento, é um evento. Chegou a feira de tal lugar. Então, meu pai tava lá, fotografando o pessoal. E conheceu minha mãe. E gostaram-se, olharam-se, apaixonaram-se assim, no olhar, porque não dá tempo muito de se apaixonar.
P/1 - Se conhecer em uma dessas feiras.
R - Se conheceram e meu pai queria namorar com a minha mãe. Pediu minha mãe em namoro e tal. Então, depois de vencer algumas barreiras, começou a namorar a minha mãe. Mas a minha mãe era evangélica e a religião não permitia. Aí, meu pai foi ser crente também. “Não, o problema é esse? Não, eu vou pra igreja. Aceito tudo que vocês quiserem.” Aí, foi ser crente, pra namorar a minha mãe. Mas aí ele falou que depois que ele foi pra igreja foi pior, porque aí tinha a igreja todinha para vigiar eles. Ele queria poder conversar com a minha mãe. Já estava namorando há não sei quanto tempo. Quando ia namorar na casa, era o noivado, ia namorar em casa. Aí, quando era dia das visitas de namoro, a família todinha… Ele namorava com a família todinha. A minha mãe ficava lá pra dentro, ele não via a minha mãe. Ele ia fazer visita, mas não conseguia conversar com a minha mãe. E ele queria ficar sozinho pra poder conversar melhor com ela. Enfim, na igreja a mesma coisa. Então, todo mundo vigiando. Aí, teve uma dessas festas que as igrejas promovem, que a igreja vai visitar outra igreja. Aí, ele combinou com a minha mãe de, na visita da igreja, eles poderem conversar. Quando todo mundo fosse dormir, ela ia se levantar da casa e ia conversar. E foi o que aconteceu. Aí, no dia, a minha mãe foi conversar com meu pai pela primeira vez. Aí, ele disse que pela primeira vez pegou na mão da minha mãe, que não tinha pegado ainda na mão da minha mãe. E tava conversando só. Aí, uma das velhas da igreja, levantou para ir fazer xixi no quintal, que não tinha banheiro, fazia as necessidades nos terrenos. Aí, viu meu pai conversando com a minha mãe. Mas ele falou que não fizeram nada, não aconteceu nada, ele só pegou na mão da minha mãe, só conversou. Só que quando eles voltaram pra cidade, a cidade inteira sabia que a minha mãe passou a noite no meio do mato com o meu pai. E já contaram umas histórias mais absurdas. Aí, meu avô já estava esperando meu pai com um machado, enxada, tudo quando era coisa, para matar o meu pai. “Você, desonrou a minha filha, você fez não sei o que…” “Que conversa é essa, rapaz? Não foi isso que aconteceu não.” Até explicar tudo isso, foi muita confusão, e meu pai ficou com raiva da minha mãe. Porque a madrasta da minha mãe conta… Que foi a madrasta dela que fez isso, que distorceu as coisas de uma forma, porque ela não queria que a minha mãe casasse. E meu pai falou que queria casar, meu pai estava com as melhores das intenções, e tava se preparando pra casar. E ela não queria que a minha mãe casasse, porque a minha mãe que cuidava das crianças, dos outros pequenos e dos que ela tava tendo também. Minha mãe era o braço e as pernas dela, era uma pessoa que… Ela não podia ficar sem minha mãe. E ela fez toda essa confusão pra que meu pai achasse que foi a minha mãe que fez. E deu certo, meu pai ficou… Sabe, essas coisas de novela mesmo, essa rede de intriga, assim. Meu pai acreditou que minha mãe tinha feito isso porque minha mãe queria casar. Então, minha mãe acelerou. E foi muita confusão. Meu pai casou com a minha mãe no meio dessa confusão toda. E arrumou uma namorada, uma outra pessoa. E o casamento da minha mãe, a noite de núpcias e tudo mais, foi bem complicado. Minha mãe disse que foi um momento muito complicado. Mas aí entrou uma outra história que é a fé, a resiliência e a criatividade da mulher. E a minha mãe é maravilhosa nesse sentido, porque ela conquistou meu pai de uma maneira muito criativa mesmo, sabe? Sem fazer confusão, sem brigar com a mulher. E teve meu pai ali, mostrou quem ela era, aquela mulher que ele tinha conhecido. Então foi bem… Aí, teve lua de mel, teve tudo. E meu pai era um apaixonado pela minha mãe. Mas tem uma história nisso tudo, que essa namorada que meu pai arrumou no começo do casamento, ela ficou grávida, e teve um filho, que a gente chamava de filho de pai. Porque meu pai viajou, quando ele voltou, a mulher estava com outra pessoa. Só que ela estava grávida. “Olha, o filho é seu.” “Como é que o filho é meu e você está com fulano? O filho é dele, não é meu.” Aí, aquelas coisas todas. E o menino nasceu a cópia fiel do meu pai. O menino não era assim, xerox do meu pai. Mas meu pai dizia que não era filho dele. E a mulher casou com outro homem, foi viver outra vida, mas o menino cresceu sabendo que meu pai era o pai dele.
P/1 - E vocês tinham contato com ele?
R - Esse menino, quando ele estava com 18 anos, ele foi procurar meu pai na cidade, ele era de uma outra cidade. E achou meu pai. Quando ele chegou também foi uma outra coisa assim que marcou muito a todos nós. Porque ele não sabia onde meu pai morava, ele saiu procurando, mas como ele parecia muito com o meu pai, e meu pai era um homem muito comunicativo e tal, quando ele chegou na minha casa, que a gente abriu a porta, assim, era a xerox do meu pai que tava na porta, né? Aí, a gente, “mãe, tem um homem que é a cara de pai, tá ali na porta, dizendo que é filho de pai.” Aí a gente batizou ele de filho de pai. Até hoje eu não lembro muito o nome dele. A gente era tudo criança. Mas era filho de pai. E quando meu pai chegou, “meu pai!” Meu pai falou: não! “Você pode dizer o que você quiser, mas eu sei que o senhor é meu pai, eu amo o senhor assim, não sei o que…” E minha mãe aceitou e esse menino ficou morando com a gente um tempão. E até meu pai partir, ele trouxe as namoradas que ele arrumava para meu pai conhecer, as noivas, enfim, o casamento. E tinha um carinho muito especial pelo meu pai e a minha mãe abraçou ele e todos nós. E teve, assim, um final feliz nessa história. Mas fez parte dessas histórias da minha mãe. Dessas experiências com avô, eu não tenho muita… Eu lembro que a minha avó não era uma pessoa muito avó. A avó da minha mãe. A gente gostava. Meu pai sempre lembrava disso que ela fez. Porque depois as conversas se esclareceram e meu pai ficou sabendo que foi ela. E descobriu, assim, algumas coisas que ela fazia com a minha mãe, que não era muito legal. Às vezes, acho que até sem muita maldade, mas por necessidade. E meu outro avô, eu não lembro da avó. A avó, a mãe do meu pai morreu cedo. E o pai dele vivia nos quilombo. Eu não tenho muita lembrança. A lembrança que eu tenho é só os pés dele, que eram os pés muito grossos, muito grandes. Pra mim, parecia que ia desmontar a casa quando ele pisava, parecia um gigante andando. Então, eu era muito pequena, mas eu lembro dos pés. Até hoje eu tenho detalhado as rachaduras do pé, aquela coisa, aquele pezão, parecia um bolo, assim, uma coisa bem grande. E ele andava muito a pé, só a pé que ele andava.
P/1 - Dona Marli, e nessa família grande, vários irmãos, a senhora brincava com os irmãos? Lembra das brincadeiras preferidas de vocês quando eram crianças?
R - Muitos filhos. A gente deixava a minha mãe maluca. Lembro. Eu gostava muito de brincar de escola. Sempre gostei. E meus irmãos, às vezes, rasgavam os meus cadernos. Então, a gente brigava muito, porque eu dava aula para as crianças. “Vamos brincar de escola.” Então, eu era a professora e os outros eram alunos. E os grandes também eram alunos. Todo mundo tinha que entrar na escola. “Vamos para a escola.” Era uma briga. Então, era muito complicado.
P/1 - Dona Marli, e escola? Vocês estudavam perto de casa? Você e seus irmãos estudavam na mesma escola?
R - Olha, a escola, na minha época de criança, a gente tinha... O país era uma outra realidade. A gente tinha até a quinta série. Era da primeira à quinta série garantido de estudar. Então, o governo garantia pra gente essa pré-educação. Então, quando chegava na quinta série, a gente fazia o teste de admissão pra ir pro primeiro ano ginasial, na minha época. Só que as ofertas de vaga eram menores do que a procura. Então, era muita gente que passava, mas não tinha escola pra todo mundo. Então, quando eu cheguei na fase da admissão, eu não conseguia ir para o ginásio, porque eu fazia, que era como se fosse um pré-vestibular, um vestibular. Assim, eu fazia a prova para ir para a escola estadual, passava nas provas, tinha nota que garantia vaga, mas não tinha vaga. Então, foi muito complicado isso. Chegou um dia que meu pai… Meu irmão me alcançou. Apesar de ser mais nova, eu era mais adiantada na escola do que meu irmão. Então, meu irmão começou também, terminou e foi fazer o teste de admissão, mas não conseguia vaga para o ginásio. Então, para as crianças, na época, estudar, os pais que tinham condições pagavam o ginásio. E meu pai falou que só podia pagar pra um. E escolheu meu irmão. Aí, falou pra mim: você não vai. Quem vai, vai ser seu irmão, porque estudo de mulher é perdido. Ele é homem, então ele precisa ter mais capacitação, tal, está mais preparado. Porque a mulher casa. “Como é perdido, pai? Eu não vou perder meus estudos.” Aí ele dizia: “Mulher quando casa, os maridos não deixam mais estudar. Então, aquele investimento vai ficar perdido.” Então, era preferível que fosse meu irmão. Mas eu não me conformava com aquilo. Eu queria estudar. E meu irmão foi estudar, ele pagava a escola ginasial pro meu irmão, e eu não conseguia vaga. Aí, eu fiquei estudando por conta própria, assim. Eu estudava. Eu estudava em casa. Lia muito. Como ele escrevia muito, aí eu desenvolvi muito o hábito de leitura, de ler e escrever também. Mas era naquela época da ditadura e foi muito complicado. Eu já estava com uns 15 anos, por aí, aí descobri que se eu tivesse amizade com alguém ligada às Forças Armadas, eu conseguia uma vaga. Eu já trabalhava, trabalhava numa loja. Aí, eu comecei a perguntar quem era… No meio da clientela, se tinha alguma pessoa ligada às Forças Armadas. Descobri uma cliente que o marido dela era militar. Aí, foi a minha amiga número um. Aí, fiz amizade com essa mulher, era a melhor cliente que tinha na loja. Eu atendia, botava a loja todinha abaixo pra atender ela da melhor forma. E ficamos amigas. Um dia ela falou assim: o que é que eu gostaria? Ela perguntou. Ela queria me dar um presente, mas não sabia o que é que eu gostaria. Eu falei: uma vaga. E ela me deu. Ah, meu Deus.
P/1 - Quer que a gente dê uma pausa?
R - Não, não precisa. Foi muito marcante, porque eu consegui a vaga. Ela falou: faça a prova, se você passar, você tem sua vaga garantida. E até hoje essa história me marca muito, porque eu fui fazer a prova. Eu falei: então, eu quero ir na melhor escola. Ela falou: faça. Eu sei que eu escolhi a melhor escola que eu queria, que era o Colégio Estadual do Recife. E passei. Ela falou: você passa? Eu digo: passo. Aí, passei. E ela garantiu a minha vaga. E eu fui estudar. Aí, depois, fui para uma outra escola, mais próxima de casa, também estadual. E foi assim, um período em que eu fui entender mais de política, os problemas que a ditadura trazia. Então, a ditadura, a gente vê nos dias atuais muita gente, como agora, recente. O que veio, o AI-5, mas quem viveu, essas pessoas que pedem isso não entendem o mal que ele está desejando para si próprio, não é só para as futuras gerações. Porque, para mim, me marcou muito esse período de ditadura porque eu fui entender, porque eu fui procurar saber por que meu pai não podia pagar a escola pra mim, por que é que eu não conseguia e outras crianças não conseguiam. Eu fui entender as dificuldades maiores que a gente enfrentava, porque o governo tinha que fazer. Como é que a gente não tinha os direitos garantidos? Por que uma criança não podia, sabe, estudar? Principalmente a parte da educação, era a parte que mais me marcou. Aí fui entender o machismo, fui entender um monte de ismo. E até hoje, muita gente diz que é petista, é comunista, é não sei o quê. Mas eu sou todos os istas que tiver, desde que defenda os direitos básicos do ser humano. Porque quando eu fui para a faculdade, uma das coisas que me encantou foi entender que a necessidade básica do ser humano é tão simples e a gente não consegue até hoje ter essas necessidades básicas. Como dizia meu professor, é sede, sono, sexo e fome. Para vocês não esquecerem, ele dizia assim mesmo, com todas as letras. Comer, beber, dormir e foder. Então, o sexo, que é uma coisa que até hoje, quando você fala em sexo, as pessoas... Mas é uma necessidade básica do ser humano. Se depois de 50, mais de 50 anos.
P/1 - Mas dona Marli, daqui a pouco a gente chega na faculdade. Eu fiquei curiosa em saber, a senhora falou, né, conseguiu entrar na escola. Nessa época a senhora tinha quantos anos?
R - Ah, eu tinha uns 14, 15 anos. Porque eu fui trabalhar, já estava com 16.
P/1 - E você tem algum momento marcante, alguma história pra contar desse momento?
R - Na escola?
P/1 - É, na escola.
R - Todos. Eu revolucionei a escola porque eu brigava com todo mundo pra estudar. Vocês têm que estudar, a gente fazia grupo de estudo. Vamos estudar. Juntava todo mundo. A gente vinha, nessa época, diferente de hoje, a gente não vê as crianças estudando. Porque hoje, mesmo tendo essa liberdade, vamos dizer assim, a gente tem acesso. Mas os pais, que aí entra no outro momento, não dá essa consciência e as crianças não têm essa consciência da necessidade da educação. E na minha época, pela dificuldade, a gente se esforçava muito. Então, a gente tinha as datas festivas na escola, no calendário da escola, e os trabalhos, por exemplo, dia do soldado, dia de Tiradentes, dia não sei de que e tal. E a gente fazia os trabalhos escolares. Aí, a gente juntava as equipes e ali a gente pesquisava profundamente, sabe? Pra poder entregar. Então, todo mundo queria participar do meu grupo porque eu fazia todo mundo participar e o grupo sempre se destacava. Porque os trabalhos que a gente fazia na escola, a gente desenvolvia desde a capa do trabalho, a criatividade numa capa bem artística e tudo mais, até o próprio conteúdo da gente pesquisar. Eu já sabia fazer interpretação de texto desde muito cedo, enfim. Então, a gente estudava. Só que nesse período eu me desviei um pouco da escola pelo trabalho, porque tive que ir trabalhar. Depois tive que sair porque eu briguei. Eu briguei com meu pai. Meu pai era meu ídolo, mas eu tive uma briga muito feia com meu pai. Eu descobri que meu pai tinha um amante e eu não entendia, porque minha mãe era muito silenciosa, minha mãe não deixava a gente perceber as coisas que… Ela, de certa forma, protegia a gente pra gente não ver que ela sofria. Porque meu pai não era aquele... Eu descobri que meu ídolo não tinha aquele... Não era aquele santo, meu ídolo tinha os pés de barro. Eu descobri que meu pai tinha defeito, como todos os homens, e aquilo me revoltou. E eu fui brigar com ele, fui brigar com as amantes que ele tinha. Que a mulher vinha na minha casa buscar meu pai. Eu achava que era uma amiga dele, eu achava normal. Até descobri que não era tão normal. Então, isso foi bem marcante pra mim. Eu era jovem ainda. Eu era solteira, e aquilo me revoltou demais. Como que ele teve coragem de me trair? Porque eu me senti traída também.
P/1 - E aí nesse momento a senhora saiu da escola?
R - Nesse momento eu saí de casa.
P/1 - A senhora estava trabalhando no seu primeiro emprego?
R - No meu primeiro emprego e eu saí de casa. E na minha vida foi um momento de rebeldia, mas uma rebeldia que hoje eu vejo que foi uma rebeldia, uma idiotice da minha parte, mas não precisaria ser se eu tivesse conversado mais, se eu tivesse tido talvez…. Tivesse conduzido as coisas de outra forma.
P/1 - Do que que era esse primeiro emprego da senhora?
R - Eu era ajudante de uma confecção.
P/1 - E a senhora quando saiu de casa foi morar aonde?
R - Eu fui ficar com a tia minha.
P/1 - Lá em Recife mesmo?
R - Lá em Recife. E depois eu não queria mais ficar lá em Recife, aí vim embora para o Rio de Janeiro.
P/1 - Quantos anos a senhora tinha?
R - Eu estava chegando aos 18. Dezoito anos já.
P/1 - Veio pro Rio de Janeiro brigada com seu pai?
R - Vim brigada com meu pai. Não queria mais...
P/1 - Sozinha?
R - Vim, sozinha. Eu dizia que ele não era mais meu pai. É, não posso chorar, que eu vou chorar. Porque eu fiz as pazes com meu pai, viu?
P/1 - Vamos chegar nas pazes, mas aí no Rio de Janeiro...
R - Não, não faz comigo não, pelo amor de Deus. Vou chorar.
P/1 - No Rio de Janeiro a senhora veio com o lugar certo pra ficar? Onde a senhora foi morar?
R - Vim, vim. Porque assim eu sempre fui muito inconstante, não sei, muito ansiosa, muito curiosa. Então, quando eu vim pro Rio de Janeiro, eu já vim com roteiro. Onde tem mais parente? Eu queria conhecer o mundo. Eu vou conhecer o mundo. Eu vou conhecer o mundo. Então, eu tô livre. Tô livre pra voar. Então, eu vou voar. Então, meu pai dizia assim, que eu podia fazer tudo o que eu quisesse. Bom, pai… Como eu era muito angustiada com as causas da sociedade, de não poder isso, poder aquilo… “Você pode um dia, quem sabe. Você pode até ser um presidente da república, você pode mudar.” Falava algumas coisas pra mim que eu entendia que eu podia. Então, eu sou livre, eu posso, então eu vou. Então, quando eu cheguei no Rio de Janeiro, eu fiquei com a minha irmã mais velha. Mas eu não queria ficar dentro de uma caixinha, eu queria voar. Aí, fui na casa do outro irmão, fiquei um pouco com o outro irmão. Aí, tinha uma amiga que estava em São Paulo. Aí, eu digo, eu quero conhecer São Paulo agora. Aí, combinei com a minha amiga para vir para São Paulo. Aí, ela dizia: mas você não vai poder ficar na minha casa, porque eu moro no emprego, não posso ficar com você. Eu falei: mas eu quero conhecer aí. Aí, ela falou: você pode vir, mas você tem que trabalhar. No prédio que eu trabalho, tá precisando de empregada doméstica. Você pode vir, você vai morar. “Tá bom, então arruma o emprego que eu vou.” “Não, não precisa se preocupar, você chegar, você vai escolher. O prédio sempre tem vaga.”
P/1 - Aonde era esse prédio, a senhora lembra?
R - Lembro, era no Bom Retiro. Aí, eu vim. Aí, em vez da patroa me entrevistar, eu que entrevistei a patroa. Ai, meu Deus. Pra eu lembrar dessas coisas. Tem umas coisas engraçadas, mas tem umas coisas que não é muito engraçada, não. Aí fui entrevistar a patroa. Aí meu Deus! Tem umas coisas engraçadas, mas tem umas coisas que não são muito engraçadas não. Aí, fui entrevistar a patroa. “O que a senhora quer que eu faça? Quantos filhos a senhora tem? Como é a sua casa? Quanto vai pagar?” Aí, na época, era um salário mínimo, mais ou menos. Era como se fosse R$1.500,00 hoje. Aí, eu falei pra ela, assim: olha, senhora, vamos fazer um negócio. Passei por umas três. “Tá! Vou conhecer outras, depois eu venho, eu volto aqui.” Então, eu saí entrevistando as pessoas todas do prédio. E eu só tinha aquele dia, porque eu tinha que dormir. E a minha amiga, desesperada. “Marly, você tem que aceitar, senão onde é que você vai dormir?” “Calma, a gente vai, num desses, eu fico.” Aí, eu voltei na que eu gostei mais, aí eu fiz a proposta pra mulher. Falei: olha, eu fico na sua casa, a senhora me paga menos, era como se fosse R$1.500,00, eu fiz a proposta para ela me pagar R$1.000,00. “Só que eu quero uma coisa.” Ela: o que? “Estudar. Eu quero que a senhora me libere pra eu ir para a escola.” Porque eu tinha que dormir no emprego e trabalhar o dia todo. Então, eu trabalhava o dia todo, mas de noite eu ia pra escola. Aí, ela aceitou. Aí, eu fiquei trabalhando nessa casa com direito de estudar. Aí, arrumei uma escola, me matriculei e tal. E fui fazer. Porque eu não terminei meus estudos. Eu não terminei. Então, foi bem complicado para eu concluir.
P/1 - E como foi chegar numa escola em São Paulo?
R - Foi muito bom. Eu me identificava, porque as pessoas falavam a minha língua. Porque tinha momentos, dependendo do lugar que eu passava, eu me sentia uma estrangeira, porque as pessoas diziam… Até hoje, quando eu falo alguma coisa… Poxa, isso é ideia de doido! Isso não pode! Isso não é normal!
P/1 - Em que ano que foi isso?
R - Isso foi… Caramba, 70, foi nos anos 70, foi nos anos 74… Tinha a Copa, teve um ano que teve uma Copa, acho que foi em 74, né? 74, 75, teve uma copa, não teve? Teve uma copa. 75, por aí. E no Bom Retiro...
P/1 - A escola era no Bom Retiro mesmo?
R - Era, era na Avenida Cruzeiro do Sul.
P/1 - A senhora lembra o nome?
R - Não. Era na Avenida Cruzeiro do Sul, tinha a faculdade, eu passava pela faculdade, dizia: eu ainda vou estudar nessa faculdade. Eu ainda quero ir pra faculdade. Não faz eu chorar não, tá?
42:45
P/1 - A senhora tinha sonho de ser o quê? De estudar o quê na faculdade?
R - Eu queria estudar, rapaz. Eu quero estudar até hoje. Complicado isso, né? Mexer com o sentimento da gente assim. Isso é tortura que tu tá fazendo.
P/1 - Não, pode desabafar.
R - Mulher do céu, mas assim... Essa parte da escola é uma parte que me machuca e, ao mesmo tempo, me dá força. É uma coisa meio complicada, sabe Ane? Porque, quando a gente é criança, as fases da vida da gente, a gente tem que viver essas fases, porque senão fica velha, como eu tô, querendo viver, voltar à fase. Então, essa fase da escola me marcou muito, porque todas as vezes que eu tentei voltar, acontece alguma coisa que eu não consigo. Eu não tenho... Eu acabo dando prioridade para outras coisas e não a prioridade que me move, que é estudar. Eu queria muito, e quero muito, concluir uma faculdade, um ensino superior. Porque eu me sinto hoje formada pela vida, não tenho problema nenhum de discutir qualquer assunto com qualquer pessoa, de enfrentar qualquer discussão. E qualquer pessoa pode ser um doutor, pode ser quem for. Eu não tenho nenhuma vergonha de não ter uma faculdade, mas eu gostaria muito de ter, sabe? Eu sempre falei para os meus filhos estudarem, porque se um dia eu conseguir concluir meu estudo e eu morrer, eu for embora no dia que eu pegar meu diploma, eu vou muito feliz. Eu só não quero ir embora sem meu diploma.
P/1 - E a senhora sonha em concluir faculdade do que?
R - Modas. Hoje eu quero fazer Modas. Porque é um sonho de criança, que tá lá atrás. Desde quando eu comecei a trabalhar de ajudante de confecção. Minha mãe era costureira, então eu aprendi a costurar muito cedo, assim, vendo a minha mãe costurar. Aprendi a manusear a máquina e, na minha curiosidade, aprendi a fazer roupa, aprendi a fazer roupa de boneca, quando eu era criança, e hoje as de adulto. Mas eu não quero ser aquela costureira da esquina, com todo respeito as nossas costureiras. Eu quero ser uma costureira que a roupa fala. E as minhas roupas hoje falam. Entendeu? Então, hoje eu faço roupas que têm um significado, e é isso que eu quero. Não é o dinheiro de vender. Não quero ser aquela costureira que costura, costura e ganha muito dinheiro pra sustentar isso aquilo e aquilo outro. Que o seu dinheiro, o fruto do seu trabalho, é o que me mantém. Não, eu quero também ter o dinheiro, o fruto do meu trabalho, mas eu quero fazer uma roupa diferente. Eu quero que a minha roupa abrace, acolha, que você se sinta, que aquela roupa te representa. Sabe? Vou vestir a roupa… Como, por exemplo, a gente fez o vestido pra vice-prefeita.
P/1 - Mas vamos voltar lá em São Paulo, até chegar na confecção, pra gente fazer uma ordem. Aí, a senhora voltou pra escola.
R - Ai, mulher, do céu, não faz isso comigo, deixa eu sair da escola.
P/1 - Não quer contar da escola.
R - Não, não tem problema, é uma história de muita luta, muita superação, porque nessa casa estava maravilhoso. A dona da casa, minha patroa, se tornou minha amiga, ela era contadora, ela trazia trabalho pra casa, eu ajudava ela no trabalho quando eu não estava na escola. “Mas você sabe fazer isso?” “Sei!” E fazia. Fazia relatórios, fazia planilha com ela, anotava as coisas que... Ela não tinha computador nessa época, então era tudo na mão. Então, eu fazia muito trabalho pra ela em casa. E ela me dava essa liberdade. Então, ela era divorciada, separada. Tinha dois filhos. Só que o marido dela era um canalha. E quando ele vinha visitar os filhos, ele ficava em casa, e ele queria me estuprar. Ele queria. E eu quase matei esse homem. Então, foi muita confusão. Eu quebrei o apartamento praticamente todo fugindo dele e não deixei ele me usar como ele queria. E isso foi ruim. Eu tive que sair do serviço. Então, aquele lugar que eu tava tendo acolhimento, que eu tava podendo estudar, que eu tava... Foi destruído por uma ação de um canalha, de um homem que não mediu esforços, assim… Como a maior parte dos homens que acham que mulher é objeto. Eu aprendi muito cedo a respeitar todo mundo, principalmente o homem. Meu pai, uma das coisas que ele deixou, ele dizia assim, pra gente, que a gente era seis meninas. Então, na hora das conversas, ele dizia: você respeite sempre os seus maridos. E ele dava a minha mãe como exemplo, e eu não entendia. Por isso que depois eu me senti muito traída por ele. Porque minha mãe era muito passiva de não enfrentar as sacanagens, as coisas que ele fazia, as traições dele. Então, ele dizia: vocês respeitem, vocês não levantem a voz, vocês não deixam. Mas se a pessoa levantar a voz, não queira ter a voz mais alta do que a dele, porque vocês vão ficar nessa concorrência. Ele vai levantar, você vai levantar. Então, pare a conversa. Não deixe ele levantar a voz. “Como vai parar a conversa?” “Se recuse a conversar. Não vou conversar com você alterado desse jeito. Quando você se acalmar, a gente conversa. E não entre na discussão. Agora, se ele levantar a mão para lhe bater, não deixe ele baixar. Vá para cima dele para matá-lo. Porque se ele baixar a mão, da próxima vez ele vai lhe surrar, vai até matar você.” Então, eu nunca aceitei a agressividade de homem. De ninguém. E se ele vem, eu tento acalmar ele. E assim foi na minha vida. E se não der, eu vou pra cima dele pra matá-lo. Então, eu nunca… Nessa casa, esse ensinamento do meu pai me valeu muito, porque eu nunca deixei ninguém me abusar.
P/1 - E quando a senhora saiu dessa casa, a senhora foi pra onde?
R - Ah, foi outra odisseia. Nessas alturas eu já conhecia algumas pessoas, já tinha um dinheirinho acumulado, guardado. Aí, fui para um pensionato. Outra coisa, foi muito engraçado, porque eu já descobri que em São Paulo, a mão de obra de doméstica, era muito requisitada. E cozinheira ganhava bem. Então, eu comecei. Só que eu não cozinhava. Eu não sabia fazer comida, mas cozinheira de forno e fogão ganhava três vezes o salário de uma empregada comum. Então, eu fui para uma agência de emprego e me candidatei a ser cozinheira de forno e fogão. Porque, nas minhas pesquisas, nas minhas conversas, eu já sabia que as madames queriam a cozinheira de forno e fogão, mas a comida dela era arroz e feijão. Era muito simples, era só para o status. Aí fui. E a minha amiga era cozinheira. Aí, ela falou: eu te ensino, te dou as receitas. Vai! Tem cara de pau mesmo, vai. Aí eu fui, me candidatei. Aí, foi maravilhoso, porque eu fui ser cozinheira de forno e fogão, sem saber fazer nem café, mas aprendi a ser cozinheira, aprendi a cozinhar. Na continuação, as primeiras comidas foram para a privada, porque não prestava, muito sal, muito isso, muito aquilo. “Errei a mão e agora?” “Faz de novo.” E isso por telefone, menina! Era uma odisseia, as comidas. Mas as patroas, era um caldinho. “Você faz isso que é mais simples?” E nessa casa que eu fui, porque eu também pesquisava, eu entrevistava as patroas que eu ia. Não vou pra qualquer casa. Eu não ia pra qualquer uma. Então, nessa casa que eu fui, era o pai, o avô… Eram três pessoas, a filha, o pai e o avô. Eles eram donos de uma empresa. Uma empresa de sal. Era um povo muito rico. Eu não me lembro agora o nome da empresa. Eu sei que era uma empresa de sal. E essa moça, que era a filha, era fruto de um relacionamento abusivo. O pai abusou da empregada, e a empregada teve essa menina, e eles ficaram com a menina. E a mãe, eu nunca soube para onde a mãe foi, o que aconteceu com a mãe. Só que coincidência, ela fazia aniversário igual comigo, 14 de agosto. Ela era leonina como eu. E ela era atriz. Eu era a cozinheira, não tinha nada a ver com teatro. Mas eu queria estudar também. Então, sempre… “Posso estudar?” “Pode.” Então, estudo era... “Posso ir pra escola?” “Pode.” E eu passava, ela estava batendo o texto. “Esse tom de voz da senhora…” Eu dava os meu pitacos. “Como é que é esse texto? Deixa eu ver. Estou ouvindo aqui, não gostei desse tom. Por que não faz esse tom assim?” “É uma peça que vamos apresentar…” Então, eu comecei a dirigir. E os pitacos que eu dava para ela, ajudava muito. E os pitacos que eu dava na roupa dela também. Então, ela começou a me levar para o teatro com ela. “Dona Marly, vai ter aula, vamos para o teatro?” “Vamos.” Eu ia para o teatro com ela. Ela arrumou uma cozinheira, porque ela não gostava muito da minha comida, e eu passei a ser secretária dela. Entendeu? Então, ela só comia macrobiótico. Então, eu fui aprender a cozinhar macrobiótico. Aí, fui aprender também. E aprendi muita coisa nessa casa. E ela fez uma festa de aniversário pra mim que foi muito marcante, que eu achava que era o aniversário dela e era o meu. Ela organizou a festa de aniversário e era pra mim. Esse período foi um período muito bom, muito proveitoso. Isso foi na Avenida... Era na Rua da Consolação, perto da Avenida Paulista.
P/1 - Dona Marly, a senhora estava me contando quando foi promovida de cozinheira para secretária.
R - Foi maravilhoso. Eu aprendi o mundo do teatro, o mundo das artes, porque... Ela, no caso da minha patroa. Ela me dava os ingressos das peças e eu levava para a escola e levava a turma para assistir peças no teatro. E aprendi muita coisa nesse período, principalmente da arte do teatro, como é que é transformar em peça coisas do cotidiano, coisas que acontecem na vida da gente. Então, isso foi muito bom. E eu desenvolvi uma coisa que eu aprendi lá atrás com meu pai, como ele era escritor de Cordel, aprendi também a escrever algumas coisas.
P/1 - Então, a senhora estava trabalhando com ela lá e foi continuando a escola?
R - Sim. A minha vida sempre girou na parte da educação, eu sempre quis estudar. Então, acontecia alguma coisa e eu mudava da escola, não dava pra ir, não dava pra concluir porque quando eu podia pagar, eu pagava. Quando não podia…
P/1 - Era paga essa escola que você estava fazendo?
R - Era paga. Essa eu pagava.
P/1 - Que série que a senhora estava fazendo?
R - Eram cursos. Quando não dava pra fazer na escola normal, eu fazia curso.
P/1 - E era curso do quê?
R - Nessa época, eu estava mais na parte da literatura, mais no teatro, assim, procurando entender isso.
P/1 - A senhora tem uma pessoa, pode ser professor ou amigo de escola, que marcou nesse momento?
R - Não. Tinha os professores, que eram muito bons. Porque nisso tudo, nessa minha vida de cigano assim, de estar aqui, estar ali, eu fiz muitos amigos, que eu sempre gostei muito de fazer amizades. Então, os amigos estavam sempre no entorno. Mas, marcar… Esse marcou. Tem muita história, tem muita coisa que aconteceu. Porque eu voltava nas escolas que eu estudei, voltava aos amigos que continuavam estudando ainda. Então, a gente se encontrava. Nesse período eu estava no centro de São Paulo, na Consolação, na Avenida Paulista, aqueles prédios, aquelas coisas todas ali. Então, descobri à noite. Depois fui pra Liberdade, para um bairro chamado Liberdade. Então, descobri os restaurantes à noite.
P/1 - O que a senhora fazia pra se divertir à noite com os amigos? Conta pra gente nessa época.
R - A gente fazia apostas. A gente fazia coisas que não posso revelar aqui, com os amigos, porque teve algumas coisas que eram meio que desafiadoras. Então, tinha, os meninos, principalmente os homens têm aquela coisa do machismo muito forte, que é até hoje. E a gente desmistifica muito isso. Juntava um grupo de meninas e ia dar uma surra nos meninos, ia dar uma surra de sexo nos meninos. “Você é machão, então vem.” Ah, não aguentava. A gente fez, eu lembro uma vez que a gente fez um desafio, levamos uns frangos assados, porque ele ia sentir fome. E fomos para um apartamento de um. Então, foi muito engraçado de ver os meninos pedindo água. “Ah, não aguento, essas meninas são loucas, não quero mais. Me tira daqui.” “Não, tu não vai sair daqui. Tu não é bom? Tu vai ficar|!” “Não, não quero mais brincar disso, não.” Então, eram, assim, umas brincadeiras. Coisa de jovem, da juventude mesmo. Mas era uma brincadeira saudável. Eram uns desafios, assim, que a gente fazia, que hoje…. Não tinha droga, não tinha bebida, não tinha coisas prejudiciais. Nessa época, não tinha AIDS. Então, era um sexo livre. Mas eram desafios, assim, sexuais. Eram jogos sexuais mesmo que a gente fazia, de quem tinha mais resistência, quem tinha menos resistência. E desmistificava, porque os caras não aguentavam muita coisa. Era umas brincadeiras assim… Depois a gente ficava... “Isso eu vou contar, tá. Como é que foi o teu desempenho.” “Pelo amor de Deus, não conta. Não conta.” E nessas brincadeiras a gente descobriu uma coisa, ele notificou pra mim uma coisa. Teve uma situação com um pescador artesanal, que ele contava umas proezas, e muita gente dizia que era mentira. Eu dizia: não, não é mentira, o homem consegue fazer isso. Porque tinha as quebras de recorde, quem quebrava o recorde. Então, quantas vezes a pessoa conseguiu chegar no orgasmo. E como é que foi o desempenho. Então, a gente anotava tudo. E isso serviu tipo de estudo para a gente. Como é que era a performance, como é que era o desempenho sexual dos meninos. E as mulheres sempre ganhava. As mulheres não pediam água, não. Quem pedia água eram os meninos. Os meninos diziam: não, não aguento, vamos parar, vamos parar. E as mulheres... Aí, dizia, tinha aquela mistificação de que o homem precisava da ereção e a mulher não. Mas não tem nada a ver, porque se a mulher não tiver afim também, ela não consegue. É muito complicado. Aí, não dá pra ter um sexo que... Tinha que ser um sexo espontâneo, um sexo prazeroso. Não podia ser sexo... “Não, não tô afim.” Não tá afim, não vai. Não vai. Para, não tem problema. E não tinha aquela coisa de ficar olhando, não. Era na base de... Tinha que ter confiança. Ninguém ficava olhando, filmando o sexo do outro, não. Não era filme pornô. Era sexo mesmo. Então, nessa época, era uma época de... A gente conheceu alguns meninos que eram garçons. Então, a gente se divertia e se alimentava bem. Enfim, foi bem legal. Foi bem divertido. Foi uma época que a gente conheceu o sexo. Foi quando eu descobri o sexo de uma forma bem lúdica, assim.
P/1 - Essa época era tipo 70 é… Chegou em 1974, não é, em São Paulo?
R - Era menos. Meu filho nasceu em 1978, era menos. Eu tinha uns 18, 19 anos, por aí.
1:01:01
P/1 - E o teatro? Onde vocês iam assistir às peças, a senhora lembra?
R - Olha, a gente ia pro Teatro Municipal, onde ela tinha peça pra apresentar, ela levava a gente. Ele me levava. E eu ia numa boa.
P/1 - Lembra de alguma peça marcante que você assistiu?
R - Não. Aliás, eu assisti uma, acho que era infantil. Mas eu não lembro o nome das peças, não. Foi uma época bem legal, assim, que marcou essa parte das artes. E como eu era muito inquieta, era muito intensa. Eu já vivi aquele momento, já era outro momento, era outra história. Então, esse momento sexual, por exemplo, foi um momento bem marcante. Que aí, eu queria conhecer outras coisas, outras pessoas. Conheci umas aberrações também. Conheci umas pessoas que não eram muito legais, no sentido assim, de... Porque essa parte da intimidade, das fantasias. Porque eu estava descobrindo o mundo nesse momento, nessa época, então tinha coisa que eu não sabia que existia. Por exemplo, eu não sabia que existiam as fantasias sexuais, que aquilo que a gente estava fazendo era como se fosse uma fantasia, de descobrir a capacidade de energia das pessoas em relação ao sexo. Então, nessa brincadeira, a gente descobriu pessoas que queriam fazer coisas que não eram muito legais. “Não, isso não, aqui não!” Sexo com dor não era a nossa… Mas eu queria saber como é que a pessoa sentia prazer, sentindo dor. Mas eu não queria sentir dor. Então, eu fui conhecer uma casa. Me falaram: tem casa disso. Então, me leva para eu ver. Eu queria saber. Não queria praticar, mas eu queria saber. Então, eu conheci uma casa onde tinha essas fantasias eróticas. Aí, conheci casa de massagem, conheci... Isso já foi na Liberdade, já não era na Consolação, foi no bairro da Liberdade. Aí, conheci algumas boates dos chineses... Não, não é chinês, era...
P/1 - E nessa época, a senhora morava na casa dessa patroa do teatro?
R - Não, aí eu já estava... Já tinha saído do teatro, da casa, e eu já estava por conta, trabalhando por conta. Porque teve um período em que eu voltei para a agência, aí eu fui trabalhar na agência. Aí, eu trabalhava na agência e já mandava as funcionárias para as casas. Eu já selecionava as meninas que iam trabalhar. Então, fiquei um período trabalhando na agência. Então, nisso tudo, eu sempre tive também um pé no Bom Retiro. No Bom Retiro, eu fui conhecer o Brás, porque a minha vida sempre circulou entre a educação e a moda. Então, eu sempre tava vendo moda, sempre tava querendo estudar, sempre tava querendo aprender. Então, eu sempre voltava. Então, nessas amizades que eu fiz, fiz algumas amizades no Bom Retiro, que acabei indo pro Brás, pra conhecer a moda no Brás. Então, teve essa circulação, assim, de confecção, de ver como é que funcionava.
1:05:06
P/1 - Quando a senhora disse que foi ver como funcionava, aí a senhora começou a trabalhar com confecção lá no Bom Retiro, no Brás?
R - Sim, também. Trabalhei numa empresa de roupa.
P/1 - Costurando?
R - Não. Era mais vendendo. Eu era mais da parte de venda. Porque, quando eu estava nesse período, trabalhando e morando… Eu morava num pensionato. Mas era muito difícil, assim, diferente. Porque quando eu trabalhava de empregada doméstica nas casas, eu não pagava nada. E, por conta própria, eu pagava. Então, tinha aqueles compromissos, tinha as obrigação, tinha que pagar o pensionato, tinha despesa de ir trabalhar, de alimentação. Então, o que eu recebia de salário era pouco e eu queria ter uma vida... Eu tinha uma vida que meu salário não comportava o padrão de vida que eu queria ter. Eu queria vir na praia. Nessa época, eu já conhecia aqui a Baixada, que eu vinha pra praia, porque eu não gostava do frio, eu gostava do calor. Aí, as praias que eu conhecia aqui, eu gostei muito do Guarujá, então eu só queria estar na praia do Guarujá. Pra ir pro Guarujá era mais caro. Entendeu? Então, o padrão de vida que eu queria levar não comportava com o salário que eu ganhava. Era bem complicado, assim, eu passei alguns perrengues, alguns apertos financeiros, dependendo do meu salário, porque eu tinha que me adaptar. E eu nunca fui muito boa na economia. Sempre eu queria, eu quero, até hoje. Eu quero fazer isso. E o dinheiro não dava pra fazer. Eu não queria. Se não for... Até hoje, se eu não puder comer a galinha, eu não como o ovo. Eu gosto de coisas boas, assim, eu sou muito seletiva nesse sentido de se dá pra fazer, vamos fazer. É o melhor? É o melhor. Eu não me contento… Por que eu tenho que me contentar? Não me conformo, não. Não tenho que me conformar. Eu tenho que lutar, tenho que ir atrás. Então, eu sempre tive essa busca de estar sempre entre os melhores, no lugar de gente boa, no lugar de gente bonita, de escolher bem os amigos. Enfim, então, foi muito... Nesse período das artes, eu descobri galerias na Consolação, Galeria de Arte. Nossa, muito bonito! Descobri o mundo do dinheiro, de quem tem dinheiro, o capitalismo. Mas eu não me conformava por que eu não podia? Por que as pessoas não podiam ter acesso àquelas coisas que, às vezes, eu tinha acesso? Por exemplo, a gente conheceu uma galeria, não sei se existe, mas essa me marcou, que era Ângelo Arte. Era meu lugar predileto, até que eu conheci o dono da galeria. E fizemos amizade, ficamos amigos. Ele levava todo mundo para conhecer a arte, fazia ele falar das artes, como é que era. Era um italiano muito legal. Fiz grandes amizades nesse período de entendimento. E se a conversa não era uma conversa legal, eu descartava a conversa. Nunca fiquei num ambiente pejorativo, não. Não quero ficar aqui.
1:08:49
P/1 - E os namoros? Tinha amigos, mas tinha namoros também?
R - Muitos. Namorei muito. Descobri o sexo, o prazer que não paga. Eu não preciso gastar pra ter esse prazer? Não. Só que eu sempre… Eu acho que eu sempre comandei, sabe? Eu sempre fui líder desde criança. Eu não aceitava, não aceito até hoje. Eu não aceito mais do que eu me sinto merecedora. Eu posso até deixar você entender que eu estou aceitando, mas eu tenho que aceitar primeiro, não é você que tem que aceitar primeiro. Entendeu? Então, os namoros, a época de namoro, eu sempre namorei muito, mas eu comandava. Vai me dar prazer? Eu quero prazer. Mas aí comecei a ter uma ansiedade de querer me apaixonar, porque eu ouvia falar da paixão, mas eu nunca tinha me apaixonado. Eu só ouvia falar. “Ah, quando você se apaixonar…” “Mas como é que é?” “Quando você se apaixonar, você não vai ter dúvida.” Como é que é se apaixonar? Porque eu não queria um sexo mecânico, mas eu não tinha a paixão que as pessoas tinham. Terminou? Terminou. Não sofria. Ah, não quer mais? Tá bom. Eu também não quero mais, também já enjoei. Então, eu não sofria de amor. Aí, eu via minhas amigas… “Porque ele me deixou, porque ele não quer mais, não sei o quê.” “Mas meninas, não sofre.” “É, porque você nunca se apaixonou, você não sabe o que é isso.” Então, de tanto eu ver as pessoas falarem de amor, eu queria saber, eu queria me apaixonar. Mas não me apaixonava. Como é que é se apaixonar? Você não manda no coração, você não tem uma tomada, vou me apaixonar. Você vai se apaixonar, simples assim. E quando? Ah, não sei, quando chegar a hora. E pra mim nunca chegava essa hora. Porque eu me relacionava, e passei a ter muitos relacionamentos, pra ver se eu conseguia me apaixonar. Mas eu tinha atração. Me sentia atraída, mas não apaixonada. Aí, aquela atração, eu gostava do cheiro, gostava do aconchego, gostava do abraço. Me sentia bem com aquela pessoa, mas não era amor, não era... É amor? Não, acho que não, porque eu tenho dúvida. Sempre falaram que quando eu estiver apaixonada, eu não vou ter dúvida. Então, eu tenho dúvida. É assim que era meu termômetro. Eu tinha dúvida, então não era amor, não estava apaixonada. Então…
P/1 - E quando veio a primeira paixão?
R - Ah, quase que eu morri. Eu queria gritar pro mundo inteiro ouvir que eu estava apaixonada. Eu cheguei a subir num morro bem alto porque eu queria gritar. Aí, as pessoas: você não pode gritar isso na rua. Eu digo, mas eu vou gritar. O mundo vai saber que eu estou apaixonada, porque eu esperei muito por esse momento. Aí, eu subi no morro… Eita, tu vai fazer eu chorar. Não quero chorar, não vou chorar. Porque ele está vivo. Meu Deus, ele vai ouvir essa história. Eu subi no morro e gritei bem alto. E foi muito assim, libertador, sabe, de dizer pro mundo que eu estava apaixonada. Foi muito interessante essa paixão. Foi uma paixão avassaladora. Foi! E até hoje, perdura até hoje, viu? Até uns dias atrás. Ele não está mais aqui, mas foi minha grande paixão.
P/1 - Essa paixão foi lá em São Paulo?
R - Não, foi aqui na Baixada. Foi quando eu vim pra Baixada. Lá em São Paulo, eu virei São Paulo de cabeça pra baixo e não achei meu amor.
1:12:38
P/1 - Então, conta pra gente como que a senhora veio pra cá. Como veio para a baixada?
R - Por causa do frio. Eu não gostava do frio. E nessas idas e vindas… Eu estava brigada com o meu pai. Lembra que eu briguei com o meu pai lá atrás? Então, “não vou voltar nunca mais.” E o meu pai... Nesse período que a gente... Antes de a gente brigar, a gente teve uma convivência, uma vida muito maravilhosa de amizade, sabe? De cumplicidade. Meu pai era meu cúmplice, era meu confidente. Tudo que eu queria saber, eu perguntava e ele me respondia, ele não me recriminava, ele só dizia: Marly, presta atenção, tenha calma, não vá assim. Ele também batia, que eu apanhei. Eu apanhei, eu lembro que eu levei uma surra. Porque ele falou: você sabe porque você vai apanhar? “Não, pai, você vai me bater, mas eu não sei porque você está me batendo.” “Para você não se envolver com pessoas desse tipo.” Porque eu arrumei um namorado e ele dizia que aquele namorado não era bom. “Mas, pai, por que ele não é bom?” “Porque ele se relaciona com aquele tipo de pessoa.” Então, essa pessoa não é boa. E esse menino tinha uma ex-namorada, que essa ex-namorada foi lá na oficina do meu pai, mas falou horrores pro meu pai. E meu pai, por conta dessas coisas todas, falou: esse rapaz, que se relaciona com uma pessoa desse tipo dessa menina, não merece namorar com você. E deu muita confusão, e eu acabei apanhando, levando uma surra, porque eu bati na menina. Eu bati na menina. Nessa época eu já trabalhava, e a menina me esperou chegar do serviço, no meio do caminho, e eu acabei brigando com ela e fui parar lá na delegacia. Ela deu queixa, e fez um escândalo muito grande na oficina do meu pai, ele chamou a polícia, registrou a queixa. E nessa época… Na época da ditadura, que foi nos anos 70… Eu era menor ainda, tinha uns 16, 17 anos. Na delegacia, a gente apanhava também na delegacia. Eu lembro que tinha uma palmatória, e dependendo da situação, eu ia apanhar palmatória. Aí meu pai falou: ninguém bate na minha filha, ninguém toca na minha filha, se tiver que bater sou eu. Ninguém vai bater nela não. Porque ele me chamava de minha garota. “Na minha garota ninguém bate.” Aí, eu sei que foi bem complicado ir pra delegacia, porque ele dizia: veja o que você tá passando. Não se envolva mais com pessoas desse tipo. Então, teve que pagar advogado, porque no caso, o juizado de menor, delegado de menor, deu aquela lição de moral no meu pai, aquelas coisas todas. Foi um negócio bem estranho pra mim. Foi bem traumatizante ficar naquele meio, naquele ambiente. Porque ele tratava como se eu fosse uma pessoa vulgar, uma pessoa, sabe? Caramba, não foi tanto assim. Mas eu me defendi da menina, não bati nela. Eu me defendi, só que eu empurrei ela, ela caiu e machucou, cortou a perna. Então, foi bem marcante esse namorado, e por conta dessas coisas que eu passei com meu pai, isso serviu de ensinamento pra vida. Então, quando eu sai de casa, com raiva, brigada com ele, aquela coisa toda. Eu não queria mais voltar. Então, quando eu passava algumas coisas na rua, de decepção. Eu sentia vontade de voltar pra casa. “Não vou! Não posso! Não quero! Eu não queria voltar. E eu sentia muita falta do meu pai, muita saudade de casa, da minha mãe. Mas eu não queria voltar. Mas era mais o orgulho. Aí, foi quando eu vim pra cá, de São Paulo, eu vinha pra praia, que eu gostava, não gostava de ficar no inverno. Então, nesse período, veio um irmão meu, que estava no Rio de Janeiro, ele serviu o exército no Rio de Janeiro, aí ele saiu do exército lá e não estava conseguindo emprego, aí ele falou: Marly, eu vou para São Paulo, uma empresa aqui, consegui emprego numa empresa que é em São Paulo. E era no período da expansão aqui da Baixada Santista. Aí, ele veio. E a empresa dava alojamento. Aí, ele veio trabalhar na COSIPA.
P/1 - A senhora lembra que ano isso?
R - Não. Era 70... era 70 ainda. Era 1976, por aí. 1977… Por aí. Eu sei que eu vim de São Paulo. Eu vim conhecer, vim conversar com ele. Ele veio, estava trabalhando, aí eu vim no final de semana. Aí, ele arrumou um quarto, uma pessoa pra mim ficar na Vila Parisi. Porque eu ia ficar o final de semana, que ele ia estar trabalhando.
P/1 - Vila Parisi é em Santos?
R - Vila Parisi aqui, em Cubatão. Vila Parisi. E eu estava com muita saudade de casa e eu queria ficar perto do meu irmão já. Eu queria ficar perto da família. Já estava… Era como se eu já tivesse conhecido tudo, sabe? Aquela ansiedade de conhecer o mundo, de liberdade, de voar. Eu já tinha feito tudo. Eu ia para museu, eu ia para excursão, não sei para onde, entendeu? Então, onde dava para ir, eu ia. Então, ficou na hora de sossegar. Nessas alturas, eu já estava acho que com uns 19, 20 anos, não lembro exatamente. Mas aí, meu irmão veio para cá e eu vim para a Vila Parisi. Vim para conversar com meu irmão. E não tinha onde ficar. Fiquei nesse lugar, nessa casa, que ele arrumou de um amigo pra gente ficar. Era um quarto só. E eu achei aquilo horrível. “Eu não quero não, ficar aqui não.” Era muita poluição, ardia minha garganta. Era um lugar sujo. Até hoje a lembrança que eu tenho, esperando meu irmão na pista, chegar. “Me espera em tal lugar que o ônibus vai parar em tal lugar e eu vou descer.” Aí, eu fiquei esperando. Quando o ônibus começou a parar, parecia… A impressão que eu tive, era um hospício. Eu me senti dentro de um hospício e um bocado de louco. Estava chegando aquela tropa de doido. Muito louco. Aqueles cabelão, black power, aquelas calças boca de sino, arrastando, lavando a rua, assim, varrendo a rua. Aquele sapatão, assim, bico de aço, aquela plataforma. Eu dizia: meu irmão está num lugar de doido, que lugar louco é esse? Eu, acostumada na Paulista, na consolação. Eu estava nas elites. Bom Retiro, Brás, era o lugar mais pobre que eu andei em São Paulo. Fui também na vila Tiradentes, fui para alguns bairros, assim, mas o meu ponto era lá, era onde eu gostei, então era onde eu ficava. Era um padrão de vida mais alto. Aqui na Vila Parisi, meu Deus do céu, que loucura é essa? Mas eram uns homens muito feios, sabe? Parecia doido. Eu digo: Senhor, que lugar é esse? “Ah Marly, aqui é onde a gente ganha dinheiro. Aqui é onde a gente trabalha, que não sei o que.” Aí, fiquei o final de semana, ele me contou muitas histórias. Aí, eu fui explorar a cidade. Aí, vim no Casqueiro.
P/1 - Sozinha ou acompanhada dele?
R - Às vezes, eu vim com ele… Vinha algumas vezes com ele, e vinha sozinha também. Porque eu nunca tive medo de... Eu não conheço, mas eu vou conhecer. Então, vinha. Aí, gostei do Casqueiro. Então, todas as vezes que eu descia a serra… Eu queria morar no Casqueiro. Aí, vim procurar saber o preço do aluguel aqui. Era muito caro. Porque aí eu já queria vir me mudar pra cá. Aí, ele falou: o lugar mais barato que tem é aqui na Vila Parisi, que dá pra mim ajudar você até você arrumar serviço. “Tá bom!” Aí, fiquei na Vila Parisi.
P/1 - Nesse quarto que ele conseguiu?
R - Nesse quarto, fiquei nesse lugar. Aí, ele alugou pra mim morar com ele. Só que ele, dependendo do horário, como ele trabalhava muito, nessa época, estava na época de desenvolvimento de Cubatão, das indústrias, então tinha muita hora extra, muita coisa. Então, ele trabalhava, trabalhava para ganhar muito dinheiro. Então, ele ganhava muito dinheiro, realmente, pelo trabalho, que ele fazia muita hora extra. E eu fui trabalhar numa empresa também, de auxiliar administrativo, e morava na Vila Parisi. Então, como eu estava lá, ele vinha ficar comigo. Mas ele trabalhava. E no final de semana, a diversão dele era ir pro Maracangalha. Era um lugar chamado Maracangalha, que era como se fosse o divertimento dos homens. Era como se fosse…. Era uma zona de divertimento, era uma zona de prostituição, onde tinha muitas casas de prostituição, muitos bares em Cubatão. Nesse lugar, Maraca, que chamavam de Maraca. Então, nesse lugar, era um lugar assim... Ele ia pra lá, ficava o final de semana. Quando ele recebia pagamento, ele só voltava quando o dinheiro acabava. “Sim, o que tem nesse lugar que tu não volta?” “Ah, Marly, é muito divertido lá, que não sei o quê.” Mas eram as mulheres. Eu sei que fiquei morando nesse lugar com ele, mas eu não gostava muito da Vila Parisi, por conta da poluição. Então, eu trabalhava, mas não me divertia. E os lugares que meu irmão se divertia, ele dizia que eu não podia ir. “Não, lá você não pode ir, não, que lá só tem mulheres assim.”
P/1 - Aí, no final de semana, você ficava sozinha?
R - Aí, não, eu vou pra praia. E aí eu procurava lugares pra ir também. Aí, comecei a frequentar, fiz amizades com algumas pessoas já, nessa altura. E ia pra Santos, ia pro Guarujá, que era o meu lugar, que eu gostava do Guarujá. Então, eu procurava ir em lugares que eu gostava. E os amigos do meu irmão, eu não gostava muito também. Eu achava tudo louco. Não, esses caras doidos, não quero namorar com eles, me relacionar com nenhuma dessas pessoas. Uma pessoa que era chefe de uma empresa, e uma pessoa muito boa, muito educada, muito chique, muito tudo. Fiz o raio-x dessa pessoa. Essa aqui eu posso me relacionar, com essa pessoa. E passei a me relacionar com essa pessoa, começamos a namorar. Eu já estava numa fase assim, que eu tava me achando velha.
P/1 - Quantos anos a senhora tinha?
R - 20. Eu estava muito velha, eu quero me apaixonar, eu quero ter família, eu quero ter filho. Eu quero casar, eu quero me apaixonar. Já que eu não me apaixonava mesmo. Então, eu quero ter uma produção independente. Eu queria ter um filho. Comecei a sentir vontade de ter filho. Não era de casar por casar. Era ter filho. Eu queria ter um filho. Eu achava que se eu tivesse filho muito tarde, eu não ia poder curtir meu filho. Eu não ia... Como é que eu ia cuidar de uma criança? Eu já estava me achando muito velha, porque eu via que as outras pessoas tinham filhos mais cedo. Mas eu me cuidava também. Eu não queria ter filho sem pai. Por quê? Aí, entra meu pai de novo na história. Meu pai dizia que eu não tivesse filho de pais diferentes. Quando eu resolvesse ser mãe... Esses exemplos ele dava pra nós todas, quando a gente estava naquelas conversas embaixo do coqueiro. “Se você for ter filho, procure ter filho do mesmo pai. Para não ter filho de um pai diferente. Porque o pai diferente vai tratar diferente. Então tem que ser filho do mesmo pai.” E eu queria ter filho, então como é que eu ia ter filho do mesmo pai? Eu tinha que casar para o filho ser legítimo. Não ter filho aventura, ser mãe solteira. Não queria ser mãe solteira, eu queria casar. Então, eu comecei a procurar um marido. E esse meu namorado, esse meu pretendente, foi o marido que eu escolhi. Eu quero um marido que possa dar educação pro meu filho, que possa... Então, eu fiz o raio-x desse rapaz e comecei a me relacionar com ele. Era agradável, era... A gente se relacionava bem, tinha um bom relacionamento, mas não tinha aquela paixão avassaladora, não existia, não. Tinha uma coisinha ali, tinha uma certa amizade, mas não era, nem de longe a paixão que eu achava que estava ali chegando. Eu sei que ficamos namorando, tava tudo lindo e maravilhoso, vamos se preparar pra casar, ficamos noivos, vamos conhecer as famílias. Minha família tá longe, que não sei o que…. Mas vamos se casar. Porque ele também queria casar, ele também estava se achando velho, ele já estava trabalhando já há muito tempo, só trabalhava, trabalhava, e queria uma família. Então, a gente tinha em comum algumas coisas. Mas ele também não era aquela paixão, eu não era a paixão da vida dele, assim, aquele amor, aquela coisa. A gente se respeitava, se tratava muito bem. Ele era muito legal, muito bom. A gente tinha um relacionamento maravilhoso. Só que ele trabalhava muito. Todo mundo trabalhava muito nessa época. Não tinha tempo. O divertimento era assim, meia horinha, divertir, já tá bom, vamos embora. A rotina de trabalho. Então, a rotina dele de trabalho, ele ficava semanas fora, trabalhando. Ele viajava, via para lá, vai pra cá. Então, a gente já tinha comprado terreno para construir uma casa.
P/1 - Comprou terreno aonde? Lá no Parisi mesmo?
R - Não, a gente comprou um terreno… Nós compramos na praia da Ilha Comprida, porque eu gostava muito de praia. Então, eu queria ficar por aqui, mas era muito caro, então, vamos devagar. Eu sei que esse período foi um período tranquilo. A gente se preparou para casar, tal. Mas como ele viajava muito e eu queria me divertir, eu queria sair. Eu não ia me divertir na Vila Parisi, Cubatão não tinha muita opção. Então, eu viajava, eu ia para fora da cidade. No final de semana eu inventava algum lugar para ir. Sempre tinha uns programas diferentes.
P/1 - E já tinha feito amigos aqui?
R - Já. Nessas alturas eu já tinha os amigos. E mesmo os amigos que eu tinha deixado pra trás, lá em São Paulo, a gente subia a serra, descia, entendeu? A gente se relacionava. E com esse namorado, ele me dava essa liberdade. Então, ele queria que eu ficasse mais sob controle dele. Aí, ele destacou um motorista da empresa pra cuidar de mim. Me cuidou direitinho. Ai, essa foi a grande paixão da minha vida. Porque eu queria viajar, eu queria sair, eu não tinha carro. “Esse motorista vai ficar à sua disposição. Aonde você quiser ir, ele lhe leva. Tá certo?” “Tá certo!” E era um motorista muito educado. Muita gente boa também. Tá bom! Eu digo: deixa eu conhecer primeiro. Se eu não gostar, não vou ficar. Conheci. “Gostou?” “Gostei, é muito educado, não tem problema.” Então, eu ia pra baile, eu ia pra cinema. Nessa altura, a minha tia já tinha vindo também. Então, a gente já estava em família, já estava com a família junto. Aí, veio também as minhas primas, minha irmã mais nova. Entendeu? Então, já tinha uma... Teve algumas histórias aí nesse meio do caminho pra essa família chegar. Então, a gente já estava convivendo. E as meninas tinham, na época, 14 anos. 14, 15 anos. E as meninas queriam namorar. “Porque você namora, porque não sei quem namora, e a gente quer namorar também.” Aí, eu falei pras meninas, assim: olha, só tem um rapaz desses que a gente conhece que vocês podem namorar que vai ser legal. “Quem é?” Eu digo: esse Bendito desse motorista. Porque ele é muito educado, ele é um rapaz decente. “Ah, não” Ele não dá certo.” “Por que não?” “Porque ele gosta de você, ele não gosta da gente.” “Como que ele gosta de mim? Ele sabe que eu sou noiva do ______, como é que ele gosta de mim?” “Você não vê o jeito que ele olha pra você, não? Você não vê isso, você não vê aquilo?” E eu não percebia. “Para com isso, menina. Que conversa mais sem pé e cabeça.” Das meninas. Até o dia que a gente foi para o cinema, era um filme de Mazzaropi. A gente estava assistindo “Um Caipira não sei o que…” Não lembro agora os detalhes do filme. Eu sei que era um filme de Mazzaropi. E nesse dia do cinema, eu levei, fui para o cinema com as crianças, com as meninas, e quando a gente entrou, estava cheio, não tinha cadeira suficiente para a gente ficar todo mundo junto. Aí, ficou dois aqui, outro ali. E nós ficamos em dois lugares. Nós acomodamos as meninas e, mais para cima, tinha dois lugares, sentamos juntos. E ficamos assistindo filme. E, nessa brincadeira de assistir filme, passou lá uma cena romântica, ele esticou o braço, como um bom cavaleiro e tocou. Quando ele tocou em mim, eu senti... Ele esticou o braço assim na cadeira, e tocou. Quando ele me tocou, me deu um choque, assim, me deu um calor, me deu uma coisa diferente. E eu tirei a mão dele. Sabe assim, aquela coisa que te assustou? Tira a mão daqui. Ele ficou quieto. Mas o filme estava muito envolvente, e ele encostou mais. Aí, já não doeu, já não me incomodou. Eu sei que, nessa brincadeirinha, ele me beijou. E eu correspondi o beijo, e foi mais outro beijo, mais outro beijo, mais outro beijo. E a gente quase se comeu dentro do cinema. Foi muito beijo. Aí, eu já nem vi o resto do filme. Foi só beijos e beijos e beijos e beijos e beijos. Terminou o filme. Vamos para casa, todo mundo. A gente veio em silêncio, mudo, aquela coisa que... Eu queria falar: por que tanto beijo? Por que ele me beijou? Por que aconteceu aquilo? Eu queria saber. E foi um turbilhão de emoção, foi muita coisa. Mas ele não falava, eu também não falava. Aí, ficamos quietos. Ele não falava nada. Só que antes disso… Isso foi o auge da história. Antes disso, teve uma festa de confraternização da empresa, meu noivo não pode ir. “Marly você vai na confraternização da empresa com o motorista.” Eu fui! Com todo mundo, levamos todo mundo, fomos todo mundo pra confraternização. E era no Rio Perequê. É um riozinho que tem aqui. E nesse rio, tava todo mundo à vontade, calor, verão, todo mundo de bermuda, de roupa de praia, de banho de rio, todo mundo mais livre. E ele, na hora do banho, que ele tirou a roupa pra entrar na água, eu vi as pernas dele, sabe? E na Copa, lembra que eu falei da Copa? No jogo de futebol, tinha um goleiro chamado Leão, que eu achava lindas as pernas do Leão. Eu admirava aquelas pernas torneadas. E as pernas dele lembrou as pernas desse jogador. Então, quando eu olhei as pernas dele, lembrei desse jogador, e admirei as pernas. “Que pernas bonitas que ele tem.” As pernas torneadas e tal. Na minha lembrança, ficou só as pernas, porque eu admirei, achei bonita as pernas dele, mas ficou. Mas quando as meninas falavam que ele gostava de mim, veio algumas lembranças assim, mas depois daqueles beijos eu comecei a ligar lé com o cré, comecei a lembrar de algumas coisas que tinham acontecido entre nós, que poderia ser que existia alguma coisa lá atrás. Mas aquele monte de sentimento que eu estava sentindo, aquela coisa toda me incomodava muito e eu queria saber por que ele me beijou, porque aquilo? E eu era noiva, eu queria casar, eu estava com data marcada para ir conhecer a família do noivo, no interior. Enfim, aquilo mexeu muito com a minha cabeça. E ele não falava. Até o dia que encontrei ele, assim, aconteceu de ele vir. Aí, eu falei assim: eu quero saber. Aí, ele falou: porque eu gosto de você, não sei o que. Aí, fez a declaração mais idiota que eu já ouvi na minha vida. E eu aceitei.
P/1 - Qual foi a declaração?
R - Ele falou, assim: olha, eu não tenho nada pra te oferecer. Mas o nada que eu tenho é todo seu, se você quiser. Aí, sabe, teve mais algumas coisas nessa história toda. E eu acabei aceitando aquela declaração de amor. E eu queria sentir aquilo que eu senti lá no cinema. Que eu queria tirar dúvidas. Porque eu não tinha dúvida que foi bom e que eu queria mais. E eu queria saber se aquilo era paixão, como é que era. Ah, não deu outro. Nunca mais se desgrudamos. Aí, se grudamos e não desgrudamos mais. E como ele falou: eu não tenho nada, mas o nada que eu tenho é todo seu. Então, ele me deu o nada que ele tinha, mas deu a ele. Dali pra frente a gente foi construir uma história do nada, do zero. Aí, eu tinha que me desligar primeiro, porque eu sempre tive muito esse princípio de caráter, que o meu pai ensinou. “Eu não posso me envolver com você se eu estou ligada com outro, eu tenho que me desligar primeiro. Você espera?” “Espero.” Aí, eu tive que esperar o namorado voltar, pra poder dizer pra ele que eu não queria mais, pra poder terminar, pra poder me sentir livre de me envolver com outra pessoa. Aí, quando eu falei, eu não achei que ele fosse sofrer tanto como ele sofreu. Foi bem marcante. Eu lembro que ele fez uma vez, ele bebeu tanto num boteco que tinha lá, que lavaram o chão com cerveja, de tanto que ele bebeu. E chorava e falava que aquele frangote não era homem pra me sustentar, porque ele não podia. E ele ficou muito tempo assim, curtindo essa fossa e se lamentando com o meu irmão, que era muito amigo do meu irmão. E às vezes ele dizia assim: leva isso aqui pra Marly, que aquele frangote não é homem pra sustentar ela. E eu mandava de volta, ele mandava alguma coisa, ele não queria, né? Aquelas coisas. Eu mandava de volta. Ele mandava alguma coisa, eu não queria. Aquelas coisas. E passei uma situação, financeiramente falando, bem complicada, porque a gente ficou desempregado. Foi uma crise nos anos 1977 e 1978.
P/1 - Mas você ainda não tinha casado com o outro, né?
R - Não, mas tava pedida.
P/1 - Aí, terminou o relacionamento e com esse você casou?
R - Com esse eu casei, eu estava perdidamente apaixonada, não largava ele por nada, de jeito nenhum.
P/1 - Como que é o nome dele? Pode falar?
R - Posso. Ele está vivo, mas ele já morreu dentro de mim. Eu já consegui. Quer dizer, ele já morreu, mas eu ainda sou apaixonada por ele. Não teve ninguém que fizesse eu sentir o que ele fez. Eu sentir, entendeu? O sentimento que eu tanto queria, buscava, de amor, de saber como é que era. Era com ele. Foi com ele, e ele sabe disso. E eu sei que eu também marquei a vida dele e que até hoje ele ainda é apaixonado e a gente...
P/1 - Ele é o pai do seu filho?
R - Ele é o pai dos meus três filhos.
P/1 - Dos três filhos?
R - Meus tesouros, são três no total.
P/1 - E vocês casaram na igreja ou foram morar...
R - Não, só no civil. Chegamos... A gente não casou na igreja porque o dinheiro não dava pra gente casar. A gente casou só no civil. Mas também não foi fácil, não. Foi bem complicado, porque até o casamento alguém pagou pra gente, porque a gente não tinha dinheiro pra pagar o casamento.
P/1 - E vocês casaram e foram morar onde, dona Marly?
R - Ah, na Vila Parisi.
P/1 - Continuaram morando lá?
R - Foi uma odisseia muito grande. Muito grande. Porque foi no auge da poluição da Vila Parisi. Eu queria muito ter filho, já engravidei.
P/1 - Então, isso é 78?
R - 1978, é. Já quando meu filho nasceu, eu me sentia muito revoltada com a cidade. Porque como é que uma cidade produtora, com tanta indústria, com tanta gente ganhando tanto dinheiro, uma cidade produzindo tanto. E tinha tanta poluição e tanta gente pobre, tanta gente passando necessidade. Então, eu não me conformava com como é que Cubatão podia ser daquele jeito, sabe? E uma coisa que me perturbava, era aquele pó preto que as empresas soltavam, que você não podia sair com a roupa clara, que manchava a roupa. E era tipo um giz, uma coisa assim bem... um carvão, uma coisa assim, sabe? E as fraldas, quando botava as fraldas no varal, sujava tudo, as roupas. Então, foi um período muito... E esse período que eu casei, foi um período de muita dificuldade, mas assim, foi muito desafiador, mas os desafios também trouxeram oportunidade, que aí eu tive que trabalhar. Eu precisava trabalhar para manter meu filho, manter minha vida, me manter e ele também. Então, a gente... Ele trabalhava muito, ele era motorista de caminhão, mas não conseguia arrumar trabalho. Então, ele ficava procurando nas empresas de caminhão. Ele tirava folga quando tinha. Então, ele trabalhou tanto que... Ele criou uma ferida, uma escara nas costas, que feria de tanto calor e de tanto que ele trabalhava. E eu fui trabalhar… Eu não podia trabalhar porque tinha criança novinha, bebê, enfim. Aí, lembrei das histórias, que o meu irmão tinha envolvimento com esse lugar, que era o Maracangai, onde tinha as mulheres. Nessa altura eu já conhecia uma das amigas do meu irmão e ela pediu pra eu lavar as roupas dela. Eu lavei e costurei algumas peças que estavam descosturadas. E isso fez a propaganda. E ela perguntou se eu podia lavar a roupa de mais alguém. “Lavo.” Aí, passei a ser a lavadeira mor de todas as mulheres lá desse lugar. Aí, eu lavava a roupa das mulheres, pessoais e lavava a roupa também dos bares, toalha, lençol, essas coisas todas. Aí, montei uma lavanderia, aí comprei máquina de lavar e já fui ser empreendedora, dar emprego para outras mulheres também, me ajudar a lavar a roupa. E quando a gente botava roupa no varal, tinha que botar um plástico por cima, por causa desse pó preto. Aí, eu comecei a querer saber de onde vinha. Aí, começou a minha luta em defesa do meio ambiente. Digo: não, não pode ser desse jeito. E meu filho, que passava muito mal, quando soltava aquele gás, que a gente não conseguia respirar. Aí, me juntei com outras pessoas da cidade, aí já fui conhecer a parte política da cidade, para brigar em defesa do meio ambiente. Então, a gente participava de algumas manifestações, de algumas coisas. Brigava mesmo. Assim, queria matar os caras… Uma vez eu botei as fraldas todinhas dentro de um balde, que eu queria levar na empresa para a empresa lavar. Vocês vão lavar minhas fraldas agora. Então, teve algumas histórias bem loucas, bem impactantes, nesse período de luta em defesa do meio ambiente. Principalmente, porque meu primeiro filho, era meu tesouro, o melhor de mim. E as crianças nasciam sem cérebro nessa época. Então, eu tinha família fora, quando eu viajava, mesmo casada, mesmo com filho pequeno, continuei com a minha rotina de querer visitar os parentes, de querer sair. Então, quando eu viajava, que eu ligava para Cubatão. Era cabine telefônica. “Ligação para Cubatão.” Quando falava Cubatão, todo mundo... “Quem é que vai ligar?” Aí, eu entrava na cabine com aquele bebê. Aí, as pessoas... “Esse bebê nasceu em Cubatão?” “Nasceu.” “Mas ele é normal?” “É. Não tem duas cabeças, só tem uma.” E as pessoas chamavam muita atenção. Meu filho era muito fortinho, muito gordinho. Então, as pessoas… Como é que essa criança nasceu em Cubatão e é normal? Era uma surpresa para o povo ver. Porque a notícia era que Cubatão era o Vale da Morte. E eu morava na Vila Parisi, e realmente era muito ruim. Era muito ruim. Mas eu tinha meus cuidados de mãe. Eu fiz pré-natal? Aliás, eu fiz pré-natal? Não. Mas fiz alguns exames. Mas o pré-natal, a saúde pública, tudo era muito ruim. Mas eu estudava, eu pesquisava, eu procurava saber. Então, quando meu filho nasceu, eu sabia exatamente como cuidar dele. Porque tinha uma revista chamada Pais e Filhos, que eu era assinante, compradora assídua, leitora assídua dessa revista. E eu tinha um médico, pediatra, que ele deve ter morrido já. Mas doutor Lamonier. Esse pediatra, ele foi o pediatra do meu filho, na barriga do meu filho. Eu lia todos os artigos dele, tudo, todas as orientações.
P/1 - Mas quando a senhora ficou grávida, a senhora tinha essa preocupação de ficar morando em Cubatão?
R - Já, já, já. Eu tinha essa preocupação desde a gravidez, de cuidar do meu filho desde a gravidez.
P/1 - Por conta dessa poluição, de Cubatão.
R - Por conta da poluição e pela preocupação que eu tinha de ter um filho saudável. Meu filho nunca chupou chupeta, nunca usou chupeta, porque eu sabia que a chupeta deformava a arcada dentária. Meu filho nunca chupou bala, para não prejudicar os dentes. Eu não tenho nenhum dente na boca, porque minha dentição foi prejudicada lá atrás, quando eu era criança. Então, eu tive que arrancar todos os dentes, que eu tive uma doença na boca, que teve que arrancar todos os dentes. Então, eu tinha essa preocupação de não acontecer com o meu filho. Então, o meu filho mais velho, às vezes, ele fala: não, a senhora fala isso para os outros também. Mas ele é realmente o melhor de mim, é o meu filho mais velho. Tudo de bom que eu pude, como mãe, fazer.
P/1 -Como o nome que dele?
R - Anderson. Meu gostosinho, meu fofinho, meu lindo. Meu amor da minha vida. Hoje é meu melhor amigo, mas ele sofreu, porque foi o melhor de mim. Então, o melhor de mim foi duro. Então, ele foi um menino que teve uma criação, uma formação muito, assim… Ele pegou minha essência, então eu não queria que ninguém dissesse que ele tinha defeito. O meu filho era perfeito. Ele sofreu um pouquinho porque eu dizia pra ele, “você vai ser exemplo pros seus irmãos. Então você tem que ser bom.”
P/1 - E os outros filhos a senhora teve morando lá também?
R - Não, os outros eu não queria que nascesse ali. Assim como a natureza, eu brigo hoje muito nos manguezais porque o mangue é vida, exatamente por isso, porque a mãe natureza ela é sábia, ela não deixa os seus filhotes nascer em um lugar ruim. Então a natureza é mulher, é feminino.
P/1 - Então o motivo de sair de lá foi o filho?
R - Foi meus filhos, meus filhos. Não deixei meus filhos nascer naquele lugar. Então, eu não podia morar no Casqueiro, mas eu gostava do Casqueiro, que é o bairro vizinho aqui. Aí, conheci aqui a Vila dos Pescadores.
P/1 - A senhora lembra em que ano?
R - 1979.
P/1 - 1979? E quando a senhora chegou aqui, como que era?
R - Aqui não tinha água, nem tinha luz. A maré era alta, alagava. Era bem, era um bairro... Era a Vila dos Pescadores mesmo. Tinha muito pescador, muito... A beira-mar, era tudo aberto. E o ambiente, o meio ambiente era muito gostoso, o ar era bom. Aqui, meu filho passava o dia inteiro, não passava mal. Então, eu gostava, me identificava, porque também tinha... A parte do território aqui era muito parecida com a do Nordeste, de beira-de-maré. Então, eu nasci lá em Recife, numa beira-de-maré também. Meu pai pescava nas horas vagas. A gente tinha no quintal de casa, uns viveiros de peixe. Então, esse ambiente de pesca, de maré, pra mim, era familiar. Então, aqui eu me identifiquei muito.
P/1 - Vocês vieram morar em algum lugar de aluguel ou vocês...
R - Não. Aqui não tinha muito aluguel. Eu tinha que comprar um barraco. Então, minha tia já morava aqui. Então, comecei a procurar um barraco pra morar, pra comprar. Mas os preços não davam, então, foi bem… Foi outro desafio.
P/1 - E era só o Anderson nessa época?
R - Só o Anderson. Então, quando o meu marido chegou, que eu falei que comprei, quando eu consegui comprar o barraco, ele: como é que você comprou?
P/1 - Foi senhora comprou sozinha?
R - Foi, sem ele saber. Quando ele chegou do serviço, eu falei: comprei um barraco.
P/1 - Com dinheiro da lavanderia?
R - Algumas economias que eu tinha e eu vendi tudo.
P/1 - As máquinas?
R - Vendi tudo que tinha dentro de casa. Até a minha máquina de costura eu vendi. Só sobrou a cama e o fogão. Para inteirar. Porque esse barraco que estava à venda era nessa rua que a gente está, no começo. Assim, é meio que premeditado, assim, sabe? É meio que premeditado de analisar que era bom ou não. Então, eu olhei essa casa, não era essa que eu queria, eu queria uma outra, que era melhor, mas o dinheiro não dava, só dava pra essa. Então, se só tinha aquele, o melhor lugar, dentro das minhas possibilidades, era esse. E alguém falou pra mim, que aquele casal estava se separando, e eles estavam vendendo o barraco, porque era a casa que iam dividir. Na época, foi 40 mil cruzeiros. Eu sei que a pessoa falou pra mim, “ó, se você chegar com o dinheiro na mão e oferecer, que dê pra dar a parte da mulher, que a mulher tá enchendo muito o saco dele, ele vai aceitar.” Aí, a gente calculou mais ou menos. Então, todo o dinheiro que eu consegui, não dava os 40 mil. Não lembro o quanto que deu, mas não era 40 mil, não dava pra pagar tudo, não. E eu fiz a proposta pra ele. Aí, ele aceitou. Já levei o dinheiro na mão também. Já mostrei o dinheiro pra ele. Então, quando eu entreguei o dinheiro, mostrei o dinheiro, ele aceitou, já assinamos. “Agora, o senhor pode morar até eu poder vir.” Porque aí, foi o acordo que eu fiz com ele. Eu comprei o barraco e ele ia resolver o problema dele com a mulher, e depois que ele desocupasse, ele ia ter mais um tempo, pra dar tempo, ele se organizar e desocupar. E assim foi feito. Aí, eu fiquei pagando as parcelas, como se fosse um aluguel. Então, ainda demorou um pouquinho. Então, quando ele desocupou, que eu pude vir, foi outra odisseia, assim, de desafio. Foi muito desafiador, porque o que a gente ganhava era pouco, eu não tava trabalhando, só o meu marido, na época. Tinha um bebê. Então, a alimentação foi bem… O que mais pegou na gente, que meu filho mamava no peito. Eu fiquei magrinha, magrinha, pra poder não deixar faltar as coisas. Eu lembro que tinha um comercial do batom, do chocolate batom. Ele gostava muito de chocolate e eu só podia comprar um por semana. E eu pegava esse batom e dividia em pedacinhos, pra dar um pedacinho de doce pra ele. E uma outra coisa também era o cream cheese, era uma fatia só que a gente podia dar pra ele. Então, eu dividia aquela fatia pra dar pra ele dois dias. Porque mesmo ele mamando no peito, mas tinha alimentação. E a alimentação sempre foi muito balanceada, porque eu seguia as orientações daquela revista, Pais & Filhos, que dizia que até dois anos, é a formação da criança, para a criança ser saudável, pelo menos na primeira infância do bebê, do nascimento até os dois anos de idade. Então, ele até os dois anos de idade, ele teve uma alimentação digna de qualquer criança, que deve ser, de alimentação. De ter todos os nutrientes, eu pesquisava, procurava saber o que podia, o que não podia. Então, a alimentação dele… Ele realmente foi o melhor de mim. De dar o melhor que eu pude dar pra ele nesse sentido saudável da vida. Depois entrou a parte da educação, de comportamento. Então, ele teve muita coisa, teve muita história e muito amor, era meu xodó, meu e do pai.
P/1 - E esse primeiro barraco era lá na ponta da rua?
R - Isso, Amaral Neto, número 4.
P/1 - Aí, depois, como que foi indo daí? Aí, a senhora comprou aqui, como foi mudando? Eu queria saber como que foi crescendo a Vila dos Pescadores.
R - Olha, como eu sempre fui muito adiante do meu tempo aí, como não tinha água, não tinha luz, a gente começou a enfrentar muitos problemas aqui dentro, de viver. Como era viver aqui? Num ambiente bem... De noite não tinha luz, era vela, era lampião. Era bem complicado.
P/1 - E a água vocês pegavam longe?
R - A água também. Tinha cano que eles furavam, perto da ponte, trazia água. O caminhão pipa vinha trazer água. No verão era um inferno, porque como é que ia dar banho? Como é que ia tomar banho? Vai juntar água. Os homens chegavam do serviço, tinha que ter água para tomar banho. Então, eu tinha que enfrentar essa parte. Aí, começamos a lutar. Então, vamos. Então, começou outra história de luta, de superação.
P/1 - E como a senhora foi fazendo amizade com as pessoas que moravam aqui?
R - Na luta, na luta. Porque, “vamos gente, a gente tem que fazer alguma coisa.” Aí, conheci um padre, chamado Padre Antônio, que era um padre que tinha umas ideias também muito legais, meio revolucionárias. E a gente se envolveu, eu quase me transformei em uma católica fervorosa, porque eu me apaixonei pelas ideias do padre e pelo padre. Gostava muito daquela forma que ele conduzia. E começamos a juntar as mulheres. Ele aceitava minhas ideias, eu dava as ideias pra ele. “Padre, vamos fazer isso. O que o senhor acha disso? E se a gente fizer assim? E se a gente fizer assado?” E o padre abriu um leque de ideias. Todas as ideias que eu levava, o padre que fazia, não era eu. Mas o padre aceitava. Então eu me soltei muito através do padre Antônio. E o padre Antônio até hoje é muito falado, muito famoso, e a rua tem o nome do Padre Antônio, mas poucas pessoas sabem que o Padre Antônio teve uma mentora por trás dele que dava as ideias para ele. Essa história ninguém conhece. Ninguém! Vocês estão sabendo de primeira mão, porque ninguém sabe dessas histórias.
P/1 - Dona Marly, acredito assim, a senhora falando da dificuldade, aqui era um lugar com pescadores. As pessoas se ajudavam com alimentação?
R - Sim, muito, muito. Os pescadores, eles chegavam, eles distribuíam peixe. Como eu gosto muito de peixe, então era meu alimento sempre, baseado nisso. E a gente tinha muita solidariedade de se ajudar. Mesmo tendo o machismo aqui, era muito forte. Os homens não aceitavam mulheres. Então, o que a gente fez? A gente dava as ideias para o padre e o padre aceitava. Então, era o padre que era o nosso porta-voz. Entendeu? Não eram as mulheres que estavam mandando nos homens, era o padre que estava dizendo, faz assim, faz assado. E dei a pastoral. Com a pastoral veio uma mulher chamada Dona Teresa, que essa mulher também foi porreta nessa história toda de luta. E a gente criou uma maneira de... Não é de enganar os homens, não. Mas de poder fazer os homens se sentirem que participavam, que eles não estavam sendo mandados. Então, a gente criou primeiro um clube de mães, porque as mulheres não podiam participar, porque os homens não deixavam.
P/1 - Não podia participar assim, quando tinha essas manifestações?
R - Sim, era só os homens. A sociedade de melhoramento era formada por homens. Porque o que acontecia? Não tinha água, não tinha luz. Mas, na hora de trabalhar, a gente podia trabalhar. Na hora de botar a mão na massa, eram as mulheres que colocavam. E, assim mesmo, eles não deixavam muito. Para a gente fazer as coisas era meio que escondido, fora do horário de trabalho. Eles não facilitavam, eles não deixavam. Assim, as mulheres não tinham tanta liberdade de atuar. Era mais eles. Então, eles tinham que mandar. Então, tinha um gerador de energia, mas eram eles que controlavam. A gente só podia assistir… O gerador, a luz, só funcionava até a hora do jornal. “Tá errado esse negócio, a gente tem que assistir a novela, como é que não pode? Tem que poder.” Aí, fomos, com muito jeitinho brasileiro, induzindo a usar o gerador até mais tarde, até depois da novela. Aí, nessas alturas, já tinha bateria de caminhão, tinha televisão que dava para botar na bateria, mas era muito caro também, a gente não tinha esse recurso. Então, começamos com esse clube de mães. O clube de mães era mulheres que se reuniam, a Dona Teresa era a nossa mentora. Para ensinar as mulheres inocentemente, a gente ia discutir. A gente não discutia política, a gente ia aprender a costurar as roupas dos maridos, a bordar, fazer coisas assim. E embutido nisso, a gente discutia como que a gente pode se organizar. Então, politicamente, foi uma estratégia que a gente encontrou de trazer as mulheres e tomar a sociedade dos homens. Tomamos associação. Depois, na continuação… Meu Deus, eu não sei se eu devo contar essas histórias, mas...
P/1 - Eu quero saber… Porque, assim, tem muita história, senão a gente vai passar o dia inteiro aqui.
R - Mas olha, só pra finalizar…
P/1 - Eu quero saber como a senhora virou a líder comunitária.
R - Tô dizendo agora. Foi aí que eu virei líder. Porque eu tinha muitas ideias, mas tinha muitas coisas para enfrentar, então tive que criar estratégias. Entendeu? O Padre Antônio foi uma dessas peças, a Dona Teresa foi outra dessa peça, que deu condições para a gente criar uma sociedade, uma associação de mulheres, só de mulheres. Mas, se a gente fosse só associação de mulheres, os homens, a gente ia enfrentar muito, porque a gente já estava enfrentando muita barreira com os homens. Então, nós fizemos uma diretoria executiva de mulheres, e uma diretoria de conselho fiscal só de homens. Então, os maridos eram os fiscais e as mulheres eram da diretoria executiva. Então, os homens mandavam na gente, aparentemente. Então, eles se sentiam fortes o suficiente para dizer, não, elas só fazem o que a gente manda. E a gente só fazia o que eles mandavam. Mas a gente induzia eles a fazer. Então, a melhor associação foi a Associação Comunitária. Mudamos, porque era a Sociedade de Melhoramento antes. Quando a gente assumiu, a gente montou uma Associação Comunitária da Vila dos Pescadores, que é essa associação que é até hoje. Só que eu nunca pude atuar como hoje eu atuo, como liderança. Eu sempre fui líder de bastidores, porque eu não queria chocar com o meu marido, porque ele não aceitava. E eu era muito apaixonada, e eu não queria brigar com o meu marido, então eu fazia de conta, dava uma voltinha daqui, uma voltinha dali, para não bater de frente com ele, entendeu? Então, eu sempre agia nos bastidores. Mas essa associação foi uma das melhores que a gente teve, até hoje, dentro da Vila dos Pescadores. Então, a minha liderança sempre existiu dentro da Vila dos Pescadores, mas eu sempre atuei nos bastidores. Hoje, que aí aconteceu muita coisa nesse decorrer do tempo, que é como você falou, para a gente encurtar a história, foi quando eu me separei. Eu tive muitos problemas, muitos problemas mesmo.
P/1 - Que ano que a senhora se separou, lembra?
R - Eu acho que eu não lembro não, porque até hoje eu não me separei. Eu não consegui me separar.
P/1 - Então, vou fazer a pergunta de uma forma diferente. Há quanto tempo a senhora está como liderança comunitária? Assumidamente?
R - Assumidamente... Eita, tu me apertou agora sem me abraçar. Assumidamente, desde 2015, mais ou menos. Assim, oficialmente 2017, mas assumidamente, eu nunca deixei de ser. Eu nunca deixei de ser, entendeu? Quando eu voltei, não foi 2015, porque eu tive um período que eu tive que sair daqui da Vila dos Pescadores. Então, quando eu voltei foi 2000… Caramba, 2017, eu já estava aqui há muito tempo. Nos anos 2000, mais ou menos. É, eu voltei. Não me lembro o ano que eu voltei, não. Mas eu saí da Vila dos Pescadores e falei que eu não voltava mais.
P/1 - Por que a senhora saiu?
R - Ah, porque aconteceu muita coisa. Aqui, eu posso dizer com toda tranquilidade, eu tive meus melhores e os piores momentos. Mas eu prefiro ficar com os melhores momentos. Então, aqui, assim, a minha vida, eu não quero chorar, mas se eu for lembrar disso, eu vou chorar. Foi muita história aqui na Vila dos Pescadores, porque eu era muito apaixonada, como sou hoje, até hoje, eu posso dizer que eu sou muito apaixonada pelo meu marido, não é marido, mas o homem que me fez eu sentir essas emoções todinha, foi só ele. Foi o homem que me fez, assim, me sentir realmente viva. Mas também foi o homem que mais me magoou. Foi ele. Ele me feriu de uma forma muito... Não só foi as traições de mulheres, mas ele quase me destruiu. Eu fiquei com uma depressão muito grande. As consequências foram muito difíceis. Ele me botou numa cadeia. Eu conheci o lado mais terrível do ser humano. E foi muito difícil fazer o caminho de volta. Não foi fácil eu recuperar a minha dignidade. E assim, poder olhar no espelho e dizer: Marly, tu é foda! Marly, não desanima, vai em frente. E você pode. Sabe? Foi preciso eu invocar meu pai, sabe, muito. Buscar muito das minhas entranhas, a minha essência, pra poder hoje eu olhar pra todo mundo sem medo e dizer: eu sou boa no que eu faço, e eu gosto, e eu vou fazer, e eu quero fazer, porque eu posso fazer. Porque quando você... Sabe, é moldada... Sabe, pelo olheiro, como diz a própria palavra de Deus, você é moldada no barro. Então, quando Deus te faz esse vaso novo, você não quebra mais. Então, é preciso você passar pelo fogo, pra você ser pipoca, senão você vai ser sempre milho. Então, eu passei por esse caminho bem terrível. Eu achava que eu não ia… Eu tentei suicídio, eu não queria mais viver. Eu passei muita coisa, muita coisa, muita coisa mesmo. Por conta do amor. Em nome desse amor, eu achava que eu não ia mais, porque a razão da minha vida era ele. Eu me reneguei, até entender que a razão da minha vida sou eu. Até entender que meu pai estava certo. Que o bom da vida é viver, e eu podia viver mesmo amando ele, mesmo tendo ele como a minha fonte de energia. Que não era mais. Mas a minha fonte de energia sou eu. Então, até entender isso, demorou muito, foi muito sofrimento, porque eu não me conformava daquele homem que eu dediquei a minha vida, a minha essência, o meu amor, o que eu tinha de mais, sabe? Caro dentro de mim, mais puro. Que se ele chegasse pra mim, alguém chegasse e dissesse: eu vi teu marido beijando alguém. E ele dissesse pra mim, não, eu estava fazendo respiração boca a boca. Eu ia acreditar nele. Então, ele destruiu uma mulher, que homem nenhum nunca teve. Ele teve o melhor de mim. E ele destruiu. Ou tentou destruir. Porque hoje eu posso dizer com toda tranquilidade que enquanto eu tiver vida, que Deus permita que eu possa espalhar tudo que eu tenho de bom. E eu espalho. Hoje a minha função nessa vida é espalhar o que eu tenho de melhor. É o amor que eu tenho pelo ser humano, é o amor que eu tenho pelo meio ambiente, é as coisas boas. Porque a gente não leva nada. A gente vai deixar tudo aqui. E eu não quero deixar coisa ruim, eu quero deixar só coisas boas. Então, hoje eu perdoo ele, perdoo todo mundo que me magoou e perdoo até a mim mesma porque eu me deixei magoar. Hoje ninguém me magoa mais, porque eu não deixo. Então, se você quiser me magoar, eu vou dizer pra você, o veneno é seu, beba. Não quero beber esse veneno. Então, se um dia eu cair em alguma coisa errada, ou alguma coisa que venha, sabe, denegrir ou desmerecer a minha personalidade, não vai ser por acaso não, só se for uma armadilha muito bem feita, porque eu não caio mais. Hoje eu tenho uma admiração especial por nosso presidente, porque ele, sem saber, eu pareço muito com ele, ou ele parece muito comigo. Eu morro em pé, mas eu não vivo de joelho pra ninguém.
P/1 - Dona Marly, o ateliê da Maré veio de quando a senhora voltou para cá?
R - Olha, o ateliê nasceu desse sonho de criança. O ateliê, ele sempre existiu dentro de mim. Então, muita coisa que eu não fiz ainda, tem. Eu tenho uma amiga que fala: você tem que escrever, porque como é que a gente vai saber se você tem essência? Só está dentro de você, a gente não vai adivinhar. Mas, eu não consigo, tem coisas que eu não consigo escrever, porque quando eu era criança, meu pai dizia assim: você tem que decorar, porque eu não posso deixar esse livro aqui, esses escritos não podem ficar, tem que queimar. Isso é subversivo, não pode ficar. Então, eu tenho uma dificuldade até hoje de escrever. Então, quando eu falei pra você lá atrás, no teatro, eu escrevi uma peça de teatro, que depois foi feito um teatro na igreja, que é, “Cenas da Vida Real.”
P/1 - Na igreja daqui?
R - Na igreja católica, não. Numa igreja evangélica, numa outra cidade, no Rio de Janeiro, em Saquarema. É um poema que diz assim: na tela da vida assiste um filme na vida real, cujo personagem central é uma mulher, que tudo que quer, como ela mesmo diz, é simplesmente ser feliz, mas o destino com ela não foi nada complacente e fez ela andar por caminhos diferentes. Então, eu não lembro tudo, mas ele fala dessa mulher que sou eu, que andei por vários caminhos e conheci a escuridão quando fui parar numa cadeia. E conheci a luz quando alguém me falou de Jesus. Porque minha mãe sempre falou de Jesus, mas eu não tinha essa intimidade com Jesus. Assim como eu não tinha a paixão do amor, eu não tinha essa coisa de fé. A fé… Tem fé em Deus? Tenho. Mas eu não tinha essa intimidade com Deus. Então, eu passei a ter. Então, você ser condenada, julgada, por um crime que você não fez. Que só você sabe, e Deus. Então, eu comecei a espraguejar Deus. Comecei a brigar com Deus, que ele era uma fraude, que ele enganou a minha mãe a vida inteira. E estava enganando mais gente, porque ele sabia que eu era inocente. Porque minha mãe ensinou isso pra mim. Que só Deus é onisciente. O inimigo das nossas almas, da nossa vida, ele tem o mesmo poder de Deus, mas ele não tem onisciência. Só quem tem onisciência é Deus. Ele é onipresente, onipotente, mas não é onisciente. E eu, xingando Deus, falei pra Deus isso. Então, por que é que ele permitiu que eu estivesse naquela cadeia? Porque eu também aprendi que não cai uma folha de uma árvore que não seja consentida por Deus. Então, se ele me botou ali, se eu estava ali, foi ele que me colocou. Então, por que ele colocou? Eu queria saber. E aprendi também que ele falou pela boca de uma jumenta com Balaão. Então, ele falasse comigo pela boca daquelas pessoas que estavam ali. Mas não era para falar depois, era para falar naquela hora, porque era naquela hora que eu estava querendo saber porque que ele me colocou. E foi quando eu tive uma experiência com Deus, porque os nove dias que eu fiquei na cadeia, foi quando eu mais ouvi falar de Deus. E foi quando ele falou comigo na mesma hora e disse que me botou ali sem dever, porque ele não queria que eu fosse para ali devendo. Então, eu tinha que conhecer aquela cadeia, eu tinha que saber como é que funcionava e tinha que entender que Deus não queria que eu fosse para ali devendo. Então, ali eu me acalmei, ali eu conheci que realmente Deus é presente na minha vida. E ali eu entendi, porque quando eu saí dali, eu descobri meu marido com a minha melhor amiga, e eu queria matar ela, e matar ele. E tentei matar ela várias vezes, mas ouvi aquela voz daquela mulher dizendo: Deus não quer que você vá pra cadeia devendo, não faça isso. Ela fez um aborto e ela estava no hospital. Eu era estudante. Eu estava estudando, nesse período eu estava na faculdade de enfermagem. E eu sabia como podia matar ela. E fui matar ela. E na hora eu ouvi aquela mulher de novo dizer pra mim, “Deus não quer você aqui devendo. Não faça isso.” E eu não matei. E outras vezes, enchi um revólver de bala, e fui matar ela. Mas outra vez, não consegui. Tentei várias vezes. Porque a minha fé em Deus passou a ser assim, Deus passou a ser aquela pessoa que me protegia invisível. Até hoje, eu falo com Deus e falo pra ele, Senhor, o que o Senhor quer que eu faça mais? Então, cada vez que eu tô numa situação muito difícil, que exige de mim uma decisão muito séria, eu peço orientação a ele. E ele me orienta, tanto para não fazer coisa errada, como também para encontrar a solução. Então, o meu marido, ele escapou também de mim. Assim, nesse sentido de querer cometer um erro, uma coisa errada. Isso lá atrás, em momentos, foram momentos bem graves. Isso foi, o ano disso, eu lembro bem. Foi 89, 90, 92. Foi de 92 pra cá. Foi muito marcante. Esse período foi um período muito turbulento, porque eu não queria me separar, mas eu não queria viver daquele jeito. Eu sabia que ia ser muito complicado pra mim ficar sem ele, como foi, mas eu não aceitava traição daquela forma que ele fez. Só que foi muito emaranhado, foi muita coisa que aconteceu. Teve muita história nesse período. Entrou assim a discórdia, a inveja, muita coisa. Porque a gente era um casal muito unido, muito apaixonado. E a gente tinha muita cumplicidade. Então as mulheres, as minhas amigas, que eu sempre tive muitas amigas. Depois foi que eu fui entender que eu fiz muita propaganda, eu divulguei muito que eu tinha o homem melhor do mundo, um homem que no escuro se revelava, igual filme. Um homem que me levava para os melhores caminhos nas minhas fantasias. Um homem que era um pai maravilhoso. Era o amor na essência. E isso despertou em outras mulheres muita vontade de conhecer esse homem. Então, eu passei muita... Eu fiz, de certa forma. Eu me relacionei com muitas mulheres bonitas e confiava nas pessoas demais. E ele também. Só que quando aconteceu essa situação e eu fui para uma cadeia, foi uma situação tão inusitada. Eu não podia deixar ele ir para a cadeia. Eu não...
P/1 - Eu posso perguntar o que aconteceu, por que a senhora foi pra cadeia?
R - Pode, pode, pode, porque foi um emaranhado de coisas. Mas ele era caminhoneiro. E eu era comerciante, porque eu sempre fui empreendedora. Eu tinha sorveteria, lavanderia, ferro velho, um monte de coisa ao mesmo tempo. E trabalhava muito. E, consequentemente, pelo trabalho, a gente tinha dinheiro. Então, o primeiro telefone dentro da comunidade, foi o meu. Naquela época que o telefone era caro, era o preço de um carro. Então, eu era dos bastidores, eu fazia muita coisa. Então, politicamente, a gente ajudava muitos políticos. Nessa época, Cubatão não era emancipado ainda, mas os vereadores eram votados. Depois foi o prefeito. Então, politicamente, eu sempre participei da vida política da cidade, só que sempre pelos bastidores. E isso atraía. Eu não percebia, eu achava que como eu não era titular, ninguém ia perceber a minha liderança. Mas percebiam. Muita gente percebeu a minha liderança. Então, eu atraía alguns inimigos políticos. E o meu marido, por sua vez, ele era um caipira, porque o apelido dele era Caipira, no meio dos motoristas. E ele era um homem muito puro de coração. Ele também se deixou levar. Ele foi tão vítima também nessas histórias toda como eu. Mas ele não foi homem o suficiente para agir de dizer não. Ou então não vou... O medo falou mais alto pra ele. E ele recuou e me deixou na fogueira. Enquanto que eu segurei a onda toda. Então, quando eu falo do nosso presidente, é exatamente por isso, que eu acho que o ser humano tem que ter, sabe, a sua dignidade. O preço que for, você tem que pagar pela sua dignidade. Você não pode ser um covarde na vida e fazer coisas que você não quer por medo ou por covardia. Não, você tem que agir com dignidade. E ele não teve essa dignidade. Ele era motorista. Até hoje eu não sei, mas eu sei que eu não vivi aquilo. E teve uma carga que foi desviada. E a maior parte dos motoristas era amigo dele, que desviaram essa carga. E o meu telefone, era mais comunitário do que pessoal. Então, na época, eu cheguei a pagar conta de 12 folhas de telefone. Era uma conta altíssima, porque a comunidade toda usava meu telefone. Eu era a pessoa mais cotada dentro da Vila dos Pescadores para ser uma vereadora, para ser qualquer coisa. Se hoje eu ainda sou vista, na época eu era muito mais, eu era mais jovem, mais cheia de gás, cheia de força. Enfim, e essa carga se desviou e venderam a carga, e o seguro veio atrás, aquela coisa toda. E ele acabou como motorista. E o meu telefone, a polícia veio atender o telefone, porque os motoristas tinha… Eu tinha mais de dois mil cartões espalhados na rua, Marly 88... Uma coisa assim, que acho que ia ter eleição em 88 e eu ia sair candidata. Acho que era 88. Então, o meu crime era esse, de ter esses cartões e ser uma pessoa muito vista. E a polícia veio atender e eu deixei a polícia atender o telefone. Só que antes de ele deixar a polícia atender, eu liguei para o advogado e perguntei para ele se eu podia deixar. Porque eu tinha consciência que estava sendo uma investigação ali. E o advogado falou: não, pode deixar ele atender, sem problema. A polícia atendeu o telefone, e era uma das pessoas envolvidas nesse desvio dessa carga. Aí, a polícia marcou e prendeu essa pessoa. Só que depois o delegado deu a prisão preventiva, declarou a prisão preventiva para todos os envolvidos. O juiz estava de férias, voltou das férias e decretou a preventiva para todos os envolvidos naquela situação. E o delegado entendeu que eu era uma das envolvidas. Então, decretou a preventiva, sem nem eu ser citada, sem consentimento, sem ser chamada, sem nada. Então, quando eu vi no jornal o meu nome, como se eu estivesse envolvida, eu pirei. E como toda leonina e todo achando que eu era dona da cocada preta, eu quero esclarecer isso, eu não devo. Aí, liguei pro advogado, “doutor, você tem que vir aqui pra gente ir na delegacia, porque meu nome tá sendo citado aqui assim, assim. “Então, pode ir indo pra delegacia que eu já chego aí.” E eu fui. Quando eu cheguei na delegacia, eu não sabia que estava a preventiva decretada. E eu saí de lá direto pro presídio. Então, até esclarecer, até isso, até aquilo. Eu fiquei presa. E o trauma foi maior, não foi pela prisão, foi saber que ele já estava de caso com a minha amiga. Minha vizinha, uma menina que eu tinha como filha, uma família que era... O meu filho mamou no peito da mãe dela, a filha dela mamou no meu peito. Então, a gente tinha uma amizade de família muito grande. E essa moça era a moça que estava tendo caso com ele. E era a moça que ficava dentro do carro com ele enquanto eu estava dentro da cadeia. Enquanto eu estava chorando atrás da grade. Entendeu? Então, foi muita confusão, foi muita coisa que aconteceu. E eu não perdoei, e não perdoava, e queria matar todo mundo, queria matar, eu queria morrer, eu queria tudo. Menos aceitar aquilo. Então, quando eu saí dali, eu comecei a investigar e entender, queria entender, porque até aí eu não entendia por que que eu estava presa. Aí, fui investigar. Aí, descobri que o dono da carga era um policial. E foi ele que mandou roubar a carga. Aí, descobri que mataram um homem nessa conversa toda. Aí, foi quando alguém chegou e falou: você quer que seu marido crie seus filhos? Você quer ver seus filhos crescerem? Então, para de investigar. Porque eu comecei a ameaçar que eu ia botar a boca no trombone. Pode me matar que eu vou pra justiça, eu vou denunciar vocês tudinho. Aí, foi quando alguém ameaçou de matar a gente. “Você não tem nada a ver, mas se você continuar investigando, se você continuar falando, vocês vão morrer.” Aí, eu parei. Digo: não, não quero ver meus filhos sem pai. Então, até aí, ele escapou de mim várias vezes, da morte, ele não sabe, mas eu livrei ele da morte algumas vezes. Entendeu? Então... E a moça também. Não fui eu, foi Deus. Porque eu não sabia os planos de Deus, mas ela salvou a vida do meu filho. Depois, nessa história toda, ela salvou a vida do meu filho do meio. Nessa época, as crianças eram pequenas, era bebê. Foi em 1990. Meu filho nasceu em 1992. Não, 1995. Enfim, aconteceu muita coisa na minha vida. Muita, muita, muita história.
P/1 - A senhora tem que escrever um livro mesmo e eu queria ficar aqui escutando as histórias o dia inteiro.
R - Foi muita coisa, muita coisa.
P/1 - Mas a gente precisa realmente se encaminhar porque acho que já está todo mundo cansado.
R - Eu pedi para fazer uma comidinha.
P/1 - Mas eu só queria que a senhora falasse um pouco agora como que está a vida da senhora. Falasse do Ateliê Maré, como que funcionam as coisas aqui. Porque isso é muito importante também pra ficar registrado.
R - Gente do céu, por que vocês foram mexer nesse baú? Falei que é 70 anos de praia, 70 anos de história. Como é que eu vou resumir? E muita vivência, porque...
P/1 - Não, e eu tô com o coração apertado aqui de pedir pra resumir.
R - É, porque eu sou muito intensa, sempre fui muito intensa. Eu não vivo as coisas pela metade. Porque aí, olha, em resumo disso tudinho, entra uma coisa que é muito importante deixar registrado. É a fé. Sem fé é impossível agradar a Deus. E eu aprendi, assim como eu aprendi a força do amor, como é bom amar, ter o amor de um homem e ser amada por esse homem, se sentir amando e amada. Eu aprendi como é bom ter fé em Deus e saber que tem um Deus que cuida da gente. E Deus cuidou de mim e cuida até hoje. Então, esse amor que eu tinha pelo homem, hoje eu me basto. Esse amor, eu vi como esse amor que tem dentro de mim é tão grande que me supra e supra todas as minhas ansiedades. Mas foi muito difícil sair de uma depressão. Foi muito difícil superar todos os desafios que eu enfrentei. Não foi fácil. E me preparar para enfrentar mais desafios que Deus tinha na frente. Então, Deus me preparou, porque eu tinha três filhos que precisavam de mim e precisam de mim até hoje. Então, eu fui... Não foi aos poucos, porque nada comigo acontece devagar, não. Tudo comigo acontece assim, pá, pum, tem que ser vambora, na hora. Então, eu precisava sair daquela depressão, como o meu filho falou pra mim. “Mãe, a senhora precisa sair. A senhora tem que superar isso, mãe. Se a senhora não superar, como é que eu vou saber que eu vou conseguir superar quando chegar a minha vez, ou se eu entrar numa depressão, ou se eu tiver uma situação semelhante.” Então, essas palavras entrou dentro de mim igual um bálsamo, assim, sabe? um remédio curador, sabe, curativo, uma coisa assim muito... Eu preciso sair. Eu tenho que mostrar pro meu filho que ele pode. Assim como o meu pai mostrou pra mim, que a dignidade, mesmo ele errando, porque eu não contei ainda, não contei porque que meu filho se chama Benício, que é o nome do meu pai. Então, em homenagem ao meu pai, quando eu fiz as pazes, o meu primeiro filho teve o nome dele, pra eu não esquecer dele, que é Anderson Benício.
P/1 - E qual que é o nome dos outros filhos?
R - É Alisson e Allan. Todos também têm uma razão, todos foram escolhidos a dedo, o nome deles. Então, nesse emaranhado, nesse mar de emoções, de experiências que a vida me colocou, a fé se destaca. A minha força, muita gente pergunta de onde vem. A minha força vem do Senhor, que criou o céu e a terra e fez eu entender como eu sou importante para as outras pessoas, não só para os meus filhos, como para o mundo. Eu não estou aqui por estar, eu tenho um propósito. E Deus não vai deixar eu ir embora sem cumprir esse propósito. E hoje eu sei que o meu propósito é servir às pessoas, é dar o melhor de mim, é deixar o melhor. Então, quando eu resolvi voltar para a Vila dos Pescadores, não fui eu, foi Deus que me trouxe. Muita gente não acredita nas revelações, na força da natureza, no sentido da lei do retorno, de coisas que a gente não pode, da espiritualidade, de coisas que a gente não pode medir, não pode dimensionar, a gente não vê. Então, são forças que vão além da nossa imaginação. Um dia, uma senhora falou, você vai voltar para o lugar, você vai ser exaltada onde você foi humilhada. Eu não entendia, naquele momento, o que ela estava dizendo. Então, quando Deus me trouxe de volta, foi que eu fui entender, que eu vim numa hora que já passei outro casamento. Eu tive dois casamentos, tive outro casamento. Eu tive um outro marido que também eu entendi que estava na hora de parar. E separei, porque assim como eu nunca tinha me apaixonado e me apaixonei, ele também nunca tinha se apaixonado. E eu não era essa paixão, mas a gente tinha também um relacionamento muito sincero, muito honesto. E ele dizia: será que um dia eu vou sentir isso que tu disse que tu sentiu? Eu digo: vai, vai, quando chegar essa hora você não vai ter dúvida. Porque ele tinha uma busca muito grande, que ele queria se apaixonar. Então, foi quando eu fui entender, diferente do que aconteceu com o meu marido, meu primeiro marido, das traições, talvez Freud explique, ou uma grande psicóloga vai entender, explicar isso. Por que o homem é traidor? Porque o homem é caçador por natureza. Então, quando você se encontra, você não tem mais necessidade de buscar. Então, enquanto o homem está buscando, é porque ele não encontrou. Assim como a mulher também. Então, eu nunca traí meu marido porque eu me encontrei nele, pra mim podia chegar um homem lindo, maravilhoso, que eu não precisava, não tava buscando mais. E com esse segundo marido aconteceu isso. Então, quando ele se apaixonou de verdade, ele queria que eu continuasse sendo amiga dele. Eu digo: não posso! Você não pode transformar uma amante... Você pode até transformar um amigo num amante, mas um amante num amigo não dá. Eu gostava dele, a gente tava junto já há alguns anos, mas eu não podia também atrapalhar a vida dele. Deixar ele viver aquele amor. E ele foi. E eu falei: tu vai se fuder, porque você quer desejar o mal a alguém, deseja que ele se apaixone. Porque a pessoa, quando se apaixona, realmente a pessoa sofre. É muito bom, mas vive todas essas emoções. Um outro poema que eu escrevi, tem uma frase que diz assim: não tem valor algum o amor sentido apenas por um. Então, quando só você sente, não tem muito valor. Tem que ser os dois sentindo o amor, tem que ser os dois. Então, eu me separei e foi outra fase, foi quando eu voltei pra cá. A gente ficou amigo, ele morreu agora pouco, recentemente. Mas a gente continuou amigo, porque a gente tinha esse relacionamento de muita amizade. Só não podia ser aquele amigo como ele queria que eu fosse. De continuar na amizade com ele, sabendo que ele estava com outra pessoa, enfim. Mas essas fases todinhas, tudo isso, tem a fé envolvida, e você saber encontrar o teu objetivo. Então, eu encontrei o meu objetivo. Então, hoje eu posso dizer que eu sou quase realizada, porque eu não me formei ainda, vou me formar. Então, eu fui buscar o que me faz feliz. Os meus sonhos de criança, as coisas que eu quero fazer. Então, aí nasceu o ateliê. Porque o Pescadores de História é um projeto incentivado pela Petrobras, está em fase de renovação, ainda tá subindo papel, descendo papel, tá uma confusão que tem hora que dá vontade de eu dizer, chega, para o mundo que eu quero descer, não quero mais esperar. Porque é muito burocrático, é tudo muito complicado, mas o Pescador de História, ele trouxe a oportunidade de eu mostrar pro mundo o que que eu tô fazendo aqui, e o meu objetivo. Então, ele atende… Hoje, a gente trabalha com crianças de 7 a 17 anos. Estamos numa paradinha, porque o projeto está em fase de renovação. Mas a gente trabalha a arte, o cinema, a vivência, o meio ambiente e as mulheres. E, de um modo geral, a gente atende crianças de 7 a quantos anos… Isso diretamente e indiretamente e a população do modo geral.
P/1 - Essas crianças vocês atendem fazendo oficina de arte?
R - A gente faz teatro e cinema. A gente tem alguns curta-metragens feitos pelas crianças premiados no mundo, tá passando em 23 países. A gente tem um, que é o meu xodó, que diz assim, “Se Jesus nascesse no Mangue”. É um curta-metragem de 9 minutos. 9, 10 minutos. Não tem fala, mas tem um grande significado. E mostra um resumo de tudo isso que eu tô falando. Da fé e do meio ambiente. Que se Jesus estivesse no mangue, seria diferente.
P/1 - Quantas crianças vocês atendem?
R - A gente atendeu 320 crianças diretamente. Indiretamente, um pouco mais. Então, a gente tem as aulas de cinema, que foram os curta-metragens, e os teatros também. Então, tem algumas peças de teatro, que as crianças são maravilhosas. Mostrar isso que eu sempre quis mostrar, a potencialidade, a potência das pessoas.
P/1 - E todas essas crianças são daqui, Dona Marly, da Vila dos Pescadores?
R - Todas são da Vila dos Pescadores. Porque a gente aqui... Hoje eu não saio daqui. Hoje eu podia morar em qualquer outro lugar. Eu moro aqui por opção. Tem hora que eu dou vontade de ir embora, mas eu não quero ir ainda não. Mas tem hora que eu quero ir embora, quero sair daqui. Mas eu amo esse lugar, porque aqui eu vivi as minhas melhores emoções. Aqui tem os meus filhos, os meus netos.
P/1 - Toda a família mora aqui?
R - Não. Eu tenho um filho que hoje é professor na Escola Federal em Campos do Jordão, que é lindo, pra quem gosta de frio. Eu não gosto, não acho. Acho horroroso aquelas montanhas. Mas quem gosta diz que é lindo. Eu já fui lá, mas não gostei. Falei: não, eu quero sair daqui. Prefiro... “Mãe, aqui também tem favela. Mãe, eu arrumo uma favela.” “Não é a favela. É o clima, é outra coisa.” Ele quer que eu vá morar pra lá, mas eu não quero. Aí, tem um outro que mora em Cubatão… É assim, eu vou resumir como é que é meus filhos. Meus tesouros são três no total. Cada um difere do outro, mas são bem originais. Um é graúdo e forte, outro também inteligente. O menor é meu xodó, parece um pingo de gente. Todos juntos eu trago bem guardado. Falo dos meus filhos que parecem diamantes, depois de bem lapidado. Então, essas crianças hoje são adultos, e são meus melhores amigos e a razão da minha vida. Um é filósofo, que é esse que dá aula lá em Campo do Jordão. O outro é a minha essência, na minha criatividade. Ele é fotógrafo nas horas vagas, é quem me dá ideias maravilhosas e é caminhoneiro. E o meu xodó, hoje ele faz engenharia e trabalha na Transpetro.
P/1 - Trabalha aonde?
R - Na Transpetro. E é motivo do meu orgulho, que foi o meu maior desafio. Foi bem desafiador, porque cada um é diferente do outro. Hoje, olhar pra trás, assim, valeu a pena. Então, uma das coisas que eu não me arrependo de não ter me formado é exatamente isso. É ver a educação que eu passei pra eles e o esforço que eu fiz pra não perdê-los. Porque, muitas vezes, a gente trabalha, trabalha, trabalha e não passa de um cheque no final do mês na vida do filho da gente. E esquece de fazer o que meu pai fazia debaixo do pé do coqueiro. Senta aqui, vamos conversar. Me conta como foi teu dia? E essas coisas bem simples que a gente faz, faz toda a diferença. Então hoje eu vejo meu filho dizer pra mim todos os dias. Mãe, muito obrigada por não ter desistido de mim. E eu quase perdi meu filho pro crime. Não foi fácil, foi outra história muito grave, muito profunda, porque quando ele falou: não mãe, eu tô com meus irmãos. Eu digo: eu não pari esses aí, eu parei vocês. Mas é isso que você quer? Você quer ser bandido ou você quer ser… Como diz uma música que eles cantavam muito, “Como é bom ser Zé.” Eu digo: você quer ser Zé ou você quer ser bandido? Quer ficar com esses irmãos? “Quero ficar com eles.” “Então você vai ser bandido. Mas eu não vou estar aqui para ver você se tornar um bandido, não.” Então, foi quando eu procurei entender. Muita gente não conhece nada, porque é que eu sou tão respeitada no meio de certas pessoas. Porque eu procurei algumas pessoas e disse: olha, eu quero saber como é que eu faço para o meu filho ser… integrar meu filho no meio. Aí, um disse: a senhora é louca? As mães vêm aqui pedir pra tirar os filhos, a senhora vem pedir pra deixar? Eu digo: é porque é o que ele quer, eu vou fazer o que ele quer. É a vontade dele, eu não tenho mais força pra lutar. Pra fazer ele entender que não é o melhor pra ele, mas ele acha que é, eu acho que não é, mas ele acha que é, então ele fica. Mas eu não quero, eu quero que ele seja, eu não quero que ele seja lagarto, eu quero que ele seja um bandido. Ele vai ser respeitado como um bandido. Porque ele vai cometer um crime que nenhum bandido cometeu. Qual é o crime? Ele vai matar a mãe dele. Ele vai atirar em mim, eu olhando pra ele. Pra ele nunca mais esquecer que ele matou a mãe dele porque a mãe dele não queria que ele fosse bandido. Quando ele sentir saudade da mãe dele, ele vai se lembrar. Que ele matou a mãe dele. Mas eu não quero morrer de qualquer jeito. Eu sei que eu vou morrer, porque eu não vou aguentar ver ele na mão da polícia, eu não vou aguentar visitar ele numa cadeia, eu não vou aguentar ver ele sendo... Então ele vai me matar. E eu só quero batizar ele se for nessas condições. Eu quero batizar ele, eu quero fazer todos os trâmites normais que tem que fazer. Aí, preparei tudo, preparei até o lugar onde eles iam dar o tiro em mim pra eu não ficar agonizante, mas o primeiro tiro era ele que ia dar. “A senhora é louca?” Eu digo: sou. Aí, falei pra ele. “Mãe, eu não vou conseguir.” “Vai, você não quer ser bandido? Você vai ter que matar um pai de família. Você vai ter que matar alguém que você nunca viu, que nunca lhe fez mal. Você vai ter que fazer coisas que você nem imagina que você vai fazer. Então, já começa agora, matando a tua mãe. “Mas…” “É nessas condições. Agora, se você não quiser, enquanto a vida tiver, eu não saio de perto de você.” Por isso que eu não saio da Vila dos Pescadores. Porque enquanto meu filho estiver aqui, eu estou. Onde ele estiver, eu vou estar perto dele. Eu falei pra ele, se eu tiver só um ovo, eu divido esse ovo com ele. E eu cumpro com a minha palavra, e ele cumpre com a dele, até hoje. Então, hoje ele é um estudante de engenharia, é um cidadão de bem. Não precisou brigar com ninguém. Não precisou matar ninguém. E entendeu por si só. Então, eu falo para as outras mães, foi o amor que fez eu salvar meu filho. Então, se eu salvei meu filho, outras mães também conseguem salvar.
P/1 - Então, me fala um pouquinho desse trabalho que faz aqui no ateliê com as mães, com as mulheres.
R - Esse trabalho do ateliê, o ateliê, ele veio com essa essência toda, esse caldeirão todo de emoções. Toda essa minha vivência, hoje, ele é canalizado para o ateliê. Então, o ateliê, ele ainda não atende. Ainda não está atendendo, como eu sonho, como eu imagino. Porque o ateliê, ele é uma filosofia de vida. As mulheres vêm para cá para aprender a mexer na máquina, a fazer pequenos consertos, aprender a costurar, aprender a ganhar o seu sustento, como uma geração de renda. Mas mais do que isso, elas têm que costurar histórias, emoções, vivências e aprendizado e compartilhar isso. Então, a gente tem um momento que a gente se reúne. Antes de a gente começar a trabalhar, a primeira coisa que a gente faz é uma oração agradecendo a Deus por aquele momento, por aquele dia. E quando a gente encerra também, a gente ora a Deus, a gente agradece. Então, a gratidão está em primeiro lugar. É o que a gente faz. E a gente está ainda caminhando, porque tudo isso tem custos. Então, a gente quer um negócio de impacto. A gente quer que ganhe dinheiro. A gente quer, que os boletos tem que ser pagos. A gente quer que as mulheres ganhem dinheiro, mas a gente quer também que as mulheres entendam que o dinheiro, ele é complemento, ele não é a essência, ele não é o fundamental, fundamental é o que ela vai fazer, é o que ela vai distribuir, a valorização que ela vai dar àquela peça que ela tá fazendo. Então, cada peça tem uma história. Cada peça tem um porquê. E é feito no coletivo, é feito nesse grupo de mães, de mulheres. Hoje a gente tá com 15 mulheres. A gente já formou 80 mulheres, na formação, mas nem todas permanecem.
P/1 - E essas mulheres são mulheres daqui da comunidade?
R - Da comunidade. Não é fácil mobilizar, é muito complicado pra fazer as mulheres virem se doar. Porque as pessoas ainda não entendem que a gente é uma via de mão dupla, a gente não só vai, a gente vai e volta. Então, a gente tá em constante movimento. E quando você se doa, você também recebe. Então, essa troca de energias, de valores, de coisas, as pessoas não entenderam ainda isso. Então, só entende a via, venha a nós. O vosso reino, eles não entenderam. Entendeu? Então, “eu vou ganhar o quê? Ah, não, vou não. Vai me pagar X valor? Então, eu vou.” Essa máquina que tá aqui é um exemplo bem claro do que eu tô dizendo pra você. A gente tinha uma costureira aqui que ela espraguejava as máquinas domésticas, porque essas máquinas, ela não costuram tão rápido. Então, eu dizia… Ela era profissional. “Não, eu não quero costurar nessas máquinas, vai demorar muito. Eu tenho uma máquina, se você me pagar o aluguel dela, eu trago.” “Olha, eu não tenho dinheiro, não dá para mim pagar. Mas eu acredito no dono do ouro e da prata. Eu tenho um Deus que pode tudo, até trazer uma máquina boa para você aqui.” E falei normal, natural. Um dia chegou uma mulher aqui, poucos dias depois dessa conversa, a mulher chegou e falou assim: olha, eu tenho uma máquina, assim, assim.” Que era essa. “E eu estou doando, vocês aceitam?” Eu me ajoelhei aqui nesse lugar e agradeci a Deus e falei pra ela: tá vendo como é trabalhar com a fé? É isso, é um caminho de mão dupla. Porque essa professora é maravilhosa, mas ela não queria continuar ensinando pras mulheres e esperar até a gente ter um contrato, como a gente tá tendo agora, um contrato de uma empresa, para poder fazer os suvenires, peças que a gente vai vender, que é feita com os macacões que vocês estão vendo ali. A gente usa muito material reciclado para tirar da natureza, principalmente o jeans, que leva anos para se diluir. E vamos vender para a empresa. A empresa vai fornecer a matéria-prima, vai fornecer os uniformes, a gente vai fazer as peças e vamos vender as peças e a empresa vai pagar. E com esse dinheiro a gente vai pagar o salário delas e distribuir, vamos fazer uma espécie de cooperativismo e um negócio de impacto. Só que as pessoas só veem a parte financeira da história. O capitalismo não vai ganhar conta. Você tem que ganhar, você tem que ganhar, ganhar, ganhar, mas a gente já está ganhando. Só que o que a gente está ganhando não está ainda em valores financeiros. As pessoas não veem. Mas a gente tem mulheres aqui, como aquela que você viu, que está saindo de uma depressão. A gente tem mulheres que agradecem muito a gente, porque hoje não tomam mais remédio. A gente tem mulheres que estavam em situações muito de vulnerabilidade, porque a maior parte das mulheres aqui, os maridos estão em alguns lugares, que elas são obrigadas a ser mãe e pai e cuidar dos filhos. A gente tem mulheres que despertou para outras coisas, para outras atividades, sem ser a costura em si, graças a esse movimento de troca de energia, de conversa, nessas rodas de conversa que a gente tem. Então, o ateliê ainda não alcançou o nível que a gente quer alcançar, que é as crianças. A gente quer trazer as crianças. A gente quer trazer os adolescentes, porque as crianças têm muita coisa para oferecer. Por isso que a gente briga por um espaço físico, para ter um espaço grande. Pena que eu não sei se eu vou alcançar tudo isso ou se alguém vai poder dar continuidade a esse empreendimento. Entendeu? De a gente poder realmente ajudar as pessoas a se encontrarem no que elas querem, no que elas precisam, que é dar sentido à sua vida. O que é a minha vida? Qual é o sentido da minha vida? O que é que eu quero fazer? A gente vê muitos jovens. Muitos. Vejo aqui dentro da comunidade muitos jovens que dizem, “poxa, por que a senhora não é minha mãe?” Hoje eu não sou mais tia, hoje eu sou avó. E eu não faço mais do que conversar com eles, ouvir. É escutar. Às vezes eu dou bronca, que eu falo que eu tô mais pra vódrasta do que pra vó. Porque eles adoram dançar, eu deixo eles dançarem, adora cachorro-quente, eu faço cachorro-quente pra eles. Essa troca, o que eu ofereço pra comunidade é muito pouco, perto do que a comunidade me devolve. Então, eu recebo muito, eu sou muito grata, muito, muito mesmo grata à minha comunidade, porque eles me dão oportunidade de eu mostrar esse... De eu poder mostrar o meu verdadeiro eu, de eu ser natural. Porque aqui a gente tem um diferencial, que a gente não tem em lugar nenhum, é que as pessoas têm medo de entrar aqui na Vila porque dizem que tem muita violência. Mas as pessoas, elas se defendem. Então, elas são tão agredidas que quando chega alguém, a reação já é de agredir, de atacar como uma defesa. Mas nós somos um povo pacífico, não tem lugar melhor no mundo. Olha que eu conheci a Europa. A grama do vizinho só é verde porque o vizinho cuida e a gente não cuida da nossa. As pessoas que estão lá fora não é igual ao brasileiro. O brasileiro só tem aqui no Brasil. Nós, essa é a essência que a gente tem. Eu lembro que eu estava na Espanha e a doutora que estava comigo, que a gente foi no congresso, porque eu nunca imaginei de um dia ir para a Europa, mas fui. Então, quando eu cheguei, eu ainda eu falei para a doutora, deixa eu colher a minha jabuticaba aqui. Porque eu me senti assim, igual o presidente da república. Tô aqui, tô em Paris, tô embaixo da Torre Eiffel, vou trazer as mulheres pra cá ainda e vou fazer um desfile ainda embaixo da Torre Eiffel. Eu quero fazer isso, se Deus permitir.
P/1 - Dona Marly, muito obrigada por compartilhar essas histórias maravilhosas com a gente. Eu juro que queria ficar o dia inteiro aqui pra escutar. Muito obrigada mesmo. Eu agradeço em nome do Museu da Pessoa.
Recolher