Memória dos Brasileiros – Saberes e Fazeres
Depoimento de Maria Moura
Entrevistado por Claudia Leonor
Vassouras, 27 de maio de 2007
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV012
Transcrito por Ana Lúcia Queiroz
R – Meu nome é Maria Enésia Alves de Moura, nascida no Rio de Janeiro, criada no bairro do Rio Comprido e Estácio. Moradora de cortiço na Praça Condessa Paulo de Frontim, Rio Comprido. Lá vivia minha vó e várias famílias. Era um hábito no Rio de Janeiro, nesse período, as pessoas morarem em casarões ou vilas do tempo da escravidão. Então ali morava, por exemplo, 15, 16 famílias. E aquilo se transformava numa comunidade. Então era um ambiente muito cordial e até alegre, onde as crianças – eu acho que a gente não tinha uma mãe e uma avó – a gente tinha várias mães e várias avós. Porque quando uma mãe saia deixava os filhos aos cuidados da vizinha e, quando a vizinha saia vice-versa, também se fazia essa troca. A gente tinha uma cozinha coletiva, que era o cortiço, o fogão era de ferro e carvão. Na cozinha havia vários fogões de carvão. E era muito boa aquela cozinha, sabe por que? Tinha vários cheiros e várias comidas, porque se minha mãe fazia feijão, mas se a minha tia Daí fazia quiabo com carne eu trocava, eu comia o quiabo da panela dela e ela comia o feijão. Quer dizer que ali a alimentação era sempre muito farta e muito boa, porque a cozinha era coletiva então a gente trocava a alimentação. A maneira de lavar roupa também, era um tanque no centro dessa localidade, e ali os tanques eram um conjunto. E ali as mulheres enquanto estavam lavando a roupa algumas cantavam coisas como músicas do cancioneiro do Rio de Janeiro, elas conversavam entre elas, aí era um momento da confraternização, de botar os assuntos em dia. Algumas trabalhavam, saiam pra trabalhar, e as mais velhas tomavam conta das crianças. E quanto à questão da educação, que hoje a gente tá preocupada, tenho observado que não é só no Rio de Janeiro, pelo que estou vendo, o povo está muito mal educado. A Maria da ___ já falou isso, eu falo também isso porque isso nos põe muito espantados com essa questão.
P/1 – Como era a educação de antigamente?
R – Eu vou dizer, a educação era o seguinte. Nós éramos educadas sabendo, pelos nossos pais e nossos avós, não vi, não sei, sim senhor e sim senhora. Isso é que era a base da educação das pessoas simples. A criança entendia aquilo, porque não é tudo que se vê que se fala. Hoje é que a criança fala tudo, responde tudo. Havia também um código dos mais velhos, meu Deus, eu me lembro, quanto café sem açúcar eu tomei nas casas. Ia com a minha avó nas casas, aí a pessoa conversando – elas conversavam muito – a criança ficava observando. Aí dava op café sem açúcar. A gente bebia o café: “— tá bom minha filha?”, “— tá bom, sim senhora, muito obrigada”. Também eu acho que aquilo não era muito certo, não, gente. Porque era uma maneira assim. Mas também chegar e escancarar que não está bom. Tinha isso.
P/1 – E dona Maria, lá no cortiço tinha as músicas já, vocês cantavam? O que vocês cantavam?
R – Tinha. Ali se cantava Ismael Silva, porque nós éramos do bairro aonde foi fundada a primeira escola de samba que foi a Deixa Falar. E a Deixa Falar, que hoje é a Estácio de Sá, na minha infância eu ouvia a minha vó contar que aquela escola foi fundada por um botequim pé sujo. Botequim pé sujo no Rio é aquele botequim aonde os biriteiros cospem, aonde tá lá a sardinha frita com fubá, o jiló, o ovo cor de rosa, é mais ou menos uma coisa assim. Diz que lá estavam eles, e eles já estavam cansados de tanto apanhar e correr da polícia – porque quem era sambista no Rio sofria muito. Hoje todo mundo quer ser Mangueira, quer ser Império, mas não pode imaginar o que ouve lá atrás, com esses fundadores dessas agremiações. Então eles resolveram fazer um grupo e desse grupo fundar – o que eles não sabiam que seria uma escola de samba, mas como havia uma escola normal em frente – eles lá do botequim eles disseram: por que a gente vai á escola que ensina a ler e escrever, vamos colocar aqui escola de samba Deixa Falar. E também nós vamos ensinar as pessoas a sambar, a cantar. E aí surge no Rio de Janeiro a primeira escola de samba que foi a Deixa Falar. Que os fundadores foram Papoula, Brancura, mestre Bidi. E o mestre Bidi foi o que inventou alguns instrumentos que estão até hoje na escola de samba, feitos por esse mestre. Que ele pegou uma lata redonda e começou a botar um couro e fez a caixa de ¬¬¬guerra, que tem hoje em todo lugar aí, foi feita por esse homem, chamava mestre Bidi. Tiveram, mais outros, e a gente também tem uma coisa que eu me lembro, que até hoje de vez em quando ainda sonho com aquele tambor. Que todos os anos a Mangueira vinha no Estácio saudar o Estácio, porque até hoje, quer queira quer não, ali é o berço do samba, foi ali no bairro onde eu nasci. Tenho muito orgulho em dizer que eu sou filha de Rio Comprido, Estácio e Praça Onze. Então eu fui criada vendo tudo em relação à cultura do samba. E eu vi muita coisa, algumas já não lembro, me lembro de coisas assim, como no dia que a Mangueira veio no Estácio pra saudar a Deixa Falar, feijão queimava, a carne assada queimava. Era uma confusão, quase botavam fogo no cortiço porque as senhoras queriam cozinhar mais cedo, porque tinha uma coisa assim, essa questão da cultura negra e a cultura popular: se tem negro, tem que ter canto, samba, bebida e comida. Se não tem isso pra gente não dá certo. Então elas, dentro do cortiço, faziam macarronada, faziam carne assada, que era pra fazer a confraternização junto com a Mangueira. Só que não acabavam de fazer muito cedo, e a gente ouvia de longe o surdo. Esse som que a Mangueira tem hoje, uma batida sempre atrasada, era um senhor que tinha na Mangueira que tinha um defeito físico na perna, então ele vinha tocando e à medida que ele ia batendo o som ia ficando atrasado. E a Mangueira tem isso, até hoje como tradição. E a gente, de longe, ouvia aquela batida assim nesse compasso, a gente já sabia que era Mangueira, a criançada já tava por ali, quando a gente ouvia o tambor entrava dentro do cortiço gritando que tava chegando a Mangueira. Algumas daquelas senhoras esqueciam o diabo da carne assada, do macarrão, e vinha porque queria vir pra voltar. E daqui a pouco vinham gritando que tava pegando fogo no cortiço, que tava queimando a comida. Porque era emocionante a chegada da Mangueira na Estácio de Sá. E não tinha aquele negócio de arquibancada, era caixote, aquele caixote de bacalhau grande! Aí saia correndo, já vinha o homem que já preparava os caixotes. Camelô sempre teve, não é de hoje isso. O camelô vinha, colocava os caixotes, vendia pelo preço que ele queria.
P/1 – O caixote?
R – O caixote, porque era arquibancada. A arquibancada do Rio não era o sambódromo, eram os caixotes. Isso foi durante muitos anos. Aí a gente tinha, pra se ver, o carnaval era de corda. Vinha uma corda enorme e o cachaceiro lá da Mangueira vinha lá na traseira da corda, segurando. Ali dividido, dentro vinha a baiana, vinha a bateria, vinha a harmonia, vinha o cantador. Que era o versador, né? Por dentro dessa corda. Eu não sei como aquela gente agüentava aquilo, era um puxa pra lá, puxa pra cá, era uma confusão danada. E a gente lá em cima do caixote, aí quando juntava a emoção da chegada da Mangueira e a nossa emoção, o caixote tombava, caia, aquele monte de velha, criança, porque não era uma coisa oficial. Então toda hora desmontava o caixote, monta outra vez. E ali a gente ouvia a Mangueira cantar: (CANTA)
Mangueira seu cenário é uma beleza,
que a natureza criou,
o morro com seus barracões de zinco,
quando amanhece que explendor,
todo mundo te conhece ao longe,
pelo som do teu tamborim
e o roncar do seu tambor,
ô, ô, ô, ô, a Mangueira chegou, ô, ô.
R - Viu? E tinham outras coisas que também eram apresentadas, mas aquilo ficou gravada, que minha avó cantava e minha mãe também, e a gente também porque eu fui criada cantando, se cantava muito nesses lugares. Porque, se havia pobreza eu não sei, se eu fui pobre eu não sei, e hoje eu penso que fui muito feliz e não sabia. Porque o Rio era uma beleza, era muito boa a situação. Eu acho que era pelo fato da gente viver ali naquele foco, onde acontecia tudo. Tinha uma coisa que eu me lembro, que minha avó, minha mãe, senhoras iam para a praça Onze para ver o carnaval e havia lá tanta serpentina que a gente hoje não vê. E aí quando a gente ia – elas iam e não tinha hora pra voltar – elas juntavam aquela serpentina, faziam um colchão pra gente, fofinho, e ali eu dormi muito sono em cima de serpentina da antiga praça onze. Elas ficavam assim e botava a meninada em cima daquilo, que era assim, uma espécie de uma esteira, um colchão, era tão macio. E a gente ali deitava, elas tiravam o paletó delas, faziam travesseiro, e ali a gente assistia o que hoje é história pra vocês, que era a antiga praça onze. A gente ficava ali dias e dias assistindo. No bairro onde eu morei, porque a gente mudava, de vez em quando mudava, a mudança era feita de taioba. Taioba era um bonde aonde viajava o povo pobre. Mas o bonde também levava mudança, levava cachorro, gato, todo mundo ia naquele bonde. E no dia de mudar, ah, era uma festa! Olha, cuidado com a tina da roupa! Vê se pegou o gato! (RISOS). A minha vó, que era mãe de santo, vó Lisa, ela era metida com as mulheres da praça onze, então, o ano todo, elas criavam gato. Era mania em toda janela ter um gato angorá. E agente alimentava até os gatos, porque depois que chegava o carnaval botava tudo num saco, e vendia pra Mangueira o gato das velhas. Pra ganhar dinheiro pra comprar merenda.
P/1 – Mas o que a Mangueira fazia com esses gatos?
R – Tamborim. Vendia pra Mangueira pra fazer tamborim.
P/1 – O couro é bom pra fazer tamborim?
R – Só aquele que servia: o couro do gato. Isso hoje é samba, né? Aí a gente chegava na Mangueira com gato, o gato arranhava, rasgava o saco. Pegava os moleques, teve uma vez que o moleque abandonou o saco, quase chegando na Mangueira, que o gato tava aborrecido no saco. Aí levava uns quatro dias assim, elas começavam: “você viu o mimo?”, mimo era o gato, lá. “Você viu o Zeca?”. Meu Deus vai começar! As velhas procurando os gatos, os gatos já tinham virado tamborim lá na Mangueira. Sabe o que minha avó fazia? “Maria Enésia – que ela era africana e falava assim – vamos pra delegacia”. Aí é um problema de ordem social, que hoje o delegado não sabe quem é o ladrão, e a gente fica imaginando como é que a gente sabia. Aí a velha pegava, botava aquela roupa, botava com a esponja talco, sei lá o que era. Aí ia pra delegacia, chegava na porta da delegacia batia uma palma, (BATE PALMAS) pro delegado. O delegado imediatamente corria, botava a gravata e botava o paletó, que ele ia receber uma senhora de idade. Aí vinha na porta da delegacia, pegava a mão da senhora e levava pra dentro. E lá dentro, eu criança olhava tudo, tinha um bule assim – eu sempre já sabia, eu ia tanto que eu já sabia, eu roubava gato todo ano – eu ia assim e lá tinha um biscoito, tinha um biscoito Maria na delegacia. Imagina hoje, biscoito! Aí ele dizia assim: “o que trás a senhora aqui, sinhá Elisa?”. “Eu vim dizer pro senhor que tá tudo errado, já tinha ladrão de roupa da corda, já tem batedor de carteira, agora tem ladrão de gato?” Eu aí ficava assim, ó. “Roubaram meu gato. Tem um ladrão que todo ano leva os gatos todos que tem lá no cortiço, e o senhor nada faz?”. “Mas como é que eu vou?”. “Eu quero que registre no livro”. Nós precisamos fazer uma pesquisa pra saber aonde anda esse livro. Ela: “eu quero que bote no livro preto!”. Preto era o livro de ocorrência da delegacia. Que se hoje fosse ter esse livro preto, minha gente, eu acho que não dava pra botar tudo que acontece nem na metade do dia. Aí o homem, com todo respeito, o delegado ia lá, pegava esse livro e botava: aos dias tantos, de tantos, na localidade ta nan nan, foi roubado um gato malhado, uma gata branca. Era registrado. O que eu quero contar pra vocês com isso? Pra você ver o que havia de respeito da sociedade com a autoridade. A autoridade sabia. Se assaltasse sua casa, pela maneira que era feito o roubo, o latrocínio, o que fosse, o delegado mandava diretamente: “vai lá buscar fulano, no morro tal”. Ele não tinha que ver. Era aquele o ladrão, ele sabia quem era o ladrão. Hoje em dia eu não entendo porque os delegados não sabem mais, e as autoridades. É uma coisa que eu digo, eu queria até que eles me explicassem isso. Eu não entendo. Porque hoje em dia ninguém sabe mais quem é quem, quem roubou. Então isso tudo aconteceu comigo lá no Estácio. Tinha também uma coisa assim muito pitoresca, que eu me lembro, eram as festas que hoje não tem mais. Festa da Penha, da Glória. A da penha era muito concorrida por esses cortiços, que – os portugueses sempre foram os ricos do bairro. Era o dono da mecearia, o dono da carvoaria, o dono do cortiço. A gente pagava o aluguel só. Então no dia da festa da Penha, que era a maior festa tradicional lá do Rio de Janeiro era a festa da penha. Até porque nessa festa era que eram apresentados os sambas enredo das escolas de samba. E o samba que mais fosse cantado na festa da penha era o samba que ia descer o morro pela praça onze, no carnaval. Era assim que era escolhido, aí a minha avó, meu Deus, saia com aquele caminhão, com aquelas senhoras. Eu acho que aquilo era um pau de arara, eu não entendia bem. Eu sei que era um caminhão, com uma porção de bancos, as senhoras iam na frente, a gente ia no meio, querendo ir lá pra trás, e os homens iam mais atrás. Bandeirinhas e a panela de feijoada, panela de arroz já ia de casa. E o fogareiro, porque aí não era mais carvão, era pó de serra, de madeira, que quando ia pra festa de rua assim, levava. Aí fazia aquela lata de 20 quilos, botava ali o pó de serra e ia todo mundo sentado naquilo. Encontravam vários daqueles caminhões na rua, que era os bairros. Diziam: é seja bem vindo, bairro do Estácio, seja bem vindo. Uma coisa muito linda aquilo. Aí chegávamos na penha, escolhíamos um lugar, era uma coisa como esse local aqui, sendo que elas eram sambistas, elas já botavam aonde ia tocar o Donga, o João da Baiana, o Pixinguinha. Eu não entendia bem, era menina, encostava ali. Aí botava ali a panela da comida e dizia: aqui tá bom porque aqui vai acontecer a música. Então o pessoal do samba já ia armando tudo ali em volta porque ali é que ia sair a música que esse grupo, que eram “os sete batutas” que tocavam, e elas subiam aquelas escadarias. Trezentos e sessenta e cinco degraus na escada da Penha. Porque era assim, batizava a criançada toda num dia. Você era minha comadre que ia me dar o filho pra batizar, Nossa Senhora da Penha que vai batizar. Aí ia juntando, juntando, tinha vez que tinha oito, nove, dez crianças. E os padres tinham que ir no caminhão. E lá elas subiam. Mas era muito bom! Quando elas subiam pra batizar nós éramos quase adolescentes, a gente ficava pra vigiar a panela da feijoada, o pastel. Só que a gente devorava aquilo tudo. Minha gente, eu não sei que reza era aquela que elas não voltavam. Aí a gente tinha que vigiar o feijão pra não azedar, a gente botava aquele material de madeira, que era o pó da madeira, botava o fogo, botava o panelão em cima. Mas antes a gente tirava a boa lingüiça, a boa carne seca. Era o nosso tira gosto, que chama no Rio. Aí cortava aquilo e a gente comia escondido. E elas levavam – hoje tem sal de fruta eno, não sei quê – cinza do fogão do cortiço, botava na água, deixava dois dias, fervia tudo. Aí depois botava na garrafa. Aquilo fazia uma festa. Bebia, ai tô mal. Bebe a cinza. Era água de cinza que você bebia, porque não havia essa coisa que tem hoje. Natal também a gente fazia a comida e fazia o laxativo. Eu sei que aqueles biriterios que acomapnhavam elas: “Lisa, você tem aí um negócio?”. “Tenho”. Com a barriga cheia. Aí botava aquilo numa canequinha, bebia. Aí fazia aquele rom rom, falta de educação, né? Arrotava-se alto e aí aquilo era melhorado. E a gente viveu até hoje. Agora ninguém mais faz, não tem essas coisas naturais, que a gente vê aí. Quando elas desciam do tal batizado, ai minha gente, não era brincadeira. Era comida o dia todo! Era pastel. Na parte da tarde tinha canjica. Eu sei que a gente comia tanto que dava até sono. E assistindo Pixinguinha, Donga, João da Baiana. Eu não sabia quem era Pixinguinha. Depois de muitos anos eu via falando daqueles senhores e eu comecei a ligar. Sabe por que? Porque eu me lembro dos sapatos, o sapato era preto e branco. Eu ficava admirada com aquela, e tinha um meio salto. Eles andavam de calça de linho branco ou panamá. Era a fazenda da época. E tinha aquele sapato. E a gente era criança, ficava na parte de baixo, então não dava pra visualizar o rosto dele. A gente via mais a parte do pé, do sapateado deles ali. E aquilo fica na cabeça da gente. Anos e anos depois eu já casada – que eu fui casada muitos anos com o maestro Paulo Moura – um dia chega lá em casa ele me apresentando o Pixinguinha. Aí que eu entendi que eram aquelas pessoas que eu tinha visto na minha infância e que me lembrava por causa do sapateado que tinha daquelas pessoas. E agora, depois disso tudo, eu estou novamente, não morri, não senti nada. Estou aqui, aí resolvi fazer um curso de extensão na faculdade Estácio com essa idade. Porque a história da tradição do carnaval eu conheço muita coisa. Mas aquele lado acadêmico, que é aquela coisa que a gente de vez em quando vê em alguns livros, aquilo me botava muito curiosa, de querer saber que se tinha aquele lado tão violento. Porque eu ouvi muita coisa no carnaval. Eu vi muita coisa também. Então eu fiquei com a curiosidade de aprender o acadêmico, e agora eu estou saindo na primeira turma da faculdade Estácio de Sá, de gestores para festas e eventos carnavalescos. O que isso trás? Isso vai mostrar o outro lado, que é o academicismo, de tudo que eu falei pra vocês aqui. Só que agora já é uma outra linguagem, porque agora já eu burguês falar, não é mais a nega velha do cortiço. Acho que pra mim foi de grande valia, porque a gente começou a se preocupar com essa questão de não deixar que a tradição acabe. Então eu fui contratada pelo MINC (Ministério da Cultura), estou trabalhando no griô da Mangueira, aonde eu vou passar para as crianças essas experiências, que eu falei algumas aqui pra vocês, e é um projeto muito grande, aonde a gente vai ter aquela parte toda da contação da história do samba, aonde eu conto a hsitória para criança, e a criança vai numa janelinha, que depois vocês vão ver lá em baixo, e conta pra mim. É uma maneira simples da criança não ficar enfastiada de ficar ouvindo eu falando, falando, e aprender. Então tem briga pra todo mundo ir naquela janela. Aquilo ali é disputado no tapa porque cada menino que vem lá do morro. E alguns – é interessante – porque alguns meninos já vêm dizendo assim: eu sou bisneto do Carlos Cachaça, Maria Moura, o meu avô também falou isso, falou aquilo. Entendeu? Quer dizer eu conto a história que eu sei para eles e eles contam pra mim. Porque aquela meninada da Mangueira, vem uma turma do Tuiuti, que é outro morro que é próximo, São Cristóvão, tem muita criança. E a preocupação em fazer isso, eu vou explicar à vocês porque é. Porque algumas crianças da Mangueira não sabem mais sambar, não sabem mais cantar, e não sabem mais quem é aquele. Porque na entrada do centro cultural tem um retrato imenso, feito em bronze, do Cartola. E eu mesmo já vi criança me perguntando quem era aquele senhor. Quer dizer, se a gente não fizer o trabalho de reconstrução, que é a história do carnaval, a tendência é a geração que vem não saber mais o que foi e o que é essa coisa monstruosa que é o carnaval carioca, que o mundo todo quer saber. Que agora já não é mais uma a coisa só do povo, já está dentro de uma grande universidade, aonde tem vindo pessoas de São Paulo, Curitiba, Rio Grande do Sul. Há um interesse muito grande em saber o avesso, o lado contrário que é o lado cultural, dessa coisa tão importante que é o carnaval carioca. Eu estou muito contente de estar lá na Mangueira trabalhando essa questão, até porque eu acho que – eu digo povo brasileiro digo povo carioca – porque eu mexo com muljheres de velha guarda, mexo com mulheres de escola de samba. Fui presidente de ala de banda da Imperatriz, faço parte da ala dos cabelso brancos do Império Serrano. Então eu ouço muita coisa. Eu fico às vezes preocupada porque eu vejo: as pessoas metem o pau nos governantes, mas também não fazem nada pra ajudar. Eu gosto de falar, de vez em quando eu meto também o pau, falo. Porque diz que a gente pode falar tudo, que o negócio é democrático, então tem vezes que eu também falo. Porque mulher fala muito. Mas dou a minha contribuição. É o que estou fazendo na Mangueira.
P/1 – E qual a importância desse projeto pra senhora?
R – Ele é muito importante do ponto de vista que a gente está preservando um veio muito rico, que é o veio da cultura popular do Rio de Janeiro. Que até então as pessoas não sabiam o que era isso. Conheciam no dia a dia. E agora eu já tenho outro olhar, que é o olhar acadêmico, onde a gente está preparada pra fazer toda a questão do carnaval, desde fantasia, ala, julgamento, o carro, o soldador, o colorido do carnaval – a gente na universidade sabe o que pode e o que não pode fazer. Eu acho que vai se abrir um leque muito grande, porque o carnaval gera renda, 500, 600 empregos. Agora mesmo nós estamos lá com os estagiários, trabalhando o Pan, essa coisa imensa que vai acontecer aí, tem lá 800 pessoas ganhando e trabalhando. Quer dizer, esse ano no Rio de Janeiro não parou o carnaval, por causa dessas olimpíadas. Quer dizer, terminando isso vai ter uma oficina que a gente vai fazer que é de chapéu, chapelaria, porque a gente também tem que sair sabendo fazer os adereços. A questão do que se coloca na cabeça do povo no carnaval. E também com isso já começam os barracões das escolas de samba, que eu acho que esse ano nós vamos ser aproveitados porque nós temos que ver de frente o que seja o carnaval carioca.
P/1 – Dona Maria, lá no griô aprendiz a senhora conta histórias que a sua avó contava?
R – Conto o que a minha avó contava, e as crianças trarão suas avós, que aí começa a haver um interesse, isso vai ao ___ que a gente tem também que ter certo cuidado com o que se fala ali com as crianças, porque a criança leva isso pra casa. E há o interesse da vó e acaba sendo o griô visitante. A avó desce o morro pra ajudar a contar. Então a gente além de estar contando a gente tem a presença das senhoras que vem de outras localidades pra contar. E como a Mangueira já fez o tombamento do samba do Rio de Janeiro, pelo IPHAN (Instituto do Patrimônico Histórico Nacional), já foi tombado, né? Então foram tombadas quatro grandes: Império, Mangueira, Portela e Império Serrano. Mas, gente, e as outras? O Em cima da hora, Jacarezinho? Então nós vamos fazer um projeto paralelo aonde nós vamos contar com a presença das velhas guardas, que é aonde tá toda a cultura do carnaval, pra nos ajudar na parte do griô. As nossas crianças vão ter um material muito rico e humano, que é aonde vem a velha guarda. O primeiro momento é aquela coisa como um seminário, é a conversa entre eles e as crianças. E as crianças recontando pra eles o que eles contarem. Depois vai ser aquela coisa do Rio: uma macarronada, uma dobradinha com batata, um samba. E vamos tentar resgatar o máximo desses grupos, que são as velhas guarda, que não é do grupo especial. Essas que são do grupo A e do grupo B. Que a gente vai começar o projeto que a gente vai levar paralelo ao griô. Porque o Rio de Janeiro tem muita coisa pra mostrar. E a gente agora tá preocupado com essa questão do carnaval, e estamos pretendendo fazer um grande projeto pra dentro do griô, com uma parte da falação dessas pessoas e também mostrando o quê tem no Rio de Janeiro dentro dessa cultura que é o carnaval. E de repente até outras coisas que ____, que a gente poderia trazer pra dentro. Depois dessa viagem aqui surgiram idéias de muita coisa que a gente poderia fazer de cultura que tem no Rio de Janeiro, pra dentro desse projeto.
P/1 – A gente já ouviu muito falar, em relação ao carnaval, quanto o sambódromo mudou as coisas do samba e do carnaval. E na visão da senhora? O que a senhora acha que aconteceu? De sair da rua e ir pro sambódromo?
R – Bom, de um lado foi uma coisa que não foi ruim, porque nós ficávamos seis meses sem poder fazer nada na cidade. Porque aquilo era uma via onde passava o trabalhador, e como era uma coisa contratada, era um trabalho muito moroso. Então quando foi no governo do Brizola ele resolveu passar tudo pra aquele lado que é a cidade nova. Isso é o aspecto do social. Agora do cultural, aquilo ali não é mais festa do povo. O povo não tem mais acesso a participar daquilo ali. Aquilo virou uma coisa de Hollywood, pra gente que é carioca – é tanto brilho, é tanto paetê, é tanta confusão, que nós somos participantes. Eu saio em ala de baiana, eu participo de fio a pavio daquela coisa toda. Mas eu acho que o poder aquisitivo do povo pobre do Rio de Janeiro não tem acesso àquilo. Mas existe um outro local, que é a Intendentes Magalhães, Campinho, aonde essas escolas que são tradicionais – como sempre eles fazem com o povo negro e com o pobre – jogaram essas escolas lá para aquele lugar. Fiquem lá. E o discurso que eu tenho ouvido – que a gente mexe com intelectualidade ouve muita coisa – realmente quando eles vão à universidade ___. A gente chama jurado, pra saber porque tirou a nota. Aquilo tudo que você vê participando do carnaval apssa na nossa mão porque eles são obrigados a nos mostrar, e a gente vê tanto absurdo! Eu ainda não desmaiei porque sou pobre! Coisas assim como: o Império Serrano é muito bom, oito. Se é muito bom, gente, é dez! Quer dizer, eu acho que aquela questão do jurado da escola de samba, aquilo tem que ser mudado. Porque há muita injustiça. Porque colocam pessoas que não tem nada a ver com o carnaval. Qualquer dia vão botar um vaqueiro, porque já botaram engenheiro, já botarm médico, pra poder dizer o que é que tá passando ali. E eu acho que foi por esse motivo que as universidades resolveram criar o povo técnico, que somos nós. Porque você pra falar e julgar você precisa conhecer, pelo menos alguma coisa. E aquilo ali não. Tem gente que dorme ali em cima, entendeu? Não devem olhar, porque pra dizer que aquelas coisas estão passando ali diante deles não é. “Ah, não gostei!”. Não gostei, mas tem que explicar. E quando eles vão à faculdade, que deixa a plenária, a gente sempre pergunta: por que o carnaval encareceu tanto, ficou tão caro, e o povo pobre não participa? Eles dizem o seguinte: aquilo não é mais para o povo pobre, aquilo é para o turismo do Rio de Janeiro. O povo pobre se quiser ver carnaval, vai pra Intendente Magalhães, vai pra Campinho. Porque lá vai ver o que era a escola de samba da Praça Onze. Aí eu não sei como a gente vai entende isso. Aí surgiu, com ___ , presidente da Mangueira, uma idéia que deu certo, e ficou muito bom pra quem não tem nada, aquilo ali é um espetáculo. Ficou muito bom. Que são aqueles ensaios do mês antes do carnaval, que as baterias e os componentes descem para tomar conhecimento do que vai acontecer no dia do desfile. E olha, aquilo é de graça! Eu não sei até quando vai ser, mas por enquanto é de graça. A primeira vez que eu vi, eu tava chegando no metrô, na central fiquei horrorizada, eu pensei até que era jogo do Flamengo, porque era uma negada! O ambiente lá! Que negócio é esse! Aí, quando cheguei mais à frente eu vi, foi a inauguração. Você sabe que eu vi uma coisa que ___. Uma senhora de idade, quando ela viu que tinha conseguido – porque o povo fica no buraco do sambódromo, no caixote – quando ela viu que ela entrou no sambódromo, ela botou a mão dela no chão e beijou o chão. Sambista. Pela primeira vez. Posso morrer: consegui entrar no sambódromo de graça! Que tristeza minha gente, essa questão. Eu não sei, eu tô achando que eu não sei como eles vão dar jeito nessa questão. Eu pelo menos estoumais gostando agora do dia que vem o povão ali e senta no de graça pra assistir. Eu acho que até a bateria toca melhor, porque eles estão sabendo que quem está ali é o povo que está aqui. Eu não sei, isso é opinião minha, mais é um entusiasmo, uma coisa maravilhosa. Os tais ensaios, não é isso? Porque quando vem o carnaval, o que botam ali? Japonês. (RISOS) Venho eu lá com a minha baiana, pesada demais, de mais de 60, 70 quilos. Eu tô com uma dor até hoje no ombro, eu não sei se ainda não é da baiana, né? Que eu vim aí com um negócio tão pesado que eu não sei. E a gente passa ali suando e o japonês tá lá dormindo. Eu olho aquilo ali, meu Deus do céu! Que absurdo aquilo ali. O outro não sabe nem o que você que está cantando, aí já no primeiro período nós brigamos muito, pra que botasse em inglês, pelo menos podia ser que melhorasse, né? Aí botaram uma página da ___ em inglês e uma em português. Acho que não deu certo, não, _______. A imprensa, que eu meto o pau nela mesmo, falo a vontade, direito que eu tenho de ser carioca, cidadã, e ela tem que acabar com isto, que é desrespeitar as velhas guardas. Botar a velha guarda lá no fundo. A gente quando passa ninguém mais quer ver nada. E aí foi _________ que a velha guarda tem que ___________. Ah, porque o carnaval evoluiu muito, e é uma coisa muito corrida, e vocês não iam acompanhar o pique de passar naquela euforia que passa. Bom, mas como quando agente vem na ala das baianas, como eu venho, vocês não querem saber se eu tenho 70, 80 anos, vocês estão mandando puxar, quase batem na gente pra gente ir pra frente. Então não sei, vocês vão ter que me explicar isso. Eu vi o ano, eu vendo no Império Serrano. Gente, não é porque eu sou de lá, não. Mas aquilo ali é uma cultura viva. Mangueira, Portela, Império Serrano, são coisas que só indo lá pra ver, conviver. O que tiver que falar de cultura do Rio tá ali dentro. O cara sentado, repórter, aí o outro foi e fez assim: fulano olha aí a velha guarda! Olha, se eu tô com um pau eu tinha dado com o pau na cabeça daquele repórter, tinha torcido o pescoço dele. Qauer dizer a gente percebe a maior falta de respeito com o idoso, que é aquela coisa, quando a gente passa ninguém mais quer saber. Eu não quero mais desfilar em ____. Eu já falei, eu sou do Império Serrano, saí agora, botei uma petição pedindo pra parar porque eu estou na faculdade. Não volto mais. Vou gastar seiscentos, setecentos reais em uma roupa? Porque a roupa da velha guarda não é dada, não. O velho em que tirar o dinheiro da aposentadoria pra comprar aquela roupa. O que é um absurdo. Eu acho que tinham que dar a roupa da velha guarda como dá a da bateria, como dá da baiana. Porque a velha guarda que começou aquilo tudo!
P/1 – Mas antigamente era a velha guarda que abria os desfiles.
R – Antigamente, você disse bem. Antigamente.
P/1 – E falando em antigamente, quais são os sambas assim que marcaram pra senhora?
R – Ah, as do Silas de Oliveira, né? Alguns do Cartola, da Mangueira.
P/1 – A senhora lembra de alguma letra pra cantar pra gente?
R – Lembro, ontem eu até cantei uma. Faróis da liberdade. (CANTA)
Vejam essa maravilha de cenário
É um episódio relicário
Que o artista num sonho genial
Escolheu para este carnaval
E o asfalto como passarela
Será a tela do Brasil em forma de aquarela
Passeando pelas cercanias do Amazonas
Conheci vastos seringais
No Pará, a ilha de Marajó
E a velha cabana do Timbó
Caminhando ainda um pouco mais
Deparei com lindos coqueirais
Estava no Ceará, terra de Irapuã
De Iracema e Tupã
Fiquei radiante de alegria
Quando cheguei na Bahia
Bahia de Castro Alves, do acarajé
Das noites de magia, do candomblé
Depois de atravessar as matas do Ipú
Assisti em Pernambuco
A festa do frevo e do maracatu
Brasília tem o seu destaque
Na arte, na beleza, arquitetura
Feitiço de garoa pela serra
São Paulo engrandece a nossa terra
Do leste, por todo o Centro-Oeste
Tudo é belo e tem lindo matiz
No Rio dos sambas e batucadas
Dos malandros e mulatas
De requebros febris
Fala Brasil
Brasil, essas nossas verdes matas
Cachoeiras e cascatas
De um colorido sutil
E este lindo céu azul de anil
Emoldura em aquarela o meu Brasil.
R – Quer dizer, você imagina bem, Silas de Oliveira, eu conheci pessoalmente, foi uma pessoa que, o que ele fez ele fez pra ficar imortal. Como tem os imortais da academia de letras, na Mangueira tem os imortais e os baluartes, o Império Serrano tem e a Portela tem. Agora hoje, a gente ouve falar aí nuns sambas de gaveta, e chama samba de gaveta, juntam dez compositores pra fazer um samba. Meu Deus o que pode sair de um negócio deste? Dez! E aí fazem aquelas coisas! Ainda tem uma coisa terrível, eu não quero que carnavalesco jogue praga, até porque eu vou ter que viver muito próximo deles. Mas esse negócio de ter patrocínio, a escola de samba depender de patrocínio, levou a escola pra um caminho que não dá pra gente entender. Porque se o cara vende querosene, vende carro bom, vende batata, vende cebola _____, o enredo tem que ser feito falando disso. Então eu acredito que hoje o samba já não possa ter aquela grandeza que teve o do Cartola, que teve o Silas de Oliveira, _____, aí vai por aí. Porque o cara fica tolhido, ele não pode dizer o que ele pensa, o que ele quer. Porque ele tem que agradar o carnavalesco e o patrocinador. Então a gente tem que cantar o que tem aí, não é isso? Do tempo que as pessoas cantavam com a alma, com o coração e com amor a Mangueira. Hoje não dá mais pra se fazer isso. E aí dizem também uma coisa que eu também não concordo, opinião minha, quando dizem – porque eu vi as grandes sociedades – as grandes sociedades tiveram o esplendor do carnaval só que elas acabaram. Ah, mas aí o carnaval carioca? Não. O carnaval carioca, acho que ele não vai acabar nunca. Ele vai ter a modificação. Como já está tendo. Ele vai sendo modificado. Entendeu? Mas acabar. Eu não vejo como acabar.
P/1 – O que são as grandes sociedades?
R – As grandes sociedades foi uma coisa. Primeiro teve o entrudo, que foram as grandes manifestações do Rio de Janeiro, que era mais ligada à questão do negro. Depois tem uma história que é a do Zé Pereira. Que o Zé Pereira não era nada mais do que um português, que a gente sabe que o carnaval não é ___. Ele teve na Grécia, teve na Itália, ele passou por Portugal, Alemanha. E depois com a vinda dos portugueses chegam as festividades na Europa. E das festividades na Europa tem uma história que esse Zé Pereira era um português, que morava na Rua Buenos Aires, a antiga Rua do Hospício. E que ele num dia de carnaval saudouso da terra, ele pega um bumbo e chama a protuguesada dos botequins e sai tocando pela rua. Então essa foi uma das primeiras manifestações do carnaval. E até hoje se fala, muita gente não sabe o porquê, mas é isso. E a outra é o entrudo. O entrudo foi aquela questão da festa desorganizada, aonde o negro saia pela rua jogando tudo. Tem até uma coisa típica, um negócio que contam: que, não sei se foi Dom Pedro I que saiu pra rua pra assistir o carnaval e uma mulher jogou uma laranja lá pra dentro da carruagem, caiu lá no rei. Aquilo era uma loucura! Era pau, era laranja, tudo que tinha jogava. Então, com a chegada da comunidade baiana da Gamboa e Pedra do Sal. Da Gamboa aparece o Hilário Jovino Gouveia, foi uma pessoa que morou em Pernambuco, viveu na Bahia e veio pro Rio de Janeiro. E no Rio de Janeiro ele vai morar na Pedra do Sal, travessa João José. Lá ele encontra já uma coisa assim que era um rancho. E esse rancho tinha o nome de dois de outro. O Hilário Jovino entra pra lá, ___ , mas eles se desentendem, porque a cultura do Recife pra cá, a gente tá com ela aí, mas pouco entende. Aí ele briga, sai e vai pra um bar, se reúne lá com alguns amigos e diz: vamos fundar um outro rancho. Aí funda o dois de ouro, são os primeiros ranchos daquela área, que mostram a cultura do Rio de Janeiro. Com a fundação desse rancho ele já começa a organizar o carnaval carioca. Porque aí já começa a ter as cordas, já começa a entrar as tias, já o povo mesmo pobre já tinha uma fantasia. Seria uma coisa parecida com maracatu, e aquilo começa a sair. Ele queria sair no dia de reis, mas dia de reis aqui não tem festa. Aí sai no carnaval. E com a saída dele começa a organização do carnaval, aí chega no que você tá perguntando, as grandes sociedades, que era uma coisa da elite. A mulher pobre que saia ali era prostituta, porque a prostituta já trabalhava na zona, na Pereira Franco, que era presidente Vargas, quando chegava no dia de carnaval não ia botar as damas lá, botava as protitutas. O que causava até um certo embaraço, porque os maridos às vezes estavam por ali. E essas mulheres é que vinham naqueles carros alegóricos, que eram tão grandes, tão altos, como o nosso. Mas também não tinha como falar nada porque o carro já era feito pra não ter acesso. Elas ficavam bem distantes e aquele cortejo passava. E tinha também aquele negócio do corso, eram carros abertos aonde a elite vinha e ficava andando da Praça Mauá ao morro, que antigamente era lá na entrada do aterro. Aquela coisa meio idiota, jogando serpentina, aquela coisa. Agora o coisa quente era o lado de cá. Era o povão que descia dos morros. E tinha uma coisa muito interessante que contam, que os negros apanhavam muito no carnaval. Eles não tinham nada organizados, coitados, aí eles tinham uma mania de se fantasiar de diabo. Olha, eles pegavam os negros davam uma boa surra. Aí cortavam o rabo do diabo do negro. Que era pra ele não apanhar outra vez porque se ficasse o rabinho o outro que vinha atrás. A meu amigo, aí tum com a tesoura. Aí quando chegava: ah, esse aí já apanhou. Vamos bater no resto. E isso era o carnaval no Rio de Janeiro. E quem era sambista apanhou muito, sofreu muito. Eu me lembro que as pessoas iam pela rua com o violão, eles pegavam o violão das pessoas e quebravam. Pegavam o tamborim e cortava. Dizia que era todo mundo maluco. Aí, lá na Gamboa, surgiu uma mãe de santo chamada mãe Liliana. Porque o terreiro – se esse país não fosse tão preconceituoso, é o que a gente tá tentando dar uma ajeitada – é onde tá toda a cultura, se você reparar. A cultura afro-brasileira era é oriunda dos terreiros de candomblé. Está aí o afoxé, que é ___ profano. Então o ___ se junta com esse Hilário Jovino e faz o rancho, que é o Dois de Ouro, e ele sai pela cidade do Rio de Janeiro e vem na porta da baiana mais famosa, que era – tinha esse hábito – era hábito todos os cortejos dos pobres – povo rico não ia lá, iam só os pobres – iam lá levar a bandeira porque tinha esse hábito. Foi a figura mais expoente da Praça Onze. Conta a história que ela foi uma pessoa – que tem coisa que a gente não sabe – ela além de ser mãe de santo ela foi assistente social. Porque todos os dias, quando dava _____ na porta da ____, era multidão de pobres querendo prato de sopa e ela tinha uma sopa pra dividir com aquela gente. E tinha também as estratégias da casa dela. Que era uma casa muito grande, então ela fazia o eguinte: na sala ela botava a mobília pesada, que ela era mãe de santo. E o povo no Rio tem uma mania muito séria – eu digo que sou mulher de ferreiro, graças à Deus – eles entram na calada da noite pelos cantos da casa, pra pedir emprego, separar marido. Tá entendendo? Sempre foi assim. Mas ninguém pode saber disso. Então ela botava a sala da frente, que era para eles irem lá. Aí, no meio do outro espaço eram os orixás dela. Os que iam resolver o problema de quem tava na frente. E lá nos fundos era samba de roda, partido alto e miudinho. Porque a polícia custava a ouvir. Porque se apolícia ouvia, invadi a casa, batia, prendia, levava todo mundo. Aí um dia aparece lá na casa da ____, um escravo, que vinha do palácio, dizendo que eu nãos ei se foi Pereira Passos, um desses que seria o César Maia da época. César Maia sempre teve, em todo período da história sempre teve. Porque a história – depois de estudar tanta coisa eu cheguei a conclusão que a história não acaba, ela muda a estratégia. Mas é a mesma coisa: a condição é a mesma, a desigualdade social é a mesma. E a gente fica pensando: pôxa eu lutei tanto pra cair na praia. Porque aí você vai tendo uma visão clara da sociedade. Aí me aparece um homem lá dizendo que esse prefeito tinha uma ferida na perna que não melhorava nunca. Já tinha ido na França. Porque quem cura feitiço é feiticeiro. É feiticeiro que sabe de feitiço. Porque médico sabe de medicina, né? Então não adianta você querer curar feitiço com medicina que você vai perder seu tempo e não vai arranjar nada. Ai chega lá e diz assim: ah, minha mãe de santo, eu vim aqui dizer a senhora que um prefeito tá dizendo que tem uma ferida na perna dele e não melhora. Será que a senhora não podia fazer um negócio pra melhorar, proque disseram que foi um feitiço, uma maldade que ele fez, e que botaram feitiço nele. Ela muito esperta disse: dia a ele pra vir aqui. No outro dia ele volta: não, ele diz que a senhora é que vai lá. Ela disse: eu não, não tenho ferida na minha perna; esse sujeito que venha aqui. Porque havia uma coisa muito séria entre o povo negro dessa época. Muitas dessas mulheres eram princesas, rainhas, lá na terra delas. Então elas não se dobravam, elas perderam cargo, mas não perderam a majestade. Então ela diz: se quiser ele vem aqui, eu não vou lá. Mas quando o outro volta pra levar o recado da Siata ela vai consulta o ___ dos búzios, que ela sabia que aquilo era chumbo grosso. Porque se ela não curasse a perna daquele burguês ela estava ferrada. Aí os orixás, através do jogo, explica pra ela que pode trazer que vai dar certo. Aí quando foi no outro dia o homem voltou: “Siata, ele falou que vem aqui de madrugada”. “Ah, então tá bem, diga que estou esperando”. Quando ele chega ela olha e diz: “eu curo isso aí em três dias”. “Ora nega, se você na curar isso em três dias eu te denuncio. Quanto é?” Ela diz: “não, não é agora que eu vou dizer o preço. Depois a gente combina o preço”. Aí a Siata já tinha lá o pó preparado, não sei o quê é, bota lá na perna do homem. “Vá embora”. Quando foi no segundo dia o nego voltou e falou assim: “Ele mandou dizer a senhora que a ferida tá fechando”. Três dias já tava a casca. Entendeu? Aí ele acha que tá tudo bom, volta pra agradecer. Quando ele volta pra agradecer ele diz: “eu vim aqui pra saber de você quanto é isso”. Ela diz assim: “não tem preço, é uma vaga de delegado pro meu marido”. Porque o pobre do marido da Siata morreu sem saber porque ele foi fazer medicina, ele quis fazer medicina, não passava do primeiro ano. Se pra mim, que sou uma negona esperta, danada, que tô aqui na frente de vocês, pra entrar nesses lugares e sair fica meio esquisito. Hoje. Imagina vocês naquela época um negro, marido de uma feiticeira querendo ser médico! Claro que ele não ia conseguir. Aí ela vai, o prefeito diz: “então tá bem, eu vou”. Aí nomeia o marido da Siata como inspetor de polícia. Aí acabou, aí surge toda a cultura popular. Porque a polícia não ia mais na casa da Siata. Porque ali já tinha uma pessoa do governo. Então a casa dela passou a ter a respeitabilidade. Com isso ela já botava o pessoal que vinha do flamengo, do botafogo, isso já existia, e fazia fantasia pra vender, fazia vatapá pra vender. Aí entra a fase do Donga, do Pixinguinha, que já fazia o choro lá nos choros da casa de Siata. E com essa coisa que aconteceu é que eu acho que começa a história da cultura popular do Rio de Janeiro. Essas mulheres foram as – ela não, tinha a Carmem do ___, na Gamboa tinha a Mariquinha pandeirista, era um a nega feita a Jovelina, sempre teve uma Jovelina. Só que era essa pandeirista, tocava pandeiro. Tinha a Esmeralda que foi a mãe de santo mais bonita que teve da Lapa. Quer dizer a história da cultura popular do Brasil é de matriarcado. Porque sempre a mulher está presente na luta. Na Praça Onze foram várias, que eram as tias. E a Siata deu uma contribuição muioto grande porque ela começou com a fase que eu falei, o entrudo, depois eu falo dos ranchos, depois vem as grandes sociedades e depois surge, em 1920, o carnaval carioca. Que o carnval carioca também surge com o pessoal que veio do Estácio para a Praça Onze. Que era o Mário Filho que tem aquela participação. Foi dos jogos da primavera, foi o fundador daquela questão das festividades do Maracanãzinho e do Maracanã. Ele era um apessoa ligada a cultura popular. Então ele tinha um olheiro dele que andava ali pelo Estácio, Rio Comprido, e trazia notícia de sambista. Proque ninguém sabia e ele começava a ver que aquilo ali poderia ser uma coisa importante. Que povo é esse que todo ano faz essa festividade? Isso tá crescendo, isso pode crescer. Aí ele começa a colocar no jornal. Ele começa a colocar aquelas notícias no jornal. E dali ele se junta com uma pessoa do samba que era – agora não tá me ocorrendo – e arma um palanque de madeira, uma coisa muito rudimentar na Praça Onze, e faz a primeira escolha de samba enredo, em cima daquele palanque. A mulher compra um pedaço de pão, mortadela, compra uma cervejinha e ali no centro da Praça Onze eles escolhem. E dali entra 1920, o carnaval ficou firme, 20, 25. Foi começando a crescer, sendo que naquela época nas escolas de samba não havia samba enredo, era partido alto que se cantava. Cantava partido alto, samba de roda, miudinho. O Fuleiro, Bocorongo, mano Décio da Viola, eram as pessoas que eram encarregadas de com um megafone, o som da escola de samba era só aquilo. Vinham os homens com aquilo dentro da escola, a corda do lado, e não havia passista, era cabrocha. A cabrocha tinha um tamanco, por que o tamanco? Era pra judar a harmonia. Que é a coisa que vocês não entendem que falam hoej: o samba no pé. Acabou porque o samba no pé é obrigado a ter a cabrocha dançando pra fazer o som no tamanco, na madeira do chão e a palma. O samba era de palma, que até hoje a gente ainda tem a tradição. Isso é que era aharmonia da escola de samba. E, por exemplo, o Fuleiro, jogava o verso, o Aniceto respondia. O início do carnaval da Praça Onze foi isso. Era partido alto versado, eram os desfiles das escolas de samba. Então a cabeça da gente vê um negócio desse hoje, heim? Difícil gente.
P/2– Quando a gente entrevistou a Fatinha ela disse que viu a senhora uma vez invocando Iansã, ___ com a senhora. Ela falou, pede pra ela contar essa história que é muito boa, que é uma ventania que deu.
R – Ah, isso aí foi um negócio muito sério. Eu faço parte do movimento negro do Rio de Janeiro. Então a gente anda esse país todo, porque quem sempre faz a história ninguém sabe. A mulher sabe que ela tem creche e não sabe que fomos eu e as minhas amigas que lutamos. Foi o fórum de mulheres negaras de Belo Horizonte, e aí chamaram o Rio de Janeiro. Eu quis saber o era que ia se dar lá. Diz que iam levantar umas bandeiras em favor de saúde, de educação, de alimentação. Começava o negóco da AIDS. E eu, como sempre cuidei da cultura religiosa falei: vou aproveitar porque a religião do afro descedente precisa ir pra dentro dos ministérios, não pode ficar uma coisa marginalizada como ficou o carnaval acarioca anos e anos. E vai ser agora, que faço? Vou no pantanal na casa do homem que morreu agora, que era meu amigo, que deu ____, seu Valdomiro de Xangô. Peguei um bocado de mães de santo, mas todas com mais de 20, 30 anos de santo. Fomos numa mulher, que era mulher do prefeito – porque no Rio de Janeiro ninguém quis dar nada – aí eu fui no SEDIN, e a Ana Maria ___ é muito minha amiga, e eu pedi a ela se ela não podia arranjar um ônibus, que u tinha uma caminhada pra Belo Horizonte, como eu ia com senhoras de muita idade, não podia leva-las de qualquer forma. Ela aí me arranjou um ônibus. Aquele ônibus foi a gota dágua! Porque quando a negrada viu a gente chegar de ônibus, com som, com água gelada, com banheiro. Ah, minha filha! Ligaram, passaram um rádio: a Maria Moura tá indo para aí? Um bando de macumbeiras – que é assimqeu eles nos tratam, né – pra acabar o congresso. Ah, meu Deus, eu fui pra contribuir. Eu sei que quando eu cheguei lá não tinha mais comida, não tinha mais bebida, não tinha mais onde botar a mãe de santo. Porque esse país não é racista, ninguém faz mal a negro. Agora o branco é racista e o engro é mais racista ainda. Por que tavam fazendo isso tudo? Porque a gente era negro. Mas como foi negro que botou nego sentado nos bancos lá em Angola, onde eu estive, presenciei, depois vem fazer essa vergonha no Brasil. E quem vendia negro pra botar lá pros portuga era o próprio negro. Por que não iam fazer comigo? Aí avisaram, ____ eu cheguei toda prosa. Ambiente esquisito. Aí a gente respeita até vir as coisas no nosso ouvido, que a gente não pode dizer, mas a gente tem. O negócio me avisou que aquilo ia ser uma guerra, não ia ser uma festa. Aí eu falei: eu não estou ouvindo isso, não quero ouvir. Porque tem coisa que a minha cabeça diz que eu não quero entender. Aí tô lá. Começou errado que pegaram as mães de santo e levaram para um lugar quase que daqui a Pinheiral. Falei, como é que pode? Se nós viemos com o congresso tem que ficar todo mundo aqui. Não, queriam jogar a gente nas casas de camdomblé. Sem que a gente conhecesse, porque a mulher de candomblé dorme no chão, sentada, eu tenho 50 anos de candomblé, tô cansada de dormir em banco. Que a coisa não é fácil. Aí não tinha mais nada, eu cheguei lá na organização, que eu não vou falar o nome dessas mulheres, que eu não quero promove-las. Falei, escuta aqui, como o negócio aqui do meu pessoal. “Ah, nãos ei não Maria Moura, a gente tá resolvendo”. Chegamos de viagem cansadas, vamos ficar aqui em pé. Aí eu já senti que tava tudo errado. Falei, minha Nossa Senhora, eu mereço! Aí ficou aquela coisa assim mal resolvida. Quando chegou na hora do almoço ela disse que eu tinha que falar pras mães de santo que elas tinham que pagar quentinha, anquela época era três e cinqüenta. Eu falei, não, mãe de santo não paga comida. Porque nós temos por tradição comer de graça. Vocês nos convidaram e nós queremos que vocês tratem a gente como devido respeito que nós merecemos. Até porque nós temos idade de ser avó de vocês. Já comecei a alterar a voz. Minha filha, ficou aquele negócio, aí com um sacrifício danado deram uma comida e aí vieram as mães de santo: Maria Moura, eu tô tendo. Eu digo, não você não tem aviso nenhum, isso é inventação de moda sua. O santo das mulheres já avisaram. Quando deu duas horas eu tava numa tristeza, eu vi que eu tinha alguma coisa encostada em mim que eu não tava gostando daquilo. Aí nós levamos as melhores roupas, nunca nos deram um vídeo daquilo, devia ter. Tiramos as nossas roupas de ___, as mais bonitas, nos vestimos, aí: vamos embora, vamos começar a atividade. Faz a roda. (CANTA) Quando elas ___ tá um homem. Maria Moura, sua marmoteira! Veio do Rio de Janeiro pra fazer bagunça, pregar mentira em Belo Horizonte. Eu olhei assim pra ele e falei assim: ah, meu Deus. E o homem me xingou de tudo quanto foi nome. E eu tô lá cantando pra Exu (CANTA), e o homem me xingando, me xingando, me xingando. Aí saiu a Quita, uma mulher feiticeira do ___, “Mas Maria Moura, você acha que a gente vai aturar isso?” Eu falei:”é, acho que a gente vai ter que apelar pro nosso lado. Primeiro é que esse homem não podia estar aqui porque é um encontro de mulheres e esse homem não pode estar aqui dentro fazendo isso. Se ele tá aqui é com o consentimento de alguém. Olha, vamos fazer uma coisa? Vamos dar um jeito nisso, vamos chamar Xangô, porque o diabo já não dá porque o diabo tá doente. Aí comecei (CANTA) menina, tava um sol, eu tava com ___. Aquilo foi dando um vento, um vento. Foi fechando o tempo. Tinha umas mesas de plástico, o vento levou a mesa, levou a cadeira. Pior que a cadeira veio em cima de mim e eu abaixei. A cadeira passou e aquilo não parava, e as mãe de santo gritando, gritando. Tudo sendo levado de dentro do tal do congresso. Aí teve uma mulher branca, que tava indo comigo – eu levei até aquela mulher, que aquela mulher tava querendo ir pra igreja universal e eu não queria – eu levei a mulher porque ela disse que Iansã não descia mais nela, tinha abandonado ela. Também o que ela fez eu não quis saber. Aquela foi a ___ pegou na mulher, depois de 15 anos que a mulher não dava santo. Quando Iansã chegou na mulher aí que estragou mesmo. Menino, veio um raio, batetu no transformador daquele bairro, aquilo ficou tudo escuro. Uma escuridão! Veio uma chuva pra completar e a gente não conhecia o local então a gente não sabia pra onde ia. E o homem me xingando. A mulher dele tava com uma barriga. O homem quando não tinha mais o que fazer disse que se a mulher dele perdesse aquela barriga ele ia me processar, ele ia fazer e acontecer. Eu falei pra ele: não fui eu que botei esse filho na barriga de sua mulher. Você que tem que resolver isso. E aquela confusão. Olha, Iansã pegou nessa senhora e me chamou e disse: minha mãe, eu vou levar a senhora lá pra cima, porque eu não preciso de ter oju – oju é olho em africano – porque eu vejo no claro e no escuro, me segue. Aí, a gente uma agarrada na outra, naquela chuva, no meio daquela humilhação toda. Subimos umas escadas, quando nós chegamos lá tinha cama pra todo mundo. Olha que bondade. Tinha cama pra todo mundo e essas pessoas querendo deixar a gente dormir no ônibus. Aí deitou todo mundo misturado, não tinha luz. Quando o dia amanheceu eu tava com a roupa da minha amiga, minha amiga com a minha roupa. Todo mundo molhado, em tempo daquelas senhoras pegar uma pneumonia. E eu estar envolvida até, né? Aí acordamos, ____ na casa do Paulo ___, falou assim: Maria Moura! Eu falei: é o ___, não posso fazer isso. Mas antigamente ninguém mexia, ninguém desrespeitava mulher de candomblé. Porque tem que saber que essa religião é um mistério que nem nós que vivemos dentro dessa questão toda, a gente podia entender isso. Você viu? O Orixá veio aqui em nossa defesa. Aí quando eu tô falando com ela, Iansã na minha cabeça: a senhora desça – eu ouvindo – suba naquela mesa e diga à elas quem é a senhora e quem sou eu. Eu conversei, vamos embora, gente, descer. Cheguei lá e subi na mesa do congresso. Bati uma palma. Plac plac plac. Aí ninguém mais queria se meter comigo. Ninguém tinha culpa, não tinha mais papel de congresso. Acabou o congresso. Acabou. Aí eu disse: Olha, eu chamo, eu sou, eu me identifico agora por ___ Maria Moura, por Dona Maria Moura, Maria Moura de vista. É ___ e mãe de Iansã e Ogum. Eu vim dizer à vocês que vocês estão muito errados em fazer isso com o povo do terreiro. Porque se vocês quiserem ver mais alguma coisa a gente tem aqui dentro do ___ nosso pra mostrar pra vocês. Vocês e o Brasil tem que respeitar essa religião. Porque vocês não sabem o quê a África trouxe. Nem nós que somos disso não conhecemos todos os mistérios. Ora, café, aquelas camas vocês vão arrumar aquilo, vocês vão nos tratar com dignidade. A bandeira que eu vim aqui buscar eu vou levar pro Rio de Janeiro. Que é a bandeira da religiosidade. Eu quero essa bandeira e eu vou levar essa bandeira para o Rio de Janeiro. Aí sabe o que aconteceu? Do lado tínhamos que tirar um documento das propostas, como nós tiramos aqui. Eu tirei, porque se eu não tiro não ia ter reconhecimento pelos órgãos públicos, né? Aí começaram os Eguns pegando nas pessoas do lado. Da outra sala. Falava assim: eu quero água! Eu quero comida! Uáááá eu tô me queimando! E eu fechei a minha porta, né? Aí veio uma mulher de lá, chegou lá e falou assim: “Maria Moura, tem um negócio pegando naquela gente do lado e vieram aqui dizer pra você tirar”. Eu digo: “eu não, se vocês não me respeitam como uma pessoa de Orixá pra poder, ou pelo menos ter tranqüilidade e estar aqui, por que agora que chega de mal feito eu tenho que sair daqui pra tirar. Vocês vão ter que tirar. Eu não vou tirar”. Aquilo gritando! Sabe o que tava parecendo? Purgatório aquilo, pegando um por um, era Egum. Porque eu sou de Iansã, tinha mais mulheres de Iansã. Aí uma mulher de Obaluaê falou: “ah, Maria Moura acaba com isso”. “Então você quer você vai lá, eu não vou não”. Eu tava cansada de ser humilhada por causa da minha religião. Aí que a ___ foi lá, chegou lá com água na boca, mandou aquela coisa toda ruim embora. Olha, tava o Brasil em peso nesse congresso. Então, de vez em quando eu encontro ___, contando a história porque não sabe que sou eu conta pra mim mesmo. E essa história está cada dia ficando mais comprida. O povo não sabe que foi comigo aí contam. Falam mal de mim comigo mesmo, também. Mas tudo faz parte do processo. Isso gente fala pra vocês verem as dificuldades, os preconceitos que as pessoas dessa religião passam. Porque ninguém encontra quando chega na nossa porta – o meu ombro é até mais gordo de tanta gente que chora nele. Buááá, vem e deita no ombro da mãe de santo. O outro, buáááá. Mãe de santo não chama ninguém pra ir pra casa dela. O candomblé não dá bilhete em porta, não é isso? Então eu acho que deveria ter da parte dessa gente, o máximo, o mínimo de respeito. Porque eles não vão deixar de ouvir eu dizer para eles, que a cultura do Brasil, a afrodescendente, está se perdendo toda por causa desse preconceito. Porque só quem pode contar a história da cultura popular do Brasil é o terreiro. Somos nós que somos detentoras dessa cultura. Viu? Era isso que eu gostaria de dizer.
P/1 – Com essa frase maravilhosa a gente encerra a entrevista e eu agradeço demais a senhora. Foi uma aula de história. (PALMAS)
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