Projeto: Diversidade e Inclusão no Mercado Financeiro - Banco Pan
Entrevista de Nina Silva
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 22/08/2022
Entrevista n.º: PCSH_HV1233
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Nina, para começar eu queria que você dissesse o seu nome completo, a data e o local de seu nascimento.
R – Bom, eu sou a Marina Barbosa da Silva, nascida no Jardim Catarina, São Gonçalo, município do Rio de Janeiro, no dia 1 de junho de 1982.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – ‘Seu’ Antônio Carlos Barbosa da Silva e Dona Marise Francisco da Silva, eu tenho uma única irmã, Doutora Carla Verônica Barbosa da Silva e atualmente uma única sobrinha, doutora, que manda nas nossas vidas, Sara Barbosa da Costa, de 10 anos ainda em 2022.
P/1 – E como você descreveria o seu pai e a sua mãe?
R – Bom, como eu descreveria o meu pai e minha mãe? Eu os descreveria como duas sementes, muito grandiosas, que se complementam, que parecem extremamente distintas, mas são extremamente complementares. Minha mãe, como uma boa pisciana, um poço de resiliência e afeto. O meu pai, que não parece ser um canceriano, porque ele é a pessoa que parece querer dar a primeira e a última palavra, que sempre foi bastante rígido durante a nossa caminhada na primeira infância, até a adolescência, mas que no fundo, no fundo, é uma pessoa extremamente sensível e os dois juntos conseguiram fazer coisas contra o que o sistema impõe, que foi tirar uma família tradicional brasileira preta, periférica, de um lugar de extrema exclusão social, para um lugar de levante de mobilidade social, de possibilidade, de construção das nossas próprias narrativas, tudo isso através da educação. Então, eu diria que eles são as sementes que vêm de outros frutos, de outras pessoas e outros ancestrais meus, mas que são as minhas sementes, que fazem com que eu possa germinar um pouco das coisas da...
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Entrevista de Nina Silva
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 22/08/2022
Entrevista n.º: PCSH_HV1233
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Nina, para começar eu queria que você dissesse o seu nome completo, a data e o local de seu nascimento.
R – Bom, eu sou a Marina Barbosa da Silva, nascida no Jardim Catarina, São Gonçalo, município do Rio de Janeiro, no dia 1 de junho de 1982.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – ‘Seu’ Antônio Carlos Barbosa da Silva e Dona Marise Francisco da Silva, eu tenho uma única irmã, Doutora Carla Verônica Barbosa da Silva e atualmente uma única sobrinha, doutora, que manda nas nossas vidas, Sara Barbosa da Costa, de 10 anos ainda em 2022.
P/1 – E como você descreveria o seu pai e a sua mãe?
R – Bom, como eu descreveria o meu pai e minha mãe? Eu os descreveria como duas sementes, muito grandiosas, que se complementam, que parecem extremamente distintas, mas são extremamente complementares. Minha mãe, como uma boa pisciana, um poço de resiliência e afeto. O meu pai, que não parece ser um canceriano, porque ele é a pessoa que parece querer dar a primeira e a última palavra, que sempre foi bastante rígido durante a nossa caminhada na primeira infância, até a adolescência, mas que no fundo, no fundo, é uma pessoa extremamente sensível e os dois juntos conseguiram fazer coisas contra o que o sistema impõe, que foi tirar uma família tradicional brasileira preta, periférica, de um lugar de extrema exclusão social, para um lugar de levante de mobilidade social, de possibilidade, de construção das nossas próprias narrativas, tudo isso através da educação. Então, eu diria que eles são as sementes que vêm de outros frutos, de outras pessoas e outros ancestrais meus, mas que são as minhas sementes, que fazem com que eu possa germinar um pouco das coisas da minha caminhada.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Olha, (risos) os meus pais, que eu me lembre, assim, a fala deles é que eles se conheceram numa época de baile, no Rio de Janeiro. Então, isso na década de 1970, a minha irmã nasceu em 1976, eles se casaram em 1974. Então, foi nesse início aí, da década de 1970. Eu nasci uma década depois desse encontro aí, digamos assim, e parece que eles frequentavam baile. Eu não tenho certeza se eles se conheceram no baile, ou se eles iam muito ao baile juntos. Mas o que eu sei das histórias engraçadas que, para mim, eu acho engraçado e minha mãe hoje em dia deve achar também, mas na época não sei se ela achava tanto, é que eles iam ao baile juntos e aí passava determinado horário, o meu pai levava minha mãe pra casa. Meu pai já morava no Rio de Janeiro desde a infância, Rio de Janeiro cidade, minha mãe é quilombola, do interior do estado do Rio de Janeiro. Então, ela foi , no início da juventude, trabalhar em casas de família, na cidade do Rio de Janeiro. Então, minha mãe morava com as primas, com as tias, e não morava com a minha avó, que continuou no canavial. E aí ela contava que ela tinha um horário para chegar em casa. Então, ele a levava no determinado horário, para casa e depois ele voltava para o baile, só que tinha as vezes que ela também voltava para o baile, com as primas. Então, acabava encontrando com ele no baile, depois, né? (risos) Mas eu acho que é muito legal, porque é uma época, se eu for pensar, aí no início da década de 1970, a minha mãe tinha dezoito anos, dezenove anos por aí, quando ela se casou e o meu pai tinha ali por volta dos seus 24. Então, são muitos jovens numa época que, sim, era costume se casar mais cedo do que hoje em dia, mas os dois [estavam] muito direcionados ao sustento, a manterem as suas independências e juntos conseguiram construir uma sobrevivência inicial, mas pensando sempre no futuro melhor para a sua construção familiar. Então, eles casam jovens, mas vão morar numa pensão, com o dinheiro para pagar... trabalhar de dia para pagar o dia seguinte na pensão, ali, com quase nada de móveis e, aos poucos, eles foram construindo ali o lar. E a ideia de lar e os ingredientes do lar. Então, quando... antes da minha irmã nascer, parece que eles se mudaram para São Gonçalo, da cidade do Rio, foram para São Gonçalo, onde eles conseguiriam ter uma moradia ali, alugada e começar realmente a família.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Então, nessa época, diretamente, a minha mãe era doméstica e trabalhava em casa de família, como as primas e as tias dela. O meu pai, nessa época, também trabalhava mais de ‘bico’. Então, ele já trabalhou, por exemplo, em fábrica de sardinha, num lugar, digamos, numa dinâmica mais operacional, não teve uma formação de ensino superior e nem minha mãe, na época também ele ainda não tinha o segundo grau completo. Então, ia trabalhando ali e ‘correndo atrás’ da sobrevivência da maneira que dava, mas sempre... já peixaria, já trabalhou em garagem, nessa parte mecânica. Então, sempre nesse lugar de ‘mão na massa’, mas nunca desistiu da possibilidade de estudar. Então, depois da minha irmã nascida e já na escola, ele tratou de fazer, concluir ali os ensinos dele do segundo grau, a partir do supletivo. Já a minha mãe foi até a quinta série do antigo ensino fundamental.
P/1 – E como era a sua relação com a sua irmã, quando era mais nova e como é agora?
R – Olha, quando eu era mais nova, era um ‘Deus nos acuda’, viu? Porque a minha irmã tem seis anos a mais que eu. Então, irmã mais velha, primogênita e aí nasce uma fedelha metida a esperta. Na família, ela se fazia de mãe mesmo. Então, não era uma relação de irmãs, com aquela amizade, cumplicidade, que normalmente as irmãs que têm um tempo, uma diferença menor de idade tem: “Ah, trocar roupa, uma maquiar a outra”. Não, era aquela coisa da responsabilidade dela perante a mim. E aí era aquela irmã que, se eu fizesse qualquer coisa, ela ia contar para a minha mãe, era a primeira a contar. Então, não tinha uma liberdade de contar as coisas, mas tinha uma grande admiração, como normalmente uma criança tem para uma pessoa mais velha, né? E aí a minha irmã era o meu ‘espelho’ de realizações. Eu queria ir para a escola com dois anos de idade, porque a minha irmã ia para a escola e minha mãe teve que fazer esse movimento e eu entrei na escola com três anos de idade. Eu queria usar maquiagem quando era super pequenininha, sapato alto, eu ia para as matinês com a minha irmã, quando ela tinha idade para a matinê e eu não. E aí ela ficava extremamente chateada, porque meu pai fazia com que ela me levasse e ela ‘pagava um mico’, né, como a gente dizia lá no Rio, ela ficava achando que estava ‘pagando um mega mico’, porque ela estava ali e com aquela... ainda tinha que tomar conta da criança, às vezes, de nove anos de idade, que estava no ‘rolê’ lá, toda maquiada, para fingir que era adolescente e ainda era uma criança. E aí, depois, na vida adulta, eu saí de casa relativamente cedo, por volta dos 23 anos de idade, ao final da faculdade eu já tinha saído da casa de minha mãe. Minha irmã ainda estava, ela saiu só quando ela se casou, alguns, vários anos depois, mas eu fui a primeira a sair. Então, teve uma... engraçado que teve uma maior conexão, tanto com a minha irmã, quanto com os meus pais, depois que eu saí de casa, porque eu acho que vem a preocupação, né? Vem também a vontade de dar satisfação. Já quando você está no mesmo teto, você não quer dar satisfação. Quando você está fora, você quer dar satisfação, para acalmar os seus familiares. Então, acabou que essa aproximação se deu depois, na vida adulta, de maneira a ter maior e melhor cumplicidade.
P/1 – Nina, você conhece a história dos seus avós?
R – Olha, as histórias... enfim, são quatro histórias completamente diferentes, sabe? Porque o meu avô por parte de pai não era casado com a minha avó. E ele tem, teve vários filhos na vida. Então, eu nem sei te falar quantos tios eu tenho por parte de pai e meu pai é filho único de mãe. Já do outro lado da família da minha mãe é diferente, porque minha mãe teve ali, nascidos, cinco irmãos, dois falecidos na infância e três que nasceram e cresceram e vivos até hoje, graças a Deus. A minha mãe é a mais velha, mas teve irmãos mais velhos que ela que morreram. Um que nasceu com essa doença da criança que nasce e que não fecha a moleira, sabe? Ah, eu esqueci o nome, que é quando não consegue desenvolver, a criança, o corpinho não desenvolve, mas ele chegou a durar mais de um ano de vida. E já outra irmã da minha mãe morreu num acidente caseiro, então elas, em casa, acabou que, como fogão era à lenha, a minha tia, muito pequenininha, passou ali pelo fogão e pegou o foguinho... fogo na roupinha e só estavam elas duas e é um trauma muito grande pra minha mãe, essa história da irmãzinha dela e eu acho que, na época, só existiam as duas. Então, a minha mãe tem essa história familiar e até hoje essa convivência com irmãos. E meu pai tem uma convivência muito boa com os irmãos, mas por parte de pai, mas uma referência muito forte, principalmente das irmãs mais velhas que ele, que também se tornaram referências muito fortes para mim. Então, as minhas tias, os meus tios, mesmo que sejam só por parte de avô, são referências, assim, totais na minha vida e sem nenhuma distinção. Falando... voltando à questão do meu avô, ele era ex-combatente da Marinha, só que soteropolitano, a minha avó também soteropolitana, mas ela era funcionária pública, Maria de Lourdes. E meu avô, ‘seu’ Arlindo Barbosa. E aí o meu avô conseguiu ter histórias, várias histórias, eu não cheguei a conhecer... eu tenho uma lembrança muito vaga, mas ele morreu eu tinha dois ou três anos de idade. A minha avó, que não era casada com meu avô, então eu não tinha essa convivência dos dois, não tenho essa lembrança e acredito que meu pai também não tenha tido essa vivência. A minha avó foi bastante presente na minha infância e juventude, ela morava também no Rio de Janeiro, ela trouxe o meu pai, na infância, de Salvador para o Rio de Janeiro e acabei tendo bastante, por isso, mais contato com ela no dia a dia, do que com os meus outros avós por parte de mãe, que são do interior do estado do Rio de Janeiro. E a minha avó era uma mulher muito elegante, muito bonita e ela sempre foi muito rígida também. Então, ela passou muito disso para o meu pai e ela tinha muito essa preocupação de como as crianças seriam criadas para dar bem, dar certo na vida. Então, as interações com a minha avó sempre foram muito disciplinadas, assim, esse lugar mais da disciplina, de se comportar, de como se comporta perante as pessoas mais velhas e tudo mais. Já em relação a parte dos meus avós maternos não, porque eu e minha irmã fomos os primeiros netos da minha avó e do meu avô por parte de mãe. Tudo bem que da minha avó também nós fomos as únicas netas, né? Por parte da minha avó, por parte de pai, mas por parte de mãe já havia um outro lugar, um lugar mais afetuoso e talvez também desses netos que não via sempre, né? Então, eu lembro que a gente ia muito na ‘roça’, como a gente chama e, lá na roça, eu lembro de sempre encontrar meu avô pelo caminho, de bicicleta, na estrada de chão. Antes mesmo de chegar na casa, feita ali, de pau a pique e de barro, sem energia elétrica até a minha maioridade, minha avó morava numa casa que não tinha energia elétrica, ela foi só... e nem saneamento básico. Então, eu tenho essa lembrança literalmente de cagar no mato. De fazer as minhas necessidades durante o dia, porque à noite poderia ser perigoso sair de casa, no meio do breu, sem vizinho, os grilos parecem que estão dentro da tua cabeça, de tão perto e o perigo de cobra, de qualquer animal. Então, eu lembro que seis horas da noite acabava o dia lá na roça, assim, basicamente. E uma coisa interessante da vizinhança e eu, depois de muito tempo, identifiquei que era um quilombo, é que todas as pessoas da vizinhança são parentes e todos têm o mesmo sobrenome. Então, a minha avó e meu avô tinham sobrenome Francisco, não tinham um sobrenome composto e isso, depois, historicamente eu fui entender que era o sobrenome dali da fazenda, do engenho o qual aquela região faz parte. Então, rege a história de que ali havia uma casa grande, junto a senzalas e que quando... eu não sei se foi antes ou durante a Abolição, a falsa Abolição, mas a casa grande foi saqueada, porque os senhores não estavam mais lá e diziam que tinha um tesouro embaixo, em algum lugar. Então, ela foi realmente saqueada, tijolo por tijolo, para tentarem encontrar o tal tesouro da família, que ninguém disse se alguém realmente achou ou não, né? Então, tem essas histórias também, bem de roça, mas que remetem a esse período de escravização de africanos e pessoas remanescentes de África. Então, para mim são dois lugares extremamente distintos: o meu avô da Marinha, a minha avó do funcionalismo público e essa educação mais rígida, mais fria. E do outro lado o meu avô pescador, a minha avó da terra quilombola que trabalhava com a enxada, no canavial, mas que também um lugar de muitas histórias, de muitos mistérios e muitas histórias, mas que a maioria das coisas não eram contadas para nós, para mim, por exemplo, para nós, crianças. Talvez a minha irmã tenha mais histórias e a minha mãe, com certeza, coisas ainda mais fidedignas, do que era contado. Mas o meu avô adorava contar histórias para a gente, assim, eu ficava ‘vidrada’, escutando. O meu avô materno morreu eu tinha por volta de oito, nove anos de idade, a minha avó paterna morreu quando eu tinha os meus dezoito, dezenove anos, foi dezoito anos, porque o pouquinho do dinheiro que ficou na poupança dela o meu pai comprou um carro usado para mim e para minha irmã e eu lembro que eu tirei carro, foi quando eu tirei carteira, então foi bem aos dezoito. E a minha avó materna morreu 2010, de 2010 para 2011, quando eu tinha 28, 29 anos. Então, hoje as lembranças mais próximas são das minhas avós, lógico, que tiveram mais presentes ali, na minha juventude e vida adulta, mas também tem essas histórias e uma família grande, expandida. Em casa somos poucas: eu, minha irmã e agora a minha sobrinha, mas tenho aí uma família estendida, de muitos tios e tias e primos e os primos dos meus pais, que também têm filhos, que são meus primos também, de segundo e terceiro grau, mas que a gente trata todos como primos.
P/1 – E pensando assim, na sua infância, tem alguma comida, algum cheiro, algum sabor, alguma data comemorativa, que remete a essa época?
R – Olha, pensando na minha infância, tem uma coisa, um causo muito interessante: eu, em 2013, fui ao Chile, para uma campanha de escritores, eu sou também escritora. E aí esses escritores receberam uma menção honrosa da Academia de Letras de Araçariguama e região, hoje eu sou membro honorária dessa Academia de Letras. Nós fomos meio que em turnê pelo Chile, para visitar as escolas, centros culturais, museus, fazer alguns encontros de poesia, contos, foi bem bacana. E nós fomos, de Santiago, para o sul do Chile. Então, a gente foi bem para o sul, para terras mapuche e eu me recordo que uma das experiências, que eu tive duas experiências que foram muito marcantes para mim nesse lugar, a primeira vez foi num lago. Então, eu desci do ônibus e, quando eu desci do ônibus de excursão, que eu pisei na areia do lago, eu tive a sensação de ‘bolar’, que é a sensação de quando o orixá ‘encosta’ em você e você ainda não é... não fez todas as suas obrigações e tudo mais. Então, eu senti a presença muito forte do meu orixá junto a mim e com a sensação de que eu poderia, ali, ser manifestada. E aí eu tive que voltar para o ônibus, respirar e tudo mais, liguei para o meu babalorixá, para entender e ali as coisas, depois, ficaram mais calmas. Um dia, dois dias depois eu estava numa vivência, junto a uma comunidade tradicional, povo originário mapuche, onde eles estavam ali, fazendo algumas manifestações culturais, trazendo alguns ritos da tradição. E nós fomos para um almoço, dentro ali da comunidade mapuche e aí eu fui comer o almoço e era o tempero da minha avó e minha avó tinha dois ou três anos de falecida, na época e eu fiquei extremamente ‘tocada’, porque era exatamente o tempero da minha avó, que não era o tempero da minha mãe, tem uma diferença e eu fiquei extremamente espantada, porque era o gosto da comida da minha avó. Então, para mim é uma... eu nem sabia que era tão marcante esse lugar, mas eu tive esse revival, esse retorno ancestral e para mim aí eu compreendi o porquê da presença do meu orixá tão forte. Anos depois, eu fiz o teste de DNA e foi comprovado apenas 2% de DNA de povos originários indígenas. Mas eu acredito que seja algo ligado aí a essa região porque, por mais remanescente... ou algum aprendizado de pessoas pretas, quilombolas, que aprenderam com povos originários e fizeram trocas e aí eu senti essa conexão, porque era o tempero, a comida da minha avó lá do canavial.
P/1 – Nina, qual a primeira lembrança que você tem da escola?
R – Tenho uma lembrança muito, muito, muito, muito, muito, de muito cedinho eu, com dois, três anos, eu falava: “Mamãe, eu quero ir pra escola, eu quero ir para a escola” e minha mãe me colocou na escola, no infantil, aquela coisa ali, na época era Jardim de Infância que se chama. E eu lembro, a minha lembrança da escola é do primeiro dia, da minha mãe chorando, chorando, chorando, chorando, chorando muito, na porta. E eu fui uma criança muito doente, de bronquite, asma, problemas respiratórios, pneumonia. Então, a minha mãe tinha uma preocupação muito grande comigo e ela conta também essa história que eu, toda empinadinha, de uniforme, de sainha, com a mochilinha e a merendeira na mão e minha mãe chorando e eu: “Não chora não, mamãe, chora não, pode ir embora, pode ir embora”. (risos) Eu tenho essa lembrança, de mandar a minha mãe embora, que eu estava na escola. E aí eu tenho também umas lembranças não muito boas, porque eu era uma criança bastante ativa, digamos assim, e essas crianças muito ativas nem sempre seguem ali, a ‘cartilha’, do jeito que a professora quer ao longo do dia. Então, eu ficava de castigo, eu era muito reativa, porque eu sofria bastante questão de racismo na escolinha, nessa época eu já sofria, já era chamada de macaca, chamada de feia, de cabelo de Bombril e eu lembro que eu respondia da mesma maneira, mas com a única coisa que eu sabia, que era batendo nas crianças. E aí eu também era muito inteligente. Então, eu sempre falei muito, sempre fui muito interativa e eu falava muito na hora que os colegas estavam ali ainda fazendo o dever, porque eu já tinha acabado e eu queria conversar, eu queria brincar. Então, eu vivia de castigo e quando eu estava de castigo, na sala mesmo, as professoras ‘botavam’ ajoelhada, mas não era no milho, era nas pedrinhas, sabe? De como se fosse paralele... sabe esses quintais que são de pedrinhas e não asfaltados, como se fosse paralelepípedo quebrado? Então, a gente ficava ajoelhada na pedrinha e não é uma lembrança boa. É uma lembrança extremamente criminosa, mas era a realidade das crianças da década de 1980, infelizmente.
P/1 – E onde que você estudou?
R – Bom, eu estudei no Colégio Jean Piaget, no Jardim Catarina; estudei no colégio Santa Marta, no Fonseca, Niterói; e estudei no Colégio Acadêmicos, da Rede Objetivo, também em Niterói. Depois eu fui para a Universidade Federal Fluminense.
P/1 – E voltando ainda para a sua infância, eu queria que você me contasse um pouco sobre a casa que você morou durante a infância, se você lembra como era, quais são as suas lembranças daquele lugar.
R – Bom, a casa que eu morei durante a infância, até os dois, três anos de idade, a gente morava numa casa, lá no Jardim Catarina, numa rua bem próxima ali à entrada da comunidade. E a casa eu só lembro do muro, de uma pintura rosa nas paredes, aquela coisa bem cafona, de antigamente, que as casas eram pintadas. Lembro do quintalzinho, a gente tinha um cachorro, mas eu lembro do meu berço, um pouco e lembro do tanque, e minha mãe conta que eu subia no tanque e do tanque eu subia no muro e do muro eu me jogava para o outro lado, do quintal da vizinha, que eu fazia isso sempre. Eu não sei se eu tenho essa lembrança ou se eu só lembro desse muro e desse tanque, de tanto a minha mãe contar essa história, sabe? Então, eu não sei o que é real e o que é construção dessa narrativa da minha mãe. Já a casa que eu fiquei aí o maior tempo da minha infância, era tipo uma cohabzinha, sabe? Apartamentos de dois andares, então eram minis prédios, de quatro apartamentos por prédio, por bloco. E eu lembro que era tipo: o povo achava que aquilo era um condomínio (risos). Tinha um portão e, se tentar roubar, se não fechar o portão e ter o mínimo de segurança, mas a gente estava ali em um ambiente de favelização. Então, eu costumo dizer que as pessoas, muitas vezes, por morar num plano ou morar numa rua mais larga, não acham que estão em estado de favelização. E, hoje em dia, eu faço esse apontamento, para quem tem dúvida. Se tem dúvida, verifique se você tem agência de correios no teu bairro. Se tem dúvida, verifique se você tem agência bancária no seu bairro. Se uma ou mais perguntas forem respondidas com “não” é porque provavelmente você está em estado de favelização, estado de exclusão a serviços essenciais como lotéricas, como postinho de saúde. E aí a precarização de todas as outras coisas: do saneamento básico, do habitacional, do transporte público e consequentemente a precarização do sistema de segurança. E saúde. Então, eu me recordo de um apartamento, super compacto, eu dividia o quarto com a minha irmã, eu sempre morei em beliche... dormia em beliche, eu odiava, eu queria dormir na cama de cima e minha irmã nunca deixou, porque a mais velha é que escolhia a cama e eu lembro muito da minha infância, era tudo muito construído por nós. Então, eu herdava as roupas da minha irmã, eu herdava os cadernos, os livros, eu herdava tudo o que poderia ser, ali, customizado, reaproveitado, recycle já era muito bem-feito, a sustentabilidade era muito bem-feita dentro das famílias pretas, num lugar de pobreza e miséria. Eu lembro que eu estudava em escola particular, então eu não... eu estudava com bolsa de estudos e eu sempre tinha que fazer provas, para poder continuar ganhando ali e manter determinada média, isso causava uma pressão muito grande em cima dos resultados e eu acho que muito do que hoje eu tenho de ansiedade, de hiperatividade, também vem desse lugar de alta performance, exigida desde muito cedo. Lembro também que eu levava merenda para escola e que, por estudar em escola particular, a gente ficava com aquele desejo de consumir da cantina o lanchinho, o salgadinho, o enroladinho de queijo e presunto, o cachorro-quente, eram coisas para mim que eram muito distantes da minha realidade. Eu lembro assim, da vez que eu provei o salgadinho da minha amiga. E aí eu levava de casa um sanduíche muito bem, muito gostoso e tudo mais, coisas feitas pela minha mãe, o leite com Nescau, mas não tinha aquela sensação de pertencimento, porque estava todo mundo consumindo da cantina e o que parece ser de fora, parece ser muito mais gostoso do que o que vem de dentro. Então, eu tinha também esse lugar muito pontuado, de que eu estava ali enquanto ainda uma pessoa de uma população excluída e que eu precisava, a todo momento, reforçar o porquê que eu estava ali e justificar a minha presença. Então, eu era a criança mais empolgada, interativa e participativa da escola, eu participava do clube de leitura ao clube de matemática, a partida de handball a líder de torcida e parecia que eu não ia dar conta de tudo e eu dava conta de tudo, num nível de excelência que era até questionado e hoje eu remeto muito a essa criança. A quantidade de ‘pratos’ que eu ainda consigo equilibrar e na quantidade de lugares e espaços e profissões que eu tenho e também a cobrança da alta performance, em todas as posições e em tudo que eu me disponho a fazer e como isso é um lugar também extremamente perigoso e que pode não ser sadio. Então, a lembrança que eu tenho dessa dinâmica de casa, escola, de não poder brincar na rua, de não poder correr na rua, essa fala era muito presente, que eu falava: “Os meus amigos estão...” “Ah, mas você não é seus amigos”. De tentar ter essa infância, das brincadeiras, mas ter também muita disciplina em relação ao que eu tinha que entregar de trabalho de casa, de provas, de notas. Então, foi uma casa que remeteu a uma infância de brincadeiras, com muitas crianças ali na vizinhança sim, mas também já com muita responsabilidade, desde cedo.
P/1 – Nina, tinha alguma profissão que você queria seguir, quando você era mais nova, na infância ou você queria ser criança mesmo, não passava essas coisas na sua cabeça? (risos) Como era?
R – Não, eu sempre fui muito precoce, eu queria ser juíza, porque eu achava que eu ia fazer justiça, a minha preocupação era fazer justiça. Então, eu via os vídeos, os filmes da Sessão da Tarde e aí eu adorava no final, quando vinha um juiz ou uma juíza e dava uma sentença que inocentava a pessoa realmente inocente. Eu achava aquilo extremamente libertador, justo, recompensador. E aí eu cresci com essa narrativa, de que eu ia ser advogada e, sendo advogada, eu ia operar com a Justiça. (risos) Coitada de mim, ainda bem que eu não perseverei com essa ideia. (risos) Eu passei no vestibular, na época, para a Federal Fluminense e para Federal do Rio de Janeiro, sendo uma para Direito, outra para Administração e eu escolhi fazer a Federal Fluminense, Administração, porque eu queria fazer noturno e a outra era diurno. E aí eu, sempre, por mais que eu tenha esse lugar romântico da Sessão da Tarde, a minha vida não era romantizada. Então, eu sempre tomei as decisões perante aquilo que eu precisava fazer. Eu precisava cursar algo que, para além de ter a ver comigo, eu pudesse entrar rápido no mercado de trabalho e ajudar em casa e poder ter um mercado amplo, plural, para a minha atuação e Administração de imediato me deu isso, depois eu fui fazer Sistemas da Informação, mas foi nesse lugar que eu vi que eu era extremamente holística e sistêmica, que dificilmente eu ia para uma profissão para me aprofundar e só me especializar naquilo e que bom que, na época, as federais não aceitavam duas matriculas da mesma pessoa. Então, eu não fiz Direito e hoje provavelmente eu me arrependeria amargamente. E tento fazer justiça nos espaços que eu estou, tento fazer justiça e trabalhar por ela, a partir do meu conhecimento e das minhas vivências. Então, acho que eu voltei ali ao propósito da infância, só que por outros caminhos.
P/1 – Antes de entrar na sua experiência na faculdade, eu queria saber como foi a sua adolescência, o que você fazia para se divertir, nessa época?
R – Eita! Minha adolescência... eu tenho um problema que eu não tenho memórias antigas em quantidade, eu tenho momentos e algumas pessoas me reconhecem e eu só vou reconhecer quando a pessoa chega: “Oi, lembra de mim? Isso, isso, isso, isso, isso e aquilo”, aí eu: “Ah...”, remonto a cena e lembro e aí continuo, consigo lembrar, fazer uma lembrança ali, junto com a pessoa, mas fora isso, é um caos. E hoje em dia, com algumas pessoas me reconhecendo nas redes sociais e tudo mais, nas mídias, as pessoas falam: “Lembra? Eu estudei com você na segunda série, não era você?” E como eu respondo hoje socialmente como Nina Silva e não Marina, as pessoas vêm e falam: “Não, você é a Marina, né?” Então, quando a pessoa fala isso e fala a escola, eu já sei que realmente aquela pessoa estudou comigo, aquela pessoa... (risos) e aí eu vou tentar remontar a lembrança na minha cabeça para: “Tá, lembrei!”. E isso não é um lugar de: “Ah, Nina fazendo pouco caso da infância”. Pelo contrário, eu acho que é um lugar de defesa, porque eu passei por muitas coisas, por muitas questões raciais na escola, nas escolas. E por muitas questões não só do racismo, mas de me colocarem no lugar da pessoa que eles não compreendiam. Então: “Como que uma pessoa pode fazer tanta coisa ao mesmo tempo e querer ser bom em tudo? “Quem é bom em muita coisa, não é ótimo em nada”, eu escutava muito isso. E aí, o que eu gostava de fazer era estar em espaços de construção de saber, assim. Então, eu estava sempre em grupinho de estudo, grupinho bem nerd mesmo, bem chata, assim, clube que vai viajar para fazer um campeonato de alguma coisa, eu gostava, eu me divertia com esses ‘rolês’. Eu acho que, se eu tivesse estudado numa escola, eu tivesse tido possibilidade de estudar numa escola de robótica, que tivesse esse lugar, certamente eu teria escolhido a tecnologia como a minha primeira opção e depois não como consequência da minha carreira. Hoje eu digo que hobby eu tinha muito lugar de dançar, de cantar, sempre cantava, sempre cantei muito mal, mas sempre dancei muito bem. Então, eu gostava das festinhas na casa das colegas, mas eu tinha esse lugar de que nem todo mundo me chamava pra sair e nem todo mundo me chamava para estar nas festas, porque: “Aí, é chata, nerd, a preta feia”, sabe? E aí o meu hobby muito também era escrever, externalizar o que eu vivenciava. Então, eu começava a escrever do nada sobre Guerra Fria, começava a escrever sobre as disparidades econômicas, a inflação, coisas assim, loucas, que eu estudava e que para mim fazia supersentido, porque eu conseguia me conectar com a realidade e o que estava acontecendo ali no país e eu queria arbitrar sobre aquilo, eu queria escrever e colocar para fora um monte de coisa que eu não conseguia desenvolver nos espaços, porque eu também sentia muita falta de ter pares compatíveis. Então, as minhas coleguinhas eram muito pontuais, assim: na escola uma, na faculdade uma, porque eram as que eu conseguia trocar, fora isso ficava um papo muito desconectado. Então, eu tinha hobby de nerds, eu era totalmente nerd, mas eu sempre fui muito ativa. Então, de dançar, de conversar, de querer ir às festas e não querer ser vista como nerd chata porque eu, digamos, era nerd legal, não era nerd chata.
P/1 – E como foi a experiência de entrar na faculdade e de estudar numa federal?
R – Bom, experiência da faculdade foi desesperadora, no início, eu tinha um peso muito forte de ter estudado o segundo grau inteiro com bolsa de estudo num prezinho, então numa escola, num pré-vestibular bom para se passar. E o meu problema para passar no vestibular não é que eu queria passar apenas para Direito ou para Administração, eu queria passar como uma das melhores. Eu queria não, eu tinha, a sensação que eu tinha que passar como uma das melhores, eu tinha a sensação de que, se eu não passasse, ia ser comprovado o meu fracasso, que tanto buscaram ao longo da minha infância e juventude, a tentativa que fizeram de mostrarem possíveis fracassos meus e que não conseguiam. Então, eu tinha ali o vestibular como o auge, eu entrei no vestibular 2000, ainda não tinha vagas cotistas, não tinha cotas, mas foi muito bom vivenciar o início das cotas, eu já estava na faculdade. Então, eu pude vivenciar a batalha, a luta, a discussão. Tenho amigas que foram das primeiras turmas de cotistas do Brasil e se deu na UERJ e pessoas geniais, geniais, brilhantes, que eu tenho muito orgulho de ter visto a movimentação, ter participado, de alguma maneira. Mas na minha época éramos 0,75% de pessoas negras nas federais. Em Niterói não seria muito diferente, né? Niterói bem província, bem mentalidade colonial, bem atrasado em questões de diálogo para a inclusão. E eu me sentia realmente muito sozinha. Primeiro a obrigação de passar, a ansiedade a mil, bloqueios que eu tive também, em algumas provas, de tão ansiosa que eu estava, mas passei, prestei vestibular para Administração, só porque na UFF Direito não era conceito A no MEC e aí a minha irmã me convenceu a prestar Administração na UFF, que era conceito A no MEC e era a única faculdade de Administração que tinha cinco anos de tempo, todas as outras faculdades eram quatro anos e a UFF era quatro anos de graduação, mais um ano de especialização obrigatório, já no currículo. Então, eram cinco anos. E eu achei que aquilo ali ia demonstrar, entendeu, que eu não estou indo para qualquer faculdade de Administração, eu estou indo para a faculdade de Administração da UFF, que é referência Brasil, ‘tereré’. Então, eu tinha esse lugar e que pode parecer egóico, mas era um lugar de autoafirmação a todo o momento e que eu tinha que ser a melhor das melhores, a melhor das melhores, a melhor das melhores para, no mínimo, ser considerada boa, ser considerado esperta, inteligente. Então, a entrada foi bastante difícil pela pressão, muito mais a pressão interna, mas eu vivi esse lugar de competição comigo mesma, que não foi muito saudável, mas ainda bem que eu sobrevivi e espero não ter ficado com muitas sequelas (risos) aí, desse processo.
P/1 – Nina, e quando você começou a trabalhar e onde foi?
R – Nossa, isso aí vai ser longo, hein? Eu comecei a trabalhar cedo, cedo, cedo, se eu posso dizer que eu comecei a trabalhar, comecei a trabalhar com nove, dez anos de idade, ajudando a minha mãe a vender, entregar ‘quentinhas’ e congelados, antes da escola. Então, entregava ali, no horário do almoço e, às vezes, ia para escola à tarde ou ia para escola de manhã e entregava depois, no horário de almoço. E nessa época não era um trabalho formal, era para ajudar, uma das rendas extras da família. Mas eu tinha grande responsabilidade ali, sobretudo aquilo, mas eu tinha grande responsabilidade sobre aquilo. Então, quando eu entrei para a faculdade e uma das escolhas do porquê eu fiz Administração e não Direito foi que eu precisava já entrar na faculdade trabalhando. Eu queria, eu precisava disso. E a Administração facilitava, em relação a números de estágios e, também, de serem trabalhos um pouco mais intuitivos do que técnicos, num primeiro momento. E aí eu, no primeiro período, do primeiro ano, já arranjei um estágio, eu tinha dezessete anos, em informática, na época que existia informática, o setor de informática da empresa. Então, eu fui ali estagiária, na área de informática e, enfim, fazia uma parte mais de infra, de atender e tentar fazer vendas ali, um escritório super pequeno de informática, mas que prestava serviços para pequenas e médias empresas.
P/1 – E você lembra, nessa época, o que você fez com o seu primeiro salário?
R – Olha, nessa época do estágio o primeiro salário eu acho que eu comecei a ajudar, porque o meu pai falou que era para eu começar a trabalhar, para ajudar em casa. Então, eu comecei a pagar a conta de luz, se não me engano, foi. Então, eu tinha uma conta que era responsabilidade minha em casa e o restante eu tentava guardar, pra investir, já tinha ali um olhar e um pensamento financista, mas não sobrava, quase não sobrava, só que eu tinha essa mentalidade do pensar em como sobrar, para poder colocar para render. Então, eu nunca fui essa pessoa que recebeu o salário e saiu correndo para comprar roupa, por mais que eu precisasse. Chegou uma época, assim, que eu estava fazendo estágio na área executiva e aí eu precisava comprar roupa e eu ficava ‘P’ da vida, porque as roupas executivas são caras e eu também já não gosto de me vestir de qualquer jeito. E aí eu lembro que, às vezes, tinha uma parte do salário que ia para essa manutenção do lifestyle. Então, eu sempre fui muito financista, eu sempre tive uma educação financeira muito regrada, mesmo e isso sem esforço e sempre eu aprendi o lugar de dar valor ao meu trabalho, não ao dinheiro, mas ao trabalho e o dinheiro como consequência da remuneração pelo trabalho. Então, todos os meus esforços, quando eu era criança e quando na juventude, o meu pai sempre dizia como que isso era um investimento para mim. Então, se eu estava estudando e os meus esforços nos estudos seriam recompensados no futuro, com os meus rendimentos e o que eu poderia usufruir no mercado de trabalho e a remuneração que poderia vir disso ou o conhecimento, os lugares que eu poderia alcançar e os lugares no mundo que eu gostaria... iria conhecer. Uma das coisas que eu não falei também, eu sempre gostei muito de viajar e é uma coisa muito da nossa família, assim, a gente sempre... o meu pai pegava gente e a gente sempre marcava férias, mesmo que fosse do Rio de Janeiro para Ilha de Paquetá, sabe? Um dia do final de semana. Ele poupava durante meses e meses, para poder ter isso. Então, o meu pai sempre me demonstrou isso, que o poupar me auxiliaria a conquistar os meus objetivos e não o dinheiro pelo dinheiro e ele sempre me ensinou também que o dinheiro é um recurso escasso e que eu precisava trabalhar com planejamento. Então, eu, desde os quatro, cinco aninhos de idade, ia fazer compras com o meu pai, eu sou o menino que o meu pai não teve. Então, tem também esse lugar de vivência muito grande, com uma cumplicidade com o meu pai, por conta disso. E a gente ia no mercado com a listinha de compras e meu pai falava: “Bom, o que você quer, do supermercado?” e eu sempre queria biscoito de chocolate: “Biscoito de chocolate, biscoito de chocolate”. Ele: “Tá, e quanto que o papai tem?” “Ah, o papai tem 50 reais”. Na época, nem reais eram, né? “E quanto que custa o biscoito?” “Ah, o meu biscoito custa dois reais” “Então, quanto que o papai pode gastar e que ainda dê para o papai levar o teu biscoito?” Ele já fazia eu fazer essas contas e tudo ‘de cabeça’ e aí eu fazia: “Ah, 48 reais”. Ele: “Ótimo, então você vai ter que controlar tudo que entra no carrinho porque, se passar de 48 reais, o biscoito não vai ser comprado, porque o papai não vai ter o dinheiro pra comprar o biscoito e alguma coisa vai ter que ficar para trás e não pode ser o que está na lista de compras”. Então, isso me ensinou a objetivos, orçamentos, planos para alcance de objetivos, de que o dinheiro está ali como uma ferramenta e não como uma finalidade e que ele precisa ser controlado e muito bem pensado, para que até mesmo a gente alcance e tenha momentos ali, de lazer. E eu lembro muito disso, assim: no mercado, eu louca, brigando que ele estava colocando coisas que não estavam na lista de compras e eu brigava com ele, porque não ia dar para levar o meu biscoito, que era o meu objetivo. Então, eu sempre tive isso muito forte, até que eu fui crescendo e eu brinco hoje nas palestras, eu falo: “A gamificação na minha infância”. Então, até que ele começou a me pedir o valor total das compras e eu ia somando ‘de cabeça’ tudo o que entrava no carrinho e ia ‘batendo’, até chegar no valor. Aí primeiro foi um valor arredondado e depois até chegar em valores exatos. E aí, para mim, eu já tinha... a minha satisfação nem era mais levar o biscoito, depois de mais velha, a minha satisfação era acertar os centavos e falar para a caixa do supermercado exatamente quanto que ia dar a conta e elas olhavam para mim, do tipo: “O que essa fedelha está falando?” e eu estava lá: “Não, quarenta e nove reais e cinquenta e dois centavos”. E quando elas viam que ‘batia’ exatamente, todo mundo ficava surpresa e meu pai super orgulhoso. Então, para mim, eu... essa relação com o dinheiro é uma relação muito, sempre foi muito saudável, porque nunca houve dinheiro. (risos) E o pouco que havia era muito bem trabalhado, para a gente chegar nos nossos objetivos e eu acho que foi por conta disso que eu costumo dizer que os meus pais hackearam o sistema e conseguiram dar fruto à primeira geração, primeiras. As primeiras a entrar na faculdade, as primeiras a falar uma língua estrangeira, as primeiras a morar fora do país, as primeiras a entrar, realmente, adentrar espaços de poder.
P/1 – Nina, pra gente conseguir contar toda a sua trajetória, eu queria que você pensasse da sua trajetória profissional, até o momento em que você está hoje, com as suas atividades atuais, eu queria que você contasse quais são os três momentos mais importantes da sua trajetória profissional.
R – Os três momentos. Eu tenho a história de quando eu adentrei a Tecnologia, eu não poderia deixar esse momento, também é um momento bacana, porque eu saio do estágio trainee e vou para efetivação. Então, quando eu estou no trainee na área de logística, vou para um projeto de implementação de RP, numa multinacional alemã e sou convidada a ser usuária-chave da área de logística, nessa implementação. E dali eu participei, durante um ano, de um projeto de implementação que eu não tinha a mínima noção de nada que aquela galera fazia no sistema e eu os olhava falando, eu olhava o que estava sendo apresentado, começava a fazer sentido para mim, mas eu precisava de uma base técnica, para poder entender e eu não tinha dinheiro, na época, para fazer, naquela época o curso era quinze mil, dezoito mil reais e eu estou falando aí de 2002. E eu olhava e falava: “’Cara’, eu preciso aprender isso”, porque quando chegavam os boletos do projeto na área de compras, onde eu trabalhava, eu via o quanto que o projeto custava, o quão caro eram as horas dos consultores e o quanto de suporte e infraestrutura os consultores tinham, de flat, carro alugado, fly back semanal para casa, e eu falava: “’Cara’, dá muito dinheiro essa área” e eu costumo brincar: “Eu não entrei na tecnologia por conta de...”, não tem uma história romântica, né: “Ah, eu entrei na tecnologia, porque eu amo números!”. Amo números. “Entrei na tecnologia, porque eu amo lógica”. Amo lógica, mas eu entrei na tecnologia porque, naquela época, era uma ‘porta’ para a mobilidade social e que me falaram: “Nina, isso dá dinheiro”. E eu comecei a comprovar, vendo lá os boletos que chegavam, para a minha área pagar. E aí eu imprimi o help do sistema, eram quatrocentas páginas em inglês, na época não tinha tradução em português, coloquei no fichário e todo o dia, nos intervalos, na hora do almoço, um pouco antes de ir embora, eu abria o fichário e tentava fazer lá os caminhos das configurações que ali estavam sendo explicados e entrava no ambiente de teste, um ambiente de lixão, assim, que era mais para testes, tentativas e erros. Entrava naquele ambiente, que a gente chama de sanebox e ficava ‘brincando’ ali. E isso foi durante um ano, até eu completar todo esse book enorme e, depois de um ano participando de todas as atividades, eu lembro que eu participava de virada de noite no projeto, que eu não precisava participar, mas eu queria ver o que acontecia quando aquele produto, aquele pacote, ia entrar em produção, tinha que ser na virada do dia e eu queria ver como que o sistema iria se comportar, o que estava sendo feito, como que fazia aquela ‘virada de chave’. Eu queria acompanhar tudo, para aprender tudo. E até pouco tempo eu não lembrava com tantos detalhes, lembre-se que eu sou uma pessoa péssima de memória. Eu estive em um samba um tempo atrás, uns seis meses atrás, logo depois quando a pandemia começou a dar uma flexibilizada e eu encontrei com um antigo gerente de projetos desse projeto, do meu primeiro projeto, e ele parou na minha frente: “Lembra de mim?” Eu falei: “Lembro, lembro”, mas não me vinha de onde e aí ele falou e quando ele falou, eu falei: “Meu Deus!” Aí o abracei, a esposa dele, que era consultora na época e ainda é esposa. E ele virou para mim e falou: “Nina, toda vez que eu vejo uma reportagem com você, toda vez que eu vejo qualquer coisa na internet, com o teu nome, eu falo: “Vocês não têm noção o quanto essa menina batalhou e estudou. Para mim não é nenhuma surpresa o lugar que você começa a adentrar, porque você ficava ali, numa sede, numa ânsia de aprender e a gente falava: ‘Vai embora, tem a sua faculdade, vai embora fazer as suas coisas’ ‘Não, deixa que eu vou acompanhar, eu quero aprender’”. Eu não lembrava, assim, detalhes disso, ele foi falando e eu ficando extremamente emocionada, né? De que realmente a gente tem que construir os nossos passos, a gente tem que dar cada passo, não tem como acelerar, nem tropeçar... tropeçar tem, mas até no tropeço a gente está dando passos. Então, eu coloco esse marco, o meu primeiro projeto de implementação em tech, que foi o que me deu toda a base inicial e visibilidade. Eu treinei mais de seiscentas pessoas no projeto, usuários outros e tinha uma nota altíssima de NPS e saí do projeto contratada, pela consultoria que ali estava e para o mundo, para outras multinacionais, e aí tive experiências no Brasil, nos Estados Unidos. E hoje eu digo que ali, realmente, foi o meu ponto, não vou dizer de partida, mas foi o principal ponto de abastecimento, para eu poder fazer a minha decolagem. O segundo momento seria o meu burnout, em 2013 e aí são doze anos de trajetória depois, eu não me sentia conectada à cultura da empresa onde eu estava, não tinha grandes autonomias, que eu era pessoa jurídica. O que aconteceu que, em doze anos de trajetória, eu não consegui ter os mesmos salários e reconhecimento em escalada de cargos que os meus pares e aí eu fui trabalhar como PJ, eu falei: “Já que é para trabalhar que nem uma louca, entregar, que pelo menos eu entregue e seja pago em horas”, que ali eu sabia que eu ia poder ter um retorno financeiro adequado ao meu esforço. Só que aí eu trabalhei demais, tive um esgotamento mental, também não estava conectada à empresa de maneira cultural, DNA, não tinha tanta autonomia, por ser terceirizada e teve um dia.... teve um dia não, foi um processo de começar a chorar no banheiro da empresa, até ficar muito complicado de ir todos os dias trabalhar, até que um dia eu não fui mais e parei e não levantei mais da cama. Então, não levantava da cama para comer, não levantava da cama para tomar banho, não levantava da cama para ir trabalhar e passaram-se alguns dias, alguns poucos dias, as pessoas começaram a notar a minha ausência e eu fui e me desliguei da empresa por telefone, e tive que tirar força de algum lugar e eu falei: “Não, não posso, eu preciso seguir!” E foi quando eu fui morar nos Estados Unidos, no Brooklyn e falei: “Ah, eu nunca escolhi a tecnologia, nem a tecnologia me escolheu, eu não tenho porque ficar nesses espaços que não me contemplam, que não me preenchem”. E aí eu fui estudar em alguns cursos de férias na NYU, no Departamento de American Studies, onde me ofertaram uma bolsa para ser estudante e fazer um doutorado em Saint Louis. Eu ainda me animei, mas no primeiro momento, no segundo momento, eu já falei: “Não, eu não tenho condições de voltar a ser ‘apenas’ estudante”, esse ‘apenas’ entre aspas, né? Mas na minha cabeça, depois de doze anos na área de tecnologia, eu não tinha como deixar tudo isso para trás e fiquei, também comecei a me sentir mal de estar ali, estar longe do país, estar longe das pessoas amigas e ainda não me sentia produtiva, eu precisava do ambiente de produção, o ambiente de entrega massiva. Eu voltei para o Brasil, foi bem na época do ‘não é por 20 centavos’, das manifestações, onde as passagens dos ônibus estavam caríssimas e aí havia ônibus queimando nas ruas, as pessoas reivindicando, o povo na rua e eu estava num bar, no Brooklyn, esses bares de esportes, olhei para a TV, olhei para cima e estava passando o Copa das Confederações no Brasil, eu falei: “Opa, o Maracanã” e estava ali, olhando, até que no intervalo me passa o ônibus sendo queimado e eu: “Meu Deus, o que está acontecendo?” Aí estava escrito Niterói, eu fiquei louca, liguei para os meus pais, para saber se estava tudo bem, eles falaram que sim, explicaram um pouquinho, eu falei: “Não, eu preciso voltar”. Voltei pro Brasil, abri um salão de beleza afro que, na minha cabeça, as pessoas queriam lugar de pertencimento e aceitação das suas identidades e que eu iria fazer um centro de estética de beleza, pautado na beleza natural das pessoas negras. E aí, seis meses que eu abri, eu ‘quebrei’, vendi a minha parte do que restou, tirando as dívidas, para a minha sócia, mas não tinha feito BP, não entendia nada de salão, queria ir para uma narrativa natural identitária emancipatória em um ponto de barbearia, que antes era barbearia, que a galera vai lá para raspar careca. Então, eu ainda tinha que fazer uma movimentação para mudar a clientela e tudo mais e não consegui. Foi daí que eu voltei para a área de tecnologia, novamente a tecnologia, para trazer recursos financeiros, porque já estavam ali, escassos, naquele momento. Esse foi o segundo momento. O terceiro momento eu não poderia não dizer que é a criação do Movimento Black Money, se não estaria sendo aí uma mãe muito rebelde. Então, quando eu falei: “Não, isso para mim faz total sentido, é isso que eu quero fazer e eu vou desenhar minha saída do CLT novamente, da área de tecnologia” e eu fiz isso, mas com planejamento, eu fiz isso com a tentativa, como a maioria das pessoas que empreendem, tentar conciliar as duas coisas durante um tempo, mas eu fiz isso com muita coragem, muita crença sobre o que a gente estava criando e construindo. Então, em 2017 eu conheci o meu sócio, Alan Soares, ele já tinha ideia do movimento Black Money, enquanto Black Money, enquanto fazer a riqueza circular por mais tempo dentro da comunidade negra, de criar uma fintech. Eu vinha das minhas dores do mercado, de eu entender que eu busquei pertencimentos fora do mercado, não achei; busquei pertencimento dentro da tecnologia, não encontrei e que morar fora e criar um salão de beleza era tudo uma tentativa de autoconhecimento que eu precisava fazer, de um movimento para dentro e não para fora. E aí, quando eu já estava nessa inquietação: “Beleza, eu já sei que não dá para eu apenas atuar com tecnologia, sem ter os meus pares, sem ter outras pessoas negras iguais a mim em oportunidades, sem ter outras mulheres em cargos de liderança, o que eu faço?” E aí eu estava montando uma iniciativa de consultoria de pessoas negras em tecnologia, onde eu teria toda a parte de educação, onde as pessoas negras pudessem se ajudar e criar trilhas de conhecimento para capacitação uma das outras e ia ter um ‘braço’ realmente de negócios, que era vender produtos, serviços, soluções tecnológicas para grandes empresas, feito por pessoas negras, que fossem autônomas. Então, não que eu fosse ter funcionários colaboradores, mas eu queria auxiliar pessoas negras a serem autônomas na área de tecnologia e vender seus serviços para grandes empresas, mas ao mesmo tempo ensinar os seus ofícios e trazer mais pessoas negras para essas oportunidades. Então, eu já falava de educação, comunicação, letramento racial para a comunidade negra, o Alan falava de Black Money e aí a gente ‘brinca’ que o ‘fin’ encontrou o tech, para a gente abrir a fintech. Ele trader, analista financeiro de mercado, eu tech, da área de tecnologia, mas que participei aí de algumas implementações, tanto de novas fintechs, quanto de meios de pagamento, eu tinha passado aí por algumas implementações da área financeira, também sou especializada no SAP para a parte de legislação e localização, impostos, tributos. Então, eu sempre estive muito conectada à parte de finanças. Então, o terceiro momento seria a criação do movimento Black Money e um ano e meio depois da criação a minha decisão de realmente sair do CLT e ficar dedicada à minha startup.
P/1 – E como funciona hoje o movimento Black Money?
R – Olha, hoje o movimento Black Money é um hub, então a gente teve que abrir uma holding, para todas essas iniciativas de educação, comunicação de serviços financeiros. O movimento Black Money funciona a partir do entendimento de que pessoas negras precisam fortalecer o ‘corre’ de outras pessoas negras, seja comprando destas, seja contratando outras pessoas negras, seja fazendo negócios com outras pessoas negras, seja incentivando, mentorando, trazendo conhecimento, capital, outros tipos de capitais, para a mão de pessoas negras. Então, quando a gente nasce nesse lugar colaborativo, de corroborar para investimentos dentro da nossa própria comunidade, para mexer nessa parcela que não é nicho, que é maioria populacional, somos atualmente 56%, cerca de 115 milhões de pessoas no Brasil. Mulheres negras é o maior grupo brasileiro com recorte de gênero e raça, somos 28,7%, dos 30 milhões de CNPJ que nós temos hoje abertos, 15 milhões são de pessoas negras, mas somos também 67% da massa desempregada do país, atualmente dentro da crise sanitária somos os que mais morrem, que têm maior letalidade, uma vez contaminados por Covid-19, somos a linha de frente da pandemia. E quando empreendemos temos o crédito três vezes mais negado dentro das instituições, mesmo movimentando 1.9 trilhões de reais na economia brasileira por ano, isso tudo reflexo do não investimento dos grandes bancos junto a negócios de pessoas pretas, do não crédito e da herança de exclusão. Então, a gente parte do empreender a partir da subsistência e não do empreender a partir da fartura da oportunidade, do lugar de soluções criativas. Então, o movimento, além de ter taxas, tarifas mais justas para pessoas negras, dentro dos seus próprios negócios, nós temos também toda a parte de apoio à luta antirracista, com produtos financeiros. Produtos esses que, desde o cartão de crédito, a maquininha de cartão POS, mas também um marketplace de venda de produtos e soluções, serviços de pessoas negras, onde atualmente nós temos duas mil e quinhentas lojas e cerca de sete mil produtos. E, no marketplace, o que a gente costuma colocar é que você vai ter certeza de que pessoas negras estão ali vendendo, mas você pode ser uma pessoa negra ou não negra para ser ativo, auxiliar e acabar comprando diretamente dessas pessoas e trabalhando de maneira intencional para essa luta. O nosso intuito, para além hoje de fortalecer a comunidade diretamente, fazendo a movimentação financeira entre nós, a gente também tem um lugar de trazer as grandes empresas pro diálogo, de como elas operam dentro desse sistema excludente. Então, como elas podem se mover e mudar a maneira com que a ‘roda está girando’. A gente entende o sistema capitalista como um sistema que trabalha com classes e a exploração de uma classe sobre a outra e essas classes sociais no Brasil foram desenhadas a partir de uma estrutura, que é o racismo. Uma outra estrutura também, que é muito forte, é o patriarcado, a homofobia e outros lugares de exclusão, que acabam tornando grupos majoritários em grupos sub-representados. O movimento Black Money vem para poder dar voz e vez neste âmbito educacional, de comunicar e demonstrar que nós atuamos em diversas áreas do Brasil, mas principalmente que as grandes empresas que não se atentarem para esse lugar da nossa comunidade, vão ficar para trás porque, na era do hoje, na era da web 3, são as comunidades que estão criando audiência e muitas das vezes os creators estão criando suas próprias marcas e são os creators conectados às grandes comunidades, com propósito e valores que vão fazer e vão propiciar que nós tenhamos conteúdos e benefícios mais fidedignos, para um consumo mais consciente. Então, hoje o movimento Black Money direciona também esforço para afiliar as empresas, a trazer mais colaboradores negros para o seu quadro colaborativo, como também enegreceu o seu supply chain, a sua cadeia de suprimentos, a contratar fornecedores pretos, para o seu diálogo ali, na área de compras. A gente auxilia também desenvolvendo lideranças. Então, a gente olha para essas lideranças e fala não somente de inclusão e diversidade, mas principalmente como essa inclusão e diversidade precisa se dar num lugar de liderança, com patrocínio, com quem realmente está com a ‘caneta da mão’, para assinar essa possibilidade. Então, a nossa tentativa hoje é que, para além desse diálogo do B2B, seja um diálogo das empresas trabalharem um processo reparatório que elas precisam fazer, que seja também um lugar emancipatório das empresas entenderem que esses fornecedores negros estão para trazer soluções mais criativas e parcerias mais efetivas, em chegar em audiências maiores, em audiências mais plurais, trazendo o protagonismo também desses grupos, dentro disso.
P/1 – E pensando em toda essa trajetória dentro do movimento Black Money, eu queria saber como você vê a participação de mulheres negras, de mulheres e de pessoas negras dentro do mercado financeiro, seja como CEO, seja como funcionários em cargos de liderança e, também, como investidores.
R – Bom, mediante a todos esses números, se a gente olha também só... e quando a gente fala de mulheres, as mulheres determinam 80% do poder de compra de uma casa, do processo decisório de compra de uma casa. Então, nada passa no orçamento da casa, que não passe por essa mulher, que vai ser ali arrimo, ou que vai estar à frente daquela família, de alguma maneira. Em relação ao mercado financeiro e esse lugar de mulheres e outros grupos sub-representados, nós sabemos que são grupos muito que tomam processo decisório dentro das suas casas. As mulheres são, aí, detêm o poder de 80% do processo decisório de compra das casas das suas famílias. Se a gente olhar a comunidade negra, como eu falei, a gente movimenta 1.9 trilhões de reais na economia e somos a maioria em micro e pequenos negócios, que são os que trazem a maior empregabilidade no país. Se eu olho hoje para esse lugar de que essas pessoas ainda estão excluídas de um mercado, que deveria estar realmente trabalhando com finanças descentralizadas, de um lugar mais democrático de acesso a serviços bancários, eu preciso colocar esses grupos no centro, não só da discussão, mas no centro da ação. O movimento Black Money vem para isso: como que pessoas negras têm o seu próprio banco, como que mulheres podem ter os seus próprios projetos de NFT, que é o caso da Project EVE, a qual eu sou uma das fundadoras. As mulheres podem investir em outras mulheres, que são donas ou que fundaram uma startup ou uma fintech. Hoje nós temos dados de que apenas 5% do que é faturado em NFT vai para mãos de mulheres no mundo. Quando a gente olha para as ventures capitals, para a os mercados de investimento em startups, apenas 3% do dinheiro que vai para investimento dessas empresas vão para startup de mulheres. Quando a gente fala de pessoas étnico, que têm uma etnicidade ou uma raça distinta do que de um homem branco ou até mesmo amarelo, a gente está falando de apenas 1% desse dinheiro chegando em mãos de pessoas negras, que fundam startups. Então, o mercado precisa não colaborar para a ratificação do poder em mãos de 1%, perante 99% da população excluída. Eu não posso fazer com que o mercado que outrora era coordenado, validado e o sistema que realmente monta as estratégias e estruturas políticas no Brasil, eu não posso fazer com que esses banqueiros, os donos dos grandes bancos sejam também os investidores dessa nova economia, porque essas fintechs e empresas do mercado financeiro, em sua maioria, são dos filhos desses donos de grandes bancos ou estão estudando e fazem parte da rede, dessa rede de poder da velha economia e não é porque está indo para as mãos de um jovem, que está indo para as mãos de alguém de um grupo excluído. Então, a gente hoje tem fintechs, tem movimentações e mercados financeiros se constituindo ao redor até mesmo de comunidades, mas a gente precisa ver quem está por trás de cada iniciativa. Se aquele grande banco está abrindo uma iniciativa com uma população ribeirinha, uma população de povos originários, ou até mesmo com um grupo de mulheres, é porque ele está levando muito mais reconhecimento e melhorando a sua reputação, do que realmente investindo em justiça socioeconômica. A gente sabe que hoje a gente tem os programas de ESG e os programas de ESG estão ainda muito mais na teoria, do que na prática. Então, é preciso entender o que cada um de nós do mercado financeiro precisa colocar em prática, para que o meio ambiente realmente seja para o lugar do pensar no futuro e um futuro para todas as pessoas, num lugar de justiça climática. Que esse S seja de uma sociedade que seja impactada positivamente, com soluções e produtos e que o consumo consciente desse social venha em prol do benefício dessa sociedade e não do consumo pelo consumo, como nós do mercado financeiro sempre financiamos o consumo pelo consumo e o endividamento, para lucratividade. A gente precisa também trabalhar governança, esse G do ESG, para que todos os nossos processos e pensamentos estratégicos sejam para trazer outras siglas do nome, primeiro. Então, como que essa governança é eficaz, ativa, com compliance e pensado estrategicamente, de uma maneira enquanto ecossistema e não enquanto as empresas enquanto único universo. A gente precisa diluir esse capital financeiro, que hoje está em nas mãos de dois, três grandes bancos e agora algumas fintechs que surgem, já como legado desse sistema e poder trazer negócios, fintechs protagonizadas, fundadas e gestadas por pessoas de grupos sub-representados, para pessoas sub-representados. Então, eu acho que o mercado financeiro tem muito o que fazer, ele é o ‘coração’ das mudanças e transformações do Brasil, porque ele também foi o ‘coração’ da manutenção dos privilégios na mão de uma pequena parcela da população, que ainda hoje anda de patinete, de coletinho e sapatênis pela Faria Lima.
P/1 – Nina, sendo uma mulher negra, nesses espaços do mercado financeiro, eu queria saber se você já vivenciou algum tipo de discriminação ou de racismo.
R – Bom, a gente... nesse mercado e em vários outros, né? (risos) Mas no mercado financeiro ainda mais, porque é um mercado que ainda é tradicional, com grandes mudanças, sim, hoje, que open finance, várias outras estruturas vêm trazendo, até mesmo o mundo dos criptoativos, mas a mentalidade social por trás das relações do mercado continuam sendo as mesmas, continua sendo muito retrógrado. Então, invalidação de proposta, invalidação do discurso, contra argumentação sem argumento. A tentativa de ‘invisibilidade’, o roubo de propriedade intelectual, várias dessas coisas já aconteceram e provavelmente vão acontecer ainda, durante algum tempo, principalmente porque não somos nós os detentores dos funds. Do que mantém aí a principal válvula de manutenção desse sistema financeiro, que é o lugar do recurso dos fundos sem fins, que é sem fim de não ter final e sem fins, de não ter muitas vezes finalidade propositiva. Mas sim, já passei principalmente por tentativas de invalidação, é isso mesmo, eu já passei por tentativas de invalidar a minha tese, mesmo com todos os números, argumentos, processo histórico e validações de hipóteses que eu já testei no mercado. A tentativa também de querer fazer... parecer que quer fazer parceria, processos colaborativos, mas estão ali para ‘roubar ideia’ ou estão ali pra ganhar em cima do nome, para fazer um rebranding. Então, todas essas manipulações vêm das estruturas de poder e racismo, patriarcado, são... eles se originam e reforçam o lugar de poder da nossa sociedade, que continua estando concentrado nas mãos de homens brancos, principalmente aqui no Brasil.
P/1 – Eu queria que você dissesse qual foi o momento mais desafiador do movimento Black Money.
R – Olha, o momento mais desafiador do movimento Black Money foi no início, acredito eu que na pandemia, nós tínhamos um movimento para 2020, que foi totalmente diferente do que foi implementado, por conta do lockdown, mas para além do lockdown, as necessidades financeiras que a nossa população, que já vinha de um lugar desigual e um lugar de crise histórica conjeturou. Houve um aprofundamento das mazelas e das desigualdades sociais, principalmente dentro da comunidade negra. Então, o momento mais difícil foi ver os afros empreendedores, os mais de cinco mil afro empreendedores que a gente atende, a galera mandando mensagem do tipo não tendo o que comer, da galera pedindo ajuda para comprar remédios para família, para filho, para comprar fralda, para a mãe doente e a gente tentando fazer movimentações de apoio de renda básica, que nós acreditamos fielmente na renda básica universal e enquanto agentes do mercado a gente pensou e montou uma estratégia para trazer renda básica para algumas famílias e nesse momento a gente ainda teve que ‘correr atrás’ de reivindicar, justificar, para poder captar recursos e transpor e levar esses recursos para essas famílias. Ao mesmo tempo que várias outras iniciativas que, sim, tão importantes quanto, mas que principalmente estavam no nível de assistencialismo, tiveram números muito mais exorbitantes, porque são iniciativas, vamos falar, de álcool em gel, vamos falar de cesta básica e não de desenvolvimento econômico e de inclusão financeira, que foi o que a gente fez. A gente teve aí mais de dez mil pessoas impactadas, as famílias que foram impactadas diretamente sofreram também um processo de inclusão financeira, que muitas delas foi o primeiro cartão de banco que elas receberam em mãos. E para a gente foi um momento extremamente difícil, tem sido ainda, principalmente porque nós já tínhamos projetos de digitalização de negócios pretos e com a pandemia a gente teve que acelerar e muito e não conseguiu implementar determinadas metodologias, que eram necessárias e a gente teve que realmente acertar o processo com a ‘roda girando’. Mas também foi um momento, tem sido um momento de muito orgulho, de impactar positivamente, de trazer sustento e manutenção de negócios, dar fôlego para negócios pretos se manterem ativos na economia.
P/1 – E pensando assim, em toda a sua trajetória profissional, quais foram os maiores aprendizados?
R – Bom, eu venho de, são duas décadas de trajetória profissional e aí, pensando em uma mulher de quarenta anos, que lembra daquela menina de dezesseis entrando na faculdade, eu penso que eu consegui ver várias movimentações na sociedade, principalmente nesse âmbito corporativo, de falar: “Não, nós mulheres somos a base da pirâmide e sustentamos toda a sociedade”, aí um segundo momento: “Não, mas é permitido para a gente também chorar, é permitido para a gente, a gente pode não ser tão forte”, aí um terceiro momento, de que: “Mas se eu mostro toda essa fragilidade, se eu não sou forte e não trago outras comigo, eu sou fadada a ‘invisibilidade’ e ao não lugar” e aí vários... “Mas não, você tem que pensar na sua saúde e bem-estar, na sua saúde mental e trabalhar. Se você não estiver bem consigo mesma, não vai estar bem para ajudar ninguém”. Então, eu diria que são aprendizados constantes e remodelagens constantes, dentro do meu lugar enquanto indivíduo, de me pensar a importância para mim, da minha carreira; da importância para mim, dos meus valores e dos meus objetivos; e a importância para mim, das pessoas que me cercam e que fazem e que caminham comigo, nessa jornada. E principalmente da minha importância para ajudar outras pessoas e o que eu posso suportar e carregar, para trazer outros iguais. Então, é extremamente difícil (choro) - demorou para eu chorar na entrevista, hoje... - medir até que ponto você tem que, realmente, suportar todas as coisas e até que ponto você tem que se permitir errar, é extremamente difícil medir isso, porque os seus erros não são somente lidos como aprendizados, mas enquanto você é uma pessoa preta nesse mercado, (choro) os seus erros são medidos perante os erros de todas as pessoas que antes vieram. Então, é muito maior, né? Não é sobre você, não é sobre mim, é sobre outras pessoas fizeram movimentações ainda muito mais pesadas e em contextos muito mais difíceis, em momentos muito mais de silêncio e ‘invisibilidade’, que é agora. Então, eu ainda tento aprender que é possível errar e que a alta performance não vai garantir felicidade e nem sucesso de iniciativas, mas ainda é muito... é um processo ainda de me convencer disso e de não ser minha própria régua de entendimento, de que você precisa fazer mais, você tem que chegar em outro lugar, você precisa fazer mais, você precisa aguentar e superar mais, você precisa inovar mais, você precisa ‘abraçar’ mais coisas, você precisa entregar mais. E eu acho que é porque eu venho dessa escola da entrega, do resultado, mas pior do que a escola da entrega e do resultado é a escola da chibata e da ‘invisibilidade’ e da morte dos nossos corpos, né? (choro) Então, eu lembro, toda vez eu lembro de todo silenciamento em reuniões, mais o silenciamento na escola e do lugar onde eu morava e da violência que corpos iguais os meus sofriam e eu continuo sabendo que nesses espaços ainda continuam sofrendo, a diferença é que eu não estou mais lá, eu não habito mais esses espaços. Então, como que eu não posso deixar de levar a responsabilidade para todo e qualquer trabalho que eu faço, pra que no mínimo empate. E mude o peso em cima das costas de uma outra pessoa igual a mim. Eu acho que o aprendizado é tentar ser mais generosa, mas ao mesmo tempo é também entender que tem coisas que são necessárias e que alguém tem que fazer.
P/1 – E o que você gosta de fazer, nos seus momentos de lazer?
R – Ai, você me faz chorar, para depois me perguntar em momentos de lazer! (risos) Aí, hoje em dia, eu gosto de não fazer nada, muita das vezes, dormir o máximo que eu posso, o ócio criativo é maravilhoso. Gosto de ler, mas de ler com calma, sem obrigação de ter que ler X páginas, número de páginas. Gosto de assistir séries, gosto de escrever coisas do mundo fantástico, gosto de tentar escrever e roteirizar coisas que possam acontecer aí no metaverso, gosto de... continuo gostando de dançar como criança, gosto de descompromissos, digamos assim, comprometimentos descompromissados. Então, eu tenho um compromisso para com o meu relaxamento, para o meu esvaziamento da mente de maneira descompromissada, mas com coisas também interessantes e gosto muito de viajar, continuo gostando de viajar, é uma herança familiar, eu acho que é por a gente não ser daqui, né, eu tenho... eu fiz um teste de DNA, fiz dois testes de DNA e foi comprovado 92% de descendência africana e eu acho que a minha família sempre teve muito disso, de viajar, também de se mudar e não ter um apego por lugares, uma sensação de ‘ai, o que eu estou deixando para trás?’, porque eu acho que a gente não tem esse sentimento de que esse lugar realmente me pertence, mesmo antes da gente saber dessa descendência tão rica, tão direta. Eu sempre me considerei uma africana nascida na diáspora e como as pessoas do judaísmo se consideram judeus a partir da sua ascendência, eu me considero africana. Eu me leio, me vejo e vivencio isso. Então, eu gosto muito dessa possibilidade de conhecer lugares, conhecer pessoas, me identificar com outras pessoas pretas, em outros lugares e me reconhecer nelas, conhecer novas culturas e sabores também, é uma coisa que me faz ampliar o horizonte.
P/1 – E essa você só responde se você quiser também, se você se sentir confortável.
R – Tá bom.
P/1 – Eu queria saber se você tem algum relacionamento.
R – Ah, sim! O problema é que o negócio é para o Museu, a entrevista, né? Negócio de museu é pra sempre. Então, o povo tem que entender também que é o dia de hoje. (risos) Aí tu dá entrevista e no outro no dia, de não sei quando, você está casado com outra pessoa, e como é que faz? (risos) Mas tudo bem! Eu hoje tenho um relacionamento com o meu sócio, a gente tem o mesmo tempo de sociedade, eu digo que a gente tem alguns contratos, são alguns CNPJs e mais a vida. Então, o meu sócio, o Alan Soares, é o meu companheiro e está neste lugar hoje e vamos ver se não vai ser destituído aí, (risos) ao longo dos anos, mas já temos aí cinco anos de convivência e de construção e nós, enquanto panafricanista, acreditamos nisso, em construção familiar a partir de propósito e posicionamento político e, também, de encontro, de encontro de objetivo, de Odus, de destinos e por enquanto a gente está nessa jornada juntos.
P/1 – E quais são as coisas mais importantes para você, hoje?
R – Nossa, a vida dos meus pais em primeiro lugar, eu acho que é a coisa mais importante para mim, hoje. O bem-estar da minha família, os meus valores, eu ir dormir sabendo que todas as respostas, tudo o que eu me associei no dia foram a partir das coisas que eu acredito e não por conta de um retorno X, financeiro. Eu acho que essas são as coisas mais caras para mim, sim, e de me manter verdadeira com o que eu acredito.
P/1 – E o que você sente quando você está escrevendo?
R – Ai, alívio, quando eu estou escrevendo eu sinto alívio, parece que eu estou colocando, depositando coisas em algum lugar, descarregando mesmo. E eu tenho um entendimento de que conhecimento ou palavras não são de uma pessoa. A partir do momento que você ‘bota’ no papel, que você compartilhou com o mundo e cada um vai ter aquele entendimento, a partir da sua leitura, a partir da sua interpretação, junto com a sua vivência, com o seu conhecimento, aquilo vai transformar em outra coisa, o que eu escrevi. Então, o que eu sinto quando eu estou escrevendo é que eu estou escrevendo zilhões de possibilidades de histórias e não uma só, porque cada pessoa vai ler aquilo de uma maneira diferente, vai receber aquilo de uma maneira diferente e, melhor, vai transformar aquilo em algo completamente diferente.
P/1 – E quais são os seus maiores sonhos, hoje?
R – Ai, eu queria me aposentar aos 50. Então, se daqui a dez anos eu tiver vendo essa entrevista, espero estar aposentada, (risos) mas aposentada dos deveres, daquilo que: “Ai, eu preciso fazer, porque eu tenho ainda que ‘botar’ o feijão para cozinhar, não tenho ainda renda passiva suficiente para me manter”. Quero muito ter uma velhice confortável e poder dar isso para a minha família e me alegrar com as coisas que... as poucas coisas que eu construir ao longo do tempo e o que vão falar de mim quando eu não estiver mais aqui. Eu acho que é o que eu desejo, assim, para o futuro, é poder ter construído um legado positivo e ter deixado pelo menos que seja uma palavra ou uma pessoa impactada positivamente, que vá multiplicar isso na vida de outras pessoas.
P/1 – A pergunta seguinte é: qual o legado que você deixa para o futuro?
R – Ah, eu tento, pelo menos, passar pelos obstáculos, ‘pular muro’, ‘cair em buraco’, mas ‘sair tampando’ um pouquinho. Então, o legado que eu pretendo deixar é de menos ‘buracos’ pelos caminhos, menos ‘muros’ a serem derrubados. E aí muros leia-se preconceitos, ódios e o lugar mesmo de injustiça. Eu pretendo que o meu legado não piore as coisas, que a gente possa construir a possibilidade de futuro a partir dos desafios, mesmo com os desafios climáticos que nós temos hoje. E que realmente seja um legado positivo junto a conexão com várias outras pessoas, que estão também deixando os seus legados, que não seja uma coisa egóica, algo sobre a Nina, não, não é sobre a Nina, é sobre a era que eu vivi ou as zilhões de eras que parece que eu vivi até hoje, em quatro séculos... em quatro séculos, olha! Em quatro décadas, (risos) dessa vida quatro décadas. (risos) Então, espero que essa transformação em mim possa se conectar com as transformações que acontecem nessa era do hoje, junto a outras pessoas e que essas movimentações realmente deixem um legado substancial de mudanças, de bem-estar, do bem, sabe, pro próximo, de respeito, de dignidade, de direitos, de direitos à vida, à humanidade, à qualidade de vida, à conforto para todas as pessoas e não somente ao básico ou a extinção da miséria, não é extinguir a miséria ou a pobreza, é todo mundo ter uma boa qualidade de vida, todo mundo ter acesso a recursos. Que não seja mínimo, que seja no lugar de prosperidade, porque a sociedade da escassez não venceu, não foi boa. A gente experimentou, nos últimos séculos, a sociedade da escassez, eu quero que a gente retorne às sociedades da prosperidade. As sociedades da multiplicação, da fertilidade, da riqueza e isso vai depender muito das reparações e das movimentações que nós fazemos no hoje.
P/1 – A gente já está chegando no fim, tem só mais duas perguntas, a primeira delas eu gostaria de saber se você quer contar alguma história que eu não tenha perguntado, que você não pôde contar durante a entrevista ou deixar alguma mensagem.
R – História? Não, eu acho que tem muita coisa minha na internet. Tem muito das minhas histórias também, que as pessoas... não precisam findar aqui. Eu acho que, se a gente pudesse sempre no acervo estar acrescentando as coisas e puder trazer novas histórias, eu acho que é importante também colocar a questão do prêmio de Mulher Mais Disruptiva do Mundo, porque é um prêmio único, né? De um lugar internacional que, pelo menos em 2021, me colocou em um lugar de referência no âmbito tecnológico e nesse lugar de disrupção, que quer dizer quebra de barreiras e criação de novas possibilidades, novas narrativas. Então, eu acho que é deixar... eu tenho um discurso também que eu fiz no dia, se eu puder deixar também no vídeo, eu acho que não dá para transcrever a emoção que foi e só assistindo o vídeo pra entender, mas para mim a importância de mostrar que não é sobre a minha pessoa, são todas as movimentações e do que eu sou constituída e o que eu posso ser ponte também, para outras pessoas. E a mensagem é essa, de que superem os seus limites, se isso for bom para você. Se não for bom também, não queira pensar em limites ou superações, eu acho que a gente tem que pensar é na nossa felicidade e o que nos faz bem naquele momento, sem perder também o foco de objetivos, né? Sem ficar também num lugar romantizado, perdido. Uma outra mensagem que eu gostaria de deixar também é o entendimento do que é verdade. A gente tem uma tentativa, ao máximo, de impor verdade sobre as outras pessoas e não entende que o mundo é feito de verdades no plural, cada um tem a sua verdade, ou a não verdade, e está tudo bem. E que o mundo não parte de um lugar só e se fosse partir de um único lugar, o mundo estaria partindo do continente africano, que é o lugar mais antigo onde há o entendimento de vida humana. Então, a gente precisa entender de outras cosmovisões num mundo... o mundo oriental ele é tão rico quanto o que acham que é o mundo da iluminação do ocidente, né? A cosmovisão africana é milenar e a gente tem aí milhares de séculos antes de filosofia, antes de qualquer filosofia ou mitologia grega ou romana. Então, que a gente explore e transpasse novas possibilidades de entendimento, de verdades e de cosmovisões do mundo, porque é na partilha que a gente vai para abundância e não é na ditadura, no ditar duramente a rigidez do que é certo e errado. Quando a gente faz isso a gente só trabalha com escassez, apropriação e dominação e nós tivemos aí anos de trevas. Séculos de trevas, até o século passado e de nada, a gente não passou por iluminismo nenhum, nenhum, né? Pelo contrário. E que a gente precisa, sim, agora com novas tecnologias, tornar os nossos instrumentos meios de trazer novas visões e possibilidade das pessoas serem quem elas são com respeito, com entendimento de que podemos e somos plurais e que isso é ótimo! Ser igual é muito chato.
P/1 – Nina, e o que você achou de contar a sua história, hoje? De poder revisitar um pouco dessa trajetória, como foi?
R – Ai, gente, eu sou péssima para essas coisas, eu sou péssima contadora de história, não sou engraçada, não tenho boa memória, tenho problema altíssimo para entender se aquilo... se eu não estou hipervalorizando algo, se realmente aquilo é relevante, mas é importante. A gente precisa contar. Se nós não contarmos as nossas histórias, a gente vai continuar, ou ‘invisíveis’ ou estereotipadas. Então, eu espero que fique um material bacana e atrativo para as pessoas, quero ver como vai ficar e espero que seja pelo menos interessante, (risos) que alguém chegue no final, para saber, (risos) para poder escutar essa resposta (risos).
[Fim da Entrevista]
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