UM DIA APÓS MEU ANIVERSÁRIO, fui até o ponto do ônibus para ir ao trabalho, como sempre faço rotineiramente. Já pararam para pensar que todo ano é quase sempre a mesma coisa: comemoramos o novo ano, pulamos carnaval, completamos anos, pagamos boletos, o agiota, acordamos e levantamos todo santo dia para ir ao trabalho. Alguns acordam todo dia para ir atrás de trabalho. A vida é injusta para todos nós. Refletia sobre tudo isso enquanto a condução não vinha e eu me atrasava mais ainda para chegar na escola. Naquele dia, os alunos prometeram me receber com um caloroso “Parabéns”. Pelo o meu atraso, talvez tivessem eles desistido. Pensava sobre isso também. Mas aí, algo - alguém, na verdade - curioso apareceu, dissipando aquelas incertezas de quem já passara dos quarenta. Era uma mulher de cabelos vermelhos, ralos e com fones de ouvido. Ela certamente ouvia uma canção feliz, porque o corpo dela estava feliz, dançante, malemolente. Ela cantava com o corpo e com a boca. Ainda cheguei a ouvir fragmentos sussurrados da letra da música. Era algo que dizia “que o amor…, que o amor… Permita que o amor invada a sua casa…”. Não lembrei de pronto, porque ela estava no próprio ritmo e não no do cantor da música - como deve acontecer na vida, não é! - cada um no seu ritmo. Somente com o tempo é que a melodia veio, distante, como uma memória que vem lá do fundo de dentro da gente, atravessando um túnel comprido e decorado com muitas imagens estáticas, sonoras, filmicas, dores, decepções, angústias, traumas. Mas a música veio como um olho d’água e tornou-se límpida na superfície da minha lembrança. Era a canção “A sombra da maldade” da famosa banda de pop/reagge brasileiros Cidade Negra. Essa canção faz parte o 3º disco cujo título “Sobre todas as forças” foi lançado em 1994, aos meus 11 anos de idade. Eu já curtia Cidade Negra e suas filosofias musicadas. Hoje, aos 42 anos, no ponto do ônibus, aquela...
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UM DIA APÓS MEU ANIVERSÁRIO, fui até o ponto do ônibus para ir ao trabalho, como sempre faço rotineiramente. Já pararam para pensar que todo ano é quase sempre a mesma coisa: comemoramos o novo ano, pulamos carnaval, completamos anos, pagamos boletos, o agiota, acordamos e levantamos todo santo dia para ir ao trabalho. Alguns acordam todo dia para ir atrás de trabalho. A vida é injusta para todos nós. Refletia sobre tudo isso enquanto a condução não vinha e eu me atrasava mais ainda para chegar na escola. Naquele dia, os alunos prometeram me receber com um caloroso “Parabéns”. Pelo o meu atraso, talvez tivessem eles desistido. Pensava sobre isso também. Mas aí, algo - alguém, na verdade - curioso apareceu, dissipando aquelas incertezas de quem já passara dos quarenta. Era uma mulher de cabelos vermelhos, ralos e com fones de ouvido. Ela certamente ouvia uma canção feliz, porque o corpo dela estava feliz, dançante, malemolente. Ela cantava com o corpo e com a boca. Ainda cheguei a ouvir fragmentos sussurrados da letra da música. Era algo que dizia “que o amor…, que o amor… Permita que o amor invada a sua casa…”. Não lembrei de pronto, porque ela estava no próprio ritmo e não no do cantor da música - como deve acontecer na vida, não é! - cada um no seu ritmo. Somente com o tempo é que a melodia veio, distante, como uma memória que vem lá do fundo de dentro da gente, atravessando um túnel comprido e decorado com muitas imagens estáticas, sonoras, filmicas, dores, decepções, angústias, traumas. Mas a música veio como um olho d’água e tornou-se límpida na superfície da minha lembrança. Era a canção “A sombra da maldade” da famosa banda de pop/reagge brasileiros Cidade Negra. Essa canção faz parte o 3º disco cujo título “Sobre todas as forças” foi lançado em 1994, aos meus 11 anos de idade. Eu já curtia Cidade Negra e suas filosofias musicadas. Hoje, aos 42 anos, no ponto do ônibus, aquela mulher vermelha, me fez reencontrar aquela canção que ouvi quando ainda não havia sangrado tanto na vida. Mas também compreendo com certa serenidade que, na vida, é preciso sangrar e cuidar de estancar o sangue. E, somente com o tempo, é que o categórico verso de Tony Garrido começa a fazer sentido na vida da gente - “Sai, não vaia/Não caia na navalha/Que corta a tua carne e sangra todo”. É assim que deve ser - para cada navalha, o dobro de cuidado. No mais, “Permita que o amor invada a sua casa, coração”.
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