P/1 – Então primeiro, Evandro, eu vou pedir pra você dizer pra gente o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Evandro Barreto dos Santos, eu nasci no interior da Bahia, na Fazenda Rio Preto, município Santo Antônio de Jesus.
P/1 – E data?
R – Data, 11 de dezembro de 1938.
P/1 – Agora o nome completo dos seus pais, se você se lembrar o local de nascimento e a data de nascimento também.
R – Dos pais?
P/1 – Dos seus pais, sua mãe e seu pai, o nome completo.
R – Então, o meu pai é Euclides Henrique Santos, ele nasceu na Fazenda São Roque, município Santo Antônio de Jesus, Bahia, e minha mãe nasceu na Fazenda Riachão, município Juazeiro, Bahia também.
P/1 – Você sabe o ano que eles nasceram?
R – O meu pai eu lembro, da minha mãe não lembro, não, da minha mãe não lembro quando foi o nascimento dela, não.
P/1 – O do teu pai?
R – O do meu pai 5 de agosto, ô meu Deus, 1905.
P/1 – O que os seus pais faziam, Evandro?
R – Lavrador, nascido na roça, agricultor, né?
P/1 – O seu pai e a sua mãe eram agricultores?
R – Ah, sim, minha mãe dona de casa, do lar.
P/1 – Seus pais trabalhavam na roça de que, o que eles plantavam?
R – A produção daquela época era farinha de mandioca, café e fumo, feijão, era isso que produzia naquela, até hoje naquela região, hoje é assim.
P/1 – Ele trabalhou a vida inteira como lavrador?
R – Certo.
P/1 – É?
R – É.
P/1 – Como é que eles eram, o seu pai e a sua mãe? Conta um pouco o jeito deles, como é que era o jeito deles, eles eram bravos?
R – Ah, sim, naquela época era muito autoritário o meu pai, a cultura daquela época, autoritarismo, ele é que mandava, a minha mãe tinha que ficar quieta, fazia tudo com a pressão dele, a ordem era dele e os filhos tinham que obedecer mesmo, qualquer mínimo apanhava de cinta mesmo e tinha que obedecer, era assim.
P/1 – E sua mãe, como é que ela era com vocês?
R – Ah, como mãe, como qualquer uma, apesar que ela morreu com 38 anos, deixou 15 filhos.
P/1 – Morreu jovem.
R – Morreu de anemia, naquele tempo não sabia o que era, mas justamente era leucemia no sangue, hoje câncer de sangue, leucemia.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu tinha 16 anos, que eu tenho 75 agora, ela morreu em 57, eu não me lembro a data, eu tinha 16 anos de idade quando a minha mãe faleceu.
P/1 – Você tem quantos irmãos?
R – Eu tenho 22 irmãos, 15 do primeiro casamento e do segundo casamento mais sete.
P/1 – Seu pai se casou de novo?
R – Casou de novo, meu pai casou de novo e teve mais sete filhos, e a família muito unida, graças a Deus.
P/1 – Como é que era a casa de vocês quando você era pequeno, na sua infância, você se lembra? Descreve um pouco pra gente como que era a casa.
R – Era aquela casa da roça, no caso aquela mesa enorme, nessa época, tinha 19 pessoas em casa, 15 filhos e mais meu pai, minha mãe, minha avó e minha tia, 19 pessoas em casa, aquela mesa grande, enorme, tudo de madeira.
P/1 – Era uma casa grande?
R – A casa grande, aquelas casas de fazenda, tem um pedaço da casa lá ainda, foi modificado tudo, mas a cozinha ainda está, ainda, estive lá esse ano. Então minha cama, por exemplo, era uma cama feita assim e dormia cinco, seis filhos, tudo numa cama só, sabe, dormia todos os seis irmãos assim numa cama só, e as meninas dormiam em outro quarto lá, a casa muito grande, né?
P/1 – Era separado o quarto de menino e menina?
R – Ah, sim, era separado.
P/1 – Todos os irmãos homens dormiam no mesmo quarto?
R – Os irmãos menores todos dormiam num quarto só, numa cama grande os pequenos e aquelas cama de lona, umas cama separada, de solteiro, dormiam os irmãos mais velhos, dois irmãos mais velhos, né?
P/1 – A roça era do seu pai?
R – Sim.
P/1 – Ele era dono da roça?
R – Era, era.
P/1 – Como é que era, quais são as recordações que você tem da roça na época? Como é que era a região, como é que era a natureza, a paisagem?
R – Naquela época, hoje está tudo descoberto, tem capim, mas antigamente tinha tudo cafezal, café, e tinha todo coberto de arvoredo, de árvore grande, muita jaqueira, e o café debaixo das árvores grandes. E tinha aquelas taperas, lugar de fazer plantação de mandioca, fazer plantação de fumo e colhia, e o mais era cafezal mesmo, e tinha, criava suas 30, 40 cabeças de boi também, naquela pastagem assim que criava o gado também pra tirar o leite.
P/1 – Vocês ajudavam o seu pai?
R – Ah, sim, com oito anos tinha que ir pra roça, as meninas ficavam em casa fazendo o serviço doméstico, raspando mandioca pra fazer farinha, cuidando de feijão, tratando das galinhas, muita criação. E os meninos, a partir dos oito anos ia pra escola pra aprender a fazer o nome pra votar. Aprendeu a fazer o nome já pode votar (risos), então vamos pra enxada, aí ia puxar enxada mesmo, ia pra roça trabalhar, então viveu sem cultura, sem um jornal, sem rádio, sem saber o que era futebol. A primeira vez que eu ouvi falar em futebol foi em 58, eu já tinha, 38 pra 58, 20 anos, né, quando tinha 20 anos de idade ouvi falar em futebol, foi quando o Pelé ganhou a Copa do Mundo, foi aquele comentário todo, o povo ia pra cidade, escutava, e aquela foto do Pelé, aquele neguinho com o cabelo assim, saía naqueles jornais lá, que chamava O Paládio (risos).
P/1 – Mas o senhor não morava mais na roça?
R – Na roça ainda, aí que vinha aqueles Paládio, nossa senhora, aí o meu pai lia e mostrava, campeão do mundo, o Brasil foi campeão, e aquele comentário todo, eu tinha 20 anos de idade quando eu ouvi falar em futebol pela primeira vez, em esporte, rádio, eu não sabia, eu tinha acho que 14, 18 anos quando eu vi um rádio ligado, era uma escuridão muito grande, muito grande, sem esclarecimento de nada.
P/1 – Vocês tinham luz elétrica?
R – Não, era um fifózinho, por isso que a gente tudo usa óculos, é tudo ceguinho hoje, é porque é tudo, por exemplo, ficava até tarde da noite manocando fumo, aqueles fumo de cigarro, pra fazer a produção de fumo lá. A economia era fumo naquela época, só casava uma filha, comprava uma sela, um cavalo pra passear, quando vendia uma safra de fumo. Então ficava, colhia o fumo de dia e de noite ia beneficiar o fumo, manocar e ficava até tarde, até 11 horas da noite, sentado tudo naquela roda manocando fumo e com aqueles fifózinho de gás, candeeiro de gás, aqueles frasquinho com pavio de algodão e aquela fumaça e a gente ficava assim. Não tinha luz elétrica, não tinha nada, né?
P/1 – No que vocês ajudavam na roça, quais eram as atividades?
R – Atividade é plantar, fazer roça, cavar cova, plantar mandioca, plantar fumo, colher e aquele serviço de roça mesmo, né, roça, pasto, aquela coisa, carregar água pra casa na cabeça, não tinha água encanada, não tinha nada, né?
P/1 – Onde vocês buscavam a água?
R – Lá no córrego, ficava quase, sei lá, um quilômetro, muito longe de casa, e tinha que subir uma ladeira carregando água, depois alguém, como a gente depois conseguiu um jeguinho com quatro barril, garrote, e carregava água em casa através dos barris, do jegue, era isso.
P/1 – Sobrava tempo pra brincar?
R – Não, não.
P/1 – Você não brincou na infância?
R – Não tive infância, não só eu como a minha geração toda naquela época, nunca tive infância, não tinha diversão nenhuma, não tinha nenhuma diversão, era só trabalhar mesmo. E sábado e domingo, por exemplo, tinha que ficar pondo café no sol, pôr o café pra secar, espalhar o café no terreiro pra secar, recolher o café pra dentro de casa e aquela coisa. Tinha sempre o que fazer, em casa tinha muito trabalho, então a gente nunca soube o que foi diversão nenhuma, né?
P/1 – Então nenhuma lembrança de nenhuma brincadeira com os seus irmãos?
R – Não, não tinha.
P/1 – No pouco tempo que vocês tinham livre...
R – Pequenininho assim, três, quatro anos, a gente inventava, brincava de cavalo, pegava um cabo de vassoura e montava, dizia que era cavalo, pra brincar de cavalo, quando ia crescendo cada um montava num cavalo, ia tocar boi, ia fazer as viagens montado em cavalo, cavalo não, era burro, que era muito longe, muito de ladeira, e naquela época, por causa que o cavalo é um animal mais fraco, era burro mesmo, burro e jegue mesmo, era.
P/1 – Você falou da escola, Evandro, você chegou a ir na escola um tempinho?
R – Ah, sim, ia na escola, e andava muito, tinha um riacho, de manhã cedo, pra chegar sete horas na escola, então saí cedo, descalço, um tamanquinho de madeira na mão pra calçar, entrar na escola calçado, né? Mas tinha que andar descalço pra dentro do rio, atravessar o rio às vezes com água na cintura e quando o rio enchia, aquele riacho enchia, tinha que passar por dentro d’água, aí ficava o dia todo molhado. A minha infância foi toda assim, não só eu como todos os meus irmãos e todo mundo naquela época.
P/1 – Que idade você tinha quando você foi pra escola?
R – Nove, sete anos, dez, 11 anos tinha que sair da escola pra ir pra roça, né?
P/1 – Você começou a ir com sete anos, é isso?
R – É, com sete anos.
P/1 – Onde ficava a escola?
R – Ficava naquela região, chamava Riachão, é uma fazenda que tinha umas senhoras que davam aula lá, umas moças que davam aula, que ia pra escola assim.
P/1 – Como é que era a escola, você lembra?
R – Era um fazenda, aquela mesa grande, e todo mundo sentado ao redor daquelas mesas, né, com aqueles banco, sentados na mesa ali pra fazer a lição, estudar e apanhava muito com palmatória. A gente ficava com medo da professora. Tinha medo da professora, ela falava alto assim, a gente corria tudo e todo mundo fazia a lição certa, não tinha negócio de trazer lição pra fazer em casa, tinha que ser tudo ali, errava, apanhava, era muito...
P/1 – Tem alguma professora que te marcou, Evandro, na escola?
R – Edith Amaral, era essa muito severa, batia, a gente acho que ficou mais tempo, depois abriu uma vizinha do meu pai, vizinha da gente lá, tinha quatro filhos, aí aquela senhora, Dona Alice, pegou ela e a filha dela, Alzira, que depois ficou sendo minha amiga, ela casou, eu batizei um filho dela, era Alzira. Um dia na escola ainda a dona, ela chegou, eu sentava na cabeceira da mesa, né, eu puxei a cadeira e ela quando voltou, que sentou, caiu, né, aí eu tomei uma surra da mãe dela (risos).
P/1 – Apanhou.
R – Apanhei de palmatória mesmo, da mão estourar mesmo, e então é essa lembrança que a gente não esquece, né, eu tinha quanto? Nove anos, dez anos, e eu fiz aquela arte, que ela levantou assim pra ir pegar um papel lá e eu puxei a cadeira, quando ela voltou e sentou, foi, sentou no chão, que a cadeira tava longe, né, (risos). Aí: “O Vandinho, né, o Vandinho fez isso”, “Quem foi?”, “Foi o Vandinho”, era o Evandro, né, o Vandinho, aí a mãe dela veio, me pegou, me deu uma surra que eu cheguei a me urinar na calça, é assim, e chegava em casa, apanhava de novo do meu pai, chegasse em casa apanhava do pai de novo porque fez arte na escola, apanhava de cinta.
P/1 – Você aprontava muito?
R – Não, eu não, eu não era dos pior, não, tinha outros, meu irmão, Gelson, é mais arteiro, né?
P/1 – Você lembra de alguma história da sua infância, Evandro, que seja marcante pra você, uma história que você sempre lembre, que você tenha contado depois pros seus filhos?
R – Eu não lembro, eu quase que não tive infância, não tinha história, né, nada, não lembra, não.
P/1 – Não? Não precisa ser necessariamente de brincadeira, pode ser uma história de trabalho, uma coisa dessa fase da sua vida, nada que seja marcante como essa história da professora, por exemplo?
R – Sim, não lembra, não, eu não sei, será, porque o boi me pegou, me jogou pro outro lado da cerca de arame, assim.
P/1 – Claro, essa é uma história, conta pra gente como é que foi.
R – Aqueles bois de canga, a gente ia trabalhar, levava aqueles boi pra carregar estaca pra fazer cerca e deixava o boi amarrado lá, pastando, mas amarrado com uma corda no chifre, amarrado com aquela corda comprida, ele pastando. Era um boi assim, eu não conhecia bem o boi e cheguei, fui pegar ele e o boi veio lá e me pegou por fora, e aí tinha aquele cinto de sola e ele me pegou por aqui assim no cinto, todo o chifre, ele sacudiu, eu cai pro outro lado da cerca de arame, foi do outro lado da cerca, não me machucou na cerca, mas quase me quebra todo no chão, né, que me levantou alto e jogou.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu tinha uns 13 anos, uns 13 anos já, trabalhava o dia todo na roça, né?
P/1 – Machucou muito?
R – Não, não machucou, não. Outra vez que eu caí de um burro, tinha muita fruta lá, abacate, e vendeu aquela frente, saiu oito burros carregados de abacate, a primeira vez que eu fui na cidade, esse também já tinha 13 anos.
P/1 – Como é que foi? Conta pra gente como é que foi.
R – A cidadezinha é Santo Antônio de Jesus, hoje está uma cidade, tem shopping, tem faculdade, tem tudo, mas naquela época só tinha aquela igreja, aquele barracão, só tinha comércio sábado e quarto e a semana toda parado, só tinha pedra, paralelepípedo no centro e o resto da rua toda era de barro mesmo, de terra. E então levantou colheita de abacate, fez oito burro carregado de abacate: “Papai, posso ir pra rua também, posso ir pra rua?”, aí só tinha dois homens pra ir tocando os burros pra ir descarregar na cidade, ele deixou eu ir um dia. Aí eu fui, quando voltou eu montei no meio das cangalha, dos panos no burro, e veio todo montado no burro, a gente ia de pés, eu tava montado no meio da cangalha e eu montei. Quando chegou, atravessou na estrada, atravessando um rio lá, passou do rio, saiu umas folhas de banana seca que o vento trouxe assim, o burro saiu pro lado, me jogou, jogou e eu caí, muito alto, em cima da terra seca, aí estourou tudo por dentro, né, eu bati em cima, uma altura, alto, pulando, pulando, eu voei da cangalha, caí lá. Estourou tudo por dentro, aí precisou e não tinha médico naquela época, quebrou braço, quebrou o braço, acho que estourou, ficou aquele sangue pisado interno e pra jogar aquele sangue fora, o médico daquela época lá, não tinha médico, não tinha dentista, não tinha nada. E aí o meu pai inventava aquele óleo, ainda lembro, é óleo de rícino, pegava o óleo de rícino, misturava com chá de erva cidreira e fazia, tomava, fazia aquele laxante e a gente ia no banheiro, banheiro nada, no matinho, ia só o sangue, saía o sangue tudo, jogava tudo pra fora. Pra encanar o braço pegava paleta de bambu, de taboca, né, e fazia tipo uma esteira assim, e amassava breu com ovo, pega ovo, misturava com breu, fazia aquela pasta e amarrava assim, amarrava uma esteira e puxava lá um, puxava lá outro, puxava cá, e o pai fazia isso, colocava os ossos no lugar, amarrava, e doeu mais do que quando quebrou (risos). Isso eu não esqueço também, amarrava: “Que idade tem?”, “Treze anos”, “Daqui a 13 dias pode desamarrar”, hoje é gesso, né, naquela época aquela pasta que fazia, ovo com breu, ficava um grude, parecia cimento e grudava ela em cima emplastrado com aquela esteira de taboca. E a gente ficava com aquilo amarrado 13 dias, se tivesse 40 anos era 40 anos, tirava isso aí e sarava mesmo, viu, e pra puxar colocava, um puxava a mão lá, outro puxava cá e ele ia colocando assim: “Está no lugar certo, agora pode amarrar”, aí amarrava, na raça, sem injeção, sem nada. São essas coisas, que a gente passou na vida, né?
P/1 – Uma dor danada.
R – Ih, doía muito.
P/1 – Conta pra mim como é que foi, foi a primeira vez que você foi pra cidade, qual foi sua impressão, você lembra, quando você chegou na cidade? O que você achou, você tinha curiosidade?
R – (risos) Tinha curiosidade, eu nunca vi a cidade, nunca tinha, olha, não tinha carro naquela época, isso foi em 52, 53, só tinha uns dois caminhãozinho lá na rua e o prefeito que tinha um jipe e outro cara rico lá que tinha uma Aero Willys, mas eu nunca tinha visto carro, com 13 anos de idade. Quando eu vi na frente (risos), eu falo pros meus filhos, quando eu entrei na entrada da cidade está aquele caminhão velho lá, aquele negócio, caminhão, e o cara na frente fazendo o carro pegar, pegava na, como é que falava? Na manivela, colocava uma coisa e ficava até o caminhão pegar, pegava, aí fechava o capô e o cara entrava e saía dirigindo, quando eu vi aquele carro, vrum, vrum, e o cara entrou e saiu dirigindo, eu fiquei com medo, saí correndo pra trás, bati a cabeça no poste, eu ia perto dos burros, né? (risos) Quer dizer que os burros não se assustou, ia sempre levar carga, e eu saí correndo e me assustei e fiquei com medo porque o bicho vinha pra me pegar: “Aquele caminhão vai me pegar”, e saí correndo com medo e bati a cabeça num poste, caí lá dentro do barro. O poste era de madeira, que a cidade só tinha força, era aqueles motor de gerador, gasolina, uns motor de gasolina, sei lá o que, dez horas da noite desligava, nem geladeira a cidade não tinha naquela época, em casa não tinha geladeira porque não tinha força. Então essas coisas que eu lembro, assim, né?
P/1 – Treze anos, foi a primeira vez que você foi na cidade, né?
R – Foi.
P/1 – E depois, vocês nunca frequentavam pra festa? Tinha alguma festa na roça, na cidade?
R – Ah, sim, aqueles forró, só na época de São João, na noite de São João o meu pai fazia aquela, a ladainha de São João, e reunia todo mundo, ia dançar forró, dançar na sanfona, que tem aquela sanfona pequenininha assim, que os caras ficavam cantando sanfona e a gente dançando, era isso,
P/1 – Como é que era a festa, como é que arrumava a roça, enfeitava de algum jeito?
R – É, enfeitava nada, era só, fazia aquelas panelona de canjica, porque a gente colhia milho, que aqui fala curau, lá era canjica, que a canjica que é o milho branco, lá a gente falava curau, a canjica, fazia aquelas panelona de canjica e comia canjica de noite dançando, milho assado, chupando laranja.
P/1 – E as músicas, você lembra o que tocava, o seu pai tocava?
R – Geralmente as músicas do Luís Gonzaga, aquelas músicas do Luís Gonzaga que eu lembro, que deixou saudade, na infância a gente dançava.
P/1 – Quem que tocava?
R – Era um senhor que chamava Avelino, morava lá na fazenda, herdeiro da fazenda lá, e com a sanfoninha sempre, precisava combinar com ele antes, muitos dias, senão todo mundo queria, aquelas fazendas, pra ele ir tocar ao vivo assim, e outro batendo pandeiro e pronto, a diversão nossa.
P/1 – Quem que ia nessa festinha junina?
R – Aquelas pessoas da fazenda lá e aquelas, amigos, primos, reunia lá.
P/1 – Tem alguma música mais marcante que o senhor lembre e queira cantar um pedacinho, uma preferida?
R – (risos) Sei lá, eu esqueço, como é que fala, canta música do Luís Gonzaga, é música do Luís Gonzaga, aquelas músicas antigas mesmo e ninguém tinha rádio nem nada pra transmitir, pra seguir, o sanfoneiro só sabia cantar aquelas músicas e pronto.
P/1 – Você dançava, Evandro?
R – Dançava, ficava dançando lá, é bom, ficava zoando pra chegar novo São João de novo, daqui um ano mais outra vez.
P/1 – Era a única festa assim?
R – Era a única festa que tinha assim.
P/1 – Quando que você se apaixonou pela primeira vez, você lembra, Evandro? Em alguma dessas festas você chegou a se apaixonar por alguma menina?
R – Sim, inclusive foi o que fez eu vir pra São Paulo fugido, isso eu já tinha 22 anos, que morava na roça e vendi as rocinha, vendi os animais e vou pra Salvador instalar comércio e deixei um noiva, a primeira namorada.
P/1 – Como é o nome dela?
R – Ivonete, depois de 52 anos, no dia 15 de fevereiro eu vi ela, não conheci, então lá era professora também dos meus irmãos mais novos.
P/1 – Como vocês se conheceram?
R – A gente se esbarrou, assim, a gente encontrava, ia nos domingos, uma vez por mês tinha missa na cidadezinha lá Varzedo, a gente montava nos cavalos, ia à cavalo pra missa, né, e lá a gente começou a conversar e não sei o que. Fiquei namorando ela, mas aquele namorozinho, nem na mão não pegava, que o pai dela não deixava, não tinha beijinho, não tinha abraço, não tinha nada, e daí fazia, assumia o compromisso e ficava noivo, de aliança e tudo, ia trabalhar, aí foi na hora que eu vim pra Salvador pra ganhar dinheiro pra me casar, né? Aí vendi.
P/1 – Você tinha 22 anos?
R – Vinte e dois anos.
P/1 – Como é que foi a sua viagem até Salvador?
R – Ah, era caminhão, quando via o caminhão carregado de laranja, que saía de lá, pegava uma carona, ou foi de ônibus? Já tinha ônibus, não, ia até Nazaré das Farinhas de trem, tinha trem, ia até Nazaré das Farinhas de trem, Nazaré das Farinhas, pegava um navio, chegava em Salvador, foi assim que eu fui, naquela época era isso.
P/1 – De navio?
R – De navio, de Nazaré das Farinhas, hoje é uma ponte com o suficiente aqui, mas naquela época passava em cima de uma ponte, que ainda está lá hoje, que foi Dom Pedro II que fez, ponte de ferro ainda, e madeira.
P/1 – E Salvador, você já conhecia, Evandro, ou foi a primeira vez?
R – Primeira vez.
P/1 – Como é que foi a sua impressão da cidade?
R – Foi muito, parecia um bichinho do mato que chegava, um cachorro quando saí, que pula do caminhão de mudança, fica sem saber, fiquei em Salvador assim, e fiquei lá tocando, numa vila longe, arrumei um pontinho lá, fiquei negociando, e lá vai, depois comprei um terreno na esquina, construí o salão. E com isso fiquei muito tempo sem ver a noiva, não tinha telefone, não tinha, eu fazia cartinhas, escrevia aquelas cartas, ela mandava duas, três cartas, eu não tinha tempo de responder. Passou dois anos sem eu poder voltar porque é muito difícil, e eu com aquela ganância pra construir o prédio e fazer o comércio, e ir tocando e ir, aquela preocupação toda de ganhar dinheiro pra casar e fazer a casa, só fiz o salão e dormia em cima do mezanino assim, no meio do comércio. E naquela, e meu irmão pequeno, de 13, 14 anos, eu já com 22, ele tinha 16 anos, depois eu fiquei lá, fiquei e ela, fiquei muito tempo sem ir lá, e ela arrumou outro, desistiu de mim e mandou a carta terminando, mandando a aliança de volta, que eu não queria casar mesmo, que eu estava enrolando. Aí eu achei aquilo uma decepção tão grande, aí eu fiquei chateado e comecei beber, tomava um litro de conhaque Dreher por dia, a gente nunca foi de beber, né, nossos irmãos nenhum, a gente bebia com 18 anos. Meu irmão mais velho, eu era pequeno, chegou em casa um dia, com 18 anos, dia de natal, bêbado, foi na casa de um cunhado que era noivo da minha irmã mais velha e lá beberam vinho, vinho e não sei, ficou bêbado, meu pai deu uma surra de cinta mesmo, porque chegou em casa bêbado ou fumar meu pai batia mesmo, e então a gente não podia beber, um crime. E eu tomava dois litros de conhaque Dreher, aí descontrolei o comércio, larguei lá o comércio, o prédio próprio, larguei uma caminhonete, já tava pra buscar peixe no Mercado Modelo, de madrugada, ia buscar peixe, era peixaria, empório e vendia comida pro ponto final de ônibus e trabalhava muito.
P/1 – Evandro, deixa eu só entender uma coisa, você saiu da sua casa com 22 anos pra ir pra Salvador pra ganhar a vida e poder se casar, foi isso?
R – Certo.
P/1 – Você saiu com os seus pais sabendo?
R – Meus pais sabendo, minha mãe já tinha falecido, meu pai tava, sabia.
P/1 – Você foi com algum dinheiro, já foi com um plano na cabeça?
R – Foi, foi, minhas economias, uns burros de carga, que fazia carga, minha vida na roça, tinha vendinha na roça, então pegava frete pra levar as cargas de feijão e farinha e fumo pra cidade, era lombo de burro, nem todo mundo tinha roça, muitos deles tinham roça, mas não tinha burro pra conduzir, e a gente tinha aqueles burrinho pra pegar frete, levava as cargas pra receber aquele dinheirinho. Aí vendi essa frota, esses burrinho velho e tinha umas três ou quatro cabeças de boi, vendi o gado e fui pra Salvador com essa sementezinha e fui tocar comércio e, com pouca coisa e lutando muito, passou dois anos, não podia voltar pra ver a noiva, aí a moça terminou o noivado e eu já tava seis anos em Salvador.
P/1 – Que bairro que o senhor foi montar seu comércio?
R – Em Pau da Lima, no Pau da Lima, depois eu vendi o do Pau da Lima, eu fui pra Sete de Abril, ainda tenho até lá hoje, viu, deixei lá pros meus irmãos, meu filho não quis, mas meu irmão ficou.
P/1 – Eles estão tocando, existe ainda o comércio?
R – Existe.
P/1 – Tem um nome?
R – Não, não tem, esse que eu fiquei lá no Pau da Lima, no Sete de Abril com o meu irmão, quando eu saí fugido pra cá, escondido, fiquei nove anos aqui sem dar notícia à família.
P/1 – Ficou com eles lá?
R – Aí meu irmão, desesperado, foi pro interior lá na roça, trouxe o outro irmão mais, e ficou tocando os dois, depois dividi a sociedade, meu outro irmão construiu outro no outro ponto final e tem padaria ate hoje lá.
P/1 – De que era esse comércio que você montou, o que vendia?
R – Era feijão, arroz, um empório naquela época, feijão, arroz, cereais, bebida, leite, pão, pegava da padaria pra vender o pão de manhã cedo, fazia comida pra vender no ponto final de ônibus, vendia comida pros motoristas de ônibus, naquela luta danada, ia buscar peixe, peixaria também, os frigoríficos, a geladeira, pegava peixe e vendia peixe fresco, trabalhava com tudo isso.
P/1 – Vamos retomar, Evandro, você tava falando que montou o seu comércio, que era um empório, vendia diversas coisas, aí trabalhou durante quanto tempo lá em Salvador?
R – Setenta e, 60 e quanto, uns seis anos, uns quatro, uns cinco anos lá em Salvador, uns cinco anos, e não conseguia completar, fazer a casa pra morar, só tinha a casa de comércio, né? Aí foi quando ela terminou o noivado, me desorganizou muito, eu fiquei chateado e fiquei chateado e achei que não podia acontecer isso comigo, e então me descontrolou, eu fugi, larguei tudo lá e saí uma noite, peguei umas roupinha e joguei num saco de cimento, um saco de papelão, e peguei o ônibus, vim pra aqui sem avisar pra ninguém, nem meu irmão que morava comigo não soube. Eu cheguei, por aqui fiquei, fiquei nove anos sem dar notícia.
P/1 – Como é que foi sua viagem de Salvador até aqui?
R – Ah, foi muito horrível, foi muito chato, eu só pensava em suicidar-se, cheguei aqui, vim com 600 reais, 600 cruzeiros, com 600 cruzeiros, cheguei aqui, comprei roupa, José Paulino e ficava ali na rua, Estação da Luz, eu já até morei na rua, onde é a Cracolândia hoje foi minha morada (choro).
P/1 – Quando você chegou você não tinha pra onde ir, Evandro?
R – Não tinha, eu cheguei na Estação da Luz, aquela rua, Santa Ifigênia, né, tinha os mosquitos, que a estação ferroviária antigamente era ali onde é a Cracolândia hoje, né, o terminal rodoviário do país, e eu ficava ali, sem saber, e não sei o que, e ajudava os feirantes na rua, carregava caminhão. E depois vinham os caras que vinham de fora buscar, camelô, mascate, comprava roupa aqui na José Paulino, e tem uma passagem até bonita, viu, aí eu peguei uma mala velha e comprei uma roupa na José Paulino e levava pra vender lá no Paraná. Conheci o Paraná todo, Foz do Iguaçu, tentando, querendo sair do país, trabalhar naqueles navios, pra não voltar, ficar num lugar bem distante pra ninguém me conhecer, mas não conseguia porque não tinha documento, nunca foi assinada a carteira, era meio estranho.
P/1 – Você tinha identidade pelo menos?
R – Tinha identidade, aquela que você viu, né, eu tinha em 79, já pensando o que eu ia fazer.
P/1 – Você tirou na Bahia a sua identidade?
R – Tirei na Bahia. Aí cheguei e ficava ali.
P/1 – Deixa eu entender uma coisa, você comprava roupa na José Paulino e ia vender, né?
R – Ia vender lá.
P/1 – E pro Paraná você ia como?
R – Ia vender de ônibus, ia de ônibus e lá vendia nas feiras, em porta em porta vendendo roupa, inclusive eu encontrei, em Foz de Iguaçu, numa pensão, que vendia muito lá, procurava, eu vendendo, eu dormia numa pensãozinha, que pagava um conto e 500, como se fosse 15 reais hoje, eu pagava um conto e 500 pra dormir numa pensãozinha com as malas, de manhã ia pra rua. E lá encontrei quem? Chitãozinho e Xororó, molecão, aos 16, 15 anos, ele morava na roça e de noite ia tocar naquela cidade, ainda falou: “Olha, na próxima semana tem uma festa de 24 anos de emancipação de Maringá”, eu vendia em Maringá também. E eles de dia, tocava de noite e de manhã saía comigo, foi numas fazendas de arroz, onde vendia, fazia produção de arroz, japonês produzia muito arroz e trabalhava muita gente: “Arroz, tem fazenda e trabalha muito peão e vamos lá ganhar dinheiro, lá vende tudo” e fui e vendia mesmo, vendia com a gente. Naquela época tinha os pratos feito de dois conto e 500, que era, e eu pagava, comia três pratos, eu e ele, eles dois, eu pagava e eles aceitavam porque o dinheiro que eles ganhavam, gostaria até que eles, que ganhava, tinha que levar tudo pra casa. Tinha um deles, eu não sei qual era, mais ajuizado, e fazia questão de não gastar o dinheiro mesmo, aí ia passeando comigo e eu pagava, naquela época tinha, chamava jardineira os ônibus que fazia interior, carregava peão pras fazenda, era jardineira, né, pegava aqueles ônibus e ia passear com eles lá.
P/1 – Eles trabalhavam na roça também, não?
R – Não, eles trabalhavam na roça dos fazendeiros lá com os pais deles, e a semana ele vinha, fim de semana pra tocar naqueles restaurantes, por exemplo, em Maringá, por exemplo, Foz de Iguaçu, naquelas cidades maiorzinha, Londrina. E um dia eles arrumando a mala lá de noite, aí eles vestiam uma camisa assim, uma camisa de tergal assim, vestiam: “Que legal, meu, hoje é dia 10, dia de pagamento, a peãozada está com dinheiro, vai ser casa cheia, aí subir no palco com essa camisa, hein, meu”, aí o outro: “É, legal, vamos pegar, vamos comprar uma camisa dessa”. Aí o outro falou: “Não, que chega em casa com camisa nova e sem, a mãe vai ficar braba e não vai deixar a gente voltar, sair mais, tem que levar o dinheiro todo lá pra minha mamãe”, aquilo eu achei bonito, meu, os molequinho tudo pobre, Chitãozinho e Xororó. Aí eu peguei a camisa, dei pra um, dei pra outro, e só usava calça de tergal naquela época, né, em 70, 71, não tinha calça jeans ainda, né, que naquela época chamava Lee americana, aí: “Ô, traz pra mim”, “Em São Paulo já tem, já tem calça Lee americana lá”, “Então traz aí”. Aí eu ia pra lá na outra semana, na outra semana que eu cheguei lá, festa de inauguração de 24 anos de Maringá, inauguração, aniversário de Maringá, 24 anos da emancipação, aí eu cheguei com, aí eu comprei as duas calças pra levar só exclusivo pra eles. E quando eu cheguei em Maringá eles estavam lá naquele fim de semana tocando, Maringá ia ter festa, né, e naquela época cheguei lá de noite, tava lá andando, muita polícia na rua e eu fui preso, porque era estranho, usava um chapeuzinho preto na cabeça.
P/1 – Mas por que foi preso?
R – Porque eu não tinha documento, gente estranha na cidade: “Cadê os documentos?”, eu não tinha documento, eu estava na praça da rodoviária ali em Maringá e a polícia me flagrou e pra averiguar, fazer o levantamento, saber quem era eu, o que eu estava fazendo, se era traficante, se era bandido. E eu, aquilo, fiquei com medo, nunca fui parado pela polícia dentro da Bahia, nem aqui, nem nada, quando a polícia me pegou assim eu fiquei com um medo danado, né? Na mesma hora, tinha um hotelzinho lá que chegava muita gente de fora, tinha um cara roubando uma moto lá do fundo do hotel: “Polícia, polícia”, som tinha um posto policial na rodoviária e aqueles guardas rodando pela rua, qualquer coisa levava lá pro delegado, o policial, o chefe lá entrevistar o cara. E eu cheguei e ele ia comigo pra me entregar lá pro homem verificar, aí chegou a notícia que tinha um cara roubando a moto, pra ir lá agora, ele sozinho, não sabia, aí foi comigo: “Você não vai correr, hein, você vai ficar aqui”, aí: “Tudo bem, não vou correr, não, minha mercadoria está aqui, eu sou mascate”, camelô, né, mascate naquela época: “Minha mercadoria está aqui no hotel aí”. Ele disse: “Então depois eu vou ver a sua mercadoria, se não tem, o que é que tem na sua mala”, fiscalizar a mala, a polícia, né, aí eu: “Tudo bem”, então nesse mesmo hotel tava roubando a moto no fundo do quintal: “Tu não vai fugir, eu vou pegar aquele que é flagrante”. Aí segurou o cara e não tinha ninguém pra levar o cara, aí ele segurou e mandou eu algemar o cara, aí eu fui lá, algemei o cara, aí ele levou pra delegacia, eu fui também, me levou também, aí enquanto foi fazer, prender o cara, fazer o BO do ladrão, ele deixou o cara sentado, esperando, pra depois. Aí o cara foi com a minha cara e disse assim: “Vamos lá ver a sua mercadoria antes de você passar pelo delegado aí, vamos ver”, aí foi lá no hotel, examinou tudo, viu que não tinha droga, viu que eu era vendedor, aí me liberou, mas fiquei aqui com uma vergonha danada, arrumei a mala e de volta pra São Paulo, não vi mais o Chitãzinho e Xororó, não vi mais.
P/1 – Nem entregou a calça Lee pra eles?
R – Não, não entreguei nada.
P/1 – Qual que era o hotel que você ficava, você lembra do nome, esse hotelzinho?
R – Não, não lembro, era em Maringá, próximo à rodoviária, né? Aí eu vim, aí eu voltei pra São Paulo, na rodoviária, no dia seguinte já tava em São Paulo, não vendi mais nada na rua, aí fiquei, mas não tava nada bom pra mim, eu tava muito desorganizado, muito nervoso, até hoje eu sou ansioso, né? E eu com vergonha, que as minhas irmãs, a família muito unida, sem saber onde eu estava, e o meu pai, e o pessoal todo sem saber onde estava, sem nada aqui, sem ninguém, eu achei aquilo muito, fiquei com um remorso tão grande que aquilo me deixava louco, preferia ficar morrendo na rua, queria morrer. Ainda tinha aquele Rio Paranazão, quem vem de lá pra cá, que atravessa aquele rio, de Foz de Iguaçu pra cá, parece, eu ainda apanhei balada pra me jogar daquele rio e me acabar dentro do rio.
P/1 – Você não pensava em voltar?
R – Não, eu pensava só em morrer mesmo.
P/1 – Não pensava em voltar pra sua cidade?
R – Não pensava, com vergonha, né?
P/1 – Você não avisou ninguém?
R – Não avisei ninguém, não avisei ninguém, fugi mesmo, como se fosse uma pessoa que tivesse matado outra e corrido, que não avisa pra onde vai, assim foi eu, então se eu fosse pro Rio de Janeiro naquela época, tinha muito amigo de infância no Rio de Janeiro, que vinha da Bahia ganhar dinheiro no Rio de Janeiro, e podia alguém me encontrar. Em São Paulo, lá naquela época na Bahia ninguém falava em São Paulo, eu digo: “Eu vou pra São Paulo porque lá não tem amigo de infância, não tem ninguém” e cheguei aqui e fiquei em São Paulo, mas não estava satisfeito.
P/1 – Você tem essa fase que você trabalhou como mascate, ia até vender a mercadoria no Paraná, nessa fase você já tinha onde morar aqui em São Paulo?
R – Não tinha nada, nada, dormia naqueles hotelzinho lá e depois ficava zanzando naquela praça da rodoviária, que hoje é a Cracolândia, quando eu voltei, que desenrolei, amarrei as malas e me escondi lá num hotelzinho que pagava um conto e 500, aqui em São Paulo também, na Rua Ifigênia, Ifigênia, Rua dos Triunfos, não, é Rua Ifigênia, Helvetia, Rua Helvetia, que ficava esquina com a rodoviária, e um hotelzinho que a gente guardava a mercadoria lá e dormia lá. E eu ficava na rua, noite e dia na rua, muitas noites eu ficava, mas sem vontade de comer, sem vontade de, eu só queria morrer mesmo, e dormia na rua, com aquele frio, um dia vi que ia morrer, no dia 28 de junho de 1971, tava um frio, que era geada mesmo, e lá na Bahia é região quente, nunca usava malha nem roupa de frio, não sabia o que era frio e aqui aquele frio, vi que ia morrer. Quando abriu a igreja de manhã eu corri pra igreja, que a família toda é de igreja, tudo, a família da, inclusive, a minha noiva era, até hoje ela é ministra da eucaristia e tudo, a família toda, minhas cunhadas, minhas irmãs, e eu fui criado sempre na missa. E eu entrei na igreja, comecei a rezar e pedir perdão a Deus e chorava e rezava e pedi pra Nossa Senhora fazer minha vida brilhar tanto quanto aquele lustre estava brilhando, que a minha vida brilhasse assim também, aí fiquei na igreja, não sei se eu fui por causa da missa ou pra sair do frio, pra sair do frio, da chuva, do vento. E na igreja, depois que terminou a missa, ficou aquele pessoal jogando os mendigos tudo pra rua e jogou eu também, aí eu procurando jornal na praça, o papel quente, jornal é quente, pra me enrolar com jornal, encontrei um jornal novinho em cima da banca do jardim. Olhei na Praça da Luz, encontrei o jornal, aí eu peguei o jornal, li, um emprego na padaria: “Ô, legal, não quero nem ordenado, lá tem lugar quente, que é o forno, e tem pão velho pra eu comer, eu não quero nem, eu quero esse trabalho, eu ficar”. Aí fui atrás desse endereço e é esse emprego que eu tenho até hoje.
P/1 – Qual que era a padaria?
R – Panificadora Paula Ferreira, onde assinou minha carteira, que você viu aí.
P/1 – Como é que foi quando o senhor chegou?
R – Quando eu cheguei lá, mendigo, essa perna toda aberta de ferida, que era uma varicose, uma ferida, mendigo mesmo, aquilo ia estourar, eu digo: “Agora eu quero um emprego pra registrar a carteira pra me encostar no INSS” e eu cheguei.
P/1 – Aonde era a padaria?
R – A padaria na Avenida Paula Ferreira.
P/1 – Como é que o senhor chegou até lá?
R – Eu cheguei lá, me ensinaram, a polícia me ensinou, pegar na São João o ônibus, onde pegar o Vila Zatt, aí o Vila Zatt passa na Avenida Paula Ferreira, aí eu, deu certo, cheguei lá.
P/1 – Quando o senhor chegou lá como é que foi?
R – Cheguei lá, estava o Seu Manoel Fernando, que está na foto, é falecido hoje, que deixou muita falta, aí eu cheguei, estava os dois portuguesão lá, tinha recém comprado a padaria: “Aqui precisa balconista, precisa faxineiro, precisa padeiro, precisa tudo, você leu o anúncio no jornal”, aí o português: “Fica aí, espera aí que o sócio vem aí”. Isso era dez horas da manhã: “Depois de uma hora o sócio chega aí pra ele combinar com você”, aí eu cheguei e sentei atrás da padaria, fiquei lá esperando, aí deu uma hora, chegou o outro, o Manuel Dias, que está lá até hoje. Aí o Manuel Dias chegou e combinou, me levou lá dentro, falou, disse: “Vem fazer faxina”, fazer limpeza, lavar banheiro e tudo e eu aceitei o emprego, até perguntei pro Manuel, eu digo: “É hoje?”, “Não, amanhã”. Eu queria ficar ali mesmo, e lá fiquei trabalhando e arrumei um cantinho lá no fundo, perto do forno, pra me enrolar de noite, que eu não tinha roupa de frio, não tinha nada. E a mercadoria que eu tinha pra vender tava na mala fechada, não lembrava daquilo, nada, depois eu vendi, depois eu vendi, e eu fiquei na padaria trabalhando de balconista, fazendo faxina, ajudando os padeiros e eu dormia lá mesmo. Levantava três horas da manhã, ia contar os pães pra rua, e os caras me deixou dormir lá mesmo porque de manhã eu começava cedo, trabalhava de cinco à uma da tarde, uma hora eu ficava trabalhando, fazendo o serviço dos outros, e ficava lá, não saía de lá. Eu sei que um ano depois me assinaram com gerente, eu ganhando um salário mínimo, 125 mil réis por mês, eu lembro ainda, está na minha carteira ainda o ordenado, 125 mil réis por mês, o salário mínimo, e eu aceitei e fiquei e fiquei trabalhando lá. E um ano e pouco depois eles precisaram ir pra Portugal, eu sabia fazer tudo lá dentro, aí eles viajou pra Portugal, me deixou na frente, um deles foi pra Portugal e eu fiquei fechando a casa, um abria a casa, uma hora ia embora, e eu fechava a casa com tudo, com a chave do cofre, dinheiro, tudo por minha conta. Os empregados aí, a turma, tinha 16 empregados na época: “Eles não vai me considerar, não vai me respeitar, vocês procura outro que tenha projeção, que tenha moral aí, aí vai ter ordem aí”. Aí esse Fernando que faleceu, Manuel Fernando, chamou: “Eu vou sair, viajar, e o Evandro vai ficar aqui comigo, vai ficar aqui fechando a casa, se vocês não respeitar ele, ele no outro dia fala pro Dias e o Dias manda embora”, “Ah, o Evandro é meu amigo, não, tudo bem, tudo bem”, todo mundo, aceitaram e eu fiquei, graças a Deus. Daquela turma tem empregado lá hoje, até hoje, há 30 e tantos anos, está lá até hoje, né?
P/1 – Quanto tempo o senhor ficou?
R – Eu fiquei lá 38 anos, lá me aposentei.
P/1 – Mas essa fase que o senhor ficou abrindo e fechando?
R – O resto da vida.
P/1 – Até hoje?
R – Hoje eu parei de trabalhar, que eu fui safenado, passei por 27 assaltos, mão na cabeça.
P/1 – Evandro, quanto tempo você ficou morando lá? Quando você saiu de lá e arranjou um cantinho seu?
R – Ah, sim, aí eu fiquei morando lá, depois chegou o rapazinho lá de Minas, de Minas Gerais, pra procurar emprego lá e toda noite queria fazer lanche lá, ele fez amizade e dizia que alugava dois cômodos pra pagar aluguel, aí: “Então vamos, eu vou morar com você”, fui morar, eu e ele morando em dois cômodos.
P/1 – Onde?
R – Na Vila Bonilha, Rua Silvio Bonilha, uma travessa da Paula Ferreira, e eu fiquei morando lá com ele, depois encontrei a Lúcia, me casei.
P/1 – Conta pra mim então como é que você encontrou a sua esposa, como é que vocês se conheceram?
R – Na igreja.
P/1 – Qual igreja você frequentava?
R – Igreja católica, Nossa Senhora de Fátima, então naquela posição de machão da Bahia e tem que casar com uma moça virgem que nunca beijou, então quando arrumava uma namorada, não sei o que: “Vamos num motel”, eu digo: “Essa eu não quero mais” e arrumava outra, ia pro motel, eu digo: “Não vou casar”. Eu tinha 40 anos, solteiro, aí eu encontrei uma moça com 27 anos que nunca tinha namorado ninguém, o pai, a mãe e ela, e eu na igreja encontrei, fiquei conversando: “Fala com o meu pai, fala com o meu pai”, o pai: “É”. Falei com ele pra namorar a filha dele, ele disse: “Você pode namorar, eu quero saber do senhor”, um italianão já antigo: “E falar que o senhor é gente boa, o senhor pode namorar com a minha filha, mas não pode no portão, ficar conversando no portão, não pode entrar no carro”. Isso eu já tinha comprado carro, já tinha, já tinha alguma coisa, vamos, minhas irmãs casou tudo assim, a morte está separando, minhas irmãs se casaram todas assim, meu pai que escolhia namorado pras minhas irmãs, aquela tradição da Bahia e eu achei que aquilo é que tava certo.
P/1 – Qual é o nome dela?
R – Dessa minha mulher?
P/1 – Isso.
R – Antônia Maria Gregori, só que ela tinha 27 anos, nunca namorou por quê? Ela já nasceu com problema, ela já nasceu, segundo a cunhada dela depois falou que, com 15 dias de casado, aí eu marquei o casamento.
P/1 – Quanto tempo vocês namoraram antes?
R – Não namorou, foi coisa de, em janeiro falei com ela, falei com os pais, mas eu não podia namorar, não podia uns agarrozinho, não podia nada, não podia ir dentro do carro, não podia ir em lanchonete, não podia ir em lugar nenhum, nada: “Ah, vamos casar”, “Vamos”, aí até pra comprar os móveis o velho foi com a gente, comprar os móveis quando a gente foi.
P/1 – Você já tinha a sua casa na sua época?
R – Não, fui pagar aluguel, mas já tinha uma economia que já comprei casa, fui alugando, mas comprei longe, ele só queria que a filha dele só ficasse perto dele, era filha única, bom, tinha outra filha, outro filho, mas já estava casado.
P/1 – Como é que foi o casamento de vocês?
R – O casamento foi bem, graças a Deus, a gente marcou o casamento, em maio casamos, só que com 15 dias de casado eu percebi que ela era doente, procurei acabar o casamento, com a família toda, e falaram: “Não, família, ela está tomando anticoncepcional e essa pílula é veneno” e não sei o que. Com isso cheguei na padaria pra fazer acordo pra ir embora, o velho: “Não, vou pra Portugal essa semana, você não pode sair”, mês de junho, isso foi no mês de maio, eu casei em maio, vai fazer 24 anos já, 34 anos.
P/1 – Mas, Evandro, deixa eu entender, você quer que ela tinha algum problema, mas em que sentido, como é que você percebeu isso?
R – Porque ela, cheguei em casa com 15 dias de casado, ela fazia 28 anos, então tinha ganhado muito presente, eu não tinha tempo de comprar um presente bonito pra ela e não tinha, e então comprei um buquê de flor e levei, cheguei lá e dei o buquê de flor pra ela de presente de aniversário e ela botou e eu comecei a apanhar. Quebrou tudo, jogou o buquê de flor em cima de mim, jogou em cima da mesa, era 11 horas da noite, que eu cheguei, só podia sair da padaria quando fechava a padaria, que os padeiros chegava tudo e eu arrumava tudo, cheguei em casa um pouquinho mais tarde com um buquê de flor pra parabenizar o aniversário dela. Ela começou a me quebrar, quebrou tudo e me xingando e me agrediu e já não queria, antes tinha chegado um pessoal da Bahia na minha casa, ela não queria, não aceitou bem, né? Aí eu cheguei reuni a família pra terminar o casamento, o padre anulava pela igreja, o Conselho Regional do Vaticano anulava o casamento.
P/1 – Alegando o que, ia anular alegando o quê?
R – Porque ela não era capaz de ser dona de casa, ele percebeu, o padre é psicólogo, tudo, e me aconselhou: “Ela não tem condições, não sei o que”, aí vamos acabar o casamento, eu cheguei da padaria pra acabar o casamento, pra ir embora, o Fernando, o patrão: “Não, que eu vou viajar em junho e eu não posso, tu tem que ficar aqui, quando eu voltar a gente faz qualquer acordo”. Aí eu fiquei esperando maio e aí engravidou, esse meu filho, o Cris, tem 32 anos, vai fazer 33 anos, né, aí eu tive que assumir, depois veio a minha filha, Rita, que eu não sei se é minha filha ou minha mãe porque ela se preocupa tanto comigo.
P/1 – Como é que foi a notícia do primeiro filho, da gravidez dela?
R – Ah, aceitaram tudo, tudo bem, eu fiquei, pra mim foi muita preocupação, preocupação que agora tem que ficar mesmo, tem que assumir, inclusive, desde que a menina nasceu teve que internar ela e até hoje é minha mulher, mas está em casa separada. Eu uso aliança, sou casado, mas ela não me aceita, inclusive, coitada, ela vive sozinha, eu pago uma pessoa pra cuidar da casa, pra dar um, fazer limpeza na casa, que ela não faz nada, em cima do remédio, ao invés de internar ela no hospital psiquiátrico, ela já foi internada.
P/1 – Mas ela já teve algum diagnóstico?
R – De depressão, trata de depressão, mas é muito agressiva, então não aceita ninguém em casa, inclusive a filha mora sozinha, o filho casou e ela está sozinha, só que comprou uma casa de frente, ela mora na frente e eu cá, e cuido da casa toda, só não posso entrar em casa que ela não se sente bem com a minha presença, e com isso é minha vida.
P/1 – Como é que foi o nascimento do primeiro filho, como foi pra você?
R – Eu não sei se está certo eu falar isso, mas segundo ela, foi muito, pra mim foi muita alegria, foi muita alegria e preocupação também, inclusive eu trabalhando, deixei ela na maternidade, dia de sábado de noite, cheguei em casa domingo, sei lá, ou foi sábado, cheguei em casa de noite e estourou a bolsa e está na hora e vai pra maternidade. Vai pra maternidade e ficou lá de uma hora da manhã até terça-feira, ela não se relaxava pra deixar o menino nascer e brigava com as enfermeiras, não sei o que, uma pessoa doente, né? E depois o médico me ligou: “Evandro”, que fazia o pré-natal pra ela: “Olha, não tem condições, vai ter que fazer cesárea porque ela não colabora pra deixar a criança nascer, eu vou fazer cesárea”, eu digo: “Rasga e tira tudo, mas tira o meu filho”, eu nervoso já e trabalhando, e ela lá na maternidade, aí fez cesárea. Aí quando fechou a casa, dez horas, eu fui, fechei a padaria, o patrão tava em Portugal, não podia deixar a padaria pra acompanhar ela, e eu fui lá ver o filho na maternidade, me senti muito feliz, e ela tava bem, cuidou do filho e depois, entre tapas e beijos, apareceu a menina, três anos depois, aí teve que sair da cama, fiquei morando no fundo da casa, tinha comprado uma casa maior.
P/1 – Ela engravidou novamente, é isso?
R – Depois de três anos.
P/1 – Que é a sua filha Rita?
R – A Rita, aí eu fiquei já morando, depois que ela nasceu eu tive que morar no fundo da casa, que ela me aceitava em casa, e eu trabalhava dia e noite, cuidando dos filhos, até hoje os filhos me dá presente de dia das mães (risos) e eu, graças a Deus, nunca deixei faltar nada pra ela.
P/1 – Como foi ser pai, Evandro, foi bom pra você?
R – Foi muito bom, uma emoção muito grande, viu, a gente sente tão feliz, tão feliz e graças a Deus essa felicidade eu tenho até hoje, que a minha filha tem, no dia 27 de maio ela faz 30 anos e pra mim aquela criancinha, na mesma hora eu acho que ela é minha mãe, que ela se preocupa tanto comigo, quer até que eu volte pra estudar (risos). Então, e meu filho também se preocupa muito, muito responsável, ele fez Publicidade, Deus me ajudou, que eu paguei faculdade pros dois e agora dei uma casa pra um, dei casa pra outro, cada um tem seu teto próprio, sem assumir, eu, graças a Deus, estou cuidando da vida lá. E passava assalto e tudo e Deus me ajudou, que eu resisti a tudo, 27 assaltos, tive que safenar o coração, três safena, mamária, aí já aposentado, parei de trabalhar há uns quatro, cinco anos, parei de trabalhar, mas estou fazendo umas coisinhas.
P/1 – Você disse que você ficou dez anos, depois que você veio pra São Paulo, sem falar com a sua família na Bahia, né?
R – Fiquei.
P/1 – Como é que você retomou o contato com eles? Quando que você decidiu e como é que você fez?
R – Dessa turma de solteiro que a gente tinha aqui, esse que morava comigo e outro que veio de Ibitinga, que era subgerente do Banespa ainda, e eu saía de férias, tinha muito amigos, estou solteirão, era solteiro todos os três, eu solteiro. Sempre pensava na moça que eu deixei lá, ou ia casar com outra e a outra, só queria casar com moça que nunca tinha namorado com ninguém, aquela ignorância, nunca estudou, nunca entendia nada, e aquele machismo de antigamente, uma ignorância pura e falta de compreensão. A gente tinha, eu e o Zé Morgante, ele é falecido também, era solteiro: “Eu vou sair de férias e eu quero conhecer a Bahia, vamos lá, e você precisa conhecer seus pais, precisa dar notícia à sua família, eu vou com você pra dar notícia à sua família”, foi muito emocionante, viu, Teresa. Aí eu tinha um Opala e: “Vamos viajar”, aí o Fernando, muito meu amigo, meu patrão, disse: “Pode, pode viajar, 14 dias porque daqui a 14 dias eu estou viajando pra Portugal, mas 14 dias você pode ir”, aí mandei, peguei o carro e saí, fui de carro, eu e o Zé Morgante, e ele pegou uma fita daquelas do Roberto Carlos, “O portão”, “Eu voltei” (choro). Quando chegou lá pôs aquela fita no toca-fitas do carro, né, eu cheguei na frente da fazenda do velho lá, do meu pai, encontrei logo em Santo Antônio de Jesus, bom, quando cheguei em Vitória da Conquista, daqui pra lá parei em Vitória da Conquista, aí já ligaram pra lá, tenho irmão em Vitória da Conquista. Já ligaram: “Olha, o Vandinho apareceu, está aqui em casa e está saindo daqui pra aí, está com um Opala azul, ele e outro loirinho” e foi tudo me esperar na estrada e foram tudo na fazenda, quando eu chego lá, o meu pai me abraçando, aquela mesma música do Roberto Carlos, aqui voltei, meu pai de cabelo branco, o retrato na parede, tudo aquilo que está na música aconteceu. Foi muita emoção, o meu pai já, que eu não conhecia, mais sete irmãos, mais quatro, cinco irmão, né, e depois nasceu mais dois, eu não conhecia, não conhecia a segunda, meu pai era separado, viúvo, aí casou com outra, eu sabia que ele casou. Depois de Salvador fui a São Paulo, eu não voltei mais lá no interior, não voltei no interior mais pra não ver a noiva e pra não, sei lá, eu não conhecia os irmãzinhos, encontrei todo mundo lá, foi muito emocionante, foi muito bonito, e ficou com amizade com a família. Aí cheguei aqui, voltei: “Bom, ela já casou, vou me casar”, tinha 40 anos, 41 anos quando eu me casei, encontrei essa mulher que é mãe dos meus filhos e casei com ela.
P/1 – Depois você passou a voltar pra Bahia com frequência?
R – Voltei, isso aí foi em 79, eu não pude mais voltar porque as crianças pequena, isso, em 92 eu voltei, em 79 eu fui dessa vez, depois em 92 eu fui, já tinha o meu filho, minha filha, eu fui lá, fui sozinho visitar um irmão que estava doente. E daí meus filhos foi crescendo, aí começou a ir todos, dois, três anos a gente vai, às vezes duas vezes por ano a gente vai de carro, vai de avião, vai com os filhos, meu filho tem muita amizade com os meus sobrinhos, com a minha família toda, e eles gostam muito de ir lá, e eles vêm aqui, a família vem aqui.
P/1 – Evandro, você me contou que recentemente você reencontrou a moça que foi sua noiva, conta pra gente como é que foi esse reencontro.
R – Esse tio meu que eu te mostrei na foto, que fez cem anos.
P/1 – Fala o nome dele.
R – Valdivino Henrique, titio Valdivino, falava que tinha 90 anos, que tinha 80, os sobrinhos, meus irmãos de 80 e tantos anos, eu já tenho, sou dos mais novos e já tenho 75, e meus irmãos e meus primos, os sobrinhos dele, né, tudo de 90, cem anos, já outros já morreram com quase cem anos: “E você, meu tio, tem só 85 anos”. E então foi essa notícia lá e essa noiva dele, e ele tinha uma namorada, não sei se interessa isso, ele tinha uma namorada quando ele morava cá em Santo Antônio de Jesus, que é 450 quilômetros pra Coaraci, naquela época, em 1920, em 1930, ninguém saía pra ganhar dinheiro, lá muito pobre e a família muito grande e vivia com muito pouca coisa, e saía pra ganhar dinheiro aonde? Na zona do cacau, na época do cacau brotando na Bahia, era a economia do Brasil todo, era o cacau naquela época, quem fazia a economia era a Bahia, o sul da Bahia, o cacau, né, quem ia pra ilhéu, Itabuna, Coaraci, ia ganhar muito dinheiro com a zona do cacau. Meus tios mais velhos foram pra lá, solteiro, casou, e lá, e ganhando muito dinheiro, aqueles coronel do cacau, e vai esse tio também, e deixou namorada cá em Santo Antônio de Jesus, aí ela casou, ele não voltou mais cá, ele casou com outra lá, ela casou com outro. Eu sei que a última vez ela tem 98 anos e ele cem, e ela nunca esqueceu, ficou viúva há 20, 30 anos, viúva, e ele há 40 anos viúvo, não casou mais com ninguém, só falando um do outro, que tinha essa primeira namorada, a Estelita, e ela falando do Valdivino. Aí as filhas, netos e bisnetos achou aquilo bonito e os meus filhos e os outros todos pra se conhecer, meu filho conhece todo mundo lá, que ele vai de férias e vai de carro, chega lá, deixa o avião, pega carro e vai passear por lá tudo, visitar todo mundo, e os meu sobrinhos moram em Feira de Santana, em Vitória da Conquista, em Salvador, em Santo Antônio de Jesus, em Itabuna, Coaraci. Eles estão tudo bem, advogado, tem supermercado, outros dentista, e são muita amizade e reuniram pela internet pra ir comemorar os cem anos do Valdivino, sim, ela falou que ele tinha cem anos: “Vai fazer cem anos no dia 15 de fevereiro, eu tenho a data de aniversário dele, nunca esqueci, que meu primeiro namorado, eu nunca esqueci a data de aniversário dele”. E essa notícia acharam bonito, ela com 98 anos com essa memória toda, e foi ver os documentos dele e ele tinha isso mesmo, lá nessa cidade Coaraci, tem uns sobrinhos lá, que é advogado, então achou aquilo bonito e reuniu pra os primos se conhecer todos, que tem primo lá que mora na Bahia, em Salvador, não conhece o que mora em Salvador, que tem muita preocupação, e outros que moram em Feira de Santana não conhece o que mora em Santo Antônio de Jesus, é aquela correria. Então pra reunir tudo fizeram aquela festa no dia 15 de fevereiro último, pra reunir tudo lá em Coaraci, e então a turma dessa namorada dele pegou essa, e convidou, ela agüentou 450 quilômetros de estrada pra ir visitar esse, pra rever, mais de 70 anos sem ver esse namorado, ele com cem anos e ela com 98 anos. Então reuniu todo mundo lá e a filha foi também, a filha dela que era minha noiva, era a filha dela que era minha noiva, foi também, levando a mãe dela pra ir ver o primeiro namorado da mãe e conhecer ele, que não conhecia também. E chegou lá, ela cumprimentando todo mundo: “Quem é aquela, aquela velhinha lá no canto?”, aquela moça eu não sabia quem era: “Tudo bem, tudo bem”, “Você não conhece eu?”, “Não”, “A Ivonete”, a minha ex-noiva, depois de 58 anos eu vejo (risos). E ele, o titio Valdivino depois de 70 anos vê a mãe dela e eu vi a, depois de 50 anos que eu saí de lá.
P/1 – Como é que foi?
R – Ah, foi muito bom, ela já tinha casado, já é vovó, já tem neto, essa namorada minha já casou e casou até com um amigo de infância meu também, e eu, foi muito bom, viu, foi, eu me emocionava muito, chorava muito de alegria e foi muito, uma festa muito bonita. Eu aqueles primos, que mais de 50 anos, mais de 60 anos, primos que eu não via há mais de 60 anos, que mora em Coaraci, fui pra Salvador, de Salvador vim pra aqui, então esses primos, ficou muito rico lá em Coaraci e já tudo com 80, 90 anos. E eu chegava lá: “Esse é Augustinho, filho do titio Leonel, essa é Amelinha, filha do titio Leonel”, e olha, tudo velhinho, mas foi muito bonito, uma festa muito bonita, essa coisa que foi recente, né, e emoção na minha infância não tinha nenhuma, não tem nenhuma, nunca senti uma alegria dessa.
P/1 – Você e a Ivonete conversaram?
R – A gente conversou pouco porque tinha muita gente, é interrompido por um, eu só: “Você está bem? Está bem o Luís?”, que é o marido dela: “Ah, tá tudo bem”, não sei o que, já tem neto, já tem as filhas, as filhas, casou todas as três, ela falando, né, eu digo: “O meu casou agora e eu não velho, não, que eu não tenho neto nenhum” (risos). Dali 40 anos também, meu filho casou agora também, e minha filha solteira, e então, mas foi muito bom.
P/1 – E o encontro do seu tio com a primeira namorada, como é que foi?
R – Olha, a televisão local filmando, fizeram eles beijar na boca, eles encontraram, olha, foi aquilo, foi a coisa mais bonita que eu vi, você viu na foto, ele baixinho, com o cabelo todo branco, ela baixinha também, com 98 anos, aquela coisa, mas foi a coisa mais bonita que eu já vi. Depois ele: “Vocês são tudo”, aquele espírito dos coronéis do cacau, porque ele é presidente, com cem anos ainda dirige ainda a Associação Espírita da cidade dele, ele é presidente, ele conduz tudo lá, e muito anda, rápido, toda lucidez, ele ainda brincando: “Vocês são tudo sacana, eu fiquei muito feliz com essa festa”. Fizeram um cartaz muito bonito, a família comovida, a família do Euclides, que é o meu pai, né, e aquela festa bonita lá, aí ele chegou e disse assim: “Eu fiquei muito sacana com vocês”, “Por que, tio?”, “Porque vocês me deixaram muita alegria, mas vocês sabem que eu só gosto de beijar mulher de 25 anos pra baixo, depois disso é coroa pra mim, vocês fazer eu beijar essa menina aqui, essa menina” (risos). Foi um tom de brincadeira, todo mundo, foi muita risada, e ver a lucidez dele, ele começou a receber visita, só sobrinho tinha mais de cem, que irmão dele tinha uns dez, irmão dele, e cada um tem mais filho e tinha muitos sobrinhos, e todo mundo se reuniu nessa cidadezinha.
P/1 – Foi uma festança.
R – Foi aquela festança e ele começou a receber gente, com cem anos de idade, começou a receber gente oito horas da manhã, meia noite ele tava em pé, acordado, atendendo e brincando com todo mundo, coisa que eu não aguento isso mais.
P/1 – Muita energia, né?
R – Muita energia com aquela idade.
P/1 – Evandro, você citou algumas vezes agora durante o depoimento que você sobreviveu a 27 assaltos, eu queria que você explicasse do que você está falando, você foi assaltado muitas vezes na vida, isso foi em São Paulo?
R – Foi aqui em São Paulo, tocando a padaria mesmo, na padaria mesmo, três vezes foi na rua, saindo da igreja, os caras me encostou o revólver, tomou o meu carro, me levou junto e depois me jogaram lá naquelas quebrada, aquelas favelas lá do Morro Grande. Outra vez me roubaram o carro em casa, isso foi tudo na padaria, praticamente na padaria mesmo, foi várias vezes que eu passei por assalto e ver pessoa, o padeiro morrer na minha frente, quer dizer, eu fico.
P/1 – Durante o assalto?
R – Durante o assalto, o meu horário é à noite e essa vez que morreu o padeiro foi cinco horas da manhã, no abrir da casa, o bandido chegou pra assaltar a casa e o padeiro não obedeceu, não pôs a mão da cabeça, não baixou, ele foi embora, ele deu um tiro na cabeça, morreu assim na frente. Aí me ligaram, que eu moro perto, eu fui lá, eu sofri tudo aquilo, e aquilo fez eu sofrer três safenas e uma mamária, três safenas e a mamária, sem ser enfartado, não foi enfarto, foi de stress, né?
P/1 – Quando você fez a operação, a ponte de safena?
R – Em 2006, em 2006 foi três safenas e a mamária.
P/1 – Evandro, eu vou encaminhar pro final do depoimento, mas antes eu queria te perguntar se tem alguma coisa que a gente não tenha te perguntado e que você gostaria de contar, qualquer coisa.
R – Ah, perguntou tudo, está tudo bem.
P/1 – Uma história que seja forte pra você, que você gostaria de deixar registrado, de compartilhar.
R – Não lembro de nenhuma, não.
P/1 – Não te ocorre nada agora?
R – É, não ocorre nada, não.
P/1 – Atualmente quais são suas atividades, o que você faz atualmente?
R – Nada, eu fico fazendo as coisas pros filhos, não faço mais nada praticamente, eu tenho umas casinha alugada, que eu fico dando manutenção, mas uma vez ou outra, praticamente sobra muito tempo pra mim. Eu fico na igreja, que eu fico muito tempo na igreja e faço parte de alguma coisa social, levo gente pro hospital, aquelas pessoas que não podem dirigir, não tem um carro, não tem dinheiro pra pegar condução, pessoa deficiente, eu levo pro hospital. Ontem mesmo eu fui levar um vizinho meu que está fazendo hemodiálise, né, tem que fazer essas coisas assim, fazer isso, não tenho atividade nenhuma mais.
P/1 – Você faz parte de algumas atividades da igreja? Você falou que passa bastante tempo na igreja.
R – Não, eu faço parte dos grupos de oração, das missas e é só, mas não tem, não sou, não conduzo pastoral nenhuma.
P/1 – E pra se divertir?
R – Não tenho diversão nenhuma.
P/1 – Não gosta de TV, futebol?
R – Não, não tenho diversão nenhuma, não, eu não, a única coisa que eu nunca tive na infância e agora depois de velho é que não tem mesmo.
P/1 – Agora você está aposentado, podia aproveitar.
R – É, eu não tenho, só caminhar, quando eu não tenho o que fazer, pra aproveitar o tempo, todos os médicos que a gente vai manda fazer caminhada e eu caminho muito, que eu moro, por exemplo, três quilômetros da Lapa, eu vou pra Lapa pra casa da minha filha, eu vou e volto de pés. Tem dificuldade de estacionar carro e eu preciso caminhar mesmo, aí eu ando três, quatro, cinco, dez quilômetros por dia, pego a Edgar Facó e viajo, eu fico andando muito tempo, caminhando assim pro bem da saúde, né?
P/1 – Anda bem.
R – Ah, sim.
P/1 – Eu vou fazer as duas perguntas finais então pra gente fechar, a primeira é: quais são seus sonhos hoje?
R – (pausa) É ser mais útil à sociedade.
P/1 – De que maneira?
R – Ajudando os mais necessitados, quando eu vejo alguém passar o que eu já passei, né, tenho vontade de fazer isso.
P/1 – Tem alguma atividade específica que você gostaria de fazer de auxílio pra outras pessoas?
R – Sim, por exemplo, como eu mexia no computador, depois que eu fiquei doente esqueci tudo, travou tudo, é entrar na internet, navegar e um bocado de coisa que eu não sei fazer mais, tenho computador em casa e tudo, eu não mexo em mais nada, tem que voltar minha memória, acabar a ansiedade que eu tenho, eu estou muito ansioso, faço o possível de ficar mais calmo, é isso que eu gostaria.
P/1 – Por que você se sente ansioso?
R – Eu não sei, eu não sei porque, eu não lembro, eu não sei porque, não.
P/1 – O senhor mencionou essa doença que o senhor teve, o que foi que o senhor teve de saúde?
R – É porque eu tinha safenado e acostumado, nunca tive infância, nunca tive esporte, nunca tive diversão nenhuma, era só trabalhar, aí parei de trabalhar, fiquei muito ansioso, o médico mandando mudar de atividade, eu ficava aposentado e trabalhando. Aí eu desisti de trabalhar e fiquei faltando aqui, aí achei que precisava trabalhar, aí comprei uma casa lá na frente, passei até no nome do meu filho e fui reformar a casa, paguei pro pedreiro pra me dar o serviço na mão, na chave, e eu mesmo pegava saco de cimento, pegava marreta, subia escada com lata de concreto, pra quem foi safenado, não pode pegar peso, né? E então foi o motivo de eu ficar, aí perco o sangue no líquido da espinha ou também tem outro fator que pode ser o causo, que eu tinha tomado a vacina do velhinho, a vacina da gripe, pode ser isso também, que eu safenado e pode ser que seja isso também. Eu sei que causou essa doença, que o médico lá acusou que era o Guillain-Barré, que entra a sujeira do sangue no líquido da espinha e a pessoa fica travado pro resto da vida e perde toda a coordenação motora.
P/1 – Quanto tempo o senhor ficou assim?
R – Eu fiquei no hospital por 38 dias, depois voltei pra casa, aí começou movimentar os braços e as pernas, eu comecei falar, voltei pra casa, fiquei na cadeira de rodas mais uns dois meses, sem coordenação nenhuma nas pernas, né, morta mesmo, aí comecei a tomar uns tombos, cair dentro de casa, e reagiram e eu estou caminhando, graças a Deus, fiquei bom.
P/1 – Quanto tempo faz isso?
R – Isso foi em 2006, 2007, foi 2007, tem uns seis ou sete anos, cinco, seis anos.
P/1 – Aí você se recuperou bem.
R – Recuperei, fisicamente ficou bom.
P/1 – Só uma pergunta que agora eu me lembrei, que eu queria ter feito lá atrás e eu esqueci. Você freqüentou muito pouco tempo de escola, você falou pra gente, uns dois anos mais ou menos, sete aos nove.
R – De sete aos 11 anos, que às vezes faltava na escola, ficava um ano sem ir, depois voltei, fiquei mais um ano.
P/1 – Mas aprendeu a ler e escrever?
R – Sei escrever mal (risos).
P/1 – O básico.
R – Só o básico, só fazer nome mesmo, praticamente o semianalfabeto, mas tenho prazer que o meu filho é professor de faculdade, dá aula em duas faculdades, fez Publicidade e a minha filha é geógrafa e está sempre estudando mais, quer dizer, não puxaram a mim, não, viu (risos)?
P/1 – Você deu oportunidade pra eles, né?
R – Ah, sim, Deus sim, Deus, não foi eu, né, foi Deus.
P/1 – Evandro, agora a nossa última pergunta. Como é que foi contar a sua história aqui?
R – Foi bom, eu não sei se eu falei demais, por causa da minha ansiedade eu falo às vezes coisas que não precisa falar, né?
P/1 – Não, foi ótimo, pra gente foi ótimo, eu queria saber como é que foi pra você?
R – Pra mim foi bem, pra mim foi bem, vocês me trataram com muita educação e eu senti bem na frente de vocês aí.
P/1 – Como é que você se sentiu contando a sua história?
R – Emocionado, que faz a gente lembrar, faz voltar ao passado, às vezes tem coisas que a gente quer esquecer e nessa hora lembra de tudo, de coisas que a gente, passagens que a gente se emociona e acha bom.
P/1 – Tem mais alguma coisa que você queira dizer?
R – Não.
P/1 – Está bom, então a gente vai encerrar. Muito obrigada, Evandro.
FINAL DA ENTREVISTA
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