Projeto: Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista de Lilia Cristiane Barbosa de Melo
Entrevista por Renata Pante e Ligia Scalise
Belém, 14/06/2025
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Ane Alves
P/1 - Lilia, eu queria começar agradecendo por você nos aceitar aqui na sua casa e queria pedir que você falasse o seu nome completo, o local e a sua data de nascimento?
R – Meu nome é Lilia Cristiane Barbosa de Melo, eu nasci em Belém do Pará, 18/10/1977.
P/1 - Te contaram como foi esse nascimento?
R - Não.
P/1 - Você sabe se foi em um hospital?
R – Foi. Foi no hospital, mas a mamãe nunca me contou assim, exatamente como foi. O que ela diz é que nós, porque eu sou… Na minha família é só eu e a minha irmã, por parte de mãe. Ela diz que nós éramos bebês muito grandes, e que deu muito trabalho pra sair, entendeu? E que me parece que eu fui a pessoa que deu um pouquinho mais de trabalho.
P/1 - Você tem uma irmã, então?
R - Eu tenho uma irmã por parte de mãe.
P/1 - Mais velha ou mais nova?
R - Mais velha.
P/1 - E por que seus pais escolheram o nome Lilia?
R – “Lilia esses teus olhinhos verdinhos falam-me de carinho.” Mamãe adorava essa música. Agora, olha os olhos verdes da menina?
P/1 - E qual o nome da sua mãe?
R - Raimunda.
P/1 - E o que você lembra dela, assim, descreve ela pra mim? O que ela fazia?
R - A minha mãe, ela é minha base pra tudo na vida, no mundo. Meu grande exemplo de absolutamente tudo. Ela é muito presente na minha vida até hoje. Eu sempre sou aquela filhinha… Sou filhinha de mamãe, então eu corro pros braços da minha mãe em qualquer coisa. até uma chuva forte, um trovão apagou a luz, eu estou ligando pra minha mãe. Minha mãe sabe toda a minha vida. E assim, devido ela ter tido uma vida muito dura, muito árdua, ela acaba sendo um exemplo pra mim em termos de perseverança e de força também. Minha mãe era empregada doméstica, mas a maneira com que ela chega em Belém, foi...
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Entrevista de Lilia Cristiane Barbosa de Melo
Entrevista por Renata Pante e Ligia Scalise
Belém, 14/06/2025
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Ane Alves
P/1 - Lilia, eu queria começar agradecendo por você nos aceitar aqui na sua casa e queria pedir que você falasse o seu nome completo, o local e a sua data de nascimento?
R – Meu nome é Lilia Cristiane Barbosa de Melo, eu nasci em Belém do Pará, 18/10/1977.
P/1 - Te contaram como foi esse nascimento?
R - Não.
P/1 - Você sabe se foi em um hospital?
R – Foi. Foi no hospital, mas a mamãe nunca me contou assim, exatamente como foi. O que ela diz é que nós, porque eu sou… Na minha família é só eu e a minha irmã, por parte de mãe. Ela diz que nós éramos bebês muito grandes, e que deu muito trabalho pra sair, entendeu? E que me parece que eu fui a pessoa que deu um pouquinho mais de trabalho.
P/1 - Você tem uma irmã, então?
R - Eu tenho uma irmã por parte de mãe.
P/1 - Mais velha ou mais nova?
R - Mais velha.
P/1 - E por que seus pais escolheram o nome Lilia?
R – “Lilia esses teus olhinhos verdinhos falam-me de carinho.” Mamãe adorava essa música. Agora, olha os olhos verdes da menina?
P/1 - E qual o nome da sua mãe?
R - Raimunda.
P/1 - E o que você lembra dela, assim, descreve ela pra mim? O que ela fazia?
R - A minha mãe, ela é minha base pra tudo na vida, no mundo. Meu grande exemplo de absolutamente tudo. Ela é muito presente na minha vida até hoje. Eu sempre sou aquela filhinha… Sou filhinha de mamãe, então eu corro pros braços da minha mãe em qualquer coisa. até uma chuva forte, um trovão apagou a luz, eu estou ligando pra minha mãe. Minha mãe sabe toda a minha vida. E assim, devido ela ter tido uma vida muito dura, muito árdua, ela acaba sendo um exemplo pra mim em termos de perseverança e de força também. Minha mãe era empregada doméstica, mas a maneira com que ela chega em Belém, foi muito traumática, porque ela aos sete anos de idade, a minha avó se suicida, e ela morre nos braços da minha mãe. E a minha mãe vem embora pra Belém com a irmã de cinco anos de idade. Então, duas crianças, uma de sete e uma de cinco. E aí, a mamãe é adotada por uma família que promete que vai dar estudo, quando na verdade, ela chega, ela vai ser babá, ela vai ser empregada doméstica. Ela vai servir em todos os aspectos aquela família. Inclusive, o dono da casa. Então, ela sofre isso. Ela sofre isso mais ou menos até os 15 anos de idade, que é quando ela conhece o meu pai. Então, ela é uma mulher preta, uma mulher que não teve muitas oportunidades. Uma mulher que conheceu um homem que é meu pai e que, através dessa relação, viu uma possibilidade de sair daquele sofrimento. Mas ela sempre me disse uma coisa que eu guardo muito assim, como aprendizado. “Estuda, o estudo, ele vai te tirar da situação que tu estás.” E ela fez isso. Ela estudou, ela se formou. Ela é professora de língua portuguesa também. Assim como eu sou professora. Nós nos formamos na mesma universidade, no mesmo curso. Então… Enfim, ela é a pessoa que eu sigo.
P/1 - Você falou que ela veio pra Belém, de onde era a família?
R - De Bragança. De Bragança.
P/1 - E quando que ela decidiu estudar?
R - Ela ia pra escola quando ela tava na casa de família. Mas aquele estudo que não dá tempo de estudar, porque quando tu volta tu tem que lavar louça, tu tem que cuidar de criança, tu tem que ser aquilo outro. Então, quando ela decide levar a sério os estudos mesmo, é quando ela tá com o meu pai. E aí, ela tem mais um tempo a mais, e ela faz esse investimento. Ela investiu tudo. Tudo que ela pôde e tudo que ela tinha, pra ela poder se formar. E se formou. Eu lembro que a minha mãe, ela era merendeira. Não sei se vocês sabem o que é merendeira? Porque existe a cozinheira, que faz a comida, e existe a merendeira, que serve a comida, a merenda. Ela era merendeira na escola pública na qual eu estudava. E tem uma lembrança, uma lembrança que eu tenho disso é que quando tinha merenda, tipo, arroz com galinha, que é uma delícia aqui em Belém. Quem já estudou em escola pública e teve a oportunidade de comer arroz com galinha de escola pública, é uma delícia. Ela pegava e colocava a maior parte do frango embaixo da minha combuca e jogava o arroz em cima e dizia, “vai te embora daqui!” Pra que ninguém percebesse que ela estava fazendo diferença na hora de dar. Mas ela dava mais frango pra mim. Então, assim, é uma memória que eu tenho da minha mãe servindo. E também teve uma época em que ela limpava a sala, ela varria as salas. Essa é uma parte que eu tinha vergonha, porque os meninos ficavam satirizando, enfim, tirando brincadeiras de mau gosto porque a minha mãe varria a sala. E o que aconteceu, a minha mãe fez o concurso, foi aprovada no concurso e retornou pra mesma escola como sendo professora concursada. E isso é um… Mais uma vez é um marco que me deixa o orgulho do quanto ela lutou e do quanto ela investiu em educação.
P/1 - Agora passando um pouquinho pro seu pai, também queria que você me contasse um pouco sobre ele, sobre a história dele, como ele era?
R - Se a minha mãe ela é um exemplo de, “estuda.” E é um exemplo de estudo escolarizado. O meu pai é um exemplo de estudo do conhecimento de mundo. Ele é do mundo, o papai. O papai é quase semi-analfabeto, assim, tipo, ele foi até o quarto ano do ensino fundamental, mas ele não rediz muito texto escrito. Em compensação, é um contador de história. Ele é aquele cara que vira pra mim e diz assim: minha filha, o mundo é dos espertos. Abre os teus olhos, tu precisa observar as coisas. Então, o meu pai, ele chamava muita atenção pra desigualdade social. Por exemplo, ele era garçom, ele era flanelinha. Quando ele estava na rua, como flanelinha… Flanelinha são aqueles reparadores de carro, que ficão com um pano pra limpar vidraça e tal, não sei o quê. Quando ele tava na rua, ele me mostrava as coisas, assim, ao vivo. “Olha, está vendo isso que está acontecendo? É porque é isso, isso e isso.” E uma fala que o meu pai tinha, que ficou assim pra mim, foi, por exemplo, no Ano Novo ou no Natal, a gente saía pra almoçar. Isso era raro, era uma vez ao ano. A gente saía pra almoçar. Aí, a gente sentava à mesa. Quando a gente estava na mesa, ele me chamava e dizia assim: venha cá, você está vendo aquele cara ali? Aí apontava pro garçom. Porque ele era garçom. Aí, dizia assim, mesmo, “o que que ele está fazendo?” Aí eu disse: ele está sendo garçom. “E o que o garçom faz?” “Ele está servindo as outras pessoas.” “Ok! E hoje é que dia?” “Hoje é Natal.” Aí, ele disse: pois é! Ele está aqui servindo as pessoas, num dia de Natal, mas ele tem família. E a família dele está em algum lugar, sem ele. Então, a gente precisa valorizar esses momentos que a gente vive em família, porque sempre alguém vai servir alguém. E esse alguém que serve vai está longe da família. Então, isso eram mensagens muito fortes pra mim, que ficavam na minha cabeça. E talvez isso tenha se fortalecido mais quando eu entrei na adolescência, sobre essa questão da desigualdade social que me incomodava muito e me incomoda até hoje.
P/1 - Você disse que seu pai é um contador de histórias, né? Você tem alguma que você lembra?
R - Olha, a maioria das histórias do meu pai é história pornográfica. Papai é terrível! Ele gosta de contar histórias assim, ele mistura histórias verdadeiras com piadas. E ele é aquele cara que as pessoas chegam na casa dele pra rir. Ele é um grande, sei lá, um grande brincalhão, entendeu? Então, assim, tem várias histórias que eu lembro, que eu não poderia contar, porque são histórias bem complicadas, assim, de contar.
P/1 - Você disse que você tem uma irmã por parte de mãe, né?
R - Isso.
P/1 - Você tem outros irmãos?
R - O papai é tão brincalhão, que ele resolveu casar com uma mulher que tem quase a minha idade. E o meu irmão, ele é mais novo que o meu filho. E eu tenho uma irmã mais nova que a minha outra irmã, e um irmãozinho que é mais novo que o meu filho. Então, assim, essas são as brincadeiras do papai. Por exemplo, ele era muito conhecido por ser mulherengo. Ele é conhecido por ser mulherengo. E ele não para. E assim, ele é um velhinho já, entende? Mas ele acha que ele é muito jovem. E ele se comporta como jovem. Ele faz movimentos no corpo como jovem. Ele dança como ninguém. Eu aprendi a dançar com o meu pai. Sabe como eu aprendi a dançar com ele? Ele colocava meus pés em cima dos pés dele, fazia eu abraçar ele, ele com uma barriga gigante, fazia eu abraçá-lo. E aí, ele ia dançando e o meu pé ia junto com o dele. Se hoje eu sou uma pessoa que dança muito, eu considero que eu danço muito. É porque meu pai me ensinou a dançar. Uma coisa que eu lembro também na casa da minha família, da minha primeira família, é que tinha sempre muita música, e muita dança. A mamãe encerando a casa dançando, o papai passando pra cozinha dançando. Eles viviam dançando, eu não sei porque, eles viviam dançando. E aí, a gente acabou aprendendo e gostando de dançar e de ouvir música. A gente gosta muito de música e muito de dançar.
P/1 - Tem alguma música que você lembra, que você ouvia mais, que você gostava também?
R – “Todo sábado é assim, eu me lembro de...” Nossa… Porque a mamãe colocava José Augusto, pra encerar a casa. E ela fazia isso dia de sábado. Todo sábado eu ouvia essa música. “Todo sábado é assim, eu me lembro de nós dois… É o dia mais difícil de…” Eu dizia, gente do céu! E o que é interessante é a relação que eu faço dessa música com poeira. Porque assim, ela estava arrumando e eu já sabia que eu ia me ferrar. Entendeu? Então, todo sábado é assim, e todo sábado eu me ferrava, porque ela ia mexer embaixo da geladeira, ela ia mexer nos lugares. E a gente… Sempre filho se ferra em uma hora dessas, porque acha um caneco que fui eu que coloquei, que há muito tempo está lá e tal. Mas tem muitas músicas, muitas músicas mesmo, que ainda lembro dessa época.
P/1 - E como seus pais se conheceram? Você disse que a sua mãe tinha quinze anos, né?
R - Olha só, se o papai, hoje, velho, é esse garotão. Tu imagina ele garotão? Ele era o rei da Cremação. Eu nasci na Cremação. Eles tinham um negócio chamado tchaco, que eu não sei se vocês sabem o que é? Tchaco são duas madeiras, dois bastões de madeira, que eles são atrelados numa corrente. Dois bastões assim e eles estão entrelados, e tu vai fazendo assim, os movimentos assim. Entendeu? Aí tu joga, tu faz… É uma arma, o tchaco. Ele era o rei do tchaco. Ele gostava de se exibir, fazendo aquilo. Então, quando tinha roda de galo, briga de galo, essas coisas, que antigamente tinha muito isso na periferia. Não sei se vocês sabem o que é a briga de galo? É pegar dois galos e colocar para brigar. É dia de domingo, assim. Geralmente dia de domingo de manhã. É briga de galo. Os homens se juntam todos, fica uma roda. Eles apostam no melhor galo. E aí, o papai ia pra lá pra jogar e tal. Então, ele viu a mamãe, e disse que a mamãe ia ser dele. Só que a mamãe sempre foi muito brava. E imagina a vida da mamãe naquela época para se abrir para qualquer relacionamento que fosse. Ela era sofrida. Então, ele passou muito tempo para conquistar a mamãe. E ele disse assim mesmo. “Eu vou casar com essa mulher. Porque não é possível! Ela não me dá bola.” E era a única mulher que não dava bola pra ele. E aí, acabou que eles se juntaram. Porque a gente não falava na época casar, porque casamento para a gente era entrar na igreja, era não sei o que, trocar aliança. E eles não fizeram isso. Mas eles se juntaram. Só que ele sempre muito safado. Ele sempre dando em cima das vizinhas, sabe? Sempre vindo fofoca. Isso daí foi uma coisa bem ruim. Eu costumo hoje… Hoje eu consigo entender que a minha mãe saiu de uma situação opressora e sofrida, e entrou em outra. Que é mais por conta desse patriarcado, desse machismo, dessa naturalização das relações abusivas, etc. Entendeu? Agora assim, ele sempre muito bem querido, por todo mundo, bem quisto, por todo mundo, entendeu?
P/1 - Eles continuam casados?
R - Não, eles se separaram quando eu tinha 14, 15 anos. Eu já estou com quase 50. Mas ele diz que a mamãe é o grande amor da vida dele, mesmo estando casado. Olha que loucura. Que a mamãe é isso, que a mamãe é aquilo, que blá, blá, blá, blá, blá. E eu sou amiga da minha madrasta. E aí, ela fala: olha, Lilia, o que es está falando, não sei o quê, não sei o que mais. Mas ele, enfim… Ele diz que é brincadeira.
P/1 - E você já falou do sábado, que era o dia da faxina, né? Mas na sua infância, que outros costumes tinham na sua família? De comida…
R - O papai, dia de domingo, ele ia à feira. A mamãe não fazia nada, de manhã. Eu lembro da mamãe numa cadeira de praia, dessas cadeiras que a gente fica sentado assim. Lendo jornal e ela gostava de ler todos os jornais. A Província do Pará, o Diário do Pará e o Liberal. Ela tinha que ler para comparar. Mamãe tinha hábito de comparar as notícias. Enquanto isso, ele levava a gente pra feira. O papai sempre teve o hábito de beber. Beber uma cerveja, duas cervejas, enfim. E aí ele levava a gente, deixava a gente no lanche, que era um lanche fantástico, que eu nunca comi na minha vida mais. Que era simplesmente um pastel ou uma coxinha, que ela colocava um vinagrete em cima e uma maionese temperada. Nossa, eu comia, estava no céu. Então, ele entretia a gente com esse lanche, enquanto ele tomava uma cerveja. Ele tomava uma cerveja e depois ele ia perguntar o que a gente queria comer naquele domingo. E aí, ele preparava. Ele chegava, ele temperava, ele preparava a comida, ele fazia tudo. Eu lembro disso, dos domingos. A mamãe, ela limpava depois, ela lavava a louça e tal, não sei o quê. Mas dia de domingo, era o dia dela ler os jornais e a gente ir pra feira com o papai para comprar a comida, pra poder fazer a comida. E a gente ajudava em algumas coisas que davam pra ajudar, assim, cortar um tempero, alguma coisa assim, a gente ajudava.
P/1 - E que comida que ele fazia?
R - Tudo. Ele gostava de fazer muito assado de brasa, assim, tipo, a mamãe gosta até hoje de porco assado na brasa, no forno, essas coisas assim. Ele gostava de agradar. Papai gostava de agradar mamãe dia de domingo, porque ele tinha falhado com ela durante a semana. Entendeu? E hoje eu entendo isso. Mas na época eu só achava que ele era um grande homem, fantástico, maravilhoso, que cozinhava pra sua esposa num domingo. Que nada! Ele estava querendo era amenizar o dano. Olha a cara dela, entendeu? E ela era sempre... Ela sempre teve a fama de ser braba. E hoje eu sei que aquela fama de ser braba tinha razões por trás. Ela realmente estava muito machucada com alguma coisa, entende?
P/1 - E você conheceu seus avós?
R - Só a minha avó por parte de pai. A minha avó, por parte de mãe, eu tenho uma relação próxima com ela, espiritual. As pessoas dizem que eu sou parecida com ela. Eu amo muito a minha avó por parte de mãe. E assim, não me pergunte como é que se ama alguém que nunca se viu pessoalmente, mas eu amo muito a avó Gervásia. E perdoou. Porque, enfim, foi muito drástico o que aconteceu. Ela parou de comer e parou de beber água, porque o marido saiu de casa. Então, foi um suicídio, assim, de... Eu me recuso a... Fez greve de fome. E teve muita gente que ficou julgando, assim, tipo, não pensou nas duas filhas e tal. Deveria ter pensado nas filhas, não poderia ter feito isso. Mas eu perdoo profundamente, sabe? E assim, em momentos que eu estou muito mal, assim, que eu estou passando por dificuldade, eu sempre chamo ela, eu converso com ela, entendeu? Ela é uma pessoa muito presente mesmo na minha vida. Bom, ela era esquizofrênica, tinha o quadro de esquizofrenia. Na época, era muito difícil você diagnosticar, mas tinha o quadro de esquizofrenia. Eu conheci a minha avó por parte de pai, mas a partir de relações muito negativas. Porque ela tinha feito muita coisa ruim pra muita gente e muita gente não gostava dela. Ela também era esquizofrênica, mas ela era aquela esquizofrênica de se agoniar com a roupa, tirar a roupa e sair correndo no meio da rua. E a gente ter que sair correndo atrás pra pegá-la. Então, ela realmente era uma pessoa muito, muito, muito doente, mentalmente, com muito transtorno mental. E ela morreu assim, com esses transtornos todos. Mas eu não conheci o pai do meu pai. Conheci o marido da vovó, o seu Manuel. Eu conheci o seu Manuel, que era dono de um restaurante, que o papai levava, às vezes, a gente para almoçar lá, e que a gente almoçava e ele servia… Eu não sei se era uma encrenca minha e da minha irmã, se a gente encrencava com ele, mas ele era uma pessoa tão seca, tão fria com a gente, que a gente se olhava assim, e dizia assim: pode prestar atenção que pra gente ele coloca menos comida. Então, a gente almoçava… E a gente dizia pro papai, e o papai dizia que a gente estava encrencando. Mas assim… Ou seja, por parte do papai, a família que a gente conhece assim, é bem afastada. Por parte da mamãe, é só a gente. E a tia Tânia, aquela irmã que veio, ela tá morando em Roraima. E a minha irmã mora em Roraima também. Então, é essa bolinha. A gente costuma dizer que a nossa família é uma bolinha. Porque são pouquíssimas pessoas, mas são pessoas que são muito ligadas umas com as outras. Se eu fizer alguma coisa pra ti, eu vou ficar muito mal. Muito mal mesmo. E a gente vai tentar juntas fazer algo junto. Todo mundo se une para resolver o problema de um, de uma pessoa dentro da nossa família. Sempre. Sempre, sempre, sempre. Sem medidas. Sem medidas. Tu pode estar no Japão, acontecer alguma coisa contigo, a gente pega o avião e vai embora. Mas a gente vai ajudar. Entende?
P/1 - Tem alguma história que você se lembre que ilustra essa ajuda que vocês tanto fazem?
R – Agora. A mamãe está indo embora para Roraima, para ajudar a minha irmã, que está passando por problemas. Enfim, a cabeça dela não está legal, ela está meio depressiva. E o meu filho está indo com ela, vai trancar a faculdade. E tá bom! E eu só não vou trancar, pra ir também… E eu tô quase. Isso foi decidido anteontem. Então, eu tô quase trancando também pra ir. Eu só não tranquei ainda porque eu estou no meio de um trabalho realmente que é contínuo, mas vira e mexe, eu estou pensando, “eu vou logo comprar minha passagem, vou logo comprar minha passagem.” Entendeu? Porque a gente pensa assim, tem que estar junto. Tá, tudo bem, nós não somos a solução. Mas se a gente estiver junto, melhora. A gente consegue buscar uma solução. O nosso afago, o nosso acolhimento, nosso abraço. A gente chora muito assim, tipo, a gente se abraça e chora. Às vezes, a gente chega, e já está chorando.
P/1 – Então, me conta um pouco da sua irmã, como é que era a sua relação, como é que é hoje a sua relação com a sua irmã?
R - Mana, a minha relação com a minha irmã é muito engraçada, porque a mamãe trabalhava o dia todo, então ela tinha que deixar a gente presa dentro de casa. Imagina duas seres humanos presas dentro de casa. Inventava mil e uma coisas. Então, assim, eu lembro de tantas brincadeiras minha com a minha irmã. Tantas, tantas. A gente sempre foi muito unida, a gente sempre foi muito próxima uma da outra, cúmplice uma da outra. A gente tomava banho junto. E na hora de tomar banho, a gente fazia uma bola desse tamanho de sabão. Sabe quando vai fazendo sabão, sabão, sabão, sabão? E fazia, “olha o quê eu tenho e não te dou.” E a gente ficava disputando quem conseguia jogar na cara. E sabão, sabão dói, arde. Jogar na cara uma da outra. E eu lembro… Aí, que absurdo! Que o banheiro ele sempre ficava assim, tipo, a gente lavava o banheiro duas vezes na semana, aí quando não lavava, deixava bem no cantinho uns sujinhos assim, sabe? As poeiras tudinhas no cantinho. A gente caía por cima daquela nojeira, entendeu? A gente escorregava assim, lambuzava. E ria, ria, ria tanto que não conseguia se levantar da lama, entende? Então, assim, são lembranças dessas que a gente tem. Eu tenho uma lembrança. Pra tu ver o quanto a gente era junto assim, a família, que teve uma vez que choveu muito e alagou a casa. Mas alagou de uma forma absurda, de não dar tempo de sustentar os móveis. Porque a gente levantava os móveis. E assim, a gente via o sofá assim, fazendo esse movimento. E o único lugar que não pegou foi a cama. Aí, o papai pegou, jogou a gente para cima da cama, e começou a fazer polichinelo, debaixo de uma biqueira que estava vazando. Eu tenho essa imagem. E a gente começou a fazer polichinelo, e a gente se divertiu pra caramba, e a casa alagando. E aí, hoje eu penso assim, ele tentando amenizar um coisa ruim que estava acontecendo na casa. Tipo, pra mim, na minha cabeça, ele pensou assim: não tem mais o que fazer, os móveis estão todos boaiando, eu vou pelo menos distrair essas molecas aqui. Entendeu? E conseguiu! Porque é uma lembrança, que embora seja triste, é uma lembrança boa que eu tenho, da gente fazendo atividade fisíca na chuva. E o papai ali embaixo da biqueira. Entende?
P/1 - Era comum a casa alagar?
R - Era. Porque a casa primeira da nossa família, primeira, ela era baixa e a rua era alta. Então, sempre alagava. Mas geralmente alagava a sala, não chegava para o compartimento de trás. E aí, limpava, tudinho. Era toda uma trabalheira, porque só lama e tal, não sei o quê. Até que, com o tempo, a chuva começou a ficar muito forte, e aí, começou a passar para o coisa de trás. E aí, a gente começou a levantar os móveis com tijolo. Colocava o armário em cima de tijolo e tal. Dando um jeito. Paliativo, mas dando um jeito. Mas nesse dia foi muito forte, e saiu alagando mesmo. Casas que nunca tinham sido alagadas, nesse dia alagaram. E aí, ele ficou lá fazendo gracinha. Fazendo atividade física na chuva.
P/1 - E você podia descrever pra mim como era essa casa? Ela era mais baixa que a rua?
R – É. Ela era um pouco mais baixa que a rua, a sala era de taco. Sabe como é taco, que é madeira? E era taco de duas cores, uma amarela e outra preta. Uma amarela e outra preta. A gente brincava muito com isso, com aquelas fichinhas de sair coisando, sabe? No taco. A mamãe, ela preservava esse taco. Já era pra ter tirado há muito tempo, mas era uma questão de honra, porque... Eu acho, eu estou falando por mim, uma interpretação minha, não é que a minha mãe me disse isso. Mas eu acho assim, que ela trabalhou em casas de pessoas tão, sabe? Tão abastadas, tão ricas, tão cheias de coisas. E era tudo taco, porque antigamente os casarões eram de taco. Então, ela queria ter sala de taco. E era só sala, porque não dava pra ter toda casa. Taco era caro. E ela encerava aquilo como ninguém. Tu conseguia te espelhar, assim, naquele taco. Era um motivo de orgulho mesmo, aquele taco. Bom, o segundo compartimento, ele era feito pelo guarda-roupa, não tinha parede. Então, o guarda-roupa, ele era virado de costa para a sala, para onde era a parte de taco, e de frente para o quarto, onde era o quarto. Aí, lá tinha uma cama de casal e um beliche. Eu dormia... Eu e a minha irmã, a gente brigava muito para quem dormia em cima. Eu dormia, geralmente eu dormia em cima, e ela dormia embaixo. Mas, às vezes, a gente revezava, por conta disso. E tinha muito poster do Menudo, na parte de trás do guarda-roupa, grande, tinha poster do Menudo. Eu gostava do Riquinho. Gostava muito do Riquinho. “Eu te vi caminhando sem destino por aí, te vi chorar…” Ai, meu Deus! Eu morria! Essas coisas, mana.
P/1 - E tinha quintal? Tinha uma área externa?
R - Olha, eu não vou te chamar que tinha um quintal. Tinha um omontuado de tábua, que ia dar numa torneirinha, e tinha um banheiro. O banheiro não era dentro da casa, o banheiro era lá atrás. E a gente tomava banho nessa torneirinha, dentro de uma bacia, mesmo grande. Mesmo grande. Ixi, quantas vezes a gente ficou ali de molho, com as pernas pra fora. Porque não dá, imagina, assim, tipo, uma criança de seis, sete anos, oito anos, não dá mais dentro de uma bacia. Aquela bacia de alumínio, entendeu? E aí, a gente tomava banho, e se chovesse, por exemplo, respingava na... Porque era terra, aí respingava e ficava aquela... Meio lama, sabe? Era uma coisa nojenta. Mas a gente gostava pra caramba de ficar ali dentro. Entendeu? E tinha um banheiro lá atrás, que eu rezava muito, quando me dava vontade de ir ao banheiro, eu rezava demais. Nossa, era uma questão... Me dava muito medo, atravessar aquele caminho de tábua até o banheiro, era uma iniciação. Era como se eu estivesse entrando numa floresta cheia de perigos e se eu voltasse viva eu era uma grande mulher. Porque a imaginação da gente faz muita coisa. E assim, eu por ter esse transtorno, eu tenho uma coisa de imaginar coisas absurdas, nunca é coisa boa. Nunca é um grande coelhinho lindo, rosa, que vem e me... Nada! É um bicho, um monstro, que vai te levar pra sempre e tal.
P/1 - E você tinha vizinhos? Você se relacionava com esses vizinhos? Brincava?
R - Eu te disse que a gente ficava muito presa. A mamãe não gostava que a gente ficasse na rua. Isso dificultava um pouco. Na infância, isso dificultou um pouco as relações de amizade. Já na adolescência, a gente já foi tendo mais amigos, amigas e tal. Nós fazíamos turmas. Nós tínhamos turmas, assim, sabe? Era uma turma... A gente inventou uma turma que a gente falava “Turma das Valérias.” Nem me pede pra explicar direito isso, que eu não vou conseguir te explicar. O fato é que são pessoas que estão ligadas afetivamente por várias questões e acabam dentro do limite das coisas que têm, conseguem se divertir. A gente não era uma família que tinha muitos bens e nem tinha muitas condições materiais. Mas a gente tinha muita criatividade. Então, desde a infância, a gente era muito criativo. Mas... Vou te contar aqui. A mamãe vai me matar, mas tudo bem. A minha relação com a vizinhança era mais assim, devido ao papai fazer as coisas que fazia, eles brigavam. E eles brigavam muito sério. E nessa hora que eles brigavam sério, era quando a gente saía correndo pros vizinhos pra pedir socorro. Então, a gente tinha relação, assim, tipo a dona Concita, que é uma vizinha que mora na frente da casa da mamãe até hoje, ela era como se fosse uma mãe pra mim, porque toda vez que tinha alguma coisa eu saía correndo, desesperada, dizendo: “me ajuda! Eles estão brigando, eles estão brigando.” E tal. Aí, era aquela… Ela ia lá, tentava apaziguar e tal, não sei o quê. Aí, acaba que tu crias uma relação afetiva, porque tu relaciona aquela pessoa com proteção. Sabe? Aquela pessoa é aquela pessoa que vai intervir, que vai fazer alguma coisa e tal. E foram várias vezes. Foram várias vezes que aconteceram e por várias vezes eu fui me aproximando de pessoas por conta dessa questão.
P/1 - E pensando na sua infância ainda. Você tinha algum brinquedo favorito? Alguma brincadeira? Animalzinho de estimação, coisas assim?
R - Se eu tenho, eu não lembro. Eu gostava muito de ir pra rua brincar, pira, pira se esconde, pira... Como era? Garrafão. Era tanto da pira. Pira alta. Tu sabes como… Pira alta era a gente, tipo, cinco crianças brincando de pira alta. A gente contava, um, dois, três, já! Aí, tinha que sair correndo e ficar no lugar mais alto que conseguia. E a pessoa que ficasse num lugar muito baixo ou não conseguisse nenhum lugar, aí seria a mãe. Aí, ia ter que correr atrás. Enfim. Piracola, ia sair correndo, correndo, correndo, se eu te pegasse, eu... “colado!” Aí, tu ficava colado lá, congelado. Entendeu? Então, eu gostava muito… Eu era muito da rua. Eu era um moleque, que eu gostava muito de ficar na rua. Eu acho que talvez porque a mamãe prendia, que me dava essa vontade de estar na rua. E eu e a minha irmã, a gente descobriu uma maneira de sair. Só que a mamãe não sabe. Ou não sabia. Agora... E aí, a gente saía, a gente sabia o horário que ela ia voltar, aí perto do horário da volta. A gente voltava, saia correndo, entrava na casa. Fingia que estava tudo certo, tomava banho, ia assistir pica-pau. Tá aí uma coisa que eu gostava de fazer na minha infância. Eu pegava uma xícara, aí eu colocava leite em pó, açúcar, farinha, mexia e comia. É comer mesmo. Só que com o tempo isso virou uma bola, que fica colada no céu da boca, por causa do leite. E a minha diversão, era ficar roçando a língua, até descolar, ou derreter, assistindo o Pica-Pau. Isso é o cheiro da minha infância, assim, sabe? O gosto da minha infância. É essa mistura de leite, farinha e açúcar, assistindo o Pica-Pau. Eu adorava.
P/1 - Passando aí pra escola, quando você começou a estudar, como é que foi? Onde era a escola?
R - Bom, eu comecei a estudar em escola pública. Desde o pré, do prézinho, eu era de escola pública. A mamãe já trabalhava em escola pública, ela achava interessante eu ficar perto dela, então eu estudava sempre na escola que ela trabalhava. Mas teve um período que as coisas começam a melhorar. E aí, eu fui estudar… Foi um ano que eu estudei no Clube do Riquinho, que era uma escola perto de casa, mas ela era particular, e ela era só pra playboys da periferia. E aí, eu ia. Mas o que eu lembro, uma lembrança que vem na minha cabeça assim, quando eu falo de escola, é porque assim, a mamãe, ela sempre tentou dar o melhor pra gente, sempre. Só que nem sempre ela conseguia. E como eu te disse, a gente tinha poucos bens materiais e condições, mas nós éramos muito criativos. O que a mamãe fazia? Ela construía aquilo que a gente não tinha. Só que isso me dava vergonha. Porque eu via os meus colegas com as coisas originais e a minha com a imitação. Exemplo: calça jeans. A mamãe ia no comércio, comprava o jeans, fazia a calça, e eu ia pra escola. Não tinha o acabamento, sabe? Ficava uma coisa, parece um saco. E aí, eu lembro da minha vontade de ter uma calça jeans de verdade. Eu queria ter uma calça jeans de verdade. Outra coisa que eu também passava por vexame, assim, que eu achava na minha cabeça, na época. Livro didático. Os livros didáticos, eles eram comprados, quando a gente estava em escola privada. E a mamãe não tinha condições de comprar porque era muito caro. Então, ela entrava em contato com uma mãe de uma série anterior, ela pegava esses livros didáticos, apagava tudinho as respostas do caderno de exercício, e entregava pra mim. Cara, fica lá, dá pra ver que era usado. Entende? Até pela lateral, ele não é branquinho. Sabe o que eu fazia? Eu pegava o corretivo e pintava a lateral do livro pra ficar branquinho, pra poder parecer que ele era novo. Mas não era novo e dava pra ver, porque ficava soltando uma poeira o tempo todo. Era um saco aquilo. Então, eu tenho essas memórias. Eu tenho uma memória forte. A gente morava na cremação e na cremação não tinha, não era asfaltado. Agora já é, mas não era. Então, a piçarra, ela grudava por entre aqueles buracos do solado do tênis. Quando seca, ela sai inteirinha. Então, acontecia que embaixo da minha carteira, sempre ficava um monte de bloquinhos de lama. E os outros ficavam tudo limpinho. Então, aquilo denunciava de que eu era de um lugar sem asfalto. E eu ficava arredando assim, pra fingir que não era. Mas não tinha como. E aí, o que eu fazia? Eu ia lá no banheiro, pegava papel higiênico, me descia e passava na lateral do tênis pra tirar aquela marca de lama. Isso era uma coisa que me dava muita vergonha. E hoje é algo que me dá muito orgulho, de saber que eu era aquela menina do tênis de lama que passou por várias situações e que conseguiu. Conseguiu formar, conseguiu estudar, conseguiu isso. Mesmo com a lama. Porque, gente, quem tem que ter vergonha não sou eu da lama no meu tênis, são outras pessoas que são responsáveis por isso, que não tem um saneamento básico, uma infraestrutura. Enfim. E a gente esquece disso, a gente se culpa por algo que não é nossa responsabilidade. E essa é uma memória que eu tenho da minha parte de estudar, assim.
P/1 - Mas as outras crianças, elas tiravam um sarro de você? Ou era um sentimento que você que tinha?
R - Sabe aquela coisa de mil olhos olhando pra ti. Quando na verdade ninguém tá te vendo? Aquele sentimento de culpa. Eu me sentia culpada por eu estar com o tênis cheio de lama, como se fosse vergonhoso, como se eu estivesse fazendo algo de errado, entendeu? Tá todo mundo sem lama debaixo da carteira, só eu que estou, então eu estou fazendo alguma coisa de errado. Tá errado isso aqui! Entendeste? Mas talvez algumas pessoas olhassem sim, e estranhassem. Dissessem, só lama. Mas não fosse assim, nessa proporção. Talvez a coisa fosse na minha cabeça mesmo.
P/1 - E como é que era esse bairro que você cresceu, Cremação? Você falou da Estrada de terra, que mais que tinha?
R – Dizem, até hoje, que cremação, se não tiver animado com festa, tá animado com briga ou morte. Então, é um bairro muito populoso, é um bairro onde as pessoas bebem muito. E é um bairro onde todo mundo se mistura com a vida do outro, se mete na vida do outro. Se mete mesmo, sabe? Então, assim, lá onde eu morava, que é a Vila São Jorge, a Passagem São Jorge, ali é como se fosse uma grande família. Todo mundo cresceu junto, todo mundo vivia junto, todo mundo sabia da vida um do outro, sabe? Às vezes, ajudava, mas às vezes prejudicava com fofocas e etc. Mas era um lugar assim, que... Parece um condomínio fechado. Parecia um condomínio fechado, mas não é um condomínio fechado, é só mesmo uma vila onde tem muita... Gente, tinha mulher que pegava corda e esticava de um lado pro outro e pendurava calcinha pra secar. E a gente passando, entendeu? Tipo, dá pra entender o nível? O cortiço, vocês lembram? O cortiço. É mais ou menos isso, assim. Não tinha muito pudor. Brigas, as brigas com muito palavrão, de longe, sabe? “É, não sei o quê, vai pra casa não e sei o que mais.” Entendeu? “Fulano!” Seis horas da manhã. Então, assim, é uma coisa absurda o pulsar e o barulho da cremação. É assim... O tempo todo, entende? Fazendo barulho. E aí, é alguém tocando música, alguém que está ouvindo música, mas é alguém que está brigando, o marido que está falando alto, é a criança que está chorando, o cachorro que está latindo. Mana, é isso a Cremação. É essa vila que eu cresci.
P/1 - E você ficou até que idade lá?
R - Aí, eu não sou muito boa com negócio de idade. Mas eu só sei te dizer que eu saí de lá e vim pra cá. Então, eu só morei em dois lugares, lá e aqui. Se eu morei em outros lugares, foi muito espaçadamente, assim, tipo três meses em um lugar, mas porque eu era obrigada a sair daqui. Aí, eu passava três meses em algum lugar, dois meses em algum lugar. Às vezes, até um mês em algum lugar. Mas não porque eu fui morar. Eu fui convidada a sair daqui e aí eu fui.
P/1 - Voltando um pouco pra escola, você tinha algum professor, alguma disciplina, matéria, que você gostava mais, alguém que te marcou, um colega de escola?
R - Luiz Otávio. Professor Luiz Otávio, ele era professor de língua portuguesa. E um cara que sabia muito gramática normativa. Olha, eu não gosto de gramática normativa, sou professora de língua portuguesa, eu não dou gramática normativa. A minha gramática é dentro do texto, é contextualizada. Inclusive, a minha formação é o ensino da língua através dos textos. Então, tudo é texto pra mim. Mas eu tinha uma profunda admiração por esse professor, que falava meio assim, ele puxava as palavras. E ele falava muito de sintaxe. Ele não falava sintaxe, ele falava sintaxxxxe, entendeste? Então, esse era o professor. Não sei porque eu gostava do Luiz Otávio, mas eu acho que… A letra dele era perfeita, era tudo certinho no quadro, entendeste? Ele sabia explicar, ele explicava com calma. Então, eu gostava muito desse professor, muito mesmo. E a outra professora que eu gostava, já no ensino médio, era a professora Irene, de História, História do Brasil. Não me pergunta nada sobre História do Brasil. Mas eu adorava a professora Irene, era um amor de pessoa, aquela afetividade, sabe? Aquele carinho, aquele cuidado, aquele toque. Ela tocava na gente. Era uma coisa meio que assustadora, porque os professores naquela época, eles não tocavam na gente. E ela tocava assim, e era sempre para dar um agrado, um carinho. Então, eu gostava muito da professora Irene. E na faculdade, já puxando, era a professora Socorro Simões, professora de literatura portuguesa. Podia ser o sol que fosse, ela ia com echarpe, da aula de literatura portuguesa. E ela pegava a ponta da echarpe dela e puxava assim, e jogava, e falava sobre Camões, Luís de Camões, os Lusíadas, e recitava. Eu dizia, gente… Olha só, sabe quando foi que eu conheci a professora Socorro Simões? Indo pra faculdade, das aulas da mamãe. Não tinha com quem me deixasse, eu tinha 11, 12 anos, não sei. E eu conheci a professora Socorro Simões. Ela já me impressionou com essa echarpe. Eu não entendia nada do que ela falava, mas ela falava com uma elegância. Aí, quando me perguntavam assim mesmo. “O que tu queres ser quando crescer?” Eu dizia: a professora Socorro Simões. Foi muito engraçado, porque eu cresci, eu fiz o curso de letras, ela foi minha professora e nós fomos colegas de trabalho. E eu tive a oportunidade de dar essa devolutiva para ela. Eu disse: professora, durante anos eu quis ser a senhora. Durante anos eu ia dizer que eu ia estudar literatura portuguesa para ser professora de literatura portuguesa. E aí, ela se emocionou e tal. É muito bacana dar esse feedback para as professoras. Mas era impressionante aquela mulher andando por um lado e por outro. Eu dizia, gente, é como se tivesse uma nuvem de neve em cima da cabeça dela, porque está fazendo tanto calor. E ela com esse echarpe, ela não sente calor, gente. Mas era muito engraçado.
P/1 - E me conta um pouco como é que era, você ia com a sua mãe pra faculdade? O que você ficava fazendo?
R - É porque não tinha com quem me deixar. E aí, ela me deixava ali. Eu geralmente ficava fazendo atividade da escola, ou ela me dava alguma coisa assim, tipo para eu pintar… Coisa que mãe faz quando o filho tem que ficar quieto e não tem onde deixar o filho. Mas não foi sempre, eu não fui todo o curso. Era uma vez ou outra que não tinha… A vovó não conseguia ficar comigo, a Antonieta, que era uma pessoa que ia pra casa dela, pra casa da mamãe ficar com a gente, ela não podia ir, tinha acontecido… Aí, ela me levava. E não me pergunta por que ela não levava a Lana. Eu não sei onde a Lana ficava. Porque a gente sempre estudou junto. Não sei o que aconteceu com a Lana. A Lana não ficava abandonada.
P/1 - E quem é a Antonieta?
R - A Antonieta é uma bruxa. Uma mulher muito má. Que cuidava da gente quando a gente era pequena. Se eu tenho medo da minha sombra, a culpa é da Antonieta. Ela tinha um namorado que, quando a mamãe saía… Era a mamãe sair, pra ela ficar cuidando da gente, esse namorado dela chegava, ela ficava com esse namorado dela e a gente... Criança sempre vai demandar atenção. Quando a gente fazia... E a gente não era normal, eu e a minha irmã, a gente era duas pragas. Então, assim, a gente fazia muita coisa, muita traquinagem mesmo. Então, quando acontecia alguma coisa, que ela tinha que sair dos braços do grande amor dela, pra ir lá ver a gente, ela já ia com raiva. Aí, o que que ela fazia? Ela metia medo na gente, de todos os sentidos. Sabe aquele caminho lá do banheiro, que eu falei pra vocês? Ela disse que tinha um morcego imenso que morava lá atrás da casinha e que todas as vezes que eu fosse pra lá, ele ia pegar a minha perna. Então, ela ficava falando coisas assim, que traumatizaram. Foram coisas que traumatizaram a gente pro resto da vida, eu acho. E se eu soubesse que isso era uma coisa séria na época, eu tinha dado muita porrada na Antonieta. Mas eu não falava nada pra mamãe. Nada, nada. Sabe por quê? Ela dizia que ia ser pior no outro dia.
P/1 - E você falou que você gostava muito das aulas de português, né? Você gostava muito de ler quando você era criança, adolescente?
R - Sim. A mamãe, por ser professora de língua portuguesa, que eu te disse. Ela trazia aquelas coleções de livro didático do professor, sabe? Eu passava horas lendo aqueles textos. E eu gostava muito, muito mesmo, de fazer atividade. Ele já vinha com as respostas do caderno de atividade, já vinha com a resposta. Então, eu gostava muito. Eu lembro da casa da mamãe com muito livro. Tinha muito livro. A casa da mamãe sempre teve muito livro. Eu lembro, inclusive, que a minha cama, ela era pensa, assim. Ela era meio pensa. Foi resolvido o problema com dois livros de Machado de Assis. Então, assim, pra mim, é muito significativo ter Machado de Assis no pé da minha cama, porque resume muito essa relação dos livros. A mamãe sempre teve essa coisa da escola, da escola, da escola, tem que estudar, tem que estudar. Então, ela enchia a gente de livro, ela vivia presenteando a gente com livro. Tudo era livro, tudo era história. Ela contava história pra gente. Ela lia história pra gente. Eu fiz a mesma coisa com meus filhos. Eles são acostumados. Até hoje, eu com essa coisa de ansiedade, de não sei o quê, que eu tenho que andar pra um lado, pro outro. Aí eu falo: deixa eu contar uma história pra você! Ontem eu contei pro meu marido a história. “A menina que vendia fósforos”, do Christian Andersen. Eu conto só pra mim, na verdade, porque eu estou contando para eles, e eles estão... Aí, eu falo assim: amor, você está ouvindo? “Aham!” “Ela vende o quê?” “Pipoca.” Entendeu? Mas assim, tem muito essa cultura na nossa família, dos livros. E de ler e contar histórias.
P/1 - E você tem algum livro favorito?
R - Eu gosto muito dos Irmãos Grimm, todos aqueles livros dos Irmãos Grimm. Eu gosto de contos. Mas, assim, livro atualmente é Bell Hooks. Bell Hooks, ela é uma referência pra mim, assim, absurda, no sentido do amor próprio, no sentido de eu compreender o amor. E do quanto isso foi trazido de forma traumática pra gente. Então, atualmente pra mim, Bell Hooks é a minha mana referência. Claro, eu gosto de Carolina de Jesus, eu gosto de Conceição Evaristo. Conceição Evaristo, meu Deus do céu! Eu não consigo ler Conceição Evaristo sem chorar. Eu não consigo ler um conto dela sem chorar. Porque lembra muito a minha mãe. É como se ela falasse da Raimunda, entendeu? Mas é Bell Hooks, hoje em dia.
P/1 - Você falou que quando você tinha mais ou menos uns 14, 15 anos, seus pais se separaram, né? Você teve que mudar de casa? Como é que foi esse processo?
R - Olha, eu não tive que mudar de casa. O papai que teve que sair porque ele foi expulso. A mamãe descobriu uma traição dele, que é com a minha madrasta atual, e ela mandou ele embora. Mas um dia desses, eu acho que faz uns três dias, que a minha irmã me escreveu um texto, dizendo que ela tinha lembrado do dia. Ela disse: foi dia 13 de maio de 1994. Ela foi bem precisa. No dia 11 de maio. E aí, ela disse assim: eu lembro como a gente ficou. Abraçada dentro do quarto, chorando, chorando, chorando sem parar. Acreditando que se a gente chorasse ele voltaria. Então, a gente queria muito que ele voltasse. Só que a gente não entendia nada sobre ser mulher e ser homem. A única coisa que a gente tinha era esse entendimento de um grande pai, um pai que fazia a gente rir, um pai bacana, um vizinho legal. Mas a gente não entendia por que a mamãe era tão raivosa? Porque a mamãe era tão ranzinza? Por que a mamãe vivia com a cara fechada e tal? E hoje, depois que a gente se torna mulher, a gente consegue entender o quanto ela foi forte, o quanto ela superou, o quanto ela... Enfim… Só que o que aconteceu? Eles se separaram, eu tinha de 14 para 15 anos, e quando eles se separaram eu tive um surto. Eu surtei, e foi um surto muito sério, e foi muito longo. E aí, o psiquiatra sugeriu que ele voltasse. E sugeriu que eles simulassem a relação como se não tivesse acontecido nada. E eles fizeram isso durante um tempo, até eu voltar. Então, isso, sei lá, eu não sei te dizer mais ou menos quanto tempo teve isso, mas eu parei de andar, eu parei de falar, eu fiquei, parece um boneco numa cadeira, eu babava. Entendeu? Porque foi muito forte. E aí, foi quando foi diagnosticado, na época, era síndrome do pânico. Só que hoje é o transtorno afetivo bipolar. Foi ali que eu fui diagnosticada. E de lá pra cá eu faço tratamento até então. Desde os 15 anos de idade.
P/2 - Eles te falavam a realidade deles, por exemplo? Você sabia o porquê que seu pai saiu de casa, ou você fantasiava isso no sentido de você imaginar alguma coisa? Eles te contavam?
R - Eles brigavam muito. E a briga deles era uma briga agressiva, de ouvir coisas. Então, não precisava dizer, dá pra saber. Assim, o meu pai nunca bateu na minha mãe. Mas a minha mãe batia muito nele. Porque ela tinha muita raiva do que ele fazia. Então, era de jogar coisas mesmo, entendeu? De ouvir coisas quebrando e tal. Então, a gente já sabia que eles estavam separando. Dá pra ouvir… “Aquela não sei o quê...” Aí, a gente, “então, existe outra mulher.” E dessa forma.
P/1 - Nesse período da juventude, adolescência, você tinha amigos? Como é que era? Você saía?
R - Eu era muito militante. Eu era capoeirista. Eu fui uma das primeiras… Eu e a cigana, nós fomos as duas primeiras mulheres capoeiristas de Belém. A cigana do mestre Romão e eu do mestre Bezerra. Então, a gente andava no meio de homens. Imagina, isso era a década de 80, por aí. Então, a gente andava no meio de homens e era fazendo coisas que não tinha nenhuma mulher fazendo. Só que isso me despertou para uma militância mesmo. Eu passei a ser militante de um monte de coisas sem saber exatamente assim, eu não participava de um grupo. Eu simplesmente só me posicionava como uma mulher que queria fazer aquilo e não ia deixar de fazer aquilo. Eu ouvia muito assim: “ah, tu só anda com preto fedido, vagabundo.” Então, hoje eu sei isso que é racismo. Mas naquela época eu achava que eram pessoas ou que não queriam que eu andasse ou que estavam mesmo fazendo mal, falando mal daquelas pessoas. Mas eu não! Eu ia, assim mesmo. A mamãe dizia que eu fedia, quando eu… Mas, claro, eu passava o dia jogando capoeira, gente. Eu voltava com um colar aqui debaixo do braço, do pescoço. Então, ela não queria que eu ficasse ali naquela situação. Mas eu passei a ter sim, amizades sempre voltadas para o esporte. Eu praticava muito esporte. Eu fazia musculação, eu fazia coisas fitness, não sei o que. Era concurso de Miss Fitness, que não é ser autofilista, não é isso. É ter um corpo meio talhado, mas fazer aquelas danças do tam, tam, tam, pam, pá. Eu fazia. Eu tinha um salto assim, que abria as pernas, ficava retinho no ar, entendeu? E esse era o meu, tipo, a minha carta final. Ganhava. Gostava de ganhar, gostava de participar disso tudo e tal. Mas aí, começou a vir mais uma crise e eu não sabia que era crise. Olha, muitas crises da bipolaridade, elas aconteceram na minha vida assim, eu só entendo hoje. Eu só reconheço, “olha, aquilo lá era uma crise.” Entendeste? Então, veio mais uma crise, em que eu estava muito mal, ficava muito mal mesmo, as coisas eram muito sérias. E aí, eu resolvi sair de casa e resolvi ir para um templo Hare Krishna e virar Hare Krishna. E estudar para ser monge. E estudei para ser monge Hare Krishna. Fiquei dentro de um templo, morava nesse templo. Aprendi a cozinhar prasada, que é o nome que eles dão para comida, que é o lacto vegetariana. Fiquei sete anos sendo lacto vegetariana. Cozinhava para os visitantes, para os festivais. E até hoje sou muito amiga de uma… Que eu chamo de mãe, que me iniciou. Ela é dona de um restaurante muito conhecido aqui em Belém, que é o Govinda, a mãe Stadeva, e o Prabhushri Dara, que eles chamam de Francisco, que é o nome Francisco. São meus pais, assim. No meu livro, eu falo muito dessa parte. Tem uma parte que eu falo sobre a importância de eu ter sido Hare Krishna, a importância de eu ter conhecido esse universo, a importância de eu compreender que o mundo, ele é principalmente espírito e não matéria. E eu trabalhei muito essa minha espiritualidade nesse momento. Foi um momento que eu neguei a matéria. Foi um momento que eu disse não pra rua. E eu era jovem. Eu não era adolescente, eu já era jovem. Mas assim, eu estava no início ainda de viver. Mas foi um momento em que eu me tranquei pra vida, assim, aqui fora. Então, eu tava muito cansada do mundo. Eu não via sentido estar no mundo. E aí, eu lembro até como foi. Eu já sabia que o Hare Krishna existia, mas não sabia onde era o Templo Hare Krishna. E aí, eu fui para um jogo de capoeira, e atrás, nas costas do rapaz que estava jogando comigo, tinha Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare, Hare Rama, Hare Rama, Hare Rama, Hare Rama, Hare Hare. Eu sabia que aquilo era uma Ramantra. E disse… Parei assim, no meio de uma parada de Angola, eu parei e disse: eita, Hare Krishna! Ele disse: ó, continua jogando! Eu disse: mas tem templo aqui? “Tem! Continua jogando.” “Mas eu preciso saber.” “Tá, depois eu te dou o endereço, continua jogando.” Aí, eu continuei jogando. E quando terminou, ele me apresentou. Eu fui pra lá, fui conhecendo muito aos poucos. Não foi assim de, ah, conheci hoje, amanhã eu estou com uma mala, assim. Não. Aos poucos mesmo, levando umas mudas, ficando um final de semana. Desse final de semana emenda pra uma segunda. Na segunda já não vai, na terça. Quando vê, tá lá. Pelo incrível que pareça, a minha mãe que encrencava muito com Hare Krishna. Com o tempo ela começou a perceber que eu melhorei bastante. Foi um período que eu estava sem medicação, mas eu acordava 4 horas da manhã para praticar Mahamantra. A prática do Mahamantra é contar... A gente canta Hare Krishna. Cantar Hare Krishna 4 horas da manhã, durante 2 horas. Existe uma contas chamada japamala, essa contas é como se fosse um terço. Ela fica dentro de uma bolsinha, onde um único dedo fica pra fora. E aí, a gente canta 16 voltas de 107 continhas. 107 continhas dadas 16 voltas. A gente fica, Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare, Hare Rama, Hare Rama. Então, vai entrando numa espécie de um transe, de quatro horas da manhã até seis horas. Quando é seis horas, a gente canta Govinda. Govinda é uma espécie de um rito, um ritual, que a gente faz pra Krishna. Krishna é Deus. E aí, eu... Nossa, eu tenho um... Eu não sei te dizer o que eu sinto todas as vezes que eu ouço esse mantra Govinda. que é... Gouvinda… Então, quando eu cantava Govinda, o mundo se transformava pra mim. Então, eu não vi mais sentido de estar fora. Pra mim tudo tinha sentido dentro, assim, a minha vida tinha razão ali dentro. E lá eu fiquei, durante um tempo. Aprendi muita coisa, estudei Bhagavad Gita, cheguei a dar uma vez aula, porque tu vai estudando, tu chega num nível em que o presidente do templo chega e fala: tu pode. Então, cheguei uma vez a dar uma aula. E aí, vieram as minhas militâncias. Vieram aqueles conflitozinhos. Tinha que ficar usando lenço. As pessoas, as mulheres, elas colocavam lenço porque tem aquela coisa dos cabelos serem comparados com coisa impura. Então, precisava colocar o lenço na cabeça. A gente usava lenço fora, mas quando chegava no templo colocava dentro daquela carta de correios, e depois pegava e tinha que usar dentro do templo. Aí, eu disse assim: eu não vou usar, eu estou com calor, eu quero amarrar meu cabelo, eu vou não sei o quê. E fiquei nesse embate de não usar. As meninas entraram comigo. “Não, a gente não vai usar, não vai usar, não vai usar, não vai usar.” Faz uma reunião com o presidente do templo. E agora, como é que vai ficar essa questão do lenço? “Não, não vamos usar.” Aí, decidiram não usar. Outra, a gente passava… Eu pelo menos, que era da equipe da cozinha, passava a manhã inteira na cozinha cozinhando. Cozinhava pra todo mundo, 40 pessoas. Quando chegava na hora de se servir, eram os homens que iam se servir na frente e a gente tinha que esperar eles virem da rua. Aí, eu disse, eu vou comer. “Meu, eu estou com fome! Eu tenho gastrite.” Então, foi mais um embate. Porque eles tinham que comer na frente e tal, não sei o quê. Eu só sei que com o tempo, algumas coisas foram mudando. E aí, a gente foi comendo junto, e aí já... “Se tem uma gastrite, pode ir na frente.” Começaram a refletir algumas outras coisas, entendeu? Mas o presidente do templo e a esposa dele, foram como pais pra mim, nesse momento. Assim, exemplo de renúncia. Exemplo de dedicação e amor a Deus. Enfim, eu tenho um apreço e uma gratidão muito grande pelo movimento Hare Krishna.
P/1 - E por que você saiu do templo?
R - Carne. Minha irmã, quatro preceitos, não pode praticar sexo ilícito, ou seja, antes do casamento. Não pode praticar jogos de azar. Não pode consumir nenhum tipo de drogas. E qual era o outro? Não lembro! Mas parece que era cantar mahamantra todos os dias nessas condições. Deve ser isso. Olha, pra mim três tudo bem. Mas o sexo ilícito, já estava há muito tempo. E eu muito nova. E não era nem a questão do sexo. Era a questão do álcool. Eu ficava um tempo sem beber, mas tinha um momento que eu tinha que beber. Tanto que eu lembro que, do tempo que eu estive lá, eu caí, eu acho que umas quatro, cinco vezes. Com bebida. E voltava. E caía e voltava. A bebida foi uma dificuldade pra mim, assim, durante um tempo. Na verdade. Me acompanhou muito essa questão da bebida.
P/1 - E o que você levou pra vida dos aprendizados lá do templo?
R - Eu não sou corpo somente. Eu sou mente. Eu sou espírito. Eu sou alma. Mas a mente, ela mente. Prabhupada diz, a mente mente. O que isso significa? Que a mente, ela te fala coisas que se tu não tiveres uma estratégia de conduzi-la e de controlá-la, tu adoeces. Tu fica doente. Então, no Hare Krishna, eles têm essa coisa do controle da mente. Você controla a mente através do Mahamantra, de você cantar Mahamantra, ou seja, você cantar os santos nomes do Senhor purificam a tua mente. Só que assim, eu fora do Hare Krishna, eu fora do movimento, eu fico com o aprendizado de que de fato a mente precisa de controle. Porque a mente te diz que tu tá doente, a mente te diz que tu não levanta de uma cama, a mente te diz que tu não vais conseguir tomar banho, que tu não vais conseguir arrumar teu quarto, que tu tá em depressão. Entendeste? Então, se tu começa a reagir, tu começas a controlar essa mente. Coletividade. O que eu aprendi com o Prabhupada, que é o mestre espiritual, que trouxe o movimento pro Ocidente, o movimento do Oriente, trouxe para o Ocidente, na década de 70. Ele dizia, assim: se tu pegares um palitinho e apertares entre o teu dedo, ele vai quebrar. Mas se tu pegares dez palitos e pressionares, tu não vais conseguir quebrar. O que isso significa? Que a gente precisa estar em coletividade. E essa coletividade, pra mim, a partir do que eu aprendi no Hare Krishna, está também em afetividade. Eu não preciso estar só em coletividade, porque estar em coletividade está agrupado. Mas eu preciso me importar contigo, com as tuas dores, com o que tu fazes, com quem tu és, com a tua história. Eu preciso ter tempo de te ouvir. Eu não posso só falar, não posso só querer falar, mas eu preciso te ouvir, porque tu tens o que dizer. Entende? Então, eu trago tudo isso de lá.
P/1 - E depois que você saiu do templo, o que que você foi fazer na sua vida?
R - Eu passei no vestibular, aí eu fui fazer o curso de letras. No curso de letras eu entrei para o CNPq. Eu viajei muito fazendo pesquisa. Foi o momento de eu ser pesquisadora. Eu era pesquisadora, meu orientador era um alemão. Eu estudava Walter Benjamin. Eu estudava a tradução da obra da Reprodutibilidade Técnica, do Walter Benjamin. Sobre a intelectualidade brasileira, a formação da intelectualidade brasileira. Passei alguns anos estudando isso, sobre a obra de arte. E depois eu fui para Dalcídio Jurandir, que é um autor marajoara, conhecido nacionalmente, internacionalmente, traduzido, enfim. E aí eu passei a ser dalsidiana. Só que esse momento de ser pesquisadora foi um momento em que eu viajei muito, porque os congressos, tudo que tinha, eu ia representando a Universidade Federal do Pará, eu ia representando o nosso grupo de pesquisa. Eu conheci muitos pesquisadores. Eu conheci autores que eu lia. Por exemplo, a Ingedore, eu não esqueço que foi Ingedore e o Marcuschi. Eram dois autores que eu lia muito na linguística. E eu no hotel, no congresso, eu tomando café aqui, cortando pão de queijo, eu olhei e disse: é Ingedore, gente. Ingedore. Meu Deus, Ingedore. Aí, eu viro e falo: o Marcuschi. Então, sabe, é uma sensação muito bacana tu teres a linha do tempo da menina do pé com a lama, debaixo da cadeira, se relacionando com autores que lê. É quando a gente volta um pouquinho o tempo e diz assim: eu estou no meio de pessoas que eu não ouso nem abrir a boca. Porque eu não sei se eu tenho condições de falar. Mas eu estou com o olhinho aqui, sabe? E eu estou ouvindo tudo pra aprender e não perder nada, assim. Eu vivia no meio desse pessoal, porque pra onde o meu orientador ia, ele me levava. Ele achava que eu era muito inteligente. E eu enganava ele. Eu enganava bem, porque, enfim… Ele realmente acreditava que eu era uma pessoa muito intelectualizada. E eu dizia: gente, eu não li nem metade do que esse homem já leu, eu não sei nem um terço do que esse homem sabe. Mas, aqui tá a diferença entre um professor e um educador. Ele foi uma das pessoas, o meu orientador, foi uma das pessoas importantes pra me ensinar na conduta de professor e aluno. Porque ele, ao mesmo tempo que ele era aquele cara que ficava por detrás de uma mesa, num congresso, falando e todo mundo caladinho, ouvindo. Ele era aquele cara que comia o completo lá na esquina da Cremação, comigo, discutindo sobre Delcídio Jurandir. Sabe? E ouvindo brega, sabe? E eu disse assim, isso é real. Meu orientador tá aqui. Então, é importante as pessoas que a gente considera importantes irem até o outro mundo. É legal tu tá aqui. A gente podia agora estar dentro de um estúdio, a gente podia estar em algum lugar que não é meu. Mas vocês estão aqui, na minha casa. E isso é importante, porque isso traz uma importância pra minha história, pra minha vida, pro que eu sou, entendeu? Tu tá sentado na cadeira que eu sento. Então, tu tá sentindo o que eu sinto. É diferente de eu sentar numa poltrona que me engole e que me deixa constrangida porque não é meu, não é meu universo.
P/1 - Nessa época da faculdade, como é que era a sua rotina, como é que era a sua relação? É a Universidade Federal do Pará, que você fez? Como era a sua relação com o campus, esses espaços?
R - Menina, nessa época eu era ciclista. Meu Deus, eu já inventei cada coisa na minha vida. Eu ainda continuei lácteo vegetariana, porque eu não parei assim. Mas eu era ciclista. Aí, eu achava de ir de bike. Porque lembra que eu te disse que eu fazia esporte e tal? Então, eu continuei fazendo os meus esportes e tal. E eu ia de bike pra universidade. Só que, cara, eu chegava muito suada para assistir aula. Então, eu vivia um lado, assim, diferente das outras pessoas que chegavam prontinhas e tal. E eu sempre com mochila porque eu levava minha água, levava minha comida, levava meu lanche, levava... Sabe? A minha comida era toda natural, era toda pronta, assim, eu fazia antes de ir. Então, era todo um ritual. E eu passava o dia inteiro na universidade. Eu levava todas as vasilhinhas, tudinho, já contando nas minhas refeições, porque eu estudava, eu pesquisava, eu lia, eu ficava na biblioteca, eu gostava muito de ficar na biblioteca. Então, a minha fase de universidade, eu não fui de muitos amigos, não. Eu fui muito eu, livro. Eu, grupo de pesquisa. Eu, sabe, fazendo as coisas. Porque eu gostava. Era uma coisa que eu gostava de fazer.
P/1 - E aí, durante a graduação, você chegou a trabalhar, além do grupo de pesquisa?
R - Sim.
P/1 - O que você fez?
R - Eu dei aula para formação de professores. Eu dei aula na Casa da Linguagem, durante cinco anos. E criei um projeto que era português padrão e português não padrão. O ensino da língua através dos textos. Então, eu ensinava professores de ensino fundamental, que a gente chama, a darem aula de língua portuguesa, sem mexer com a gramática normativa, através de texto. Não mexer, assim, com a gramática só, simplesmente, mas contextualizando. E as minhas alunas eram todas senhorinhas, aquelas senhoras que faziam aquele curso… Eu esqueci o nome. Mas é um curso de três anos, que tu… Era o IEP. Magistério. Elas faziam o magistério e depois elas iam fazer o meu curso, pra poder entrar em sala de aula. Aí, eu trabalhei nessa época com isso. Eu estava diretamente fazendo isso. E escrevendo também alguns artigos científicos para publicação, essas coisas. Mas de trabalho mesmo eu fazia isso. Mas eu lembro que durante o período de eu estar na universidade, eu criei um cursinho pré-vestibular na casa da mamãe, na Cremação. Era um cursinho que suportava, no máximo, de seis a oito pessoas, porque eu afastava todos os móveis, tudo, pra poder dar às pessoas lá dentro. E ali, eu dava aula assim: vamos começar a aula. Acendia um incenso, colocava um mantra. “Vamos primeiro nos preparar para aula, respirem.” E eles ficavam... Sabe? Porque de periferia, gente. Sabe? É uma linguagem, assim, que não existe, tipo, incenso. Entendeu? Um mantra. Como é que... “Postura. Vamos ficar em postura de yoga.” Que diacho que é yoga? E, assim, tudo eu fazia voltado assim, para a interação da prática. Por exemplo: vamos fazer uma interpretação de texto. Aí, entregava uma receita na mão deles. “Agora a gente vai para a cozinha e vocês vão ter que preparar, fazer esse preparo aqui.” Aí, eles iam ter que interpretar tudinho e fazer. E depois a gente comia a comida que eles tinham feito. Assistia filme. Eu lembro que eu passei, Buena Vista Social Club, pra eles. Eles amaram. Eu nunca pensei que eles fossem gostar tanto. E aí, a conclusão, esses, desses seis alunos desse curso. Eu chamo de curso, mas eram encontros ao sábado à noite. Era todo sábado à noite. Desses, pelo menos quatro passaram no vestibular. E tem um que até hoje entra em contato comigo e me agradece essas aulas. Ele é um programador. Ele é programador, assim, de computador e tal, não sei o quê. E ele diz: cara, aquelas aulas me ajudaram muito. Tu era toda doida, tu fazia umas coisas estranhas, mas me ajudaram. Até para o Igarapé eu levei esses meninos uma vez, pra dar uma aula fora, sabe? Eles não tinham oportunidade de ir, tinha dificuldade e tal. Peguei e coloquei todo mundo dentro do ônibus. “Bora, embora, que a gente vai ter uma aula fora.” E fomos! Então, assim, era uma coisa pouca. Mas ali eu via uma iniciativa de uma aula diferente, de uma relação diferente com o ensino-aprendizagem, e já uma preocupação com a desigualdade social de pessoas que não tinham condições de fazer um cursinho pré-vestibular. Porque o curso era de redação, mas deste jeito. E eles faziam as redações deles, tudinho. Não faltavam às aulas. Gostavam das aulas. Eles diziam, falavam loucuras. Eles chamavam de loucura. “Essa tua loucura aí até que está dando certo. Eu tô conseguindo escrever melhor.” Esse foi um período também lá da faculdade, que eu fiz isso.
P/1 - Mas de onde veio essa ideia?
R - De ver vários jovens sem fazer nada e sem nem mencionar, sem falar de vestibular. Que na época era vestibular. Sem falar de vestibular assim, ninguém falava de vestibular. Ninguém mencionava em vestibular. Terminava o ensino médio, acabou. O ensino médio, acabou ali. Ponto. Acabou. “Gente, vocês não vão fazer vestibular?” “Pra quê?” “Para entrar numa faculdade.” “Pra quê?” “Pra fazer um curso superior.” “Mas por quê?” Entendeu? Então, isso me inquietou. A ausência de um querer estar num nível superior. E aí, eu comecei a provocá-los. Tinha um ou outro que queria, mas que não tinha condições. Mas tinha gente que nem falava.
P/1 - E aí, você saiu da faculdade, você foi trabalhar com o que? Qual foi seu primeiro emprego de formada?
R - Eu fui trabalhar numa das escolas mais bambambam daqui de Belém do Pará, que era uma escola só pra filhos de rico, que é o Universo. Logo na inauguração dessa escola, era impressionante como ela tinha uma fama muito grande. E aí, eu fui fazer um teste pra pegar duas turmas de quinto ano, do ensino fundamental. Acabei saindo de lá com 11 turmas de primeiro ano, do ensino médio. E comecei a trabalhar lá. E ali eu vi o que é trabalho, irmã. Porque pra você ser professora de redação de uma escola privada, que tenha esse perfil. O menino tem que passar no vestibular, porque a mensalidade é absurda. Então, eu estudo nessa escola para passar no vestibular. Então, eu levava redação pra casa, passava sábado e domingo corrigindo redação. E eu estudava para elaborar as aulas. E as aulas não podiam ser qualquer aulas, eu era o profeshow. Tinha que ser profeshow. “Cheguei, e aí, tal, não sei o que!” Porque senão o menino enjoava facilmente, ele dava as costas pra ti, entendeste? Então, foi um período assim, que eu aprendi muito sobre mercado de trabalho. Ali era brabo, assim. Concorrência, tudo. Mas, ali, eu implementei um projeto chamado Universo Cabeça. O Universo Cabeça era assim, esse cabeça vinha tanto de cabeça, de pensar, de refletir, quanto dos cabeçudos de São Caetano de Odivelas. Aqui em Belém, tem uma região em que existe uma espécie de um carnaval, no mês de junho, que trabalha com os pirrôs, que têm as máscaras, e os cabeçudos, que são seres... Uma cabeça grande e umas perninhas, assim, que dançam. É uma cabeça que tu veste, tu veste a cabeça. E nessa época, o Ian, que hoje está com 20 anos, na época tinha dois, eu acho, ele era louco pelos cabeçudos, alucinado pelos cabeçudos. E ele queria, porque queria, ficar perto de cabeçudo, e não sei o que o cabeçudo. Aí, eu peguei, e fiz um projeto que era pra levar 50 crianças pra São Caetano de Odivelas, para participar do carnaval dos cabeçudos. Eu tenho registro disso. Isso daí foi uma coisa que deu no que falar. Então, acabei levando 50 crianças pra lá. Pularam o carnaval fora de época, conheceram a história dos cabeçudos. E isso deu muito no que falar. Eu dei continuidade no projeto do Universo Cabeça, fazendo choque de realidade. Uma vez, eu me deparei, na hora do intervalo, a quantidade de comida que era estragada, de merenda. Merenda comprada, de escola privada, onde tem a lanchonete e tal. Refrigerante, misto quente, hambúrguer, tudo assim, jogado pela metade. Aquilo me deu uma agonia tão grande, que eu peguei e resolvi levá-los para o lixão do Aurá, para conhecer crianças que são catadoras de lixo. Tinha uma escola próxima, que era a Salesiana, e aí eu combinei com a direção, combinei com a equipe pedagógica, eu queria muito que as crianças do universo conhecessem essas crianças catadoras de lixo. O impacto foi muito grande. Tão grande que teve meninos e meninas assim, que realmente mudaram o seu hábito alimentar, no sentido de começarem a comer, de fato, e não estragar. Só que o choque também foi grande. Alguns pais e algumas mães, acharam um absurdo, eu levar os filhos deles pra cima de um lixão, podendo pegar uma doença, podendo, sei lá, se traumatizar, vendo crianças pobres, passando fome. E aí, eu fui chamada pela coordenação, pela equipe pedagógica, pela coordenação, e anunciaram que eu seria demitida, que eu sairia da escola pela minha audácia. Enfim, pelo que eu fiz. Eu cometi um grande erro. No dia que teve a reunião de pais e mestres, uma menina se levantou, e eu não lembro quantos anos ela tinha, e ela deu um depoimento, chorando, dizendo o quanto aquilo tinha mudado a vida dela. E a mãe dela, começou a chorar e confirmou. E outra mãe levantou e disse a mesma coisa, e outra mãe levantou e disse a mesma coisa. Conclusão, eu fiquei. E o projeto se tornou o projeto piloto da escola. Então, assim, ali mais uma vez eu já estava me envolvendo com projetos pedagógicos que combatem a desigualdade social, mas que são conflituosos. A gente está sempre desagradando alguém.
P/1 - E nessa época do Universo, teve algum aluno que te marcou?
R - Menina, deixa eu te contar. Tem um aluno, tomara que ele assista isso. Luciano, ô bichinho! Ele fazia, estava no primeiro ano, ele fez o primeiro ano, o segundo ano comigo, o terceiro, não foi. Foram dois anos. Que criatura pra tirar meu gás. Porque ele era muito... Ele era uma liderança, que a gente chamava na época dos relatórios, a liderança negativa. Aquele menino que levanta, que fala alto, que fica com a turma, que não sei o que, que incentiva não sei o que mais. Cansei de sentar e falar: Luciano, meu filho, tu precisa mudar, olha pra frente, o teu futuro, o que tu pensa? Só que ele era filho de alguém importante também, enfim. Passou. O Luciano passou, passou as coisas. Eu entro pra Secretaria de Educação, como eu disse, o convite lá do governador e tal. E vou trabalhar no gabinete da secretária. Quando eu vou trabalhar no gabinete da secretária, que eu vou lá com a secretária e tal, não sei o quê. Aí, eu estou passando aqui, passo rápido, na primeira sala, tinha uma sala, e a segunda sala. Eu passo rápido, olho e... Eu colocou a mão assim, na cintura e falo: o que está fazendo aqui, Luciano? Aí, ele abaixa a cabeça. “Ô, professora, eu trabalho aqui.” “Tu faz o que Luciano?” Ele disse, assim: eu sou assessor da secretária. Eu disse: Luciano!!! “Eu mudei professora.” Então, assim, até hoje, esse menino me chama de mestra, me respeita de uma tal maneira, que é impressionante. E ele é assessor da secretária de articulação e cidadania, que gerencia todas as Usinas da Paz. Que é um grande projeto do governo do estado aqui. Sabe? Essa história eu acho que é uma história que marca, no sentido, de que ele era uma pessoa que me dava muito trabalho. Entendeu? E, de repente, o Luciano é uma pessoa muito competente. É impressionante o trabalho que ele desenvolve dentro da secretaria. Não tem ninguém que fale alguma coisa de errado do Luciano. Entendeu? Uma pessoa extremamente competente e prestativa. E eu falo assim, orgulho. Orgulho.
P/1 - E você contou que na sua infância existia, quando você ia pra escola, você tinha um sentimento desse lugar da sua desigualdade, de uma certa vergonha. Dar aula numa escola particular, para pessoas ricas, teve esse sentimento também ou já não tinha mais?
R - Sentimento de vergonha?
P/1 - É. Que você, às vezes, tinha do tênis com barro, na infância. Se quando você volta como professora, como é que é essa relação?
R - Primeiro porque eu sou muito rainha. Então, assim, eu sempre fui em cima dos saltos, de vestidos, com brincos indígenas e tal. Então, eu sempre fui essa pessoa que chama a atenção, mas pro lado positivo, assim, de ser exótico, de ser diferente, de não sei o quê, entendeu? Então, assim, eu já entro mais abusada. Aquela coisa assim, se tu olhares pra mim de uma maneira que eu sinta que eu não estou te agradando, imediatamente um eu meu diz: problema é teu! Tu tá entendendo? Então, assim, a única coisa que eu fazia e que influenciava nesse período, é quando eu reconhecia Lilias dentro de sala de aula. Pessoas pobres, que estavam fazendo o maior esforço para estar ali e que nem sempre tinham condições de estar ali, mas que estavam ali. Aí, eu ajudava. Eu me aproximava, eu conversava, eu incentivava. Porque eu sabia que não é fácil você viver longe do seu povo. Entendeu? Estar numa escola pública, você sendo uma pessoa de periferia, não é fácil. Não é fácil mesmo. Mas quando eu identificava, porque a gente se reconhece. Eu ajudava! Mas assim, o fato de eu estar num lugar de pessoas ricas e me sentir menor. Ixi, eu me sentia era grandona, muito grande, meu nariz era tão empinado, tão empinado, que tu não tem noção, assim, que eu não conseguia ver o chão.
P/1 - E aí, depois você sai da Universo, você vai pra onde?
R - Então, eu ainda no Universo, passei, fui chamada pela SEDUC, pela Secretaria de Educação, pra dar aula no Brigadeiro Fontenelle. O Brigadeiro Fontenelle é uma escola que está situada num bairro, que é esse aqui onde nós estamos, Terra Firme. O Brigadeiro Fontenelle é uma escola que está situada num bairro de Zona Vermelha. Quando eu chego aqui em 2008, eu chego aqui contra a vontade da minha mãe e com várias pessoas próximas me dizendo, não vai, não vai, lá é muito complicado. Então, eu chego nesse bairro, pra dar aula no Brigadeiro Fontenelle, como se eu estivesse indo, sei lá, pra uma guerra já vencida. Eu estava com muito medo. Tanto, que no dia que eu fui assinar a minha posse, a mamãe foi comigo. Olha só, a mamãe, de novo. Eu estava morrendo de medo. A mamãe foi comigo. E a mamãe, “tu vai ter que pegar tua transferência e tu vai sair dessa escola, tu não pode ficar nessa escola e tal, não sei o quê.” E de fato tinha sim, muitas invasões, com professor de refém. Tinha. Tinha, assim, muita morte, tinha muito extermínio, tinha muito... Aconteciam muitas coisas. Mas eu fui lá, assinar a minha posse, num final de tarde. E quando eu saí, eu fui pela feira. E tu nunca vai ver uma coisa igual ao que acontece todos os dias na Terra Firme no final da tarde. Os cheiros, os sabores, os sons. É muita coisa misturada que pulsa. Então, a Terra Firme é uma mulher preta com um coração que bate muito forte. Entendeu? Com todo o machucado que tu possas imaginar de uma mulher, mas ela tem cor das frutas, tem sabor, tem cheiros, e ela tem resistência. E ela é altiva, e ela é bonita, e ela é cheia de esperança. E ela não para, e ela todo dia sobrevive. E eu disse, gente, esse lugar é fantástico! Esse lugar é o lugar que eu vou ficar. E fiquei. Saí da cremação e comprei uma casa aqui. A minha mãe me disse assim, minha irmã. “Tu é louca? Ninguém vai para a Terra Firme porque quer. Só se vai pra terra firme porque não tem mais outra opção. E tu tá indo porque tu queres.” Eu falo: tô. Tô indo porque é o meu lugar. Eu tinha tanta certeza disso, que eu vim! E aí, aconteceu tudo o que aconteceu nessa terra firme comigo. E ainda estou aqui.
P/1 - E por que, apesar das pessoas terem te falado tanto pra não vir pra cá, você quis vir pra cá? Porque você ainda não conhecia tão bem o bairro, conhecia?
R - É, não foi um querer. Eu vim porque eu tinha que assumir, e quando você é lotada, você é levada pra uma escola, e você tem que assumir. Essa é a posse. Aí, depois você pede transferência. Então, a mamãe falava, tu tem que pedir transferência, tu tem que pedir transferência. E eu, tudo bem. Então, assim, na minha cabeça, eu ficaria um tempo e pediria transferência. Mas no primeiro dia que eu assinei a minha posse, eu senti isso. E eu disse, eu não vou sair daqui. Eu não vou sair daqui. Existem coisas que só a gente sabe o que acontece dentro do nosso coração. E eu senti que aqui era o meu lugar. Senti com todas as minhas forças, que aqui era o meu lugar. E até hoje eu sei, aqui é o meu lugar.
P/1 - Como é que foi o seu primeiro dia de trabalho no Brigadeiro Fontenelle?
R - O meu primeiro dia de aula, foi assim… Te lembra que eu tô aqui no Brigadeiro Fontenelle, mas eu estou no Universo. Eu ainda não larguei o Universo. Eu continuei. Eu estudava de manhã no Universo, estudava no Brigadeiro Fontenelle à tarde e à noite. Eu entro em sala, e tem um menino em pé. Eu estranhei porque eu entrei e ele não sentou. Mas por que que eu estranhei? Porque na rede privada, o professor entra, os alunos sentam. Ele continuou em pé de costa pra mim. E aí, eu peguei e falei assim: ei, pode sentar aí, por favor? Aí, ele sentou. Só que ele começou a falar alto. E falava alto chamando atenção, meio que ofuscando a minha fala. E eu sou incapaz, eu tenho uma incompetência de falar e alguém está falando por cima da minha fala. Se alguém falar por cima da minha fala, eu me calo na hora e espero a pessoa falar o que ela tem pra falar. Principalmente em sala de aula. E eu parei, fiquei olhando, esperando a pessoa terminar de falar. E aí, quando ele percebeu, e toda a sala percebeu. Aí, eu peguei e falei, assim mesmo: mano, levanta e vai pra outra cadeira lá. Pra ele sair do grupo. “Vai pra lá!” Aí, ele, “eu não vou!” Aí, eu disse: não, você vai! Aí ele, “eu não vou!” “Você vai! Pegue suas coisas e você vai pra lá, pra outra cadeira.” “Vai tomar no cu!” Ele falou pra mim. Cara, isso era inimaginável. Isso é um absurdo. Sabe, aquela coisa assim? Isso não existe! Um aluno falar isso para um professor. Como? O que que eu fiz? Eu saí e procurei um inspetor no corredor. Por quê? Porque no Universo tinha três, quatro, cinco inspetores. E não tinha ninguém. E eu disse assim, o que que eu vou fazer? Não, eu vou lá na direção. Desci e fui na direção. Quando eu estava na direção, eu encontrei a coordenadora. E eu disse assim… “Diga, professora, está precisando de alguma coisa? Tá fora de sala. Precisa de alguma coisa?” Eu disse: um aluno acabou de me mandar eu tomar no cu. E eu quero saber o que que vai ser feito desse aluno e dessa situação. Ela disse: professora, a senhora precisa mediar seus problemas dentro da sua sala de aula. Eu disse: cadê o inspetor? Ela disse: não existe inspetor aqui. Eu disse: é isso? Disse: é isso. Como é que eu volto? Não, na boa, como é que eu volto? Era um menino alto, sabe? Era ensino médio. Eu disse, eu vou voltar. Eu estava com muita raiva. Eu voltei. E falei: ei, como é teu nome? “Patrick.” “Patrick, pega suas coisas e saia. Agora! Saia da minha sala. Essa sala, enquanto eu estou dentro, ela é minha. Saia!” Não sei o que aconteceu, mas o Patrick fecha o caderno. E sai. Depois que vieram me falar que nunca que Patrick podia fazer aquilo, que jamais! Patrick era o terror do não sei o que, não sei o que mais. Metido com…. Enfim, metido com as coisas que não se deve se envolver. Dei minha aula, fui pra outra turma, na terceira turma. Vira e mexe, eu olhava, Patrick na porta da sala, me esperando. Eu disse, esse menino vai querer me bater. Só pode, vai querer me bater. Aí, eu peguei, saí de sala, na terceira turma que eu já tinha dado aula. Aí, ele pega e fala assim: professora, eu queria falar com a senhora. Eu disse: diga? Baixou a cabeça. “Desculpa aí!” Eu disse: quê? “Desculpa aí! Eu não vou mais fazer aquilo. Eu só queria assistir a sua aula na próxima aula.” Eu disse: pois então, faça por merecer! Me respeite que eu respeito você. Tá bom, Patrick? Esse menino foi o meu melhor aluno o ano inteiro. Ele era péssimo em matemática, ele era… Meu Deus, em geografia. Mas língua portuguesa… Ele me ajudava a carregar o datashow, ele… E se dava um problema no som, o Patrick saía correndo pra não sei o quê… Até, ele se meteu numa briga por minha causa, porque arranharam o carro lá na frente da escola, arranharam o meu carro, e ele soube que arranharam o carro da professora Lilia Melo. E ele foi lá. “Porque não pode mexer no carro da professora Lilia Melo,” que não sei o quê. E de fato, coincidentemente, ou não, nunca mais mexeram no meu carro. Ele passou a ser um grande protetor da Lilia Melo. E até hoje eu vejo o Patrick passando por aí na moto e tal, não sei o quê. Então, assim, ali era um momento decisivo pra mim. Ali foi uma... Foi uma chave virada. Ei, tu não tá no universo, amiguinha. Aqui é tu e teus alunos. Ou tu toma eles pra ti e vocês estão juntos, ou não vai dar certo. Porque não vai dar certo professor de um lado e alunos de outro. Eles precisam estar juntos. E eu aprendi aquilo ali, naquela virada. E de lá pra cá, ixi, eu aprendi demais. Eu aprendi muito. Nossa, eu aprendi muito a lidar com as coisas. Eu tive um outro aluno, só pra encerrar aqui. Eu tive um outro aluno, que ele estava assistindo a minha aula e de repente ele sumiu. Nesse sumiço dele, eu passei minha prova. Aí, passou o quê? Uma semana depois, eu entregando já as provas, as notas. Aí, ele sentado lá atrás, sentava todo torto assim. E disse assim: porfessora, e minha prova? Eu disse: você fez prova? Disse: não. “E você fez o requerimento pra segunda chamada?” “Não.” Eu disse: então, meu amigo, como é que você quer sua prova? Você tinha que pedir segunda chamada. Não pediu segunda chamada, perdeu. “E aí, como é que eu vou ficar?” “Vai ficar com zero.” Aí, disse assim mesmo: eu vou ficar com zero? Eu disse assim mesmo: você estava quase um mês sem assistir aula. Você volta depois do período da segunda chamada. E você quer… “Você estava fora por quê?” “Porque eu matei meu irmão.” Aí eu disse: o quê? “Eu matei o meu irmão.” “Você quer fazer semana que vem a sua prova?” Tu tá entendendo? Eu vou lá me confrontar com o menino que matou o irmão? Eu não queria nem saber, mana. Se ele quer a prova dele, ele vai fazer a prova dele. Eu ainda falei, assim: se tu precisar de um tempo a mais pra estudar direitinho, eu te passo toda a matéria, eu te ajudo. Não se preocupa. Não esquenta a tua cabeça. Não esquenta a tua cabeça, que eu estou aqui pra te ajudar. Eu não vou nunca te prejudicar. Eu sou tua amiga. Tá entendendo? Então, a gente vai aprendendo a lidar conforme as circunstâncias. A escola pública, ela é cheia de histórias, que a gente não imagina como elas acontecem. Aí, a gente precisa entrar nessas histórias, pra que a gente possa fazer a diferença, senão a gente vai ser só mais um na vida deles.
P/1 - E como é que foi, porque você viveu sua vida inteira na Cremação, e aí veio aqui, para a Terra Firme, né? Como foi essa mudança? Quais são as diferenças de um bairro pro outro? O que você sentiu? Como é que você foi explorar o bairro?
R - Eu estava tão entregue para essa coisa da Terra Firme, que eu não senti diferença no sentido de comparar com Cremação. A terra firme, ela foi uma nova vida pra mim. Eu comecei a andar em coletivos culturais. Eu comecei a frequentar boi, boi bumbá. Eu comecei a frequentar Casa Preta, que traz uma atriz africana. Eu comecei a frequentar Capoeira Angola. Comecei a frequentar tudo que diz respeito à cultura, eu ia. E essas coisas dentro da periferia, elas acontecem na rua. É difícil você ter um coletivo que tem uma sede própria. Então, eu comecei a me envolver com a vizinhança, eu comecei a me envolver. E a vizinhança, era o pai do meu aluno, era a mãe do meu aluno, entendeste? Eu dava aula no Brigadeiro… Depois eu saí do Universo. Eu passei a dar aula no Brigadeiro de manhã, à tarde e à noite. Eu dava aula à noite pra EJA, era a mãe do menino que eu dava aula de manhã. Eu tive uma facilidade grande com relação a integrar projetos, porque tinha vezes que eu misturava, era pai com filho, mãe com sobrinha, entendeu? E envolvia a família inteira nisso. Uma coisa que acontecia comigo aqui, era o seguinte: nem sempre tudo é flores. A dor é muito grande de alguns meninos. E é uma dor que impede deles se abrirem. Se abrirem para a mudança. E aí, eu precisava ouvir. A minha estratégia sempre foi escuta ativa. Tu escuta, mas faz alguma coisa com aquilo que tu escuta. Não é só escutar, mas é planejar algo a partir da escuta. Então, se eu tinha um aluno que não falava de jeito nenhum, não falava de jeito nenhum, na minha aula. Eu começava a pesquisar, a sondar esse menino, quem ele é? Onde ele mora? Com quem ele mora? E, surpreendentemente, eu descobria que ele era um pastor. E que falava pra caramba domingo na igreja. E o que eu fazia? Eu ia assistir o culto. Porque eu precisava ir onde eles falavam. Eu fui pra lugares, que eu jamais iria, se eu não tivesse conhecido meus alunos. Eu frequentei festas, que as pessoas olham com maior preconceito, que dizem que só vai puta e traficante. Eu não sou nem puta e nem traficante. E eu ia pra essas festas. Por quê? Porque eles estavam lá. Porque eles falavam. E tudo pra mim era uma grande pesquisa, tudo pra mim era um grande levantamento, entende? E por outro lado, aquilo que eu acabei de te dizer, eu começava a abrir um laço afetivo porque eu ia lá. Eu sentava naquele sofá, eu puxava aquela cadeira. Eu conversava com a mãe deles, eu conhecia os problemas que aconteciam. Às vezes, me envolvia com alguns problemas sérios que tinham, entende? Essa foi uma das minhas maiores estratégias. Sair da sala, sair da escola, ir para onde eles falavam. Lá eu ficava ouvindo, até me aproximar.
P/1 - Por que você decidiu sair do universo?
R - Menina, me demitiram. Foi. Me demitiram. Eles estavam fazendo aquele negócio de escola privada, contenção de gastos, não sei o quê. Aí, eles demitiram vários de uma vez só, e eu fui no meio. E aí, não perguntei muito. Peguei minha indenização, paguei umas parcelas de um carro que eu tinha comprado. Comprei algumas coisas. E vim embora para o Brigadeiro. Fiquei o tempo todo no brigadeiro. Estava cansada também, da vida, do Universo. Era muito trabalho no final de semana. O Estado, ele me deu uma qualidade de vida que eu não tinha na rede privada.
P/1 - Por quê?
R - Porque no Estado eu conseguia fazer tudo de segunda a sexta. Sábado e domingo eu estava pra fazer outras coisas que não estavam relacionadas à sala de aula. Mesmo que estivesse relacionada à ensino-aprendizagem, mas não estava relacionada à coisa formal, prova, pré-teste, essas correções, nota, lançar nota, essas coisas assim. Que eu nunca me dei bem com isso. Nunca.
P/1 - E o que você fazia de sábado e domingo?
R - Eu ia para os coletivos. Eu ia pra onde os meninos estavam. Eu passei a ser amiga deles. Eu ia conhecer os guetos da Terra Firme. Eu andava muito por esses buracos aí, da Terra Firme. Chegou um tempo, que o meu carro era conhecido pela placa. E quando eu passava numa ponte, por exemplo, isso foi um ocorrido. Eu troquei de carro, e nesse dia tinha ação. Ação é quando a gente vai fazer alguma intervenção em algum lugar e tal. Aí tinha ação. Eu passei na ponte, quando eu passei na ponte, meu telefone tocou e eu atendi. Era alguém, que eu não sei quem é. Disse: professora, a senhora trocou de carro? “Troquei, por quê?” Não, era só pra ter certeza se é a senhora que está passando aqui nessa ponte.” Então, eu podia não conhecer todo mundo, mas as pessoas me conheciam. Teve uma vez que eu ia ser assaltada, eu fui parada perto de um poste, um cara daqui, outro daqui, um com arma, aqui. Disse: passa a aliança. Eu estava com aliança, na época, eu usava aliança. “Passa a aliança, que é ouro.” Aí, o outro veio por trás, que eu também não sei quem era. E disse: e, rapaz, tu tá doido? Essa é a professora Lilia Melo. Aí, ele disse: ih, deixa, deixa, deixa, desculpa aí, professora, desculpa aí, professora. Entende? Então, assim, eu aqui nessa comunidade, eu sou a professora Lilia Melo. Eu sou a professora. Eles têm respeito por mim. E muito. E eu por eles. Tenho respeito por eles. Eu não sou amiga de bandido. Mas eu tenho respeito pelas pessoas que me respeitam. Entendeu?
P/1 - E aí, como foi desenvolvendo? Você acompanhava os alunos. Como você foi criando os projetos que você criou?
R - Em novembro de 2014, houve uma chacina nesse bairro, em que o número de jovens foi muito grande. Assim, a chacina é conhecida como a maior chacina de Belém do Pará. Afetou vários bairros, mas o bairro mais afetado foi o bairro da Terra Firme. E jovens que não tinham nada. Tinha um menino, o Eduardo, que era neto da dona Maria Auxiliadora, que era minha aluna na EJA. E ele era aluno de manhã da escola. Então, assim, nós sabíamos. Eu estava na Cremação, visitando a minha mãe. Minha mãe mora na Cremação até hoje. E a minha rede social, começou a acionar. “Professora, não atravessa para a Terra Firme, está tendo chacina. Professora, toque de recolher. Professora…” Eu não sabia o que era isso. Eu não sabia o que era toque de recolher. E assim, para mim, olha, eu não levei a sério. Liguei o carro e vim embora. Quando eu voltei, eu não conseguia passar nas ruas. Cada rua que vinha, estava um bolo de gente, e tinha alguém estendido no chão. Assim, por vários caminhos que eu tentei chegar, nessa casa, eu não consegui. Então, eu pensei, eu vou pela Mauriti, que é melhor. Quando eu estou passando pela Mauriti, a gente escuta os tiros e uma pessoa é assassinada assim, tipo... Eu só pedi para os meninos se abaixarem. Cara, quando a gente chega aqui, eu começo... Eu tenho uma crise de choro. Primeiro, porque eu estava agradecendo, meus filhos estavam vivos. Meus filhos, desde pequenininhos, eles são educados, eles contam isso rindo, mas tu imagina o que é a dor disso. Desde pequenininhos meus filhos são educados a se jogarem no chão do carro, caso tenha tiroteio. Eu ensinei eles. Eu ensinava estratégias de quando tivesse chacina. E nesse dia, eu me fiz essa pergunta. O que a gente está fazendo? O que está acontecendo com os jovens? Quem vai fazer alguma coisa? Por que não está sendo feito nada? Eles vão continuar sendo mortos? E aí, mana, eu comecei a catar gente dentro da escola, que gostasse de dançar, que gostasse de fazer arte. Tudo que fosse arte, eu juntava. Eu juntei grupo de teatro, eu juntei grupo de música, de dança, de poesia. E criei um projeto chamado “Juventude Periférica do Extermínio ao Protagonismo.” E tudo quanto era canto, tudo quanto era esquina, a gente ia e fechava a esquina para apresentar. A gente tem vários registros, da gente fechando esquina e apresentando dança, teatro, poesia e tal. Nós conseguimos fazer isso durante algum tempo, foi 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, quatro anos a gente fazendo isso. A gente começou a sair no jornal, TV Liberal vinha pra cá entrevistar jovens do bairro. Porque, olha, “jovens do bairro da Terra Firme fazem arte no meio da rua.” “Como? Só é bandido.” Entendeu? Isso chamou muita atenção da mídia também. “Jovem do bairro da Terra Firme visitam escolas e não sei o que.” E de repente, a gente começou a pautar a mídia tradicional. Enquanto a mídia tradicional dizia que jovens do bairro da Terra Firme é bandido, a gente na prática dizia, que jovens da Terra Firme fazem arte e influenciam outros jovens. Nós ficamos quatro anos fazendo isso. Porém, em 2018 tem uma outra chacina. E aí, essa chacina, é a chacina que eu não aguento. Que é uma senhora de 70 anos, abraçada com um neto de 12 anos, os dois são mortos. A família inteira foi exterminada, porque a irmã dele, também era uma universitária, foi morta. Eu parei pra pensar, assim… Pensa comigo. Eu estou sábado e domingo nos coletivos, trabalhando. Porque isso é trabalho. Mesmo que eu estou tomando uma cerveja, mesmo que eu estou dançando, mesmo que eu estou... Mas eu estou pesquisando. Eu estou sábado e domingo trabalhando. Eu estou de segunda a sexta trabalhando. Eu estou longe dos meus filhos. Eu estou o tempo todo com meus alunos. Eu estou com saudade da minha família. Eu quero voltar. Não vai ter jeito, eles vão matar a gente. Sempre, sempre eles vão matar a gente. E eu voltei e disse: o caso é o seguinte, eu não quero mais nada de projeto social, pra mim já deu. Quero ser uma mãe normal, quero ficar aqui com vocês no final de semana. E a gente agora vai ser uma família sem a mãe tão ausente. Porque tinha vezes que eu levava eles, mas tinha vezes que eu não levava. E aí, o que aconteceu? Eu fui levar pro cinema e eles queriam assistir o Pantera Negra. Lá eu assisto o filme Pantera Negra e não consigo. Eu disse: gente, eu tenho que trazer meus alunos pra cá. Eles precisam assistir esse filme. Esse filme foi feito pra eles. E aí, o que é que eu faço? Eu pego e abro uma campanha para levar os meus alunos ao cinema. Era uma campanha para levar 200 alunos, eu consegui levar 400. E com a ajuda de muita gente da universidade, pessoas de fora, de São Paulo. Só pra tu teres uma ideia, o Cine System, ele tava sendo inaugurado no shopping. Eles souberam lá da campanha. E eles me ligaram e falaram assim: professora, a senhora está fazendo uma campanha para levar seus alunos para assistir o filme Pantera Negra no cinema? Eu disse: sim. Aí, disseram assim: a senhora aceitaria 200 cadeiras, 200 ingressos? Aí, eu fiquei assim. “Ou a senhora já conseguiu?” Eu tinha acabado de conseguir. Um dia anterior. Acabado de fechar 200. E eu disse: não, ainda não consegui nada, não. Ainda estou aqui na esperança. Aí, disse, então, “200 cadeiras, 200 ingressos, a gente vai conseguir.” Eu disse: não dá pra tu conseguir para eles a pipoca? Porque a gente vai pro cinema, são jovens, que amam pipoca. “A professora, a pipoca não tem nada a ver, porque é uma rede privada. Enfim, é dinheiro e tal. Mas bora ver se a gente consegue. Vou tentar!” No outro dia ele liga morto de feliz. “Professora, consegui a pipoca. A gente conseguiu a pipoca para os seus alunos.” Aí, eu disse: e o refrigerante? Aí, ele disse assim: a senhora sabe pedir, né professora? Mas deu certo. Foram dois dias indo ao cinema. Um dia 200 alunos, pipoca e refrigerante. No outro dia indo pra assistir o filme Pantera Negra, pipoca e refrigerante. Quando a gente volta, dos ônibus lotados, eles fazendo... Do Wakanda. Viram pra mim e dizem. “Professora, a gente não vai desistir.” Lembra que eu ia desistir? A gente não vai desistir. Agora, a gente vai fazer cinema. Eu disse: o que menino? “É, agora a gente quer fazer cinema.” “Vocês estão doido? Como é que vai fazer cinema sem dinheiro?” “Professora, eu não sei! Mas a gente vai fazer cinema. A gente vai conseguir.” O que eles fizeram? Eles pegaram… Vou começar a me arrepiar. Eles pegaram todo o registro de 2014 até 2018, feito de celular mesmo. Isso tem na internet, no YouTube. E fizeram um filme chamado, um mini documentário, chamado “Nós por Nós.” Esse filme eu inscrevi para um edital. E ganhou em primeiro lugar. E o prêmio era assistir a obra no telão. Então, eles nunca tinham ido ao cinema, quando foram para o Pantera Negra. E a segunda vez que eles foram, eles já foram como cineastas, autores, atores, sabe? E tu precisava ver o que eram esses meninos se arrumando pra receber esse prêmio. Porque era um prêmio em dinheiro, era um troféu, e ainda a exibição. Era um cheiro de naftalina dentro do carro. E a menina que tava quase pra espocar, que o vestido era dos 15 anos, ela já com 20. Menina, tu precisava ver o que era agonia. Mas eles lá, tudo engravatado, tudo de vestido longo, pra receber… Era o Oscar. Era o Oscar. E de lá pra cá, eles não pararam mais. Eles começaram a receber… Isso tudo que tem em cima dessa mesa é prêmio de cinema, é premiação que eles receberam de filme que eles fazem. E esses vídeos que a gente leva, esse cinema que a gente leva, são filmes autorais. Pra mostrar que nós temos Pantera Negra. O molequinho que está aqui pensando em maldade, quando ele olha, o amigo dele, o vizinho dele, ele diz assim: eu quero isso. Não tem coisa mais linda, do que uma vez, a gente foi levar um dos nossos filmes aqui no Estelina, numa escola aqui do bairro. Não tem coisa mais linda. O menino que tinha problema com álcool, o pai estava preso, era traficante, estava preso. A escola não queria mais ele, ia ser transferido. Eu peguei, dei o grupo de dança pra ele ensaiar. Ele ensaiou o grupo de dança, se envolveu tanto com a dança, que até hoje ele ensaia esse grupo de dança. E a história dele virou filme. Aí, a gente pega e leva o filme para o Estelina. Quando chega lá, que acabou, todo mundo, era as criancinhas gritando assim: Wakanda, Pantera Negra! Atrás dele, querendo autógrafo dele, do menino que tinha dependência química, que tinha… Sabe? Então, assim, é isso! É tu seres grande no pequeno. Eu posso não estar lá em Cannes, eu posso não estar lá no... Eu posso não estar... Mas, velho, a minha vida, ela está mudando a tua vida, que está mudando a vida do outro. Vieram me questionar sobre esse aluno, porque esse aluno começou a ficar muito famoso, dar entrevista, participou de podcast, tal, não sei o que. Aí, vieram me questionar assim, dizendo assim, mesmo, “engraçado, o Kadab, que não era o aluno exemplar, que não sei o que, agora ele é a estrela. Mas ele continua tirando 5 em matemática.” Aí, eu peguei e falei assim, mesmo, “é verdade! Tu tens razão, ele continua tirando 5 em matemática. Mas tu sabes qual é o valor de acordar e levantar da cama? Porque ele não levantava. Ele estava praticamente morto. E hoje ele quer viver. Qual é o valor de uma vida? Onde é que a gente mensura isso? Matemática a gente mensura, cinco, tirou cinco, tirou seis. Mas e a vontade de viver? A gente mensura? Isso não faz a diferença? Ele está vindo pra aula. Ele está assistindo aula. Então, ele está dizendo: eu quero viver! Eu não quero mais morrer! E saiu do alcool. Saiu do álcool.”
P/1 - Até hoje acontecem ainda essas sessões de cinema? Me conta um pouco como elas ainda acontecem?
R – Menina, é pipoca para um lado, é copo para o outro, é carroça passando e levanta… Essas cadeiras todinhas a gente leva. A gente não tem infraestrutura assim, o que a gente tem é esse telão, essas cadeiras, a pipoca e o refrigerante. Que a gente não abre mão dessa pipoca, isso é uma questão de honra minha, sabe? Tem que ter! Vai ter filme, tem pipoca, tem refrigerante. Mas assim, é a comunidade toda ajudando. Existe, do outro lado daqui, desse canal, existe um bar que é do seu Jonas. Ele carrega cadeira, ajuda a carregar as cadeiras do bar dele e tal, não sei o quê. Não é a melhor coisa do mundo, assim, em termos de qualidade de som, em termos de… Sabe? Tem horas que interrompe mesmo o filme. Sabe? Tem horas que a gente tem que baixar, dar um pausezinho, porque o tio tá pregando a Bíblia e resolveu falar, dar uma palavra. “Tá, tio, dá a palavra aí, bora lá. Ê, glória a Deus, viva a Jesus, graças a Deus!” E volta o filme. Mas acontece. Essas pequenas coisas, elas aborrecem, porque a gente quer que seja uma sessão integral, assim, sem nenhuma interrupção. Às vezes, acontece de ser, entendeste? Às vezes, a chuva aparece, é céu aberto. Às vezes, corre, chuva, pega datashow, “salva o telão” e tal, não sei o quê. Mas tudo isso é aprendizado. É aprendizado do terreno que tu estás e o que tu estás fazendo e saber que tu não pode parar. Ninguém diz assim, não quero mais. Ninguém diz. Coisa mais linda. Eu posso mostrar para vocês o término de uma sessão de cinema. “Viva, viva, viva, viva!” Aí, tu fica assim, tu fala assim, meu Deus do céu! Cara, e impressionante como eles gostam. Aí, “outro, outro, outro.” “Para de graça, gente! Estou quase não sobrevivendo a um.” Então, é desse jeito. É do jeito que a periferia permite. É da nossa cara, é da nossa forma de como poder proporcionar.
P/1 - Você estava falando do cinema que você faz. Aonde exatamente que é aqui? Aonde vocês organizam? Que você disse que vocês levam a cadeiras e tal. É na rua, ou numa praça?
R - Nós temos o cinema itinerante e o cinema fixo. O cinema fixo acontece aqui. A gente coloca o telão, anuncia e tal, e vem quem quer. O cinema itinerante, a comunidade chama. Então, tem alguém que sabe que a gente passa filme, aí fala: dá pra vir aqui na minha rua? Aí a gente vai, faz uma visita técnica, verifica fio e tal, essas coisas. Olha, só como é bonito, “ gente faz uma visita técnica, verifica o espaço e tal, não sei o quê.” Ver se dá para entrar minimamente um carro, pra poder levar as cadeiras e tal. Aí passa. E um vai passando pro outro, um vai chamando... Por exemplo: teve na minha rua. “Ah, tem que vir aqui também na minha rua e tal.” Aí, a gente vai. O critério, assim, tipo de seleção, de pra onde a gente vai, é o mais inóspito possível. Assim, inóspito, pode ser. É aquele lugar que a gente tem certeza que a criança nunca teve oportunidade de olhar um telão. Então, é esse lugar que a gente leva a criança.
P/1 - E você faz um trabalho também com as suas alunas meninas. Como é que é esse trabalho?
R - Na verdade foram elas que se agregaram, foram elas que montaram um GT. Porque nós, o Cine Clube TF, ele não trabalha só com cinema, ele trabalha com dança, com poesia, com teatro, teatro do oprimido e tal. E trabalha com música. Então, são várias artes, são diferentes expressões artísticas. Então, eles vão criando as coisas, eles vão agregando, eles vão montando. Eu não tenho muita gerência nisso, não sou eu que falo, olha, agora nós vamos fazer um grupo assim. E coincidiu de o grupo de poesia ser predominantemente feminino. É um grupo de meninas que escreve poesia e escreve poesia a partir dessa opressão que as mulheres sofrem na periferia. Como nós temos muitas mulheres, por exemplo, as coordenações. As coordenações, elas são feitas por mulheres. Não foi uma coisa, tipo, planejada. Nós não planejamos, “só mulher que vai ser coordenadora,” não. É que as mulheres tomão frente mesmo da coisa. Elas têm mais atitude, elas estão mais à frente. Pelo menos no CineTF. Então, o que a gente fez? A gente percebeu a necessidade do autocuidado. A gente percebeu muita relação abusiva, meninas sofrendo por algumas coisas, entendeu? Então, a gente criou aquele projeto que eu te falei, que é “Os Raízes.” Mas nós temos no total 13 projetos dentro do coletivo. Nós temos o projeto “Pela Porta da Frente,” por exemplo. O que é o projeto “Pela Porta da Frente?” É a democratização do acesso a lugares em que as pessoas da periferia não vão. Teatro, cinema. Então, a gente entra pela porta da frente. Porque geralmente quando a gente vê um teatro, quando a gente vê um cinema, os pretos e pretas, elas entram pela porta do fundo, pra poder servir, pra varrer, pra preparar o ambiente, pra receber os brancos. Então, a gente vai entrar pela porta da frente e vai ser o público, o espectador daquele grande espetáculo, entendeste? É assim que a gente faz. E tem muita gente que chora, assim, porque nunca entrou no Teatro da Paz, por exemplo. Quando a gente levou uma turma de 60 alunos, uma tiazinha de 60 e poucos anos, olha só. Ela chorando, dizendo que nunca tinha visto uma coisa tão linda em toda a vida dela. Ela nunca tinha visto aquilo. Então, é muito importante a gente ter tipos de projetos que façam a democratização do acesso. Nós temos o “Acamperifa.” O Acamperifa é a coisa mais linda do mundo. Nada mais é do que a conexão ancestral. A gente desliga os telefones e vai pro meio do mato. Geralmente pro Acará, lá no meio das matas do Acará. E faz um monte de atividade física, mental, espiritual. Ali a gente entra em transe, ali a gente chora, a gente se abraça, faz fogueira, a gente canta, a gente dança, entendeu? É lindo, lindo, lindo. Sabe por quê? As crianças vão, e as mães vão. E fica aquela coisa de mãe com filho, sabe? Eu tenho um depoimento para dar sobre isso que é interessante. Tu pode me perguntar, assim: Lilia, mas é um projeto que ele valoriza a identidade afro? Como é que fica essa questão da resistência das religiões de matriz africana? Nós estamos num bairro, onde no quarteirão do Brigadeiro Fontenelle tem seis igrejas evangélicas. Então, as igrejas evangélicas, elas são predominantes. E os meninos, eles são de famílias evangélicas. Então, tem muita menina e muito menino, que deixou de vir, porque a mãe disse que era coisa do demônio. Isso é do diabo, isso fica falando coisa do demônio. Por quê? Porque a poesia fala de Exu. Porque a dança fala de Oxum. Então, tem essa coisa. E aí, tinha uma mãe, que tinha uma filha, que ela tinha um destaque muito grande na poesia. E aí, a mãe resolveu mandar tirar, por conta dessa questão religiosa, dessa questão da religião. Só que estava perto de um Acamperifa, e elas já estavam inscritas, já tinham feito o pré-encontro, já estava tudo ok. E elas foram. Mana, tu precisava ver, no decorrer das atividades, essa mulher se desconstruindo. E no final, cada grupo tinha uma cor. A cor do grupo dela era amarelo. Pensava essa mulher gritando, levantando fitinha, dizendo: amarelo Oxum, não sei o que, amarelo Oxum. Eu disse, olha isso, gente. E permitiu depois disso, percebeu que Oxum é Deus. E passou a respeitar a filha que queria dançar pra Deus e que não era do jeito do Deus dela, entendeu? Então, assim, a gente tem várias experiências nesse sentido, de que é no sapatinho, é encolhidinho, é na manha, sabe? É no afeto, é no amor. Eu acabei de defender um mestrado e foi falando sobre as diretrizes formativas do coletivo CINE TF. E das quatro diretrizes formativas, duas são afetividade e ancestralidade. O afeto é a nossa base. Tudo que a gente faz é afetivo. Afetivo ao ponto, assim, de às vezes eu te odiar, e eu te amar ao mesmo tempo, sabe? Eles têm essa relação, eles são jovens. Tem horas que eles estão disputando entre os grupos, mas eles estão o tempo todo se amando, porque no final das contas o show é pra todos.
P/1 - E como é que foi essa transição do Hare Krishna pro Candomblé?
R - Não teve uma transição de um pro outro. Houve, na verdade, uma peregrinação de religião. Como eu tenho muitas crises, e eu tenho repetido isso porque realmente as crises elas me acompanharam a minha vida inteira. Chegava o momento que nada funcionava, eu estava tomando remédio, eu estava com psiquiatra, eu estava com psicólogo, tal. Mas a crise estava demais e eu estava quase enlouquecendo. Aí, falavam assim para mamãe. “Olha, vai e, tal terreiro ali, toma um banho, que isso sara.” “Olha, vai no centro espírita, que isso é espírito.” Então, isso fez a gente acreditar em um monte de coisas. Então, eu fui pelo Ivan Costa, no Espiritismo. Eu andei um pouco pela força do pensamento positivo. Eu fui pela Helena Blavatsky. Olha, por um tempo eu pratiquei a teosofia da Helena Blavatsky. E eu fui. Sempre, as religiões na maioria eram orientais. Era oriental, assim, eu tinha uma coisa com religião oriental. Mas a questão da matriz africana, é de fato, quanto mais tu vai se aproximando da tua ancestralidade, que tu vai compreendendo os teus antepassados, que tu vai ouvindo outras coisas, isso vai te abraçando. E aí, eu cheguei na Mãe Beth, que é a minha mãe______ , conhecer. Ela é uma das grandes representantes do candomblé aqui em Belém, do Pará. Ela inclusive faz parte do conselho da religião de matriz africana, ela é representante. E eu entrevistando, indo lá e fazendo... Nós fizemos um memorial Mulheres da TF. Ela é uma das homenageadas. Então, eu conhecendo, eu fui me aproximando e fui me sentindo muito bem. Eu te confesso que eu me sinto muito bem. Eu tenho uma missão muito grande de cura, dentro da força. E que às vezes eu fujo. Às vezes. Já era para eu estar iniciada, raspada e tal. Mas não. A gente resiste muito. Mas o Cine Club TF, pra mim é uma grande missão. Eu tenho realizado muita coisa a partir do que a gente tem feito dentro do coletivo.
P/1 - E esse coletivo que vocês fazem tantas ações aqui, ele não gerou incômodo?
R - Muito.
P/1 - Fala um pouco sobre isso.
R - Dentro da família deles, eu já exemplifiquei. Gera incômodo. Tudo que é de preto, se preto não tiver no lugar baixo, incomoda. Incomoda. Porque, historicamente, preto tem que servir, preto tem que sofrer, preto tem que... Quando o preto aparece como rei e rainha. Isso incomoda. Por quê? Porque não é planejado isso pra eles. Não é o plano. O plano é a morte. A gente sabe que o plano é a morte. Então, existe uma cultura que disfarçadamente e, às vezes, descaradamente, diz para as pessoas que não é pra... “Tu não tem que estudar! Estudo não é pra ti. Vai trabalhar! De preferência embalando compras no supermercado. Tu não tem que dançar. Quem te disse que tu sabe dançar?” Sabe? Se tu for te destacar, é só noesporte, é futebol. Vai jogar bola. É o que te resta. Trabalhar o teu corpo, porque tua mente não presta. Então, assim, são muitas coisas pesadas que são ditas e que a sociedade absorve. Então, a resistência, primeira, a religiosa. Dentro das próprias famílias eu sofri esse tipo de acusação. A outra, quando a gente faz roda de convivência, tu passas a te conhecer melhor, tu passas a te entender melhor. E tu passas a te aceitar. Então, muitos jovens passaram a se reconhecer e se autodeclarar como afetivo. Meninos trans, meninas trans. E aí, eu fiquei conhecida, na época, quando começaram a se assumir, a se aceitar, a ter aceitação. Eu fiquei conhecida como a professora que incentiva os alunos a serem gay. A professora que fica ensinando as meninas serem sapatão. E era dessa forma mesmo, era desse jeito mesmo, entendeste? Então... Mais uma vez, eu só no sapatinho, eu precisando fazer com que uma mãe entenda, que independente do que aquela criatura esteja assumindo pra sua vida, é sua filha, é seu filho. Merece ser feliz, tem que ser respeitado, tem que ser acolhido. Que o caminho que ele traça pra ele, é muito perigoso. Então, não tem que ter perigo dentro do lar, porque a rua já é perigosa. Então, isso tudo. Muitos pais e muitas mães, abraçaram seus filhos dentro do Cine Clube TF. Mas eu tive muitas acusações. E a resistência maior foi mesmo essa da questão, logo no início do extermínio, foi essa questão de me mandar embora daqui. Eles me mandavam embora daqui. Eu tinha que ir embora daqui. E assim, eu vou… Dentre as sete vezes que eu fui mandada embora daqui, eu vou relatar uma, que eu acho que ela vai representar todas, pra vocês terem ideia do quanto era violento isso. Um exemplo de uma dessas invasões, foi que nove horas da manhã, eu estava dentro do meu carro, na frente de casa, para sair. E veio uma pessoa encapuzada numa moto, me arrancou de dentro do carro, me puxou de dentro do carro. E disse: te ajoelha. E me colocou de costas pra rua, de frente pra minha casa. “Te ajoelha que hoje eu vim te matar.” E aí, o Nicolas, nesse tempo ele era bem pequenininho. Ele aparece. E ele aponta a arma pra lá. E aí, eu gritei, pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus, isso é um erro. Isso é um... Não sei o que está acontecendo, mas seja lá o que for, eu não fiz nada. Aí, ele falou assim, mesmo, “coloca a criança pra dentro, coloca a criança pra dentro.” Aí, colocaram o Nicolas pra dentro e bateram o cadeado. Eu fiquei pro lado de fora. Aí, ele disse: agora te vira, que tu vais morrer. E eu estava assim, eu só fiz assim. E eu fiquei esperando e não aconteceu nada. E eu fiquei assim, eu disse a ele… Aí, quando eu virei, a moto não estava mais lá. Era só para me dar o susto, para eu ir embora. Nesse momento eu troquei de carro. Era um carro prata, diziam que matavam pessoas de carro prata, na época. Aí, troquei de carro, saí, fui pra Marambaia, que é um outro bairro. Fiquei três meses lá. E depois de três meses resolvi voltar. Quando eu resolvo voltar, mais uma vez, eu falo com a Raimunda. E aí, a Raimunda pega e fala assim: se tu voltares, eu te denuncio pro Conselho de Tutelar. Já chega! Tu está levando os meus netos para a morte. Tu tá acabando com a tua família. Tu tá te acabando nesse projeto. Isso não existe. Tu não tá vendo que tu tá brincando com coisa séria? E aí, foi quando eu dei uma resposta pra ela, que eu não esqueço. Eu disse, assim: mãe, onde tiver meus alunos, os meus filhos vão estar. Porque se é um lugar que não serve para os meus filhos, não serve para os meus alunos. Eu realmente preciso acreditar que isso é real, que isso é verdadeiro. E se eu ficar longe da Terra Firme, eu vou morrer. Eu prefiro morrer lá, lutando, do que morrer aos poucos fora de lá. E voltei. Tranquei tudo, vocês podem ver que não é uma casa normal, porque ela não tem porta de entrada. Vocês vão ver que tem câmera em todo canto. A gente vive, parece um Big Brother, tem câmera até dentro da casa. Eu passei por um período muito sério de perseguição, de achar que tinha gente o tempo todo perto, querendo me matar e tal. Mas voltei. E as coisas melhoraram muito, muito mesmo, muito. Hoje essa questão do extermínio quase a gente não ouve mais. Jovem na Terra Firme é jovem de arte. Todo canto, todo canto se escuta isso. Os meninos tiveram muito sucesso em tudo que eles fizeram. Até hoje, eles são conhecidíssimos. Eles criaram novos cineclubes. Tem cineclube que é filhinho do CineTF. Entendeste? Que a gente vai lá, visita e tal. Então, eu acho assim, que valeu a pena. Eu estou assim, sob lítio, sob quetiapina, sob rivotril. Mas talvez eu estivesse assim também se não tivesse feito, entende? Então, ver um aluno meu hoje trabalhando em empresa grande de cinema. Ver uma aluna minha, jurista, lutando pelas causas dos direitos humanos. Ver um menino trazendo outros meninos pra dentro e influenciando. Eles hoje já fazem tudo só. Eu já sei pela internet, quando eles me marcam. Porque eu falo: olha, vai ter um festival! Olha, gente, vai ter, né! Porque eles fazem tudo sozinhos. Eles só me chamam quando é pra conseguir o palco, o holofote, o jornal, a imprensa, entendeu? Mas tem sido assim, graças a Deus.
P/1 - Você fala de uma conexão muito forte com Terra Firme. Você descreveu como uma mulher negra. E você fala que aqui é onde te pulsa a vida, esse território. Eu queria que você contasse um pouquinho mais sobre isso, assim… Quando que você se deparou que era uma mulher negra pra você, como é que é esse sentimento? Se você conseguiu descrever um pouco esse sentimento, que é bastante abstrato.
R - A tua pergunta, ela é muito complexa. Porque quando a gente se depara… Quando a gente se reconhece como uma mulher preta, a gente vai olhar pra trás e vai ver que a gente sempre foi preta. Que a gente nunca foi de outra cor. E que a gente sofreu opressões que era porque a gente era preta, mas a gente não sabia quando a gente sofreu. Quer ver um exemplo que eu te digo? A minha canela, ela tinha uma coisa que ficava… A gente chamava de tuíra, que é como se desse pra escrever nela, na perna. Aquilo dali pode ser poeira, de fato, pode ser tu não te lavares direito. Mas aquilo dali tem a ver com o nível de melanina que tu tem no teu corpo. No branco não aparece muito, se tu for riscar, mas no preto aparece. E as pessoas ficavam me chamando o tempo todo de tuirenta. E eu não gostava daquilo. E aquilo fazia com que eu tivesse uma relação escrota, e essa é a palavra, escrota com as minhas pernas. Eu aprendia a não gostar das minhas pernas. Uma outra coisa que acontecia muito, eu andava no grupo de amigas, todas as meninas que tinham a pele mais clara, elas eram sempre as mais bonitas. Eu sempre era a mais feia. Só hoje eu sei que é porque eu era preta. Entendeste? Ser clarinha, é ser bonita. Ser pretinha, é ser feinha. Entendeu? E se se arrumar, fica só bonitinha. Esse tipo de coisa, ele vai marcando a gente. A Bell Hooks, ela faz a gente compreender sobre essa relação de amor com a gente mesmo, o afro-amor e o auto-amor. É aquela coisa de você se reconhecer enquanto uma pessoa que tem valor, que é diferente e que essa diferença não vai ser menor e nem maior do que outra coisa. Mas quando foi que eu me vi preta? Quando eu comecei a me relacionar com pessoas de movimento preto, que milita pela causa preta. Por exemplo, o Casa Preta, O Dom Perna, que é um dos representantes do Casa Preta, ele é um irmão pra mim. E a primeira vez que a gente se encontrou, que a gente conversou, ele já sabia da minha existência, eu já sabia da existência dele, eu já era famosa, e ele também. E aí, a gente conversando, ele diz assim: e aí!... Conversando e tal, aí eu não sei como foi que veio, ele disse assim mesmo: qual o seu livro de cabeceira? Ele falou pra mim. Aí, eu disse assim: ah, é o Pequeno Príncipe. Aí ele fez, “Putz, uma obra racista.” Aí, eu fiquei assim. Eu disse: o quê? Ele disse: uma obra racista. Aí, eu disse: como assim, Pequeno Príncipe é uma obra racista? Ele disse: meu, presta atenção! O garotinho é um branco do olho azul, louro, que fica arrancando as sementes de baobá do planeta dele. O Baobá vai fazer mal pro planeta dele. Quem é o Baobá? Aí, tá aqui! O Baobá é a árvore que representa a ancestralidade afro. Então, o Baobá vai destruir com o planeta do Pequeno Príncipe, que é o menino branco, loiro, do olho azul. E a gente não vê isso. A gente lê... Está planejado desde sempre, desde a infância, entende? Então, foram essas sacações dentro dos movimentos, é que eu fui percebendo o quanto de fato eu era uma mulher preta. Eu costumo dizer que eu sou uma mulher afro e indígena, mas isso já gerou tanta polêmica em mesa. Mesa de convivência, em mesa, em congresso, que eu não sei o que. Que eu falo, eu sou uma mulher afro-indígena, ponto. Acabou. “Ah, mas porque, não sei…” Porque eu me reconheço. E é isso!
P/1 - Você falou muito ao longo da conversa dos seus filhos. E você também falou do seu marido. Eu queria que você me contasse quantos filhos você tem, quando que você casou.
R – Aí, é a hora que tu queres que eu chore. Poxa! Bom, eu tenho quatro filhos. São duas filhas adotivas e dois filhos paridos. As minhas duas filhas adotivas, elas eram minhas alunas. E dentro da complexidade da vida dos alunos que eu tive, eu adotei por isso, por questões mesmo muito sérias de risco de morte, entende? Então, foram meninas que eu adotei simplesmente. A Keyla, quando eu conheci, ela era uma criança, ela tava no 6º ano do ensino fundamental, perdeu a mãe pro câncer, perdeu o pai logo em seguida. E enfim, ela não gosta que eu conte muito a história, mas estava num contexto muito perigoso pra ela. E eu fui lá e busquei ela pra mim. Eu lembro quando eu busquei ela pra mim, a minha mãe disse assim, mesmo: eles vão invadir tua casa e vão matar todo mundo. E eu dizia: cara, eu não vou deixar... Ela é extremamente inteligente, uma das minhas melhores alunas. Eu não vou deixar nessa vida, nesse lugar. E é interessante porque quando ela fez o vestibular pela primeira vez, ela passou na UFPA. Se eu não me engano, foi em Psicologia. Depois ela passou em Letras. Que eu disse, não é possível que... E agora ela está terminando Pedagogia. Mas olha só, eu não sei onde ela estaria. Agora ela está aqui. E é uma figura que mais cuida de mim, das minhas crises. A gente se escolheu. Todo mundo fala assim, mesmo, pra mim: tu segura a onda de todo mundo, quem segura a tua? Ela. Ela segura a minha onda. Ela cuida de mim. Ela me conhece como ninguém, assom. Eu costumo dizer assim, pra ela, tu só precisa estar perto, eu não preciso falar nada pra ti, absolutamente nada. Tu só precisa estar perto. Eu já tô bem. Os meus dois filhos paridos… A outra que eu adotei, ela saiu de casa, ela casou, saiu de casa, não tá mais em casa. Os meus dois filhos paridos são, nossa, é a minha carne, assim. O meninozinho, é um menino trans, que se assumiu trans com 11 anos de idade, e que eu tive que ir pra dentro da escola de aplicação da Universidade Federal do Pará, exigir um regimento pra que ele pudesse ter o nome social aceito, não tinha. Ah, não tinha, eu fui buscar na UFPA, e comecei a lutar com relação ao banheiro, que ele tinha infecção urinária, pra usar o banheiro, ficava muito tempo sem usar o banheiro. Então, foi uma luta muito grande com relação ao fato dele ser trans. E hoje eu sou uma professora que dou aula para os professores da escola de aplicação, para que eles possam perceber a diversidade de gênero e reconhecer e respeitar. Todo ano eu dou duas formações, uma no primeiro semestre e outra no segundo semestre. E a gente evoluiu muito com isso. Mas assim, esse sofrimento que ele teve todo, fez com que eu também sentisse muito acompanhar tudo isso. E o outro, grandão, que acabou de sair, é um molecão. Então, assim, a nossa família, ela é uma família muito parecida com a minha primeira família da mamãe, porque a gente almoça junto, senta junto na mesa. Isso daqui é uma coisa, assim, quase que uma religião pra gente. E depois que a gente come, a gente fica horas conversando, e a gente ri muito, e a gente conta muita história, tem muito do papai na gente, tem muito da mamãe na gente, sabe? Então assim, ele foi pra casa da avó agora, vai ficar horas lá conversando com a avó dele. Então, é uma família muito alegre, é uma família assim, que ri muito, que tá o tempo todo na sacanagem. A gente não para de rir e de brincar um com a cara do outro, a gente não para. A gente faz uma comida, é uma sacanagem só. A gente prepara alguma coisa, tudo é uma festa, entende? Então, assim, por ser assim, por ser desse jeito, a gente é muito apegado um no outro. Então, a gente tem uma dependência emocional muito grande. É horrível isso, sabe? É um o tempo todo dentro do quarto do outro. Tem horas que eu falo assim: dá licença! Poxa! Sabe? Por favor! Parece gato se esfregando por aqui, entendeu? Mas é porque a gente foi criado assim, entende? Os meus filhos, eles são… Os meus filhos, eles são o grande motivo do Cine Clube TF. Se o Cine Clube TF existe, é porque um dia eu quis que o mundo fosse um pouco melhor para que eles pudessem viver. E aí, eu fui descobrindo que eu tinha um monte de filho, em um monte de lugar, que precisava muito dos meus cuidados. Tem vezes que eles têm ciúme dos meninos, muito ciúme mesmo. E ele então, nossa, o mais velho então, nossa. Ele fala: de novo! Todo tempo! Mas é porque… Eu imagino, toma tempo da mãe deles. Mas eles cresceram também dentro do projeto, então eles se dão como irmãos também dentro disso, entende?
P/1 - E o marido?
R - O marido eu conheci há pouco tempo, casei vai fazer um ano. Ele é esse braço que falta. Assim, ele tem uma sensibilidade muito grande pra mim. Ele só me vê. Eu tenho uma impressão assim, que às vezes ele carregou uma... Ele é muito novo. Eu chamo ele de Macronzinho, ele fica P da vida. Mas é porque ele tem uma sensibilidade e ele carregou uma responsabilidade muito grande pra questão dos meus problemas de transtorno. Então, por exemplo, essa coisa de ficar andando de um lado para o outro, de um lado para o outro. Ele fala: bora fazer uma atividade física? Bora não sei o que, não sei o que… Então, assim, ele entra na história sem tornar isso pesado. Então, assim... Entra mesmo, sério. Teve uma vez que ele me convidou pra correr na João Paulo, que é uma avenida ali, onde só tem carro, quase não tem árvore. Três horas da tarde, onde o sol está derretendo, está fritando. E eu fui. E a gente foi. Quando voltei, voltei melhor. Então, ele é esse parceiro que está ali cuidando de mim, cuidando de mim. Se me dá uma crise, é ele que me agarra, é ele que me segura. Entendeu? Eu acho que a gente formou um par muito bacana, assim.
P/1 - E agora pra gente começar o encerramento, uma pergunta bem difícil. O que você espera pro futuro? O seu, o da Terra Firme?
R - Eu espero para o futuro que a gente tenha condições de manter a nossa afetividade, sabe? O mundo está pegando fogo, literalmente. Está pegando fogo. As emoções, elas estão muito intensas, em todos os aspectos. A gente está adoecendo mentalmente. Tem muita coisa boa acontecendo? Tem. Mas tem muita coisa ruim acontecendo. E os nossos jovens estão confusos. As nossas crianças estão pedindo socorro. E nós, adultos, precisamos de colo. Então, a gente precisa de estrutura para manter a afetividade. Só o afeto vai fazer com que a gente descubra maneiras de lidar com as adversidades. Só que estão roubando as nossas estruturas. Estão tirando o nosso chão, estão cortando as nossas árvores, sabe? Estão transformando os nossos sentimentos afetivos em matéria e está começando a virar uma grande guerra. Está acontecendo uma grande guerra. Então, eu espero para o futuro, estrutura. Porque o que é necessário, nós já temos. Que é afeto. Eu não preciso te conhecer há muito tempo pra eu poder te dar um abraço. Eu não preciso saber de toda a tua história pra poder vibrar positivamente por ti. Eu não preciso que tu diga aquilo que te dói pra eu, de repente, juntamente contigo, tentar descobrir algo que amenize essa dor. Entende? Eu acho que a gente precisa ser mais humano. Acho que a gente precisa ter mais humanidade uns com os outros. E afetividade, pra mim, é o que eu espero para amanhã.
P/1 - O que você achou de contar a sua história pra gente?
R - Intensa, cansativa. Mas libertadora. Porque sou eu. E nem sempre a gente se olha. Nem sempre a gente tem coragem de aceitar o que o espelho reflete. Às vezes a gente vira as costas porque não quer. E é bom se ver. Porque quando a gente se vê, em alguns momentos dói, em outros momentos faz rir. E a gente compreende que isso é viver. Viver é chorar. Viver é sorrir. Viver é ter medo. Viver é enfrentar. Viver é superar. Viver é tudo isso. A gente ser humano, é a gente ter a oportunidade, nos dar a oportunidade de experimentar as sensações que o mundo nos provoca.
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