Entrevista de Mônica de Oliveira Damasceno
Entrevistada por Larissa Nogueira e Priscila Correia
Maceió, 17 de junho de 2025.
Projeto Memórias Que Não Afundam
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P1 - Muito obrigada. Desde já queremos agradecer essa oportunidade de estar entrevistando a senhora, reservando esse tempinho para conversar um pouquinho conosco, tá certo? Vamos começar. Eu gostaria que a senhora se apresentasse dizendo seu nome, local e data de nascimento.
R - Eu sou Mônica de Oliveira Damasceno, tenho 58 anos, sou nascida em Fernão Velho. E moro aqui no Vergel do Lago.
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P1 - Quais os nomes dos pais?
R - Meu pai é Laelcio Silva Damasceno. E a minha mãe é falecida, mas como meu pai ficou viúvo com 19 anos, aí eu tinha um ano e oito meses, aí minha madrasta me criou. Mas eu não gosto de chamar ela de minha madrasta, ela é minha mãe. Aí no meu registro tem o nome da minha mãe. Benedita, não sei de que. Agora, da minha madrasta, Maria Luísa Damasceno.
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P1 - E como você descreveria o relacionamento do seu pai com a sua mãe?
R - Com a minha madrasta, você fala?
P1 - Isso, isso.
R - Eles viveram por 35 anos. Agora também foi muita turbulência, sabe? Meu pai bebia, pescava. Às vezes a gente passava necessidade, muitas vezes. Mas foi assim, turbulência deles. Há 10 anos eles se separaram, mas moravam na mesma casa, só que não dormiam na mesma cama. E a gente tudo pequeno dentro de casa vendo isso, né, a gente se criou assim.
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P1 - Então, Mônica, você tem irmãos, né? Quantos são?
R - São cinco comigo. São quatro mulheres e um homem.
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P1 - E como era a sua relação com seus irmãos?
R - Boa. Porque somos cinco, mas duas... Uma, minha mãe pegou na maternidade pra criar. Uma era do meu pai. Minha mãe botou a gente todo pequeno… Minha mãe saia para trabalhar e botou uma moça dentro de casa, aí meu pai, né? Aí, engravidou ela. Mas quer dizer que ela é minha irmã, parte de pai. Mas estamos bem, graças a Deus.
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P1 - E quais eram os principais costumes da sua família? O que vocês gostavam de fazer?
R - A gente não tinha muitos costumes, porque meus pais eram muito rígidos. Era trabalho, escola, escola, trabalho. Sabe? Meu pai botava a gente como era de menor, assim eu e meus dois irmãos. Ele ia pescar, quando ele chegava a gente tinha que vender, siri e mandi, pra gente comer, porque se a gente não vendesse, a gente não tinha o que comer dentro de casa. Aí, era assim a vida da gente, sabe? Mas a minha mãe nunca deixou faltar nada dentro de casa. A gente ia pra escola, tudo. Só que eu nunca me interessei de ler, porque eu vivia mais tomando conta dos meus irmãos do que estudando. E também eu era muito levadinha quando eu era pequena.
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P1 - Você comentou que começou a trabalhar muito cedo. E como foi essa experiência de ter começado a trabalhar muito cedo, não ter estudado, como foi pra você?
R - Pra mim, não ter estudado, foi ruim. Porque também dependia muito de mim estudar. Mas por uma parte foi bom, porque a minha mãe criou nós cinco, rígida do jeito dela, do jeito do meu pai, graças a Deus a gente deu pra coisa, né? Porque tem muitos aí, muitos filhos que dá trabalho, faz raiva. Mas graças a Deus ela soube criar nós cinco.
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P1 - E como era a sua rotina, né? Questão do trabalho, o que a senhora fazia?
R - Eu quando tinha sete anos, que só era eu, a maiorzinha dentro de casa, a minha mãe me botava um banquinho, assim, na pia, e ensinava eu a tratar a galinha. Aí, eu tratava a galinha do jeito que ela me ensinava, ela ficava perto, né? Porque quando ela ia trabalhar, não precisava ela fazer o almoço, eu já fazia pros meus irmãos. Aí, a rotina era essa.
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P1 - E quais foram os maiores desafios que a senhora enfrentou durante esse tempo?
R - Os desafios foram passar fome com meus irmãos [choro]. Foi! Quando a gente não tinha o que comer, a gente... Eu não sei se ainda existe hoje aqueles bolinhos que tem um papelzinho por debaixo e suco, aquele suquinho que o povo dizia… Que hoje não existe mais, que chama mancha-pulmão, né? Aqueles Kisuco. Mas ela dava pra gente comer, pra não passar fome. Foi muita coisa. Muita coisa na vida da gente. Minha mãe e meu pai eram muito rígidos. Muito severos. Ele não deixava, mas também a gente tinha que fazer o que ele queria. Foi o exemplo que ele deu pra gente. E hoje, eu dei pros meus filhos. Aí, graças a Deus, a gente tá aí.
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P1 - E os maiores aprendizados que a senhora carrega?
R - Como assim?
P1 - O que a senhora aprendeu com tudo isso? O que a senhora passa para os seus filhos?
R - Eu aprendi muita coisa, porque eu aprendi tudo, né? Porque hoje eu sou mãe de três filhos, nunca deixei faltar para os meus filhos, ensinei eles como pobre, do jeito que meus pais me ensinaram, entendeu? E ensinei a eles não matar, não roubar, né? Que não era do jeito que a gente queria, sabe? Hoje eu me sinto uma grande mãe. Tenho um filho de 31 anos, que ele é que nem eu, não quis nada com a vida. Tenho uma filha de 27 anos, que ela não mora comigo, ela mora em São Paulo, hoje fez a faculdade, passou na faculdade. Tenho um filho de 22 anos, que ele está trabalhando e faz faculdade. E graças a Deus, eu tenho uns filhos de ouro.
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P1 - E como é a relação? Com seus filhos?
R - Ah, bem. Graças a Deus. Só o mais velho que é ele lá no canto dele e eu cá. Eu agradeço muito a Deus porque eu tenho três filhos maravilhosos. Mas às vezes eu fico perguntando a mim mesma. Por que eu não tive sorte assim? Porque meus dois filhos, todos dois são homossexuais. Gostam de homem, né? Esse mais velho está com 16 anos, que é casado com outro. E o mais novo, dentro de casa, é a mesma coisa. Agora, a menina, graças a Deus… Mas fora isso, eles não me dão trabalho, eles não me dão dor de cabeça, eles não me fazem vergonha. Graças a Deus.
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P1 - E atualmente, o que é que você gosta de fazer? Qual a sua rotina?
R - Eu gosto de tudo. Porque do jeito que meus pais me ensinou, eu aprendi. Não ter preguiça pra nada. Eu comecei a trabalhar, que nem eu disse, com 9 anos, vendendo siri e mandi… Eu trabalho de tudo. Eu tomo conta de criança, tomo conta de idoso. Trabalho com sururu, entendeu? Porque quando eu fiquei grávida do meu filho mais velho, meu pai me botou pra fora. Aí, eu tinha 19 anos. Aí eu fiquei na casa de um, na casa de outro. Eu fui abusada pelo meu próprio cunhado, que eu pedi uma dormida pra minha irmã, e quando eu me virei, meu cunhado estava por de trás de mim. Aí, eu tive que dizer a minha mãe, aí foi quando ela me trouxe de novo pra casa. Mas estou aqui, vivendo.
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P1 - E atualmente, a senhora trabalha com o que? A senhora disse que trabalha com diversas coisas, né?
R - É. Atualmente, eu estava tirando sururu. Meu menino mais novo, ele tinha sete anos. Aí, eu pegava muita lata de sururu pra despinicar. Muita. Aí, teve uma colega minha que disse: “Mônica, por que você não pega sururu pra você mesmo? Pra você trabalhar. Você é uma menina trabalhadeira, tem coragem de trabalhar.” Aí, eu disse: “E como faz Rosa?” “Você pega de duas, três latas, você mesmo cozinha, você mesmo bate.” Aí, eu comecei a fazer isso. Eu deixei de trabalhar para os outros, para trabalhar pra mim. Comecei com uma mesinha, daquelas mesinhas de plástico. Mandei meu menino, que ele é esperto, fazer uma peneira. Aí, eu disse: “E agora, Rosa, como é que a gente peneira?” Aí, ela me ensinou a primeira vez, pronto, a terceira vez, pronto. Aí, graças a Deus… Aí, só era eu e ele dentro de casa, porque os meus dois maiores, minha mãe tomou conta, a de São Paulo saiu da casa da minha mãe com 18 anos e o outro com 17. Só ficou eu e ele dentro de casa. Aí, a gente começou, eu e ele. Não deixava ele faltar a escola. Aí, eu ficava na porta, às vezes, amanhecia o dia despenicando sururu. Porque eu tinha começado agora, como é que eu ia pagar alguém pra despenicar sururu pra mim? Aí, eu fui, fui... Aí, depois chegou umas pessoas, me apresentou para outras pessoas. “Olha, passa o seu sururu pra tal canto.” Aí, eu passava. Depois eu fui. Eu mesma trabalhei com esses pescadores que iam em Coqueiro Seco buscar o meu sururu. Eu pagava uma canoa, aí, vinha sete, oito, dez latas. Já botava pra duas, três meninas. Aí, foi assim que eu criei o meu filho mais velho. E hoje ele tá aí, graças a Deus, estudando, trabalhando e fazendo a faculdadezinha dele. Eu agradeço a Deus toda vez, eu me ajoelho e agradeço a Deus que hoje eu sou uma mulher rica. Porque eu morei dentro dessa favela 18 anos. A minha casa tinha uma telha. Pra fazer cocô, você tinha que fazer cocô numa sacola e sacudir dentro da lagoa. Pra tomar banho, era banho de cuia. Entendeu? E, às vezes, eu me acordava e via aquele gato, não, aquele rato, daquele tamanho, andando dentro de casa. Hoje eu me sinto uma mulher rica, com a graças de Deus. Sou uma mulher muito rica.
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P2 - Mônica, você falou aí que começou a trabalhar para você, vendendo seu sururu e conseguiu pagar uma pessoa para buscar o seu sururu. Como é essa experiência? Como você se sente trabalhando para si próprio?
R - Eu me senti muito feliz, pra não depender de ninguém. Porque eu tenho três filhos, cada filho é de um pai. Eu não tive sorte com um companheiro. Aí, eu fui me virando sozinha. Quando o meu pai me botou pra fora, que a minha mãe foi me buscar com o meu mais velho, ele disse: o primeiro eu aceito, o segundo eu não aceito mais você dentro de casa. Aí, eu pedi um saco de leite, ele me negou, um saco de leite pro meu filho. Também, até na hora da morte dele, eu perdoei ele, né? Aí, a minha mãe foi... “Você tem coragem de trabalhar no mercado?” Eu disse: “Tenho!” Aí, eu comecei a vender sabão e papel higiênico na mão. Sabe? Aí, foi quando eu conheci o pai da minha filha. Ele trabalhava com cereais. Aí, me envolvi com ele, “embuchei” de novo. Aí, você sabe, a gente com filho na casa de mãe e pai não presta. Aí, peguei meus filhos… Aí, do papel higiênico e do sabão, fui vender tomate na cabeça. Andava com o tomate na cabeça pra cima e pra baixo. Botava a caixinha de tomate no chão, quando dizia: “lá vem o rapa”. Eu acho que vocês sabem o que era o rapa, né? Aí, eu segurava a caixa assim, de tomate, e corria, me escondia, pro rapa não pegar a minha mercadoria. Levava ele com dois, três “go go”, o colchãozinho do berço, e enfiava dentro da banca das meninas. Aí, foi assim que eu criei ele. Eu me sinto uma mulher feliz, que eu batalhei, corri atrás e consegui. Eu me sinto uma mulher feliz.
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P1 - E nas horas de lazer? Além da senhora trabalhar, deve ter um momento de lazer, o que a senhora gosta de fazer?
R - Eu gosto muito de tomar uma cervejinha e gosto muito de uma praia. Agora, eu não posso mais beber, porque eu sou hipertensa, tenho diabetes, pressão alta, artrose, não sei o que, não sei o que. Só vivo assim, inchada, aí, eu não posso. Aí, trabalhei agora para a Corema, com o sururu, trabalhei muito, sururu. Mas não era para mim, já estava trabalhando para os outros. Mas eu sou assim, se você me pede uma coisa, eu não sei dizer não. Sabe? Tem uma colega minha que ela disse: “Mônica, você quer tomar conta do meu sogro? O meu sogro teve AVC. A gente não pode pagar muito, a gente pode pagar pouquinho. Porque são cinco filhos, cada qual dá cem.” Aí, eu, eu não tô falando nada… Porque quando eu estava na Lagoa, aí a Braskem não deixou a gente trabalhar, por causa das coisas do óleo, né? E o sururu morreu, estava vindo muito peixe morto. Aí, ela disse que não queria que a gente trabalhasse. Aí, eu não fui trabalhar. Aí, eu disse a ela, “Não estou fazendo nada, vou tomar conta dele.” Aí, eu estou tomando conta dele. Ele teve o AVC, que é o lado morto, aí eu tomo conta dele. Mas eu já tomei conta de menino, estou tomando conta de velho, já trabalhei com sururu, já trabalhei com tudo que Deus me deu. É por isso que eu disse para você, eu não tenho preguiça pra trabalhar.
00:16:11
P1 - Você comentou agora sobre a Braskem, que não deixou mais a senhora trabalhar. Qual era a impressão sobre a Braskem antes de ter acontecido tudo isso, antes do tremor? Qual era a sua impressão? O que a senhora escutava falar?
R - O povo dizia que fazia medo, né? Sempre esses negócios que ela soltava. Tanto que eu botei ela na justiça, até hoje tô esperando. Aí, pronto, o povo já dizia. Aí, teve uma vez que eu fui tirar sururu na beirada, que a gente tira sururu da cintura para baixo, na beirada. Aí, estava fedendo demais a água, estava um cheiro horrível. Aí, o pessoal disse: “olha, o sururu está morto, tá morrendo”. Não deixou eu trabalhar. Aí, foi quando eu tomei conta desse senhor. Mas quando tem sururu, aí eu mando as meninas trazer sururu pra mim, eu despenico tudinho.
00:17:09
P1 - E como era a sua vida, a sua rotina antes do afundamento dos bairros?
R - Antes? A minha vida, minha filha, era sempre no sururu, quando tinha. Quando não tinha, eu fui trabalhar com esse senhor. Mas a minha vida era corrida, porque eu batia sururu, cozinhava, levava, porque hoje até a minha mãe reclama, porque eu tenho problema de coluna, que a minha coluna tá meia troncha. De eu pegar o carro de mão, cheio de sururu e levar lá pro dois ou pro três. Aí, hoje tô com um monte de problemas.
00:17:46
P1 - E aconteceu aquele primeiro tremor, né? Onde é que a senhora estava? O que é que a senhora ouviu? O que é que a senhora sentiu nesse dia?
R Medo, medo. Porque no dia que teve a gente não tava aqui ainda, a gente tava nos barracos. Eu morava naquele barraco, ali no hotel Sururu de Capote, que chamava, favela Sururu de Capote. Lá perto do Você Decide. Aí, era lá. Eu me acordei aperriada. Aperriada mesmo, né?
00:18:16
P1 - E como você soube que algo estava errado com o solo? O que a senhora suspeitou? O que a senhora ouvia falar?
R - Eu soube pela televisão. Toda hora a gente se sentava pra assistir, pra escutar. Aí, eu soube. Todo mundo falava, né? Aí, a minha mãe… Como a minha mãe mora lá no Joaquim Leão, ela disse: “Ó minha filha, qualquer coisa você corra pra cá.” Aí, eu disse: “tá!” Mas graças a Deus não aconteceu nada. Eles só não deixaram a gente tirar mais sururu, e nem pescar.
00:18:54
P1 - E qual foi a sua reação ao descobrir o que estava acontecendo?
R - Medo, né? Porque a gente ficou com medo de trabalhar, ficou com medo de comer o sururu, porque se a gente comesse a gente morria. A gente ficou com medo.
00:19:11
P1 - Essa coisa do medo, né? Não podia trabalhar, não podia comer o próprio sururu, que é uma coisa assim tão tradicional aqui de Alagoas. E o que mudou na vida da senhora a partir desse momento? Tanto assim a questão do seu trabalho, da sua vida. O que foi mudado?
R - Foi mudado, no tempo, foi mudado que eu fiquei aperreada. Porque o meu negócio era não correr pra casa da minha mãe e não faltar nada dentro da minha casa. E nem faltar nem pra mim… Porque eu gosto sempre de ajudar o próximo. Porque o amanhã só a Deus pertence, então, eu sou assim. Se eu tiver dois quilos de arroz, e chegar uma pessoa na minha porta pedindo, eu dou. Se tiver três ovos, eu vou dizer, “olha, eu tenho três, é dois meu, e um seu, serve?” Aí, eu fico bem satisfeita quando a pessoa diz, serve.
00:20:11
P1 - A senhora comentou sobre os impactos, o sururu morrendo. Como a senhora sentiu esses impactos ambientais por conta desse desastre?
R - Foi esse aperreio todo que a gente sentiu, que nem eu disse a você. Todo mundo sentiu, não foi só eu, todo mundo. Que a gente morava, que era uma família inteira ali na favela. Era uma precisando da outra, era uma porque se a outra não tinha o pó para cozinhar o sururu, já vinha a outra, já dava. Se não tinha uma lata, “ó, a minha peneira quebrou, a minha peneira rasgou.” Já tinha a outra que dava. Aí, agora, cada qual foi para o seu lado, cada qual, né? É, é assim.
00:20:59
P2 - Com relação à Lagoa, a senhora mora durante quanto tempo na favela?
R - Na favela eu morei 19 anos. Na favela, na favela mesmo. A primeira vez, quando o meu menino mamava, eu ganhei a minha casa, não vou mentir pra vocês, que foi daquele tempo do Cícero Almeida. Foi lá na Cidade Sorriso. Só que eu fiquei com muito medo porque eu tomava conta de uma menina de 6 anos, e meu menino ficava na casa da minha mãe. Como era longe, eu trabalhava aqui e morava lá em cima. Aí, só ia em casa assim, só a noite, chegava dez, onze horas da noite. E ficava em casa só no final de semana. Aí, quando foi uma vez, que eu acho que vocês viram na televisão, eu cheguei em casa, a vizinha de frente, o rapaz tinha arrancado a cabeça dela e botado na coisa, na estaca, né? Aí, eu fiquei com medo. Aí, eu deixei a minha casa lá, depois a minha mãe foi, só pegou dez mil na casa. Aí, eu fui, voltei pra favela. Agora só que na favela quando eu voltei, eu não voltei mais pra casa de papelão. Eu voltei pra uma casa que tinha paredes, era uma igreja, mas tinha paredes. Só que não tinha banheiro, nem tinha quintal, era só as paredes mesmo. E na cerâmica. Aí, há algum tempo, o rapaz vendeu por dois mil. Eu tava devendo umas coisas, minha mãe foi e pagou. Aí, eu disse: “mãe, eu quero fazer esse muro aqui, porque mora só eu e o Igor”. Aí, ela disse: “não, minha filha, eu vou fazer, vou mandar fazer”. Aí, fez. Aí, eu voltei para a favela de novo. Aí, com tudo isso, é uns 19 anos.
00:23:03
P2 - E assim, com relação à Lagoa, nesse período todinho, de quando a senhora chegou pra morar, e os dias deles, a senhora sentiu alguma diferença da Lagoa?
R - A diferença, assim, que uma vez ela tá limpa, uma hora ela tá suja, outra hora ela tá cheia, como é agora com essa chuva, ela tá muito cheia, né? E sempre a gente tá olhando. Porque eu moro aqui, mas eu fico com medo, porque é bem ali, né? Mas uma hora é assim, né? Como tá chovendo, ninguém quer tirar sururu, porque fica com medo. Porque não tem sururu, o sururu nesse tempo, ele morre, por causa da água doce.
00:23:46
P1 - E como foi pra você, Mônica, ver... A gente tem a visão aqui do Mutange, né? Como foi pra você ver esses bairros sendo desocupados?
R - Eu fiquei muito triste, porque muita gente perdeu sua moradia, perdeu sua paz de sossego. Porque tem gente que morou 20 anos, 17, 15 anos, agora mora aonde? Eu fiquei muito triste por mim e por eles. Porque eu não quero nada pra mim, mas eu quero dividir, assim, com eles, né? Eu fiquei muito triste com isso. Às vezes, quando eu morava por ali, aí eu via aquela parte, até da janela do meu quarto, eu vejo aquela parte, sabe? Vermelha ali, aqueles matos. Aí, eu fico, meu Deus. Quando a gente passa de carro, que vê, parece um cemitério. Mas é assim mesmo, né?
00:24:46
P2 - Com essas alterações que aconteceram, a senhora notou algum impacto na questão dos animais domésticos ou animais silvestres? Que são aqueles animais que aparecem, que antes não apareciam, que passaram a aparecer.
R - Aqui já ou lá na favela, você está falando?
P2 - Pode falar das duas situações.
R - Na favela aparecia muito. Agora aqui, quando eu mudei para aqui, deu muito aquelas baratas francesinhas. Sabe? Aquelas miudinhas. Deu muito. Agora, na favela, quando eu morava, aí aparecia escorpião, rato e aquela barata que incha o coração, aquele besouro que chama, que incha coração. E um tipo de uma cobra que tinha meio mundo de pé, que eu fui espetada duas vezes. Fui para na UPA duas vezes, que a minha mão ficou desse tamanho. É lacraia, agora eu me lembrei. Aí tinha. Mas graças a Deus aqui não. Aqui só dá só aquelas baratinhas. Sabe?
00:26:07
P2 - Então, com relação aos animais domésticos, também não...
R - Não, não. Eu, quando eu morava lá na favela, eu gostava muito de criar galinha. Que sou eu e animais, eu acho que vocês já estão vendo. Aí, as minhas galinhas morreram, mas aí eu botei, assim, teve uma noite que eu passei “butuca”, vigiando quem matava minhas galinhas. Aí, depois eu descobri que foi o rato que matava, carregava os pintinhos. Mas sobre isso, aqui tá tudo bem, graças a Deus.
00:26:43
P1 - A senhora falou aí da questão dos animais. E com esse desastre ambiental provocado aí pela Braskem. A senhora também falou dos peixes morrendo na lagoa, o sururu também morrendo. Qual era a sua sensação? O que as pessoas falavam? A senhora também quer que...
R - A gente ficou com medo de comer os peixes. Porque às vezes vinha peixe bambo,às vezes eles morriam ali mesmo. Aí, a gente ficou com medo, muito de comer peixe. A gente sentiu muito, né? Eu mesmo, pra minha parte, não ia nem pro mercado comprar peixe, porque eu pensei que o peixe era daqui. Mas muita gente passou “aperreio” por causa disso. Muita gente mesmo. Tanto sururu como peixe.
00:27:33
P1 - Com essa saída dos bairros, com tudo isso que aconteceu. Como isso afetou a sensação de pertencimento e segurança? O que afetou na vida da senhora?
R - Bom, afetou assim, porque eu saí de perto de muita gente que eu gostava. Todo mundo se afastou. Aí, eu pensei assim, pronto, a gente vai sair daqui, aí eu vou ficar de frente à vizinha, a vizinha vai ficar atrás, mas não. Aqui nesse apartamento, como são 20 pessoas, eu não conheço ninguém que morava lá perto de mim. Uma que morava perto de mim já ficou no primeiro prédio, de lá pra cá. O outro ficou lá pra trás. Aí, a gente sente falta das vizinhanças, das fofocas, né? Era bom. A gente ficou sentindo falta disso.
00:28:33
P1 - E como o afundamento e o esvaziamento desses bairros que foram atingidos, você acha que afetou o seu trabalho e a sua renda?
R - Afetou muito. Afetou. Porque a gente ficou assim tudo à toa. Porque por causa disso, a gente perdeu muitos canoeiros, que os canoeiros não querem vir pra cá. E como a gente perdeu o sururu, aí ficou, os atravessadores que vinham comprar sururu da gente… A gente ficou tudo à toa, porque eles não sabem mais onde a gente mora, não sabem onde a gente fica. Tem muitos deles que pegou o telefone da gente… Como eu trabalhava com sururu, quem vinha buscar o meu sururu era o Junior. Ele trabalhava, ele é de roteiro, ele vinha de roteiro pegar o sururu de 4, 5 pessoas. E um rapaz de Recife. Aí, por causa disso, muita gente ficou à toa.
00:29:30
P1 - E quais os maiores desafios em permanecer aqui no bairro, bairro de borda. Qual o maior desafio? É questão do barulho, medo, abandono, acesso a transporte, a questão de saúde, até a segurança mesmo?
R - O medo foi porque a gente não tem segurança aqui. É que nem eu disse à você. Eu moro aqui, mas eu tenho muito medo dessa lagoa encher. Medo, não é porque eu moro aqui em cima, é quem tá lá embaixo. Porque quem está lá embaixo vai sofrer um bocado. E a gente não poder... Como eu, meu menino trabalha, a gente não vai ter como subir, se tiver aqui em cima, a gente vai ter que descer. E eu tenho, assim, são dois quartos, e eu tenho um coração, eu tenho que ajudar quem tá lá embaixo. Eu não vou deixar, se ele tiver família, se não tiver. Mas eu tenho que ajudar quem tá lá embaixo. E a gente não tem segurança aqui. Sabe? Aqui a gente não vê segurança. A gente vai, não vai. Estão matando um aqui. A gente de casa, a gente não sai dentro de casa, a gente só escuta os tiros, né? Aí, não tem segurança aqui, eu não vejo segurança aqui, entendeu? Nem aqui, porque diz assim, “ah, você saiu da favela.” Não, eu saí da favela, mas a favela não saiu da gente. A gente ainda continua aqui na favela, entendeu? A favela não saiu da gente, a gente saiu da favela, a gente saiu de um barraco que morava de plástico, de papelão, de madeira, estamos morando numa casa. Mas a gente não saiu, a gente ainda continua aqui. Do mesmo jeito.
00:31:21
P1 - E qual é o sentimento que você, Mônica, carrega ao relembrar dos bairros que saíram? A senhora andava lá, via o Mutange por aqui. Qual é esse sentimento que você carrega atualmente?
R - Ah, eu fico muito triste com isso, muito triste mesmo. Porque tinha umas pessoas que eu conhecia, andava lá. Eu fiquei muito triste de sempre ver as pessoas pedindo ajuda, pedindo mesmo. Onde ia ficar? Porque morou tanto tempo, porque ficou tanto tempo e de repente fica assim à toa, né? Aí, a gente fica muito triste, porque a gente é um ser humano.
00:32:07
P1 - Mônica, nós já estamos encaminhando para as perguntas finais. Como você vê o futuro dessas regiões que foram afetadas? O que a senhora pensa que vai acontecer?
R - Você quer que eu seja sincera, minha filha? Eu não vejo é nada daí. Que entra governo, sai governo e ninguém faz nada por esse povo. Entendeu? É isso que eu acho. Porque um diz uma coisa, o outro diz outra. E tá aí, o povo tudo na rua, tudo aperreado. Vivendo de aluguel social, um mês dá, passa dois, três meses sem dar. O que eu vejo é isso. Isso que eu vejo.
00:32:56
P1 - E em questão ao futuro do meio ambiente nessas regiões afetadas, o que a senhora pensa que vai acontecer?
R - Eu não penso nada, tá na mão de Deus e na mão dos homens. Porque um diz uma coisa, outro diz outra, ninguém sabe. Só quem sabe é Deus. O que eles vão dizer, o que eles vão fazer, o que eles vão fazer. É isso que eu penso.
00:33:22
P1 - E em questão da lagoa? O que a senhora pensa? O que vai acontecer? Se vai melhorar, se não vai?
R - A gente pede, a gente ora e peço a Deus. Porque essa lagoa é uma mãe pra gente. É uma mãe, tanto faz a gente ter dinheiro ou não ter. E ter coragem pra dizer assim, eu vou ali tirar uma lata de sururu, eu vou ali sacudir uma teteia, e vem peixe, vem camarão. Eu vou ali pegar uma linha. Que nem eu faço dia de domingo, não tenho o que fazer, eu pego uma linha de coisa, vou pescar. Pega aquelas tiguinhas, já dá pra eu tomar um cafezinho, comer com cuscuz.
00:34:01
P1 - E o que, Mônica, que você gostaria que as pessoas soubessem de toda essa experiência que a senhora passou, que tá passando? O que é que você gostaria de contar pras pessoas, sobre tudo isso?
R - Como é sua pergunta?
P1 - O que é que você gostaria que as pessoas soubessem de toda a experiência que a senhora viveu e vive atualmente?
R - Não sei explicar agora isso. Eu queria que o povo lutasse do jeito que eu luto. E ter fé em Deus e dizer: Deus eu quero, eu posso e eu creio. Só isso.
00:34:47
P1 - Mônica, a gente agradece mais uma vez a sua disponibilidade. Esse tempinho que a senhora tirou pra conversar um pouquinho com a gente. Muito obrigada.
R - De nada. Desculpe vocês, mas eu gosto de ser verdadeira. Porque tem que ser verdadeira. Porque não adianta a pessoa chegar numa televisão e dizer uma coisa e não é. Tem que ser verdadeira. E ter fé em Deus. Obrigado vocês por estarem na minha casa. Casa minha, simples. E as portas estão abertas a hora que vocês quiserem vir. Viu?
00:35:26
P1 - Muito obrigada.
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