Projeto Conte Sua História
Depoimento de Benevides Aquino Pacheco
Entrevistado por Karen Worcman e Inácio Neves
Fazenda Grotão, Mogol
Realização Museu da Pessoa
PCSH _ HV 846
Em 22 de janeiro de 2020
Transcrito por Selma Paiva
Revisto por Rosali Henriques
P/1 – Então, como eu falei pro senhor, nós vamos começar lá... assim, pode deixar o cachorro, que ele não vai aparecer, não.
R – Ele carrega esse papel aí. Carrega ele. Cachorro novo é complicado.
P/1 – Cachorro novo é igual criança, né? O senhor me conta de novo o seu nome completo...
R – Benevides Aquino Pacheco.
P/1 – Quando o senhor nasceu? Pode ser só o ano, se o senhor não lembrar.
R – 1943.
P/1 – E qual é o nome do seu pai, completo e da sua mãe?
R – Antônio José Pacheco e Gertrudes Almeida Pacheco, minha mãe.
P/1 – E o senhor lembra, um pouco, o nome dos seus avós também? O senhor conviveu com seus avós?
R – Não. Meus avós convivi muito pouco. Não lembro, não.
P/1 – Nem da mãe, nem do pai, o senhor conviveu?
R – Não.
P/1 – E desde quando sua família estava aqui, nessa casa aqui? Quem foi que fez essa casa?
R – O meu pai.
P/1 – Qual é a história? Desde quando o senhor conhece essa história? Foi seu avô que chegou aqui? Como é que foi?
R – É, o meu avô que o ajudou um bocado aí, mas eu não cheguei a lembrar, não. Lembrei muito pouco da minha avó, a mãe da minha mãe. Meu avô, pai do meu pai, chamava Benevides, mas eu não cheguei a conhecê-lo, não.
P/1 – E da parte da sua mãe o senhor sabe quais eram seus avós ou também não conheceu?
R – Não conheci também. A minha avó, mãe da minha mãe, eu me lembro dela um pouco, mas não lembro direito, não, porque a gente era pequeno ainda, aí logo ela faleceu.
P/1 – E eles faleceram todos, assim, cedo por quê?
R – Não, a minha avó morreu velhinha. Durou muito. Meu avô, pai da minha mãe e do meu pai, eu não conheci, não.
P/1 – O senhor sabe do que eles morreram?
R – Primeiro não tinha remédio, não tinha recurso. Hoje tem recurso, né? Medicina adiantada. É isso aí.
P/1 – Então vamos voltar lá. Se o senhor fechar um pouquinho o olho e lembrar, qual a coisa mais antiga que o senhor lembra, da sua vida? A mais antiga. Pode pensar um pouquinho, assim, se a gente voltasse lá, quando o senhor era bem criança. Qual a coisa mais antiga que o senhor lembra?
R – Ah, a gente era muito arteiro, né? Fazia muita arte. Apanhava muito. Eu lembro que os pais batia na gente.
P/1 – É? Batia do quê?
R – Relho.
P/1 – Dessa vara?
R – Olha o relho lá. Aqui, dependurado. De primeiro era geral, né? O povo era mau. (risos)
P/1 – Como que era?
R – Que a gente fazia arte, né, na escola, a professora batia muito na gente.
P/1 – Também?
R – Ih, apanhava. Tinha uma vara de marmelo, ó, colava na orelha do cara.
P/1 – O senhor lembra disso, de apanhar?
R – E muito. Tinha um professor aí com nome de Nicanor Tavares da Fonseca, batia muito. Era negro. Crioulo criado.
P/1 – Ele era o professor?
R – Era.
P/1 – E como que era?
R – Ah, nego fazia arte, saía da escola brigando com os outros alunos, no outro dia a vara comia. É.
P/1 – Ah, é? Mas por que ele ficava bravo, seu Benevides?
R – Porque a gente fazia muita arte, brigava com os outros alunos, né? A gente fazia arte também.
P/1 – O senhor lembra quando foi que o senhor começou a ir pra escola?
R – Ah, lembro. Devia ter uns sete anos de idade, né?
P/1 – Como o senhor fazia? Quantos irmãos o senhor tinha? Como o senhor fazia pra chegar lá?
R – Ia a pé daqui do arraial. Ia a pé.
P/1 – Ia quem? O senhor e quem mais?
R – Eu mais meu irmão, minha irmã que era mais velha.
P/1 – Quantos irmãos o senhor tem?
R – Doze.
P/1 – O senhor lembra os nomes, pra me dizer?
R – (risos) É muito filho, né? Ó, eu sou o terceiro. A mais velha chamava Maria. Zé Lourindo, o segundo. O terceiro, Benevides. Depois... vamos falar dos homens, depois eu falo das mulheres. Tinha o Amado, Severino, que morreu. Esses são os homens. Vou começar a vez das mulheres agora: Maria, Evangelina, Nedina, Mercedes, Terezinha, Paulina.
P/1 – E o senhor lembra do nascimento dos seus irmãos mais novos, como era?
R – Lembro.
P/1 – Como era?
R – Nasceu tudo nessa casa aí. Criança está chorando, (risos) minha mãe estava gemendo pra lá, não sei o quê.
P/1 – Mas o senhor levava susto com isso?
R – Não. A gente tinha muito sono, acordava e via a criança chorando, né?
P/1 – Mas como era? Vinha uma mulher de fora pra ajudar?
R – Vinha. Uma parteira, né, que eles falam. Pra ajudar a nascer a criança.
P/1 – E nascia todo ano?
R – É. Todo ano acho que nasceu. Teve um ano acho que nasceu até dois. (risos) Meus irmãos.
P/1 – E morreu algum?
R – Morreu uma menina de oito meses primeiro. Nasceu com problema, né? Depois morreu o Severino. Tinha esquecido de falar dele. (risos) Lembrei nele aqui, agora.
P/1 – O que aconteceu com o Severino?
R - Severino morreu com 22 anos.
P/1 – O Severino morreu mais velho.
R – Não.
P/1 – Conta a história. O que aconteceu?
R – O Severino foi em Lima Duarte e daí ia prum baile e deu um problema, um desastre no caminhão. O caminhão bateu nele, na estrada, sabe?
P/1 – Ele foi pro baile de cavalo?
R – Ele ia a cavalo pro baile. Aí foi pro hospital, trataram, o médico fez a cirurgia: “Está tudo bem”. Foi embora pra casa aqui, quando foi de manhã minha mãe levantou cedo, foi levar a quitanda pra ele, o café, ó, deu uma explosão de sangue, arrebentou uma veia aqui, morreu na hora. Aí tem o outro, o Amado morreu também, o que a gente conversou ontem, o mais velho.
P/1 – Seu irmão mais velho?
R – Não. Era mais novo do que eu.
P/1 – E o que aconteceu com o Amado?
R – O Amado é o álcool. Bebia demais.
P/1 – Como foi que o Amado começou a beber? Com quantos anos?
R – Ah, começou cedo. Treze anos, por aí. Catorze.
P/1 – Como a pessoa começava? Tinha bebida em casa?
R – Não. No botequim, né? Em casa, mesmo, meu pai não aceitava, não.
P/1 – Mas o seu pai bebia, não bebia?
R – Não. Não bebia, não.
P/1 – Ah, não? Ontem pensei que era o seu pai que tinha morrido de beber.
R – Não, o Amado. Meu pai não bebia, não. De solteiro, ele falava que tinha uns colegas que encontravam com ele e levava uma porção de pinga pra dois, só um vidrinho, então ele bebia. Mas não bebia, não. E o Amado começou a beber, não alimentava, aí deu cirrose, sabe? Morreu.
P/1 – E quantos anos ele tinha?
R – Cinquenta e três de idade.
P/1 – Quando ele começou a beber, os seus pais batiam, bateram nele?
R – Batiam, aconselhavam, mas não conseguiram dominá-lo ele não. O vício é complicado, né?
P/1 – E como sua mãe ficava quando perdeu o...
R – Ficou muito contrariada, né? Mas aí, depois, até conformou porque ele saía pra beber, ficava oito, dez dias fora, né?
P/1 – Aí ficava por aí?
R – Ficava. Ia pra Lima Duarte, né? E outros lugares. Bebendo e não alimentava, sabe?
P/1 – E aí?
R – Foi indo, até Deus chamar, né? Complicado.
P/1 – Agora o senhor me contou da escola, então tinha o Nicanor. Qual a história do Nicanor? É engraçado que ele era negro. Era normal o professor ser negro? Como é que era isso?
R – Era normal. Ele era mau, mesmo, gostava de bater. Tinha prazer (risos) de bater no cara, né? Tinha umas varinhas de madeira fininha...
P/1 – Como que era? Ficava, assim, no canto da sala?
R – Ficava no canto da sala. Então batia na orelha da gente com a madeirinha, agarrava na orelha da gente, assim e batia com a cabeça da gente na parede da sala. Ihh, história dele... Tem muita gente que morreu. Velho Nicanor está queimando no fogo dos infernos.
P/1 – Por que vocês tinham raiva dele?
R – Tinha muita raiva. Ele gostava de bater. Tinha prazer de bater.
P/1 – Ele tinha prazer de bater nos meninos?
R – Tinha.
P/1 – Ele batia nas meninas também?
R – As meninas, tinha umas colegas da gente que apanhavam, mesmo, muito.
P/1 – E os pais deixavam? Achavam normal?
R – Achavam normal aquilo, tinha que bater. Hoje não pode, não.
P/1 – Mas os pais achavam pouco?
R – Ainda foi pouco, ainda.
P/1 – Me conta um pouco, mesmo, nessa época, como que era negro com quem não era negro, não tinha problema? As pessoas casavam?
R – Casavam. Não tinha problema, não.
P/1 – Era tudo misturado?
R - É isso aí. Não tinha nada a ver, né?
P/1 – Aí o senhor foi estudando, como foi? Como foi que o senhor parou? Me conta.
R – Parou porque aí, de primeiro, tinha um trato: conforme a idade, podia parar, tinha que parar. Se fosse seguir carreira, tudo bem, mas não ia. Não tinha condição, né? Pronto. Tinha que vir embora pra casa trabalhar.
P/1 – Aí o senhor tinha que idade?
R – Aí tinha 17 anos, já, né? Não. Acho que 13 anos, que é muito.
P/1 – Estudou até a terceira série?
R – É, terceira série. Só.
P/1 – Ficou lá três anos?
R – É, uns três anos, estudando.
P/1 – E aí me conta como era sua vida, assim? Voltava pra casa e como é que era? Quando o senhor estava na escola, o senhor trabalhava?
R – Depois que chegasse da escola... nós não tinha merenda, não, minha filha. Não tinha nada pra comer. (risos)
P/1 – Me conta como era isso. O senhor saía de manhã que horas?
R – Sempre a gente ia lá pra aula, almoçava aqui e dez horas ia pra aula. E saía quatro horas. Saía da escola com uma fome, minha filha!
P/1 – Tinha que ficar de dez às quatro sem comer?
R – Sem comer. Aí saía comendo goiaba podre, saía pra estrada com uma fome doida, chegava aqui, comia uma broa e ia trabalhar. Buscar lenha em beirada de mato. Pra fazer a comida, a janta. É isso aí.
P/1 – E aí, me conta, quem cuidava da galinha, dos porcos? O que tinha de bicho aqui?
R – Ah, tinha porco, aí, tudo. Minha mãe cuidava, minhas irmãs que eram mais velhas. É. E a gente tinha que trabalhar. Tinha que roçar, tinha que capinar depois que chegava da escola.
P/1 – Depois que chegava da escola?
R – É. Hoje, não. Hoje o carro pega na porta, né? A escola tem merenda. Tem de tudo. O começo da vida é complicado, minha filha. É. E estou aí. Graças a Deus trabalhar não mata ninguém, não.
P/1 – Mas o senhor tem boa lembrança dessa época?
R – Ainda lembro, ainda. Lembro. Essa história de sair da escola com fome, brincando com os alunos, dando pedrada nos outros, no outro dia a vara comia.
P/1 – Quando vocês brigavam, davam pedrada, a vara comia?
R – No outro dia que chegava na aula, né? É.
P/1 – E o padre? Tinha padre aqui?
R – Não. O padre sempre celebrava missa, mas vinha de Lima Duarte.
P/1 – E ele era bravo? Como é que era?
R – Não. O padre, não. Até ele era bem controlado, né? É.
P/1 – Mas o senhor fez primeira comunhão, crisma, como é que foi?
R – Fiz.
P/1 – Era o quê? Era ir lá?
R – Eu tinha que ir lá na crisma, lá em Lima Duarte, né? Primeira Comunhão.
P/1 – E aí tinha o dia, tinha uma roupa especial?
R – Tinha roupinha fraquinha, que não tinha dinheiro pra comprar, uai. A roupa era fraca. É.
P/1 – Me conta quem ficava com a roupa, como que distribuía a roupa pros irmãos?
R – A minha mãe fazia roupa pra nós. Comprava o pano e fazia. Minha mãe era muito trabalhadeira.
P/1 – E o seu pai trabalhava no mato?
R – É, tirava um leite. Mas era pouco leite.
P/1 – E ele vendia pra alguém?
R – Vendia pro laticínio. Aí fazia um dinheirinho, mas tinha que fazer a compra da casa, né? É.
P/1 – E essa terra ele sempre teve? Ele que foi fazendo a casa?
R – É. Foi fazendo, aumentava, né? Esse terreno aqui foi herança da minha mãe. Foi trabalhando aí e foi nos criando.
P/1 – Mas aí quantos quartos tem nessa casa?
R – Tem quatro quartos. Tem a sala ali, tem a salinha, tem a cozinha.
P/1 – E os meninos dormiam tudo num quarto e as meninas noutro?
R – Dormia tudo junto. Os homens dormiam quatro numa cama só, minha filha. (risos) Eram quatro numa caminha de solteiro que a gente tem aí. Não tinha condição, uai. Não tinha. Hoje cada um tem a sua cama, né? (risos)
P/1 – Aí dormia os quatro aqui e as meninas lá no outro?
R – É. Tem um quarto ali que dormiam quatro. Dois dormiam numa cama e dois na outra. A história é essa.
P/1 – E tinha história de assombração aqui, de noite? Como é que era?
R – Não.
P/1 – Não tinha essas histórias?
R – Não tinha, não.
P/1 – O senhor não tinha medo de nenhum desses...
R – Não tinha, não.
P/1 – Ninguém contava isso, se ficasse perdido aí na mata à noite?
R – Não. Sempre vinha uns mais velhos e contava que tinha assombração, tinha isso, tinha aquilo, mas nunca vi. Andei muito de noite. Até dez horas da noite, onze horas, andava a noite inteira.
P/1 – Por quê?
R – Pra fazer um dinheirinho, minha filha.
P/1 – Então me conta essa história do dinheirinho.
R – O dinheirinho é o seguinte, olha, vou começar outra história, trabalhei de empregado dez anos, depois a firma quebrou, aí eu saí da firma com dois mil. Não, mil e oitocentos. Era muito dinheiro. Mil e oitocentos reais. Que seja reais, cruzeiro antigo, sabe? Aí eu peguei aquele dinheirinho e comprei um pedacinho de terra.
P/1 – E o senhor já tinha quantos anos?
R – Já tinha uns 25 anos, por aí. E aí fui comprando bezerrinho, pus naquele terreno ali e fui negociando aqueles bezerros e comecei a comprar gado de fazendeiro, pra aqui e pra ali.
P/1 – Mas com aquele dinheirinho?
R – Comprava e vendia. Comprava a prazo e vendia a dinheiro e fui trabalhando, andando de noite atrás de gado e adquiri esse dinheiro e depois eu comprei.
P/1 – Como? Me explica essa história de andar de noite atrás do gado.
R – Andava de noite tocando gado, pra levar pra vender, comprar.
P/1 – Mas seu ou de outros?
R – Eu comprava, né?
P/1 – Me conta o primeiro dinheiro que o senhor recebeu, que foi dessa empresa, né?
R – É.
P/1 – Aí, o que o senhor fez? Foi lá...
R – Comprei esse pedacinho de terra. E ali fui criando um gadinho, nesse pedacinho de terra. Fui vendendo aquele gado, ele aumentava, né? Virava boi. Vamos supor: eu vendia cinco bois, dava pra eu comprar dez bezerros, está entendendo? Aí foi aumentando. Depois vendia aqueles bezerros, viravam boi, vendia aqueles dez bois e comprava vinte bezerros. A história foi essa, assim.
P/1 – Foi indo vendendo boi, criando boi?
R – É. E negociando também. Comprando, vendendo. Quando eu fui comprar essas terras aí, lá naquele Palmonão, que é do Renato hoje, foi meu, eu vendi pra ele. É. Aí que eu fui fazendo dinheiro, dessa maneira.
P/1 – Então o senhor chegou a ter bastante terra?
R – Ih, cheguei a ter uns 60 alqueires de terra.
P/1 – Tudo com isso? Vendendo?
R – É. Com isso.
P/1 – Então o senhor parou de ficar fazendo, capinando aqui na terra e foi...
R - ... negociando. A vida é essa. Passei muito trabalho, minha filha, fome.
P/1 – E foi fazendo casa também?
R – Não. As casas, igual eu fiz em Lima Duarte. Aí foi fracassando gente, eu peguei e vendi pro Renato umas partes aí e construí em Lima Duarte duas casas, depois comprei outra casa lá. Tenho três casas lá. Minha vida era essa.
P/1 – E o senhor guardava dinheiro aonde?
R – Guardei e guardava no bolso. Não parava com dinheiro no bolso, não, né? Depois, no primeiro dia que eu cheguei do Renato, eu pus no Banco. Aí depois fui tirando, pra construir. É. Errado ou não. Fiz certo ou fiz errado?
P/1 – Fez certo.
R – Trabalhei desse jeito.
P/1 – Então, o senhor foi fazendo um bom dinheiro, né?
R – Ah, não, fiz. Hoje ainda tenho um resto de dinheiro apurado, ainda.
P/1 – Está no Banco?
R – Está no Banco. Está quieto, lá. Emprestei um bocado pra particular. Uns setenta mil está provado que eu vou perder.
P/1 – Como assim? Me explica melhor.
R – O cara ficou sem nada. Quebrou. Aí o Benevides ficou com o prejuízo.
P/1 – Não te pagou?
R – Eu tinha que ter posto o dinheiro no Banco. Não tem que emprestar pros outros, né? Particular. Hoje não pode emprestar dinheiro, é crime, né? Quem empresta dinheiro é o banco. Mas sempre dava um jurinho melhor. A gente investiu naquilo. Quando vê, olha.
P/1 – Então o senhor investiu pra pagar? O senhor fez muito isso, de emprestar o dinheiro com juros, né?
R – Emprestar. Dava um juro bom! A gente (risos) investiu naquilo, né?
P/1 – Quantas pessoas o senhor emprestou o dinheiro?
R – Ah, várias.
P/1- Quando o pessoal precisava de dinheiro, vinha atrás do senhor?
R – Vinha atrás do Benevides.
P/1 - O senhor é conhecido aqui como o homem do dinheiro?
R – É, estou conhecido: “Tem lá no seu Benevides, lá tem o dinheiro”.
P/1 – Me explica como o senhor decidia emprestar ou não o dinheiro pra pessoa.
R – Chegava: “Seu Benevides”, com aquela carinha mansa, que o bicho quando vinha pegar dinheiro, é manso, né? “Seu Benevides” - trabalhou muito – “vim cá pro senhor me arrumar um dinheiro, vou te pagar direitinho”. Uns pagou direitinho, ainda tem uns dinheiros esparramados aí ainda, mas tem uns que não vai pagar, mesmo, não.
P/1 – E aí o senhor anotava no caderno ou só ficava tudo na memória?
R – Pegava uma letra do cara, promissória.
P/1 – Ele assinava pro senhor?
R – Assinava.
P/1 – E quanto o senhor cobrava de juros?
R – Ah, o jurinho meu era 2%, 3%, né?
P/1 – Ao mês?
R – Ao mês. O banco não dava nenhum. Investi naquilo, né? Aí não dava. Vamos supor: o Joaquim pega dez mil, né? Dez mil a 3% dá 300 reais por mês, né? Quer dizer que aí dava um dinheirinho bom. E, com isso, nego tomou foi manta. (risos) É.
P/1 – Então, o senhor ‘tomou um chapéu’ de alguém?
R – Tomei ‘uns canos’. É cano que nós fala. Só um freguês vai me fintar 30 mil. E não vai pagar, mesmo, não. Não tem nada.
P/1 – Mas ele pegou dinheiro pra quê?
R – Queria comprar vaca pra tirar leite. E foi indo, bobeou com a crise, foi tomando o gado dele, foi tomando o que devia, ele não abriu mão de vender nada pra mim. Se tivesse me vendido umas vacas pra pagar, mas ele já estava com a intenção de fintar mesmo, né?
P/1 – E aí o senhor não tinha um jeito de forçar a pessoa a pagar, não?
R – Não podia, não, porque eles falam agiota, né? Agiota não pode, não. Não pode emprestar. Se levar na lei, se ferra a gente ainda.
P/1 – Ah, ninguém podia saber que o senhor fazia isso, então?
R – Não. Se levar na lei não podia, não. É pior pra mim.
P/1 - O senhor mais ganhou ou mais perdeu com a história de emprestar dinheiro?
R – Mesmo assim ainda ganhei um bocado, ainda, né? É.
P/1 – Mas seu Benevides, vamos voltar lá atrás, quando o senhor era criança e estava trabalhando: como foi essa história? Alguém na sua família já fazia isso de juntar e emprestar?
R – Não. Meus irmãos investiam investir em outras coisas, né?
P/1 – Em que seus irmãos foram trabalhando?
R – Meus irmãos, depois compraram vaca, foram tirar leite e eu fiquei nessa batida, daí fui negociar, como eu contei pra senhora: vendia boi, comprava boi, dava um lucro, né? Dava um lucro também.
P/1 – E aí o senhor queria o lucro pra reinvestir?
R – Não. Aparecia um lucro, comprava um bezerro, o que for, né? E põe no pasto. Aí foi adquirindo aquele dinheiro, assim. É.
P/1 – Então o senhor, por exemplo, de trabalhar muito assim na terra, o senhor largou, porque o senhor é ocupadíssimo, né?
R – É. Isso aí.
P/1 – E todo mundo conhecia o senhor?
R – Ih, por todo lado me conhece aí.
P/1 – Por essa história do dinheiro ou do boi?
R – Do boi, do dinheiro. É a história.
P/1 – E agora me conta um pouquinho assim: aí o senhor não teve tempo de casar, como é que foi? Foi casar, o senhor casou? Como é que foi? Me conta aí.
R – Ah, não. (risos) Depois comecei com essa companheira aí. Eu já tinha caso com ela, sabe? Mas depois...
P/1 – O senhor vai me contar melhor. Vamos lá atrás.
R – Não, vou parar com isso. (risos)
P/1 – Não, vai, conta pra mim. Antes disso, o senhor tinha namorada?
R – Tinha.
P/1 – Como o senhor começou a namorar? Era aqui no Mogol? Ia pra Lima Duarte?
R – Namorava em Lima Duarte. Por lado de Ibitipoca, Bias Fortes, né? Namorava.
P/1 – Como é que fazia, assim? Era em baile? Me conta como era.
R – Em baile, em dia de festa. Por exemplo: tinha uma festa lá em Bias Fortes tal dia, lá vai o Benevides pra lá e lá a gente arrumava namorada, né? É. Depois largava uma, pegava outra, ela largava da gente também, né? (risos) E vamos pra lá, então.
P/1 – E foi indo. O senhor tinha alguma que o senhor lembra muito, que o senhor apaixonou mais, assim?
R – Não lembro, não. (risos)
P/1 – Não teve nenhuma, assim, que o senhor ficou querendo casar e deu errado?
R – Não. A gente até gostava, mas pensava em casamento, pode não dar certo. Vai dar certo, não. Esse bicho mulher é atrapalhado. (risos) Aí largava, né? Depois essa dona Isabel perdeu o marido e eu fui morar com ela, né?
P/1 – Mas o senhor já tinha caso com ela antes dela perder o marido?
R – Não. (risos)
P/1 – Está mentindo pra mim. Eu juro que eu não conto pra ninguém. Como é? Ela é bonitona demais, né?
R – É bonita e trabalhadeira também. Você está vendo as colchas que ela faz aí?
P/1 – Eu estou. Mulher forte!
R – É.
P/1 – Então, aí o senhor se encantou por ela? Me conta como é que foi.
R – É.
P/1 – Ela morava pra onde?
R – Morava lá no Palmonão. Morou 22 anos lá. Você viu lá a base da casa ali?
P/1 – Vi.
R – Morou 22 anos lá. Ela morava com o primeiro marido, ela já morava lá.
P/1 – O senhor conheceu o primeiro marido dela?
R – Conheci.
P/1 – É? Como ele chamava?
R – Manoel Joaquim Antônio. Está até ali no cemitério. Aí ela tinha cinco filhos.
P/1 – E o senhor ia como? De cavalo, por lá?
R – Cinco filhos. Quando ela perdeu o marido. Aí, com uns dois anos ela ficou na casa do pai, depois não ficou dando certo, tal, tal, tal, tal e aí o Benevides a chamou pra morar com ele.
P/1 – Mas por que o senhor a chamou pra morar?
R – Não sei. Não sei se é sina da pessoa, né?
P/1 – Mas me conta antes: o senhor encantou por ela?
R – Aí chamei pra morar. “Mas o Benevides é muito bobo, como que é bobo assim? Pegou cinco filhos pra criar?”
P/1 – O pessoal era contra, né?
R – É. Era contra.
P/1 – Os seus pais estavam vivos nessa época?
R – Estavam.
P/1 – E eles foram contra?
R – Não. Eles, não. Teve duas irmãs que ficou. É. Inclusive essa aí é a mais velha. Essa que está aí, ó.
P/1 – Essa é irmã sua?
R – Não, é filha dela.
P/1 – Foi contra?
R – Não. Elas eram pequenas, né?
P/1 – É, mas as irmãs não queriam que o senhor casasse por quê?
R – Por causa dos filhos. Pra criar filhos dos outros, não sei o quê.
P/1 – O senhor tinha quantos anos nessa época?
R – Ah, tinha uns 36 anos.
P/1 – O senhor já tinha rodado bastante por aí, né?
R – Já.
P/1 – Com esse olho azul, assim, tinha um monte de mulher a fim de casar com o senhor?
R – Não sei se pedir em casamento, mas eu julgo que até é a sina, né? Uma coisa que está dando certo. Já faz quantos anos que nós mora junto, 40 anos? Acho que é.
P/1 – Mas vocês não casaram, não, né?
R – Não. Nós casamos na igreja.
P/1 – Mas aí abalou o que o pessoal conversou, falou que ela tinha dado golpe no senhor? Porque o senhor era rico, pelo que eu entendi.
R – Não.
P/1 – Já com 36 anos, o senhor já tinha quantos bois?
R – Ah, já tinha muito boi, né? Tinha. É.
P/1 – Quer dizer: o senhor trabalhou nessa empresa com que idade?
R – Eu comecei com 18 anos.
P/1 – Então antes dos 30 que o senhor...
R – Trabalhava na roça ajudando meu pai aí, né? Depois eu comecei, a hora que eu fui pra empresa trabalhar. Trabalhei muito, minha filha. Passei muito trabalho na estrada, passando fome. E o compromisso de arrumar dinheiro pra pagar os outros, fazendeiros? O problema é esse.
P/1 – Me explica melhor isso. Como era isso?
R – Comprava o gado a prazo. Entende bem. Trinta dias, vamos supor. No começo eu não tinha capital. Então tinha que comprar aquele gado com 30 dias e vender pelo menos com 25 dias, pro marchante, pra dali eu pagar com o mesmo dinheiro. Era difícil dar certo. (risos)
P/1 – E como o senhor... o senhor conseguia vender mais caro?
R – Tinha que vender mais, tinha que ter o lucro, uai. Senão não compensava mexer, trabalhar.
P/1 – É que tinha que alimentar o gado, então, nesse período, né?
R – É, uai. E o compromisso do pagamento também, tudo. Isso tudo.
P/1 – Daí, quando não conseguia, pra pagar o fazendeiro, o que o senhor tinha que fazer?
R – Tinha que pegar um dinheiro emprestado com o amigo. Tinha que pegar um dinheiro emprestado pra pagar no dia certo. Eu não gostava de atrasar pagamento, não, sabe? Se era dia dez, eu gostava de pagar dia dez, mesmo. Antes.
P/1 – Se o senhor não pagar o fazendeiro, tinha fazendeiro que mandava matar?
R – Não. Aqui, não.
P/1 – Aqui não?
R – Não, mas aí pra fora eu já ouvi contar caso que tinha. É. Se não pagasse, matava, né?
P/1 – Pois é.
R – Mas se matasse, ficava pior, né?
P/1 – Aí não recebia, mesmo.
R – Não recebia. Matou o cara, acabou, né?
P/1 – Mas aí o senhor ficava com fome por quê? Me explica melhor.
R – Porque às vezes não tinha um botequim na estrada pra o sujeito fazer um lanche, né? Pra arrumar dinheiro. Se marcava hora, tratava de chegar dez horas, o gado trabalhava na estrada, dava trabalho, não chegava no ponto de almoço, né? Acontecia disso tudo. É.
P/1 – Por que o senhor levava o gado e entregava pro fazendeiro, já?
R – Pro marchante. Comprava do fazendeiro. Comprava já pro cara abater, sabe? Gado de corte.
P/1 – E quem comprava do senhor?
R – Eu tinha um cara lá em Juiz de Fora. Vendia pra um cara lá.
P/1 - Ele vinha aqui com o caminhão?
R – Vinha ali embaixo de caminhão e eu levava o gado tocado até Lima Duarte. É.
P/1 – Então o senhor trabalhava, vinhas pras fazendas, catava o gado e levava pra ele?
R – A cavalo. É. Aí vinha o caminhão e buscava.
P/1 – Mas quando chegava em Lima Duarte, botava onde esse gado?
R – Eu tinha um pastinho alugado lá, tive que descer, com uma sociedade nós alugou o pastinho e fez um embarcador, sabe? Aí punha naquele pastinho até o caminhão chegar. Nem telefone tinha. Muito difícil ter telefone.
P/1- Então era tudo na palavra?
R – Tudo falado, tinha que marcar, viu? Por exemplo: segunda-feira era dia de levar o gado. Então já ficava marcado, se fosse segunda, na outra segunda, pra trazer o caminhão. Era assim. Não tinha telefone, não tinha nada. É. Então assim. Dinheiro. Arrumei um comprador muito bom, pagava certo, sabe? Não trazia cheque, não trazia nada. Era dinheiro limpo, mesmo.
P/1 – Trazia, assim, na mão?
R – Na mão.
P/1 – Que dinheiro que era? Porque mudou tanto o dinheiro.
R – Era o cruzeiro. Depois passou cruzado. Uma coisa assim. Cruzado, lembra do cruzado?
P/1 – Lembro.
R – Aquele durou pouco tempo. Depois passou pro real, né?
P/1 – Mas quando o dinheiro perdia valor, né, que a gente ia no mercado e ficava tudo mais caro, acontecia isso aqui?
R – Acontecia.
P/1 – E o que o senhor fazia com aquele dinheiro na mão?
R – Tinha que levar pra trocar no banco, né?
P/1 – O senhor já botava direto no banco?
R – Já avisava que dia tanto vai vencer o prazo dele. Aí já levava o dinheiro pra trocar, né?
P/1 – E o banco pagava bastante juro, não era?
R – Pagava, na época.
P/1 – E o que o senhor fazia com aquele juro lá?
R – Negociava com ele. É, a vida é essa.
P/1 – Então o senhor chegou a ter bastante dinheiro no banco?
R – Não. Agora, depois que eu parei de negociar, que sempre tem uma sobra que está lá, né? Deve ter uns cem mil, pra lá um pouquinho, né? Deve ter uns cem, centos e poucos mil.
P/1 – Cento e poucos mil que o senhor tem lá?
R – É.
P/1 – E mais terra o senhor ainda tem, né?
R – Tenho essa aqui e tenho a outra que eu comprei e dei pro menino.
P/1 – E essa casa em Lima Duarte o senhor aluga?
R – Essas meninas moram numa. As enteadas minhas, sabe? Duas moram numa e eu alugo as outras duas. Não, eu alugo uma e, quando eu vou em Lima Duarte, eu durmo lá nessa outra que fica fechada. Pra não ficar amolando ninguém, sabe? É.
P/1 – Daí então o senhor vive desse dinheiro da casa e de onde que o senhor vive todo mês, assim? De onde o senhor tira o dinheiro?
R – A gente tem o benefício também, né? Vive tranquilo. Recebe um salariozinho mais ou menos, já serve, pra dar uma intera, né?
P/1 – Pega o salário, pega um pouquinho do dinheiro... esse dinheiro do Banco o senhor mexe?
R – Não. O dinheiro fica lá.
P/1 – É pra quê?
R – Fica lá pra um dia. Se a gente morrer um dia tem um dinheirinho, né? Meu benefício nem tiro lá. Fica tudo na conta, lá.
P/1 – Ah, é?
R – É.
P/1 – E o senhor vive do quê?
R – Do salariozinho e esses juros, particulares, né? Tem uns juros...
P/1 – Ah, ainda tem gente pagando pro senhor?
R – Ainda tem, ainda.
P/1 – Agora explica como muda o juro pra mim.
R – O juro sempre...
P1 – Porque naquela época que o senhor falou que o senhor estava negociando gado em Juiz de Fora, o banco pagava muitos juros, né?
R – Mas mudou agora, baixou.
P/1 – E aí o senhor abaixa o dinheiro do emprestado também, quando baixa...
R – Não. É 2%, 3%.
P/1 – Pronto?
R – Acabou.
P/1 – Então o senhor está com um excelente negócio, porque 2% ao mês...
R – É.
P/1 – E como é que o senhor faz? O senhor pega o cavalo e vai cobrar? A pessoa vem aqui pagar? Me conta melhor.
R – Não. Lima Duarte já tem o dia certo. Aqui tem um ônibus duas vezes no mês pra Lima Duarte: dia 8 e dia 20.
P/1 – Todo dia 8 e dia 20 o senhor vai lá?
R – Eu vou lá.
P/1 – E o senhor fica esperando as pessoas aonde?
R – No calçadão, mesmo, ali. Uns vai lá em casa. É. O negócio é esse.
P/1 – E eles vão pagar? Eles têm vaca, têm boi?
R – Têm. Agora estou velhaco, agora emprestar fácil, não. Já basta os prejuízos que tomou, né?
P/1 – Depois dessa história?
R – É.
P/1 – Como foi essa história? Me conta melhor.
R - O cara, na hora de pegar o dinheiro com o Benevides, veio mansinho, né? É. Na hora de pagar: “Ó, não tem nada, não. Acabou ‘as vacas’ tudo, não tem nada de dinheiro pra pagar você, não”. É. Não pode levar na lei. E o cara não tem nada também. O que adianta perder tempo, né?
P/1 – E aí, o que o senhor fez?
R – Larguei pra lá, ué. Matar o cara não adianta, fica pior, né?
P/1 – Mas ele não tinha nem terra pro senhor pegar?
R – Não tem nada. É. Tem que ficar sem nada, mesmo. (risos)
P/1 – Agora, seu Benevides, quando teve aquele... lembra do Collor?
R – Lembro, muito. Lembro.
P/1 – O que aconteceu na época do Collor?
R – Naquele tempo eu não tinha dinheiro no banco, não. Meu irmão tinha. Ele bloqueou o dinheiro, né? Você lembra, né?
P/1 – Onde estava o seu dinheiro nesse momento?
R – Estava negociando com ele.
P/1 – Então o dinheiro estava solto aí pela pastagem?
R – Pastagem. Depois parece que comprava o gado e pagava na hora, né? Fez um capital, né? É. Meu irmão tomou uma manta do Collor, tinha um dinheiro no banco.
P/1 – Agora, todos os seus irmãos foram fazendo mais dinheiro? O senhor conta na sua infância...
R – Ah, eu não sei meus irmãos como é que é, se eles têm dinheiro ou se não têm, não. (risos)
P/1 – Não, né?
R – Não.
P/1 – Foi o senhor?
R – A gente sabe dos problemas da gente, né? (risos)
P/1 – E por que o senhor ficou com a casa do seu pai?
R – Eu já contei essa história.
P/1 – Conta pra mim.
R – Porque aquilo não saiu pra mim, não. Saiu pra minha irmã, sabe? Depois a minha irmã trocou com um cara lá em Lima Duarte, numa casa. Uma irmã solteira, que não casou, não. Logo a minha mãe morreu, né, aí depois os terrenos aqui, aí, até lá no alto, aí nós trocamos com o cara de Lima Duarte nessa terra aqui. Aí depois o cara pôs a terra em venda, essa casa aqui eu peguei, já tinha um dinheiro e comprei. Aí eu voltei pra cá.
P/1 – O senhor queria voltar pra cá?
R – Não. Sobrou um dinheiro, né, de um negócio que fiz com o Renato aí, sobrou um dinheiro...
P/1 – Você pegou dinheiro do Renato e investiu aqui?
R – Construí as casas em Lima Duarte e comprei isso aqui.
P/1 – E essa casa da dona Isabel lá no Palmonão, como é que foi? O que aconteceu com ela?
R – A casa lá era do marido dela. Um tal de Manoel Joaquim Antônio. Que ela era casada. Aí depois ele morreu, nós fomos morar junto... (risos)
P/1 – Você ainda vai me contar essa história.
R - ... aí depois, as meninas foram vendendo.
P/1 – Ficou com as filhas?
R – Ficou pra elas. Manoel tinha um gado, ela vendeu o gado e ficou com o dinheiro e não quis terra, não. Deu pros filhos. Os cinco filhos. Aí eu fui comprando as partes delas. É.
P/1 – Quem fui comprando as partes delas?
R – Eu.
P/1 – Por que o senhor foi comprando as partes delas?
R – Porque elas pôs em venda a parte delas.
P/1 – Mas o senhor queria? Tudo que estava à venda o senhor comprava pra depois vender, não é isso?
R – Não. Eu queria comprar um carro, um lote em Lima Duarte e elas não iam mexer com aquela terra, mesmo. Aquele terreno em Palmonão ali, até cá embaixo. Era o terreno que era do pai delas.
P/1 – Muito bonito aquele terreno.
R – É. Comprei de fulana, comprei da Maria Helena, comprei da outra irmã dela, comprei da fulana, comprei da sicrana, aí comprei a fazenda toda. Depois o Renato resolveu, quis comprar. E eu já estava querendo fazer outro negócio, mesmo, vendi pra ele. Pronto.
P/1 – Como é que o senhor calculou o preço pra vender pro Renato?
R – Eu calculei assim, na época... sabe que eu não lembro mais quanto foi. Não lembro, não.
P/1 – Não?
R – Não.
P/1 – Mas o senhor sabia o preço da terra?
R – Sabia. Era cinquenta mil cada parte. Eu comprei das meninas. Mas depois mudou, né? Mudou muito o dinheiro. Aí depois vendi pro Renato, não lembro mais, não. Já era outro dinheiro, já tinha valorizado muito, né?
P/1 – O senhor vendeu mais caro, lógico?
R – Lógico, vendi. Vendi e comprei essa outra fazenda onde está o menino meu, lá embaixo.
P/1 – Aí o senhor deu pra ele?
R – Metragem de 20 alqueires, grande. Ele quis comprar Palmonão. Palmonão você sabe lá. Palmonão daqui, Palmonão dali. Aí ele tinha comprado a parte do meu irmão na divisa lá, do Joaquim: “Ó, não vou vender, não. Esse terreno que eu comprei lá embaixo, onde é que está o menino meu, se vocês comprarem um terreno que foi do Alécio, quer vender a fazenda lá, se você comprarem a fazenda do Alécio eu troco com vocês” “Mas quanto ele quer nessa fazenda?” “Quer cento e quarenta mil”. Na época. Acho que tem uns dez anos ou mais, né? Tem. Aí eu troquei com ele lá. Eles comprou a fazenda e eu troquei com eles lá. É.
P/1 – E aí deu pro seu filho?
R – Aí voltou um dinheiro, nem lembro, mas voltou e aí dei pra ele. Já recebeu a escritura no nome dele. Voltou um dinheiro. Não sei quanto, mas voltou.
P/1 – Pro senhor?
R – É.
P/1 – E esse dinheiro pro senhor, o senhor já botou aonde?
R – Já estou mexendo nessas casas em Lima Duarte, né?
P/1 – Eu vou entender com o senhor fazer dinheiro, que o negócio é bom, mesmo.
R – Mas dá trabalho, minha filha? É.
P/1 – Mas me conta assim: quando o senhor pensa, o senhor acorda pensando nisso? Como é que é essa história? O negócio que vou fazer, quanto eu vou... como é? O senhor tem um caderninho?
R – Não. Guardo tudo na cabeça. Não anotava nada. Tudo na cabeça. É.
P/1 – Mas seu pai era assim também ou não?
R – Não. O meu pai, o esquema dele era outro.
P/1 – Qual era o esquema dele?
R – O esquema dele não comprava nada fiado, não comprava nem um canivete, se não tivesse dinheiro, não comprava o canivete, não. Não.
P/1 – Então ele nunca compraria um boi pra pagar depois?
R – Não. Se ele não tivesse dinheiro, ele não comprava, não.
P/1 – Mas o dinheiro dele ele tirava...
R – Às vezes ele tirava.
P/1 – Só?
R – Só. Comprava açúcar pra casa aí e o café. Colhia muito milho aqui, comprava pouca coisa na venda. Comprava mais querosene, que não tinha luz, né? Não tinha luz elétrica, não tinha nada. E o sal. O resto colhia tudo aí. Colhia arroz, batata, milho...
P/1 – Feijão?
R – Feijão. Comprava quase nada, não.
P/1 – Então não gastava muito dinheiro?
R – Uma intera, às vezes, né, comprava, mas colhia muito aí. É.
P/1 – Mas quando fazia festa, qual era a festa? Tinha dia que fazia alguma festa que matava bicho e precisava de mais dinheiro?
R – Não fazia, não.
P/1 – Nunca fez?
R – Não.
P/1 – Nunca? Nem quando alguém casava?
R – Não. Casava, cada um dava um jeito de caçar seu rumo.
P/1 – Ah, é?
R – Ir pro hotel, alguma coisa. É.
P/1 - Não tinha uma grande festa?
R – Não tinha, não. Nunca fez.
P/1 – Nem o senhor?
R – Não. Eu não. (risos)
P/1 – O seu filho casou?
R – Anda meio enrolado com uma mulher.
P/1 – Também não... mas aí o senhor é muito religioso?
R – Eu sou. Mas não frequento muito igreja, não. Mas eu tenho minha...
P/1 – Como é que é a sua religião, então?
R – É assim: eu vou pouca coisa na igreja, mas rezo muito. De noite. Tem que ter fé, né? Ou não tem?
P/1 – O senhor reza pra quem?
R – Pras almas, né? O anjo de guarda. Minhas orações são assim. Vou muito pouco na igreja. Uma vez no ano que eu vou na missa.
P/1 – Mas toda noite o senhor reza?
R – Rezo. Deitar e levantar.
P/1 – Todo dia?
R – Todo dia. Não esquece, não, uai. Não pode. Já tem aquele costume, né? É.
P/1 – E é pra proteção?
R – Proteção. Pede... é.
P/1 – Pede o quê?
R – Pede uma proteção pro anjo da guarda da gente, um bom trabalho no dia. Reza tudo. Tem que rezar, mas na igreja eu vou muito pouco. Porque, se eu for na igreja, o povo vai: “O seu Benevides veio na igreja hoje!” Todo mundo fica reparando, né?
P/1 – Por quê? Me conta.
R – Porque eles acham graça se eu for, né? Ficam gozando da gente.
P/1 – Por quê? Por que o senhor não vai nunca?
R – Porque não acostumei, assim, né? Não acostumei ir na igreja, mas depois vai mudando, né? É.
P/1 – Mas como é a sua relação com o pessoal, assim? Porque muita gente deve dinheiro para o senhor, não é? O pessoal respeita o senhor? Quando tem briga aqui, o pessoal vem pedir sua opinião? Como é que é? O senhor deve ter um nome aí na região, né?
R – Não, a gente tem muitos amigos aí, mas aqui é bem difícil brigar. De primeiro brigava muito. Tinha muita cachaçada aí, né? Hoje não tem nem uma venda direito no Mogol. Tinha muita gente aí, dia de domingo, juntava muita gente, né? Então bebia muito.
P/1 – No Mogol? Todo domingo o pessoal vinha por quê?
R – Juntava muita gente, né? Mas hoje não. O pessoal morreu, os mais velhos, mudou, né? Hoje tem pouca gente aí.
P/1 – Mas quem vinha? Vinha das terras? Como é que funcionava?
R – É. Das terras. Cada um tinha um pedacinho de terra, né?
P/1 – E aí? Aí bebia...
R – Aí brigava. Mas já morreu os brigadores. (risos)
P/1 – Eles se matavam? Tinha morte?
R – Não, tinha, não. Teve uma morte aí, mas foi por causa de terra.
P/1 – Me conta essa história, eu ouvi falar.
R – Herança. Um queria num lugar, outro queria noutro. Então, a mãe... irmão dessa minha companheira aí, ó.
P/1 – Irmão dela?
R – Irmão. Aí, não concordava, a mãe foi pro lado do que matou, o cara seguiu, foi lá fazer compra, o que morreu, dois irmãos.
P/1 – Dois irmãos dela?
R – É. Aí ele sabia que ele ia vir naquela hora, né? Ficou em por cima de um barranco, o cara passou, deu um tiro só, morreu na hora. É.
P/1 – E aí? Como descobriram que foi ele?
R – Muita gente viu o tiro. Tinha um vizinho no local. É.
P/1 – E aí, o que aconteceu?
R – Depois a polícia veio e levou o corpo. É.
P/1 – Mas o pegou?
R – Ele esteve seis anos preso. Depois soltou.
P/1 – E a mãe, estava viva?
R – Estava viva na época.
P/1 – Como é que foi? Ela defendeu quem?
R – Defendeu o que matou.
P/1 – Ela defendeu o que matou?
R – Defendeu o que matou.
P/1- Como foi isso? Me explica.
R – (risos) Eu não sei essa história direito mais, não. (risos)
P/1 – Ué, mas o senhor a conheceu. Ela já era sua sogra, na época?
R – Era, sim. Era.
P/1 – Por que ela defendeu o que matou?
R – Porque você sabe: mãe é mãe, né? Puxa pro lado de um. É.
P/1 - Ela gostava mais desse?
R – Gostava mais desse.
P/1 – Então eles estavam brigando por causa do quê? A terra do pai?
R – As terras que eram do pai. É. Terrinha pequena pra cada um. É.
P/1 – E esse que morreu tinha mulher?
R – Tinha. A mulher o largou à noite.
P/1 – Oi?
R – A mulher largou dele na mesma hora. Tinha dois filhos. Macho. Homem. Hoje ela arrumou outro companheiro. A que era casada com que esse que matou, quer dizer.
P/1 – Mas aí quem ficou com a terra, no final das contas?
R – Depois ficou naquela encrenca lá, um falava uma coisa, outro falava outra, aí pegou e vendeu a terra pra outra pessoa, aí acabou a encrenca. O diabo ficou com o dinheiro. É. Acabou a briga.
P/1 – Mas a dona Isabel, por exemplo: a família ficou do lado de quem?
R – Essa aí ficou em cima do muro. Ela foi contra o que matou, né? De fato, sabe-se lá, né?
P/1 – Esse que morreu tinha mulher também?
R – Tinha.
P/1 – E o que ela fez?
R – Depois ela ficou sozinha uns tempos. Depois arrumou outro companheiro também. Mora pra baixo do arraial, naquela casinha ali. Arrumou outro companheiro e pronto. Acabou.
P/1 – Juntou?
R – Juntou.
P/1 – Agora me conta o senhor como foi que o senhor a conheceu?
R – A Isabel?
P/1 – É. Onde o senhor a conheceu?
R – Sempre era colega. De solteiro a gente já tinha conversa e tal. Conhecia. A gente era vizinho.
P/1 – Já gostava dela?
R – Já tinha uma certa base, né?
P/1 – E essa base, como era? Era assim: o senhor ia com ela pra festas, saía com ela?
R – Não, por enquanto ela era nova ainda. Ela casou com o cara, ela casou acho que com 14 anos.
P/1 – Antes disso o senhor já a achava bonitona?
R – Achava. Mas não tinha caso, não.
P/1 – Mas gostava?
R – É. Depois...
P/1 – Por que ela casou com o cara, então?
R – Quando ela casou com esse homem ele tinha 60 anos.
P/1 – Hummmmmm!
R – (risos) 60 anos. De primeiro era difícil. As mães não deixavam as moças ir em bailes fácil, não. Em festa, não, né? Deixavam, não. Esse velho que ela casou era padrinho de uma criança da mãe dela. Compadre Mané. E pegou.
P/1 – Ele negociou com a mãe?
R – Não deixava ir em baile, festa. Nova, né? Aí acompanhou o velho. Ele a roubou. O Mané, esse velho.
P/1 – Ele a roubou?
R – Tinha sessenta anos. É.
P/1 – Mas ela fugiu com ele ou...
R – Fugiu. Foi na casa dele e fugiu. Levou lá pro Palmonão. Ele morava sozinho lá, esse velho. Lá no Palmonão. Foi pra lá. Arrumou cinco filhos. É. A história é essa.
P/1 – Mas o senhor, aí, foi acompanhando a história? Ela ficou com o velho lá em cima?
R – Ficou.
P/1 – Bonitona e novinha, né?
R – Depois arrumou cinco filhos e logo ele morreu também. Quando ele morreu, um tinha, não sei se acho que nenhum ano tinha. É.
P/1 – Como um ano?
R – De idade.
P/1 – Os filhos?
R – É. O mais moço. Depois ela foi pra casa da mãe, como ela já contou ali. Depois resolveu morar com o seu Benevides. (risos) É.
P/1 – E os filhos? Eles eram muito pequeninhos?
R – A mais velha saiu.
P/1 – Ela tem quantos anos? Essa.
R – Ela devia ter uns 11 anos. Era por aí. Porque foi ganhando um atrás do outro, sabe? Eles eram todos pequenos. Aí o seu Benevides arrumou cinco filhos pra tratar. (risos)
P/1 – E aí? O senhor tratou? O senhor brigou com as meninas? Era tudo menina?
R – Não. Tinha um menino. Depois foi morar junto com ela todas as meninas. É.
P/1 – Mas foi fácil ou o senhor perdeu a paciência?
R – Não. Ajudei a criar o resto também.
P/1 – O senhor gosta assim como filho seu?
R – Gosto, uai.
P/1 – Da mesma maneira que o senhor gosta do senhor ou não?
R – É. Mesma coisa. É. Elas me respeitam. Tem uma, que eu tenho carro, ela que pega o carro e dirige. É. A Luciana.
P/1 – Ela chama o senhor de pai?
R – Não. Não acostumou, não. Seu Bené, mesmo. Seu Benevides. É. Quando precisa de um dinheiro, que pede, eu arrumo. Elas estão tudo colocadas, essas meninas. Essa aí é professora. Tem outra que trabalha na escola também, serviçal. Tudo colocada. Tem uma que trabalha em Juiz de Fora com o fazendeiro lá, ele gosta muito dela. Está tudo colocada. Ajudei a criar, mas não nego nada, não. É.
P/1 – Mas aí esse dinheiro que o senhor tem no banco, o senhor vai deixar pra quem?
R – Acho que vai ficar pro meu filho, né?
P/1 – Ele nasceu quanto tempo depois?
R – Ele é registrado no meu nome. Ele que é o herdeiro, né? É.
P/1 – Ele dá bem com as irmãs?
R – Dá.
P/1 – Ele nasceu quanto tempo depois?
R – Depois que nós morou junto?
P/1 – É.
R – Ah, foi um ano e pouco, né?
P/1 – Muito rápido.
R – Rápido. É. Mas depois não quis mais filho. Foi evitando, porque a crise foi ficando feia. Já tinha muitos em casa.
P/1 – E o senhor não queria mais?
R – Ela não queria. Por mim até eu crio, mas ela: “Não quero mais filho, não”. Pronto. Foi bom também.
P/1 – Como faz pra evitar filho, seu Benevides?
R – Ah, tinha muita coisa, né? Tinha uns remédios.
P/1 – Um remédio do mato?
R – Não. Comprimido.
P/1 – Ah, tomava remédio?
R – É. Hoje tem mais coisa pra evitar. Tem camisinha, tem tudo, né? Mas eu não cheguei a usar, não. (risos) É.
P/1 – O senhor ficou com vergonha agora.
R – Não cheguei a usar, não, porque eles falam que é muito ruim.
P/1 – Mas o senhor nunca experimentou?
R – Não. (risos)
P/1 – Por quê? Mas pelo menos pra saber como que é.
R – Não. “É ruim demais a tal de camisinha”, meus colegas falaram, né? Então deixa quieto pra lá, né? É.
P/1 – Mas aí, seu Benevides, se o senhor não quiser contar, não conta. Depois dela o senhor não teve mais namorada, não?
R – Não. Não tem, não.
P/1 – Nunca teve? Desde novinho?
R – Não.
P/1 – Olha pra mim, eu conheço bem.
R – Não tem, não.
P/1 - Ela não ficava brava se o senhor arrumava assim uma pessoa que interessava?
R – Não. Não ficava, não. Acho que depois a idade vai chegando, também, né? A idade chega.
P/1 – Mas o senhor ia muito à baile?
R – Ia muito.
P/1 - Aqui em Mogol?
R – Não. Em Mogol e pra todo lado, né?
P/1 – Quais eram os melhores bailes da região?
R – Ah, baile bom, mesmo, baile de barraca, né?
P/1 – De comprar comida?
R – Não. Desses não tinha.
P/1 – Só pinga?
R – Tinha broa.
P/1 – Broa e pinga?
R – (risos) É.
P/1 – E quem tocava?
R – Ah, tinha muito sanfoneiro. Era sanfona. É. Hoje não, hoje já tem essas coisas, som, né? É difícil ter sanfona. De primeiro era aquela sanfona, aqueles pandeiros, começa, né? É bom. Hoje não, o esquema é outro.
P/1 – Seu Benevides, não tinha moça que ninguém queria casar?
R – Ah, aparecia muita, né?
P/1 – Como que era? Se ela dormia com um homem, ninguém mais casava? Ou isso...
R – Não. Já ficava mais chato: “Fulana dormiu com seu Mané”. Aí já não queria mais.
P/1 – Só ficava assim: ela podia já ter casado, mas se a pessoa dormia com mais de um... como é que funcionava isso?
R – Aí o nego ficava cabreiro, né?
P/1 – Como a pessoa sabia que...
R – O comentário sai, né?
P/1 – Sai aonde? No bar?
R – Na estrada. “Seu Benevides dormiu com a fulana”. Aí já... (risos)
P/1 – Aí a fulana já...
R – Já a moral abaixava, né? É.
P/1 – Mas teve fulana com moral baixa que casou por aí?
R – Muita casou, ainda. Fulano, às vezes, não sabia do causo, né? É.
P/1 – E aí? Ninguém... o pessoal comentava por baixo, assim?
R – É, comentava. Mas de primeiro tinha pouca coisa desse, né? É. Namorava pra casar, mesmo. Hoje não. Hoje é menina de 12 anos andando com um cara aí, dando com outro, não tá nem aí, né? Mudou o esquema.
P/1 – Mas podia dormir antes de casar?
R – Dormia, uai.
P/1 – E se não desse certo depois? Essas ficavam faladas, né?
R – Ficavam faladas. É, ué. É.
P/1 – E mulher casada, como é que funcionava, se ela dormia com outro?
R - Ah, não. Mulher casada não tinha mais perigo, não, né? (risos) Aí já era até melhor.
P/1 – Mas se o marido soubesse, o que acontecia?
R – Tinha o que sabia, mas não importava, não.
P/1 – Como? Ficava com filho, assim?
R – Ficava.
P/1 – Fingia que era dele?
R – Fingia que era dele, né? É.
P/1 – Mas ele sabia, por exemplo: aposto que o seu Manoel não sabia que o senhor estava de olho na dona Isabel, né?
R – Não sabia, não.
P/1 – Como o senhor sabe que ele não sabia?
R – Porque não dava piada nenhuma, não.
P/1 – Era tudo...
R - ... quieto, mesmo. É.
P/1 - Mas ninguém sabia na vila?
R – Não. Ninguém sabia, não. Hoje todo mundo sabe, né? Se a mulher de fulano está andando, está todo mundo sabendo. Hoje tá. O povo perdeu o respeito.
P/1 – Na época era...
R - ... era de baixo, né? É.
P/1 – Mas sempre alguém sabe.
R – É. (risos) Mas não sabia, não. É. Mineiro, né, fica velhaco!
P/1 – Seu Benevides, aí a vida foi passando, foi passando, o senhor foi ficando com ela, as crianças, o senhor foi mudando o jeito de viver ao longo desse... o que mudou na sua vida?
R – Foi mudando, que a idade foi chegando, depois a gente já não vale mais, não se manifesta mais. Pronto.
P/1 – Nessa época o que o senhor mais gostava de fazer na vida, quando o senhor estava negociando muito?
R – Dá-lhe festa, carnaval.
P/1 – Era o que o senhor mais gostava de fazer?
R – Carnaval eu não perco um, até hoje.
P/1 – Se perde lá? Mas o senhor namorava muito no carnaval?
R – Ah, namorava, né? É bom.
P/1 – Mesmo casado também?
R – Não, casado não. (risos)
P/1 – Não vou contar, não.
R – Não. Casado, não. No carnaval é bom porque a gente passa a noite sem ver. Você vai bebendo, vai ouvindo aquelas músicas. Não perco um, não.
P/1 – Aqui no Mogol tinha carnaval?
R – Não, só Lima Duarte, mesmo.
P/1 – Só em Lima Duarte?
R – Só em Lima Duarte.
P/1 – Qual era a boa festa do Mogol?
R – A festa da igreja aí era boa. Natal tinha, tinha padre de fora aí. É.
P/1 – Mas baile tudo também?
R – Tinha uns bailes bons. Hoje não tem mais baile, não, mas que tinha antigamente, tinha.
P/1 – Aí o senhor parou de ir à festa agora?
R – Agora não vou mais, não. Só carnaval, mesmo.
P/1 – Carnaval o senhor vai?
R – Eu vou na sexta e venho na quarta.
P/1 – Fica lá?
R – Fico lá. É. Bebendo.
P/1 – Bebendo?
R – É.
P/1 – O senhor gosta de beber, então?
R – Não. Eu bebo de acordo, né? É.
P/1 – Dos seus irmãos, o único que bebeu até morrer foi um só?
R – É, o Amado.
P/1 – Mais nenhum morreu...
R – Não, não.
P/1 – Mas tem algum outro que bebe muito?
R – Tem um irmão mais novo que eu que bebe um gole ainda, mas já bebe pouco também. Só bebe na parte da tarde.
P/1 – Todo dia?
R – Todo dia. É. Tem que saber controlar, né?
P/1 – O senhor bebe todo dia também?
R – Todo dia.
P/1 – Me conta como é que é. O senhor chega, que horas o senhor vai beber, o que vai ser?
R – Depois que eu vim aquele horário que eu saí do arraial ontem que eu começo. Bebo umas quatro na hora da janta, pronto.
P/1 – O senhor senta, assim? Qual é o tamanho do copo?
R – Copinho pequeno.
P/1 – Mostra pra mim.
R – Copinho assim.
P/1 – Quantos desse o senhor bebe?
R – Uns quatro.
P/1 – Todo dia?
R – Todo dia.
P/1 – A pinga é daqui, mesmo?
R – Compro em alambique lá em Lima Duarte, mas é pura, do alambique.
P1 – Aí bebe. Aí, o que dá pro senhor?
R – Dá uma reação na gente, abre o apetite pra jantar, né? É. Isso aí.
P/1 – Dá uma alegria, assim?
R – Dá. Depois da janta, televisão e depois dá um soninho e vai dormir, né? É.
P/1 – Só no carnaval que o senhor bebe mais de quatro, né?
R – No carnaval a gente bebe o dia inteiro, né? O resto do dia no calçadão, né? A gente não vê passar a noite, né?
P/1 – Até hoje?
R – Todo ano. Está próximo. Estou contando nos dedos, os dias. (risos)
P/1 – Seu Benevides, o que o senhor gosta mais de fazer na vida hoje?
R – Hoje trabalhar e os carnavais, né?
P1 – O trabalho seu hoje, qual é?
R – Tem um bocado de serviço aí.
P/1 – O senhor trabalha pra outros, não?
R – Não. Não trabalho, não.
P/1 – O que o senhor faz aqui?
R - Arrumo a cerca aí, mexo com um gadinho aí, né?
P/1 – Mas essa coisa de emprestar dinheiro ainda está em pé?
R – Ainda tem uns, ainda.
P/1 – Mas comprar e vender boi, não?
R – Não. Parou.
P/1 – Por quê?
R – Não, a idade chegou, não aguento hoje. Tinha que andar a cavalo, né? Ficou velho, não aguentava andar o dia inteiro atrás de gado, né? Ajudar aqui no arraial, pronto.
P/1 - Seu Benevides, aí hoje, se eu perguntasse pro senhor assim: o que o senhor ainda quer que aconteça muito, seu sonho?
R – Saúde e viver muito.
P/1 – O senhor quer viver muito?
R – Quero. Penso, né? Deus é que sabe!
P/1 – O que tem na vida que o senhor gosta mais?
R – Uai, saúde, né? A primeira coisa é saúde. É, uai, pra poder movimentar.
P/1 – O senhor acha que a sua vida foi boa ou foi difícil?
R – Não. Boa. Foi boa. Não reclamo da vida, não.
P/1 – O que você acha que fez pra dar certo na vida?
R – Porque saúde é a primeira coisa, né? Graças a Deus, tive. Já tem uns dez anos que eu não vou ao médico. Pressão nem sei se está boa ou se está ruim, deve estar boa. (risos) Senão não aguentava usar pinga, não, né? Todo dia, não.
P/1 – É.
R – Tá boa. Só pode estar, uai! Não dá dor de cabeça. A única coisa... outra história que eu vou contar pra você: eu fumava. Aquilo dá dor de cabeça, minha filha! Todo dia. A mulher: “Isso é cachaça”. Cabeça doendo. Ia no médico: “Eu te dei esse remédio aqui, agora vai melhorar essa dor de cabeça”. Ia no outro médico: “Não, essa dor de cabeça sua é falta de óculos. Você vai ali, você fica prejudicando a vista demais, fazendo coisa. Você vai usar óculos”. Colocou os óculos, nada. Aí um dia eu falei assim... estava lá em Lima Duarte nessa época, ela trabalhava na escola, então estava lá. Eu jantei num restaurante, que ela ia trabalhar de noite, lá, não sei o que, entrei no restaurante e peguei dois maços de cigarro, fui embora pra casa. Cheguei em casa, abri um maço de cigarro e fumei dois cigarros. Eu fumava de noite!
P/1 – Fumava quantos cigarros por mês?
R – Ah, um maço por dia.
P/1 – Fumava bastante!
P/1 – É. Abri o maço de cigarro, fumei dois cigarros. De manhã cedo era uma caradaça de cigarros, minha filha, uma coisa doida. Pensei comigo: “Eu vou parar de fumar. Eu não nasci fumando”. Não pus na boca mais, até hoje. Deve ter uns 15 anos.
R – Acabou a dor de cabeça?
R – Acabou a dor de cabeça. Não doeu mais. Era o cigarro. Pra você ver!
P/1 – Quanto tempo o senhor fumou? Muito?
R – Ah, fumei uns 30 anos.
P/1 – Mesmo assim o senhor taí...
R – Gastei muito dinheiro com remédio, médico daqui, médico dali, mas agora... dor de cabeça, alergia não sei de que, deu esse remédio: “Agora vai melhorar”. Melhorava nada! (risos) Parou de cigarro, acabou! Ih, nem sei quando minha cabeça doeu!
P/1 – E dessa história toda o senhor tem alguma que o senhor arrepende? Que aconteceu de errado?
R – Não. Se eu fiz alguma coisa errada, não tem arrependimento, não.
P/1 – Não?
R – Não.
P/1 – Mas o senhor fez alguma coisa?
R – Ah, devo ter feito, né? (risos)
P/1 – Mas não tem nada assim, por exemplo: “Emprestei esse dinheiro errado”?
R – Pois é. Emprestei errado, porque não podia ter emprestado esse dinheiro pra esse cara, não. Era o dinheiro que eu tinha no banco.
P/1 – E essa coisa, porque na religião católica, esse negócio de emprestar dinheiro não é muito bom também não, não é, não?
R – Não é, não.
P/1 – Mas o senhor não arrepende?
R – É. Pode arrepender, não. Já aconteceu, né? É. A história é essa.
P/1 – E se o senhor fosse dizer uma coisa pra deixar, além de dinheiro pro filho, o que o senhor diria sobre a vida? O que o senhor acha, assim, que o senhor aprendeu, com tudo que o senhor viveu?
R – Eu aprendi, assim, com as minhas ideias, mesmo, né? Que a leitura era pouca, né? Nove vez oito, setenta e dois, ninguém sabe. Pode perguntar pra essas meninas, ninguém sabe. Nove vez nove, oitenta e um. Tem que olhar na tabuada. Uai, não adianta, né? (risos) Eu vendi um boi pra esse cara, vai escutando bem a história: cem arrobas de boi, cento e dez arrobas de boi, por exemplo. Quanto a arroba? Vinte conto a arroba, vinte real a arroba. Ele tirava uma maquininha assim do bolso, pra fazer a conta, quando ele acabava de fazer a conta, eu já tinha feito na cabeça. É. Ele ficava bobo de ver. “Dá tanto. Cento e dez arrobas de boi a vinte conto a arroba. Já fiz”. Quando ele acabava de terminar na maquininha, eu já tinha feito na cabeça.
P/1 – E o juro o senhor calculava tudo na cabeça?
R – Tudo na cabeça. Não fazia nada no lápis, não. É. É fácil, sabendo a tabuada. É ou não é?
P/1 – É.
R – Tem que ter a tabuada. Faz qualquer conta, uai!
P/1 – O senhor acha mais importante a tabuada do que aprender a ler, então?
R – É, uai! Saber a tabuada é bom, uai! Senão não sabe fazer conta. Vai fazer conta com a tabuada na bolsa?
P/1 – O seu filho herdou esse seu talento também ou não?
R – Não, o esquema dele já é outro.
P/1 – Qual que é o esquema dele?
R – Ele, agora, eu chamei pra sair comigo comprar boi e ele não quis. Precisa ter paciência, né?
P/1 – Pra escolher o boi? Como é que é?
R – Não, pra tocar na estrada. Vamos supor: eu não posso sair daqui e ir lá na Ibitipoca e volto. Mas não pode falar que volto. Às vezes dá um imprevisto no caminho, não volta. Eu não chego aqui. E eu chamei umas duas vezes comigo, ficava doido pra chegar em casa: “Não, mas tenho que chegar em casa, tenho que chegar” “Não vai, não. Nós tem que pousar aqui. Nós vai tocar esse gado de noite? Não pode”. Aí desanimou, também larguei pra lá. Fiquei sozinho.
P/1 – O senhor queria que ele tivesse seguido com o senhor?
R – É, uai! Dava melhor. Dá mais lucro. Porque o leite é barato. Ele mexe com leite hoje.
P/1 – Ele vende leite?
R – É. Aqui nós tem, todo dia tem que tirar aquele leite, né? É uma penitência. Vai fazer o quê?
P/1 – Mas ele não quis?
R – Não quis. Comprar e vender dá mais. É o que eu fiz. É.
P/1 – Que pena, né?
R – Pois é. Pena. Você tem que ter paciência na estrada. Porque se o gado não chegar hoje, chega amanhã, né? Tem os pontos certos de pousar com o gado. E a vida é essa. Não tenho arrependimento nenhum, não. É. Fazer o que, né?
P/1 – Tá bom, seu Benevides. Muito obrigada! Adorei a sua história!
P/2 – Karen, posso participar um pouquinho?
P/1 – Deve. Você quer vir aqui?
P/2 – Não, pode ficar aí. Vou ficar junto aí. Você vai me ajudar.
R – Agora já terminou a história também, né? (risos)
P/1 – Não. Agora ele vem aqui fazer umas perguntas.
P/2 – Tinha umas perguntinhas, eu fiquei curioso.
P/1 – Fiquei imaginando.
P/2 – Benevides.
R – Benevides Aquino Pacheco.
P/2 – Benevides, eu fiquei curioso com algumas coisas. O seu biotipo, o seu jeito, assim, é bem diferente. Você é descendente de quê? Você sabe de onde?
R – Não. Não sei, não.
P/2 – Seus pais, se vieram de onde, seus avós?
R – Minha mãe foi criada aqui, vizinha aqui.
P/2 – Sei.
R - Meu pai veio lá de Bias Fortes. Mas acho que é brasileiro, mesmo. As pessoas falam que seu Benevides tem sangue de alemão. (risos) De vez em quando, tem hora que... tem olho verde, essas coisas: “Seu Benevides tem sangue de alemão”. Mas é história, né? É.
P/2 – Outra coisa: na sua época, o senhor lembra, quais são as famílias tradicionais daqui?
R – Você vê a nossa família, mesmo, aí, meus filhos...
P/2 – Os nomes.
R – Ah, os nomes. Dos meus avós não lembro, não. Meu avô por parte do meu pai chamava Benevides. Meu avô.
P/1 – Era Pacheco, né?
R – Pacheco.
P/2 – Sobrenomes, né? Das famílias.
R – Os Pachecos, os Benevides. É.
P/2 – Aqui em Mogol?
R – É. A minha avó pro lado da minha mãe eles tratavam dona Tita. Não sei, acho que é apelido, né?
P/2 – E os familiares casavam entre eles também?
R – Não tinha esse negócio de morar junto, não. Na minha casa tinha que casar.
P/1 – Mas assim: primo casava com primo?
R – Casava. O que existia, mais.
P/1 – Você sabe de irmão casou com irmã?
R – Não, isso não tem, não. Não existe, não, né? Estou nessa idade e nunca ouvi falar, não. Acho que nem pode, não, uai! Agora primo casou muito, nessa família minha tem muita gente, primo casado. A mais velha, minha irmã mesmo, é casada com um primo primeiro.
P/1 – Ela tinha sobrenome Pacheco e ele, qual o sobrenome dele? Oliveira?
R - Não. É Zé Bernardino Neves. Mas já era outra geração. Pro lado do pai dele, que ele tinha.
P/2 – As cidades que Mogol tinha mais relacionamento era Lima Duarte e Bias Fortes?
R – Não, só Lima Duarte. Lima Duarte já é outro distrito, né?
P/2 – Uma outra coisa na conversa, eu fiquei prestando atenção ali, sobre a mulher. Sobre essa questão da mulher, a minha pergunta é a seguinte... eu digo do passado, né? Como é que era a mulher, no passado? Como ela era tratada, no passado?
R – Era bem tratada, né? Tem que tratar bem. É.
P/1 – Assim, se o senhor encantava com a mulher, o que o senhor levava de presente pra ela?
R – Ah, dava uns presentes pra ela.
P/1 – Qual que era o presente?
R – (risos) Dava uns presentinhos.
P/1 – Então, o quê? Me conta assim: quando o senhor encantou aqui pela dona Isabel, o que o senhor levou pra ela? Que presente?
R – Ah, dava umas calcinhas, umas coisas, né? (risos)
P/1 – Ah, levava isso? Calcinha? Opa.
R – Opa.
P/1 – Comprava lá em Lima Duarte?
R – Comprava.
P/2 – E tinha famílias, às vezes, assim, da filha engravidar, ser expulsa de casa, alguma coisa assim?
R – Mas existia, mas era muito difícil.
P/1 – Como é que era isso?
R – De primeiro era muito difícil acontecer isso. Hoje não, hoje está fácil, né? Mas de primeiro era debaixo de chave a filha, né? Não dava chance, não. Se ia num baile tinha que levar uma companhia pra tomar conta da filha. É, tinha. Se não tivesse uma companhia, nem ia. As moças ficavam doidas pra ir ao baile, mas não tinha primeiro arrumado ninguém pra levar. É.
P/1 – Aí não deixava sair do baile, assim de noite, não, né?
R – Ah, não. Hoje, não. Hoje de noite já sai pro mato. (risos)
P/2 – Muita gente comenta algumas coisas comigo, eu queria saber se o senhor já viu ou se já escutou alguma coisa. Tem essa questão que a Karen te perguntou das superstições, da mula sem cabeça, do lobisomem e tudo.
R – Antigamente contava muitos casos, né? Os mais velhos.
P/2 – Você lembra de algum caso?
R – Não, não lembro, não.
P/2 – E da luz? Passava uma luz branca no céu, assim. Eles chamam de mãe da lua, às vezes.
R – Não. Nunca ouvi falar isso, não. Agora, essa mula sem cabeça eu sei que os mais velhos contavam que existia, né? Mas eu nunca vi, não. (risos) É.
P/2 – E o medo?
R – Medo nunca tive, não.
P/2 – E o que é o medo?
R – Não sei. (risos) É superstição. Você vai lá no riacho agora de noite, dez horas da noite? Você monta a cavalo e vai? Eu vou. Não tenho medo, não. Não tem assombração, não. No caminho tem onça. Não tenho medo. Vamos embora. Faz oração e vai embora.
P/1 – Você pede proteção pro anjo da guarda?
R – Pede. Pra Nossa Senhora da Guia e vamos embora. É.
P/2 – E nessas viagens suas, à noite, sozinho, tudo, nunca teve um acontecimento, um ocorrido, assim, que te chamou atenção?
R – Não. Nunca.
P/1 – Diz que tem o diabo na encruzilhada. O senhor nunca encontrou, não?
R – Nunca encontrei com essas crias, não.
P/1 – O senhor conhece alguém que encontrou?
R – Me falaram que tinham encontrado, mas nem me lembro mais quem.
P/1 – Alguém aqui já vendeu a alma pra ele?
R – Não. Que eu saiba, não, né? (risos)
P/1 – Pra ficar rico e tal?
R – Tem umas pessoas que falam que tem parte com ele, né?
P/1 – Tem uma pessoa aqui da região?
R – Tem pessoa aí. Dizem.
P/1 – Por que dizem isso? O que ele fez aqui? O que deu certo na vida dele?
R – Dizem que tem parte com o diabo. Pediu sociedade pra ele pra ajudar a arrumar dinheiro, né?
P/1 – Ele ficou rico?
R – Ficou. Agora eu não sei se é do trabalho dele ou se teve ajuda também do como é que chama aí. (risos)
P/1 – Como é que chama ele?
R – Vamos deixar isso quieto.
P/1 – Mas como é que chama o diabo? Em vez de falar diabo, chama como ele?
R – De diabo, mesmo.
P/1 – Fala o nome dele direto, assim?
R – É. Fulano fez pacto com o diabo, então. Pra ganhar dinheiro. Agora não sei se ajuda, mesmo ou se não.
P/2 – Você lembra de alguma coisa que... você conheceu seu avô, né? Seu avô. Você lembra do seu avô?
R – Não. Conheci minha vó. Meu avô não conheci, não.
P/2 – Como é que chamava sua avó, mesmo?
R – Eles tratavam dona Tita. Nem sei se era nome próprio, se era apelido. Eu era pequeno. Ela já era de idade. E meu avô, pai do meu pai, não conheci, não. Chamava Benevides. Esse eu não conheci.
P/2 – Mas você chegou a escutar alguma história da época da escravidão, alguma coisa assim, de escravo?
R – Não. Não contava, não. Escravo lá que tinha um cômodo pra eles ficarem, trabalhar validado. Só dava comida. Tinha que trabalhar. Inclusive só dava fumo pra eles fumarem, né? E comida. Mas dinheiro, não. É. E couro, se dava couro neles também.
P/1 – Muito couro, né?
R – Fazendeiro. Inclusive nessa fazenda do Renato, que é a tal de Boa Vista, chamava Boa Vista lá, hoje é do Renato, tinha um casarão alto, tinha um cômodo lá pra esses caras dormirem.
P/1 – Era senzala? Tinha uma senzala lá ou não?
R – Não. Nem sei. Tinha um cômodo lá deles dormirem.
P/2 – Debaixo da casa?
R – É, debaixo. Tinha um sobrado alto e tinha um caso desse.
P/2 – Lá tinha muito escravo?
R – Diz que tinha muito. A gente era moleque. Hoje é história, a gente não lembra mais, né? Contava o caso desse, né?
P/2 – Então eu vou te perguntar uma coisa difícil: você lembra se sua mãe cantava, fazia canção de ninar pra você dormir?
R – É, fazia umas cantigas aí, né?
P/2 – Você lembra dessas cantigas?
R – Não me lembro. Lembro cantar, mas não lembro mais como era a cantiga, não.
P/2 – Então canta um pedacinho, só pra ver se eu conheço. Como é que era a letra, assim?
R – Não me vem na memória agora, não.
P/2 – A gente sempre pergunta isso pras pessoas e a gente fica conhecendo umas cantigas diferentes e às vezes, a cantiga que você pode cantar pra mim aqui, agora, eu a escutei lá no norte de Minas, em algum outro lugar, né? É por isso que eu fico insistindo um pouquinho, assim.
R – Sabe que eu não lembro? Não. Não me vem na memória agora, não. Sabe que tinha, cantava: “Dorme, nenê, não sei o que”. Já fugiu. É.
P/1 - Benevides, o senhor teve muito, muito, muito animal, fora os bois?
R – Sempre tinha uns cavalos pra viajar, né?
P/1 – E tem algum bicho que o senhor tem uma relação maior, gostou mais, assim, que era seu, que o senhor conseguia conversar com ele? Sabe um bicho que a gente tem com a gente, assim?
R – Um animal?
P/1 – É.
R – Não. Sempre tive que era igual, né?
P/1 - É?
R – Eu tinha uns sete ou oito cavalos aí, burro.
P/1 – O senhor teve muito cavalo? Quantos bois o senhor chegou a ter, hein?
R – Ah, uns cem bois eu cheguei a ter.
P/1 – Cem bois?
R – É.
P/1 – Senhor Benevides, o senhor virou empresário dessa região, não é, não? Se eu for lá em Juiz de Fora, o pessoal conhece seu nome? Porque em Lima Duarte, com certeza.
R – Juiz de Fora conhece muito pouco. Mas eu tenho uns amigos lá. Tenho, inclusive, um patrão de uma menina que mora lá. A gente combina muito. Mas em Lima Duarte todo mundo me conhece.
P/1 – Todo mundo conhece?
R – “Chegou o empresário”. (risos)
P/1 – É assim, né? Eles chamam o senhor de empresário, não é, não?
R – É. “Chegou o homem do dinheiro”. É.
P/1 – Mas o pessoal gosta disso ou o pessoal tem ciúme, inveja?
R – Não. Aquilo é uma piada, né? (risos) Brincando com a gente. Eu também não esquento a cabeça, não, né? É. “Chegou o xerife”. (risos)
P/1 – Agora conta pra mim: quando o senhor casou com a dona Isabel o pessoal falou: “Ih, agora ele botou todo esse dinheiro nela, com esses filhos. Ficou assim”.
R - “Vai gastar o dinheiro dele todo pra ajudar a criar os filhos dela”.
P/1 – O pessoal achou ruim, né?
R – Minha mãe e meu pai não ‘achou’ ruim, não.
P/1 – Não?
R – Comigo não ‘falou’ nada, não. Mas tem umas irmãs que chiou.
P/1 – Por que o senhor ia gastar o dinheiro assim?
R – “Vai criar aquela filharada”, né? É.
P/1 – Depois elas fizeram as pazes com ela ou nunca falaram?
R – Não. Depois fez. É. A gente aventurava muito pra sair, pra essas gandaias, pra lá, né? Nem sie porque eu não morri.
P/1 – O senhor caiu muito na gandaia?
R – Muito. Ficava a noite inteira na gandaia. Muita sorte.
P/1 – O senhor ficava a noite inteira na gandaia com muita pinga?
R – Não. Bebi, mas pouco. É. Só beber um conhaquezinho, pra dar uma reação, né? Pronto. Depois mudou agora, na vida, né?
P/1 – O senhor ficava nessa gandaia mesmo depois que o senhor casou com ela?
R – Não.
P/1 – Um pouquinho?
R – Não. (risos)
P/1 – Só no carnaval?
R – No carnaval. No carnaval nós não segura, não.
P/1 – Aí o senhor vai?
R – Já vai pra festa, pode ir pra disposição, pode ficar pra lá a semana inteira. Falo com ela.
P/1 – Com ela, não, né?
R – “No carnaval, já estou saindo fora”. (risos)
P/1 – “Que ninguém discuta”?
R – Não. Eu tiro o leite pra comer aí, arrumo peão pra tirar e estou rapando fora.
P/1 – Ah, porque a vaca tem que tirar o leite todo dia.
R – Tem que tirar todo dia.
P/1 – Aí, quando o senhor vai pro carnaval, o senhor deixa um peão aí?
R – Arrumo pra tirar o leite dela, né? Senão atrapalha o bezerro.
P/1 – Esse leite que o senhor tira todo dia é pra quê?
R – Pra nós, uma sobra que só eu e ela, né? Nós faz um queijinho aí.
P/1 – Faz queijo.
R – É. Faz um queijo. Pro consumo e dá uma sobrinha. Resta.
P/1 – O pouquinho que resta. Quantas vaquinhas?
R – Só uma.
P/1 – Mas dá muito pra vender e fazer queijo aqui?
R – Um queijo, sete dias de leite dá um quilo de queijo. Sete dias dá. A vaca dá uns dois litros aí. Quer dizer que dá muita sobra. É.
P/1 – E eu vi que tem galinha também, né?
R – Tem. Tem uns porquinhos aí.
P/1 - Aí o senhor tira os ovos da galinha também?
R – É. Pra despesa e as meninas levam também quando vêm aqui, né? Levam leite. Pronto. O consumo é isso aí.
P/1 – E plantar?
R – Não. Plantar, não planta, não.
P/1 – Aí compra os legumes aonde?
R – Compra em Lima Duarte. Faz o pedido lá, o caminhão entrega aqui.
P/1 – E fruta?
R – Compra fruta também lá.
P/1 – Nada de ficar plantando, dá muito trabalho.
R – O que nós colhe aqui é manga. É. Mas uma vez por ano, né? Aí compra lá banana, faz as compras. Também compra pouco, né? (risos) Tem que comprar, né? Banana escolhe ali.
P/1 – Seu Benevides, esse dinheiro que o senhor tem no banco, o senhor tá guardando pra quê?
R – Pra ficar lá, né? Fazer o quê? Eu não vou comprar mais nada, né?
P/1 – Não? O senhor não vai mais continuar comprando?
R – Não. Comprar, não. Tem essas casas lá, tem os terrenos aqui, pra que eu vou comprar mais? Ficar quieto, né?
P/1 – Mas pra que o senhor quer esse dinheiro lá?
R – Vai fazer o quê? Não posso queimá-lo. (risos)
P/1 – Mas é bom ter dinheiro lá, né?
R – É bom, ué.
P/1 – A gente pensa: “Ainda bem que eu tenho esse dinheiro por que ele me ajuda no quê?
R – Às vezes a gente cai numa doença, uma hora. Gasta. É ou não é?
P/1 – Hum hum.
R – Ou estou errado?
P/1 – Tá certo.
R – Eu não posso querer me calar. Fazer o quê?
P/1 – Mas agora não está rendendo juro nenhum, que o senhor já...
R – O banco dá pouco, né? Mas tá lá.
P/1 – E o que o senhor vai fazer? Vai deixar render pouco ou vai fazer alguma coisa com ele?
R – Não. Deixa quieto lá. Quietinho lá. (risos). Deixa lá porque desse dinheiro emprestado, particular, pra esses peões, se eu precisar de cinco mil amanhã... vamos supor: emprestei pra senhora dez mil, se eu precisar de cinco mil você já empatou, acabou, você não tem cinco mil pra me arrumar de um dia por outro, tem? Não tem.
P/1 – Antes da hora, né?
R – Lá no banco, qualquer hora que eu precisar de mil reais, cinco mil, dez mil, eu retiro na hora, né? De cinco mil pra adiante tem que fazer previsão, né? Mas ate cinco mil eu pego na hora. Vamos dizer: se a senhora precisar de cinco mil amanhã, uma comparação: “Você tem pra me arrumar, seu Benevides, cinco mil?” “Tenho, vou lá no banco amanhã”. Cinco mil eu tiro.
P/1 – Empresta?
R – É.
P/1 – Então emprestar o senhor ainda empresta, né?
R – Não. Conforme a pessoa, né? Qualquer pessoa não empresto, não.
P/1 – Não. O senhor empresta pra quem, então?
R – Um conhecido da gente, uns chegado.
P/1- Conhecido que o senhor souber que paga, né?
R – Saber que paga. Sujeito que tem imóvel, sabe que tem gado, tem terra. Mas sem terra não empresto, não. Pra quê?
P/1 – Depois do cano, não?
R – Desse calote, não. Tem que ficar ativo. Eles pensam que está é bobo, né?
P/1 – Pode perder dinheiro à toa, se emprestar pra pessoa errada.
R – Acaba tudo, uai! Fico sem nada, uai! É.
P/1 – Daqui da região o senhor foi a pessoa que mais conseguiu ganhar terra, gado, dinheiro? Ou tem outro empresário?
R – Tem umas pessoas aí que já têm muito dinheiro, né?
P/1 - Mas não de família. Estou falando que o senhor fez do zero, né?
R – Fiz do zero. É, ué. Trabalhei de empregado, não tinha nada, só ganhava o salário mínimo, uai! Não tinha nada. É.
P/1 – Como o senhor saiu da terra do seu pai pra ir trabalhar nessa empresa?
R – Que apareceu um emprego, sabe? Apareceu esse serviço no laticínio pra baixo do arraial ali e então a firma falou que estava precisando de um empregado.
P/1 – Pra quê? Pra tirar leite?
R – Trabalhar no laticínio, fazer queijo. Até que meu pai falou: “Vê se algum de vocês quer entrar nesse serviço lá”. Aí os meus irmãos não quiseram: “Não trabalho de empregado, não”. O mais velho, Zé Laurindo, mora em Lima Duarte. O Amado morreu. Aí eu entrei lá.
P/1 – Pro senhor não tinha problema trabalhar de empregado?
R – Não. Trabalhei lá. É ruim. Quem trabalha de empregado...
P/1 – Por que é ruim trabalhar de empregado?
R – Ai, é aquilo todo dia, né, minha filha? Todo dia, né? (risos)
P/1 - Na mesma hora, né?
R – Na mesma hora. Tinha horário certo. Tinha que pegar na hora certa e parar na hora. Enquanto não acabava o serviço... daí eu queria ir ao baile, às vezes, não tinha jeito de sair. É complicado. (risos)
P/1 – Não pode decidir que no carnaval não vai trabalhar também, né?
R – É. Também. Vai trabalhar. Já é feriado, mesmo, né? É isso.
P/1 – É, não pode faltar.
R – Não pode faltar no serviço, não. O queijo é todo dia, recebe o leite todo dia dos fazendeiros, né? Tem que, todo dia, chegar lá na hora certa. É. Tá fazendo frio, tem que voar na água pra lavar o vasilhame, né? É. Passei muito trabalho, minha filha.
P/1 – Eu sei, eu vi.
R – Passei.
R – Mas de todos esses trabalhos, qual o senhor acha que é o melhor?
R – Tudo foi bom, porque trabalhou, ganhou dinheiro, está bom.
P/1 – Agora, enquanto o senhor trabalhou nesse laticínio, o senhor ganhava muito ou pouco?
R – Era um salário, só, né?
P/1 – Dava pra viver? O senhor guardava dinheiro?
R – Não. Já bebia cachaça daquilo.
P/1 – Já gastava no bar?
R – Ia pras gandaias pra lá, né? É.
P/1 – Então quando foi que o senhor decidiu juntar dinheiro?
R – Depois que saí do emprego, comecei a negociar, né? Aí foi aparecendo dinheiro. O empregado é só o salário, não passa de nada. É só aquilo.
P/1 – O senhor ganhava férias?
R – Ganhava.
P/1 – E o que o senhor fazia nas férias?
R – Tirava em dinheiro. (risos)
P/1 – Ah, tirava em dinheiro? Não ficava com as férias, não?
R – Não, ficava com o dinheiro. Tirava em dinheiro.
P/1 – Dez anos sem férias, seu Benevides?
R – Sem férias.
P/1 – Putz, seu Benevides.
R – Aí, no fim das contas, quando eu saí da firma, é que cresceu o dinheirinho, porque tinha umas férias vencidas, né?
P/1 – Aí o senhor ganhou um dinheiro, né?
R – Já levantou pra cima. É.
P/1 – É isso, seu Benevides, então olha, obrigada pela entrevista, tá? Depois eu vou fazer uma cópia pro senhor, tá bom?
R – Tá bom. (risos)
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